NOVO CARDEAL
“Tolentino criou um oásis na Igreja
portuguesa”
António
Martins 'herdou', há pouco mais de um ano, a capela do Rato, depois de José
Tolentino de Mendonça ter sido chamado a dirigir os arquivos do Vaticano.
Conhece bem o novo cardeal, eleito este domingo pelo Papa Francisco e
considera-o “insubstituível”, por se tratar de uma figura “única na cultura e
na Igreja portuguesas”. Continuar o seu trabalho “é uma honra e uma obrigação”.
TEXTO ROSA
PEDROSO LIMA
Acapela do
Rato, da qual até Julho de 2018, o padre Tolentino de Mendonça era o principal
responsável está encerrada. Até 15 de setembro, a vida da comunidade católica
está “suspensa”, como indica o site e, por isso mesmo, não houve hipótese de
assinalar a subida do ex-capelão na hierarquia eclesial. A habitual missa
dominical, que acabaria no preciso momento em que o Papa Francisco informava o
mundo da nomeação de Tolentino, só regressa dentro de duas semanas.
Mas apesar
das férias e da ausência de mais de um ano, a marca de José Tolentino Mendonça
está por todo o lado. “A capela do Rato é um oásis na Igreja portuguesa”,
reconhece António Martins. O capelão chamado a substituir o agora cardeal
reconhece que não foi tarefa fácil. “O padre Tolentino é insubstituível, pelo
seu carisma, pela qualidade e pela diferença. E pela missão única que ocupa na
cultura e na Igreja portuguesas”, disse ao Expresso.
“Foi muito
desafiante, mas não posso dizer que foi fácil”, confessa, “na verdade, não
sabia onde me ia meter”. A comunidade tem uma “capacidade de intervenção, uma
fabulosa rede de contactos e uma dinâmica rara de encontrar” que, segundo
António Martins são uma herança direta de Tolentino de Mendonça. O agora
cardeal “marcou uma viragem na capela do Rato que é incontornável”,
contribuindo para a “inserção da Igreja no mundo contemporâneo e fomentando o
diálogo com a cultura e com os não crentes”.
in Semanário Expresso, 02.09.2019
https://leitor.expresso.pt/diario/segunda-46/html/caderno1/temas-principais/tolentino-criou-um-oasis-na-igreja-portuguesa
Francisco prepara sucessão
Nomeação de
novos cardeais reforça o peso dos reformadores no Conclave que elegerá o
próximo Papa. Francisco pode não estar de saída, mas já prepara a sucessão
ROSA PEDROSO
LIMA
A maioria
dos cardeais eleitores que no próximo Conclave será chamada a designar o
próximo Papa já foi nomeada por Francisco. Entre eles estão os portugueses
Manuel Clemente, António Marto e, o agora anunciado novo cardeal, José
Tolentino Mendonça. O actual Papa — que sempre prometeu ter um Pontificado
“curto” — pode não ter conseguido mudar a Igreja Católica, mas está, aos
poucos, a reformar o topo da sua hierarquia. E, se é certo que “pode não estar
de saída, já está a preparar a sua sucessão”, diz fonte eclesiástica ao
Expresso.
Entre a ala
reformista, dos que defendem uma Igreja aberta ao mundo, e os conservadores,
que chegam a acusá-lo de ser “herege” pelas posições doutrinais que defende, o
Papa Francisco vai marcando terreno. E, mais do que isso, preparando o futuro.
Ao longo do seu pontificado e com as nomeações que fez já garantiu 53% dos
cardeais que no próximo Conclave terão direito a decidir quem será o seu
sucessor.
As regras do
Vaticano impedem os cardeais com mais de 80 anos de exercer o direito de voto,
isto é, de participarem no Conclave de eleição dos Papas. Esta mudança do
‘protocolo’ foi feita ainda no Pontificado de João Paulo II e dá aos chamados
‘cardeais eleitores’ um estatuto duplamente especial: só eles têm o direito
acumulado de votar e de ser eleitos. Isto é, qualquer um pode ser Papa desde
que reúna a maioria de votos do Conclave.
