08 setembro 2019


NOVO CARDEAL
“Tolentino criou um oásis na Igreja portuguesa”

António Martins 'herdou', há pouco mais de um ano, a capela do Rato, depois de José Tolentino de Mendonça ter sido chamado a dirigir os arquivos do Vaticano. Conhece bem o novo cardeal, eleito este domingo pelo Papa Francisco e considera-o “insubstituível”, por se tratar de uma figura “única na cultura e na Igreja portuguesas”. Continuar o seu trabalho “é uma honra e uma obrigação”.

TEXTO ROSA PEDROSO LIMA

Acapela do Rato, da qual até Julho de 2018, o padre Tolentino de Mendonça era o principal responsável está encerrada. Até 15 de setembro, a vida da comunidade católica está “suspensa”, como indica o site e, por isso mesmo, não houve hipótese de assinalar a subida do ex-capelão na hierarquia eclesial. A habitual missa dominical, que acabaria no preciso momento em que o Papa Francisco informava o mundo da nomeação de Tolentino, só regressa dentro de duas semanas.

Mas apesar das férias e da ausência de mais de um ano, a marca de José Tolentino Mendonça está por todo o lado. “A capela do Rato é um oásis na Igreja portuguesa”, reconhece António Martins. O capelão chamado a substituir o agora cardeal reconhece que não foi tarefa fácil. “O padre Tolentino é insubstituível, pelo seu carisma, pela qualidade e pela diferença. E pela missão única que ocupa na cultura e na Igreja portuguesas”, disse ao Expresso.

“Foi muito desafiante, mas não posso dizer que foi fácil”, confessa, “na verdade, não sabia onde me ia meter”. A comunidade tem uma “capacidade de intervenção, uma fabulosa rede de contactos e uma dinâmica rara de encontrar” que, segundo António Martins são uma herança direta de Tolentino de Mendonça. O agora cardeal “marcou uma viragem na capela do Rato que é incontornável”, contribuindo para a “inserção da Igreja no mundo contemporâneo e fomentando o diálogo com a cultura e com os não crentes”.
in Semanário Expresso, 02.09.2019
https://leitor.expresso.pt/diario/segunda-46/html/caderno1/temas-principais/tolentino-criou-um-oasis-na-igreja-portuguesa

Francisco prepara sucessão

Nomeação de novos cardeais reforça o peso dos reformadores no Conclave que elegerá o próximo Papa. Francisco pode não estar de saída, mas já prepara a sucessão

ROSA PEDROSO LIMA

A maioria dos cardeais eleitores que no próximo Conclave será chamada a designar o próximo Papa já foi nomeada por Francisco. Entre eles estão os portugueses Manuel Clemente, António Marto e, o agora anunciado novo cardeal, José Tolentino Mendonça. O actual Papa — que sempre prometeu ter um Pontificado “curto” — pode não ter conseguido mudar a Igreja Católica, mas está, aos poucos, a reformar o topo da sua hierarquia. E, se é certo que “pode não estar de saída, já está a preparar a sua sucessão”, diz fonte eclesiástica ao Expresso.

Entre a ala reformista, dos que defendem uma Igreja aberta ao mundo, e os conservadores, que chegam a acusá-lo de ser “herege” pelas posições doutrinais que defende, o Papa Francisco vai marcando terreno. E, mais do que isso, preparando o futuro. Ao longo do seu pontificado e com as nomeações que fez já garantiu 53% dos cardeais que no próximo Conclave terão direito a decidir quem será o seu sucessor.

As regras do Vaticano impedem os cardeais com mais de 80 anos de exercer o direito de voto, isto é, de participarem no Conclave de eleição dos Papas. Esta mudança do ‘protocolo’