Contas
feitas, com as recentes nomeações anunciadas no último domingo, a vantagem da
ala reformadora protagonizada pelo Papa Francisco é clara: entre os 124
cardeais eleitores, 66 foram escolhidos por ele, contra 42 designados por Bento
XVI e 16 por João Paulo II (ver infografia).
A PERIFERIA NO TOPO
Em seis anos
de pontificado, a marca de Francisco veio para ficar. E, pelo menos, no topo da
hierarquia da Igreja as recentes escolhas de cardeais dão sinais de uma mudança
com raízes para o futuro. Veja-se, por exemplo, a ascensão ultrarrápida de
Tolentino Mendonça (ver fotolegenda) que em menos de um ano e meio passou de
capelão do Rato, em Lisboa, a cardeal em Roma. Há poucos meses, o poeta e padre
português era alvo de ataques diretos da ala mais radical da Igreja, que em
carta aberta enviada ao Papa e assinada por 19 padres e teólogos acusavam
Tolentino de alegadamente defender “a moralidade dos atos homossexuais e o
aborto como direito”. Francisco não respondeu, nem mesmo quando quatro cardeais
se juntaram a estas vozes críticas e avançaram com uma dubia (dúvida de
legitimidade) ao próprio Papa, argumentando que promovia “uma atmosfera de
materialismo, relativismo e hedonismo, em que se coloca em questão a existência
de uma lei moral absoluta e sem exceções”.
Ou, talvez,
a escolha do português para cardeal seja a resposta de Francisco de que não
está disposto a ter em conta as críticas da ala ultraconservadora da Igreja. O
mesmo se pode dizer da designação como cardeais do arcebispo espanhol Miguel
Guixot ou do jesuíta de origem checa Micael Czerny. O primeiro fez parte do
Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e o segundo, depois de duas
décadas no Quénia, integrou a secção de Migrantes e Refugiados, do Dicastério
para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral da Santa Sé. As prioridades
da agenda do Papa mantêm-se, mesmo contra ventos e marés: o diálogo ecuménico e
a presença da Igreja junto dos mais frágeis são prioridades absolutas.
O Papa, que
desde o seu primeiro discurso fez questão de afirmar que vinha “do fim do
mundo” e que também por isso tinha por objetivo trazer “as periferias para o
centro” do debate e dos objetivos do Vaticano, cumpriu a promessa. Por vontade
própria, reduziu progressivamente o peso dos continentes mais ricos (Europa e
América do Norte) no colégio dos cardeais, ao mesmo tempo que deu força à
participação das igrejas latino-americanas, africanas e asiáticas.
Na sua
última intervenção dirigida “a todos os sacerdotes”, enviada em agosto às
dioceses de todo o mundo, o Papa voltou a frisar as prioridades da sua missão
apostólica: “A conversão, a transparência, a sinceridade e a solidariedade para
com as vítimas devem tornar-se a nossa maneira de fazer a História”, resume. E
os sinais de que quer rodear-se daqueles que, assumidamente, estão com ele são
evidentes. Na primeira reação à sua nomeação, José Tolentino Mendonça fez
questão de assumir que entende a nomeação papal como “um chamamento para um
serviço mais radical” à Igreja. E, António Marto, chamado, no ano passado, por
Francisco ao cardinalato também não tem dúvidas de que Tolentino será, tal como
ele próprio, “um grande apoiante deste Papa”. Aos dois cardeais portugueses,
junta-se o patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, que assume a sua “comunhão
profunda” com Francisco. Não restam dúvidas de que os representantes
portugueses no próximo Conclave vão engrossar a ala reformista da Igreja. Falta
saber se algum deles pode mesmo chegar a ser Papa.
O CAPELÃO QUE SURPREENDEU O PAPA COM
O ELOGIO DA SEDE
A 5 de
outubro, José Tolentino Mendonça será o mais jovem cardeal do colégio
cardinalício do Vaticano. Aos 53 anos, o antigo capelão da Universidade
Católica de Lisboa e, mais tarde, da Capela do Rato, integrou o Conselho
Pontifício da Cultura, nomeado pelo Papa Bento XVI. Poeta e biblista, foi
convidado, em fevereiro de 2018, para conduzir o retiro quaresmal do Papa
Francisco. “Interessa-me sobretudo uma espiritualidade do quotidiano”, disse,
na altura para justificar as ‘lições’ que deu sobre “o elogio da sede”. A
impressão causada junto do Papa fica expressa pouco depois. Bastaram dois meses
para que Tolentino fosse nomeado arcebispo e chamado a dirigir a Biblioteca do
Vaticano. Agora chega ao cardinalato.
Tolentino visto por alguns dos seus
paroquianos
Uma
jornalista, uma líder política e um ator. Em comum têm o facto de terem
conhecido “o padre Tolentino”, agora nomeado cardeal, nos tempos em que o poeta
era pastor de ovelhas em pequenas capelas católicas. O Expresso convidou-os a
escrever. Alice Vieira, Assunção Cristas e Luis Miguel Cintra, aceitaram
Três
depoimentos, transcritos na íntegra nesta edição Diária e na versão digital do
semanário Expresso, podem ser lidos no Expresso deste sábado. Integrados num
trabalho sobre a nomeação de José Tolentino de Mendonça como cardeal, ajudam a
perceber as características do homem que o Papa Francisco fez questão de chamar
para um dos mais altos cargos da hierarquia católica. Tolentino é uma das peças
da reforma da Igreja que o atual Papa está a realizar. Francisco já mudou o
perfil do Conclave que irá decidir o seu sucessor e, se não está (ainda) de
saída, é certo que já está a preparar o futuro.
O meu amigo Zé
Alice Vieira
Jornalista e escritora
“Para mim, o
cardeal Dom José Tolentino Mendonça é, e há-de ser sempre, o meu amigo Zé
Tolentino.
Conheci-o há
muitos anos quando ambos fomos, pela primeira vez, à Feira do Livro de
Frankfurt.
Ficámos logo
bons amigos — e só quando cheguei a Lisboa é que descobri que ele era padre.
Ao longo de
todos estes anos ele tem sido sempre o Zé a quem posso recorrer, e que me manda
postais nos anos e noutras alturas . Que encontrava na Igreja de Santa Isabel,
depois na Capela do Rato, às vezes na Universidade Católica. E outras, apenas
para bebermos um café como dois simples amigos.
Ajudou-me
muito quando escrevi as minhas “Histórias da Bíblia” para crianças.
Aproximou-me
da grande poesia, assim como me aproximou da Igreja. E foi um grande
dinamizador dos encontros mensais no Convento das Monjas Dominicanas do Lumiar
(o Luis Miguel Cintra ia lá muitas vezes falar…), que também já acabaram.
Nunca me
hei-de esquecer das suas homilias na Capela do Rato — onde conseguiu uma
maneira de os divorciados não serem totalmente excluídos da comunhão; onde
tinha sempre uma série de crianças aos seus pés; onde arranjava sempre maneira
de falar de cultura (literatura, pintura, etc ).
A sua
elevação a cardeal é uma honra para todos nós.
Mas o meu
amigo Zé vai fazer-me muita, muita falta.”
O Tolentino aproveita tudo
Assunção
Cristas Líder do PP
“Conheci o
Padre Tolentino no início da década de noventa, era ele capelão da Universidade
Católica e assistente espiritual das Equipas de Jovens de Nossa Senhora.
Naquela altura, fomos criando o hábito de sair a correr das aulas da “Clássica”
(Universidade de Lisboa) para assistirmos à missa que o Tolentino celebrava na
Católica. Ao mesmo tempo que ia conhecendo o padre, ia descobrindo a sua
poesia. Não sei o que mais me fascinava: a dupla qualidade de poeta e padre
tinha tanto de improvável quanto de deslumbrante e arrebatador. Casou-nos,
batizou os nossos filhos, é padrinho da nossa filha mais nova. Fomos tecendo
uma amizade para a vida, muito construída na nossa equipa de casais de Nossa
Senhora e alimentada na Capela do Rato.
Creio que a
amizade não me trai a isenção: Dom José Tolentino tem uma dimensão humana, de
humildade e simplicidade, capaz de tocar o coração de todas as pessoas, e uma
abrangência cultural ímpar que cria pontes e junta em seu torno pessoas de
territórios muito diversos, crentes e não crentes.
Como
comentava uma querida amiga não batizada: o Tolentino aproveita tudo, não
desperdiça nada. É verdade, com a sua “gramática do amor” transforma todos os
farrapos de vida, todos os feixes de luz, estejam eles numa pintura antiga ou
numa música contemporânea, na poesia de um ateu ou na escultura de um crente,
numa tragédia clássica ou num filme de hoje, na vida dos santos ou na vida de
cada pessoa com quem se cruza, na certeza inabalável de que é Jesus quem nos
salva a todos.”
Aqui vos juro que esta modéstia não é
fingida
Luís Miguel
Cintra Ator
“Hoje,
parece-me que já ninguém é capaz de dizer: “eu não me meto em política” ou
“isso é com os políticos”. Foi difícil chegar a esta inteligência mínima, mas
creio que toda a gente já percebeu que a política é a arte de organizar a vida
de toda a gente. Mas “arte” é o que eu gostaria que ela fosse, terreno de
responsabilidade por excelência (individual e coletiva, e não há duas, é uma
só). E também as palavras se deixaram contaminar pela organização da vida em
que o capitalismo nos meteu. E até a palavra Arte — que transportaria consigo
inovação, comunicação, alegria, movimento, imaginação, em suma, tudo o que não
pode ser garantido mas se espera e se deseja que dê à nossa vida uma razão de
existir, longe da exploração do homem pelo homem e do exercício do poder e da
opressão, à escala privada, pública e universal — passou a ser encarada como
designando um produto que, com a ajuda de algum desenvolvimento técnico, se
tornou em eficaz passatempo, motor de vida turística e arma importante de
subida de escalão social, de conquista de um fictício estatuto.
E a polis,
essa palavra grega que queria dizer 'cidade' e de onde vem a palavra
'política', agora é economicamente uma única para o mundo inteiro e as diferenças
na memória cultural do que resta das comunidades que ainda funcionam à escala
humana, farrapos desintegrados de diferentes maneiras de pensar e viver. As
pessoas já perceberam que a política não está de acordo com a sua vida, que é
feita de leis que as deviam defender, que há a democracia. Mas podiam
lembrar-se que a democracia foi inventada numa terra , a Grécia antiga, onde as
casas ainda hoje têm as janelas abertas dia e noite, em cidades-estados
pequenas, à escala dos homens e, mesmo assim, depressa se encheu de vícios. E
hoje as pessoas gostam de votar, mesmo mentindo a si próprias sobre a real
representatividade e liberdade de escolha entre o vários programas eleitorais
ou políticos e que, dizem, defendem os povos “desenvolvidos” porque ainda não
se encontrou melhor sistema.
E até isto
se julgará mais que dito e redito. Mas, apetece-me voltar a recorda-lo também a
propósito da recente, extraordinariamente rápida e entusiástica, nomeação pelo
magnífico Papa Francisco daquele que, ainda há poucos anos, era só um padre
poeta, de simpatias políticas indefinidas, professor de Teologia na
Universidade Católica: o padre José Tolentino de Mendonça.
Primeiro foi
chamado para orientar o retiro pascal da Cúria. Depois, saltando na hierarquia
da igreja católica o degrau de bispo, a nomeação para lugar de diretor da
Biblioteca Vaticana (eu diria, da “memória do mundo”), e agora cardeal, membro
da Cúria. Cargos esses a que o próprio Tolentino chamou, em cima do momento
numa entrevista à rádio, de “colaborador do Papa”.
VIVER COMO QUEM FAZ TEOLOGIA
“E eu, que
tenho tido a grande sorte de me tornar em muito grande amigo seu, aqui vos juro
que esta modéstia não é fingida. Ele é, naturalmente, o homem raríssimo nos
tempos que vivemos, capaz de dar vida aos textos bíblicos como a uma simples
fórmula de respeito e de nunca dizer uma frase que seja postiça, de viver como
quem faz teologia. De, como o Papa (que não me surpreende que tenha visto nele
um excelente continuador do seu pensamento) lançar, com pontuais e levíssimas
intervenções, pequenas bombas que deixam expostos cancros ou fundas feridas do
mundo político católico. E, por esse mesmo gesto “guerrilheiro” confiadas à
iniciativa de toda Igreja, e, além disso, numa época como a nossa, elevar as
mais pobres comunidades católicas como a mais importante e necessitada parte de
toda a comunidade católica.
Quer no
nosso, daqui a dias, cardeal Tolentino, quer na linha de atuação do Papa, a
recusa de uma Igreja toda assente no esquema de poder imitado do poder profano,
não é sequer uma decisão: é natural e evidente, tal como é uma evidência que o
monstruoso desenvolvimento da Santa Sé ao longo da História é um desvio da
justiça criminosa, que os católicos herdaram e que têm como responsabilidade
corrigir.
É paralelo
aos que os poderes laicos herdaram da marcha da História…e que também muito
poucas vezes corrigiriam. Só que o Cristianismo se define como fé num Deus
tripartido: Pai, Filho e Espírito Santo e tem a incarnação de uma das três
pessoas na humanidade como eixo de toda a doutrina que como único mandamento
tem o Amor. A motivação católica para trabalhar, e para assumir o pecado do
mundo, a sua aceitação da morte, é com certeza mais forte, não se resolve com
novas tomadas de poder, nem assenta na acumulação de capital, como o único
critério. A relação com a Arte é a inversa. A esperança é central na própria
doutrina e quem rege tudo isto é outra das figuras sem imagem.
Foi com o
Tolentino que percebi, pela primeira vez e apesar da austera e rigorosa
formação que recebi da família, o que é o Espírito Santo e como a imagem da
pomba a que a Igreja e a arte religiosa permaneceram fieis, é insuficiente,
O Tolentino,
numa atitude de absoluta lealdade e respeito pela minha liberdade, passou a ser
aquela pessoa que, de todos os eclesiásticos que conheci, mais “naturalmente”
passou a fazer parte da minha vida. Como se costumava dizer entre católicos,
numa atitude de diretor espiritual, pura e simplesmente porque se propôs, não
dirigir, mas partilhar dúvidas e encontrar na busca da “santidade”, não uma
atitude moralizadora da vida, mas a própria natureza da vida, como descoberta.
É como se estivesse continuamente a desafiar os outros, foi isso que comigo
aconteceu, para reinventar, poeticamente, o pensamento cristão, entendido como
caminho para a alegria de descobrir o transcendente, a beleza da contradição
humana, a vida.
No seu
primeiro contacto comigo, dirigiu-se a mim. Estava à porta da Basílica da
Estrela à minha espera, para me prevenir que a situação em que me ia envolver
não era uma simples leitura em voz alta de poemas seus, era a participação numa
celebração eucarística presidida por um bispo, coisa que podia não me agradar.
Era, de facto, o que acontecia.
Veio outro
sacerdote levar-me ao altar-mor, num gesto que se tornou, automaticamente,
simbólico de uma reintregração espetacular na prática religiosa. Daí em diante,
passei a tornar aquele equívoco em ponto de partida de uma partilha, de uma
nova maneira de estar, baseada na confiança que é, na verdade, uma prática de
fraternidade — em oposição a uma atitude da Igreja, de que me afastara, por
considerar abusiva e alheia a qualquer santidade, a tradicional interferência e
abuso moral da autoridade da Igreja na vida religiosa dos cristãos.
Desafiou-me,
depois, para lhe escrever um prefácio a um livro seu de orações, que fosse um
texto sobre a própria oração. Lancei, 'tentativamente', a ideia de que rezar
seria a capacidade de viver em estado de oração, de contemplação ativa da vida
como obra divina. Um passo só um pouco mais largo com a palavra Deus, que o da
atitude do poeta, do artista. E quando, na apresentação do livro, ousei dizer
que reconhecia na Igreja — entendida como o conjunto dos cristãos — muita gente
que já rezava assim, e que conhecer o Tolentino me dava a alegria e a confiança
de reencontrar a alegria de lhe poder justamente chamar padre, foi a casa
abaixo, como se diz no teatro.
Bastantes
anos de amizade depois, anos que me levaram a responder a tantos desafios seus
de natureza religiosa e artística e à vaidade (de todos os meus pecados aquele
que mais prazer tenho em continuar a praticar com a melhor das consciências)
de, nas missas celebradas por ele, ter passado a ser regra ele me convidar a
ser também celebrante, ao desafiar-me para lhe “emprestar” a minha voz e subir
ao “ambão” para ler o evangelho, tive a sensação de assistir a um milagre (sim,
acredito nos milagres mas tenho a maior empatia com São Tomé, tanto como choro
de emoção com todos os quadros que tomam por tema o “Noli me tangere”, o
encontro de Maria Madalena com Cristo ressuscitado na figura de um jardineiro).
Quando me vi
no Mosteiro dos Jerónimos perante o poder secular, que lá se deslocou para
assistir à investidura de Arcebispo por vontade de um Papa tão extraordinário
que usa o próprio poder que a Igreja lhe confere para permanentemente o
desconstruir, e vi o gesto do novo Arcebispo (“what’s in a name!”). Quando,
depois da ostentação espetacular de um poder hierárquico tão venal como aquele
que a tradição da igreja sempre mais ocupada em conservar que em inovar
continua a praticar, (aliás com enorme eficácia apurada de século em século), o
“nosso” Padre Tolentino, pegou no báculo que o cardeal Patriarca(cargo com um
passado tão pesado e que tanta coragem exige de quem o assumir) lhe estendeu,
e, vestido de arcebispo, literalmente, correu para o fundo daquela Catedral que
celebra a conquista do mundo pelos crucifixos e pelas espadas dos (maus)
colonizadores portugueses cristãos; quando desceu aquele degrau e passou para o
lado dos “pequenos” e se ouviu rebentar como um trovão a mais sonora salva de
palmas a que me foi dado assistir (e ouvi algumas, ainda me lembro…), disse
para mim próprio: acabo de assistir a um milagre.
Era
espetáculo, eu sei, mas o cargo de Director da Biblioteca Vaticana, a
rapidíssima nomeação para cardeal, que já são dados de uma atribuição não de
prémios mas de responsabilidades, transcende tudo isso. E com a lealdade e a
generosidade com que eu sei que o Tolentino assumirá tais postos por confiança
do Papa Francisco, novo guerrilheiro da consciência política (da sua amizade,
palavra ou conceito em que mais uma vez me sinto tão perto), chego a esperar
que o Cristianismo, como toda a História do Mundo, talvez precise de passar
pelo Caos, como o Comunista Heiner Muller por seu lado pregava, mas também está
simbolizado na imagem da primavera das árvores em flor do início do “Acto da
Primavera”, de Manoel de Oliveira.
Com o
Tolentino, com o seu convívio, aprendi a esperança, que é o contrário da
utopia, que é a palavra venenosa com que se engordam os cínicos. Ter fé é
colaborar com a vida que acreditamos e queremos que exista para além de nós,
antes do fim do Mundo. Princípio e fim são palavras. Inventou-as o Homem quando
começou a falar e a dar nome às coisas. Teve a ilusão de, com as palavras,
inventar o mundo e o poder dos homens e dominar o Tempo.
O Tolentino
felizmente é poeta. Acredita na revolução do pensamento que a linguagem
metafórica da arte traz consigo. Acredita que passa pela transformação do
pensamento e da sua maneira de se manifestar e conduzir a vida, o
aperfeiçoamento da humanidade. Passei a acreditar, também, que a fé não é
estática. Tem de ser dinâmica. Acredito que aos Cristãos pode caber um papel
fundamental, pela nova maneira de viver a relação com os outros e que acabará
por levar a Humanidade a destruir o sistema capitalista.
É preciso a
confiança em Deus, a Fé, a abertura de cada um ao que sei agora os cristãos
chamam o “Espírito Santo”. Nesta travessia do deserto ou no inferno pagão tem-me
valido …. o cardeal Tolentino. Tal como outro grande amigo, Manoel de Oliveira
que há pouco tempo me ensinou o que é morrer: “O espírito sai do corpo, que
morre. E com ele morre a personalidade. Mas o Espírito não morre, junta-se ao
Espírito Universal.”
A diferença
que vai de Universal a Santo acredito que temos de a ir entendendo à custa de
metáforas.”
in Semanário Expresso 07.09.2019 p40
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2445-2/html/primeiro-caderno/sociedade/francisco-prepara-sucessao
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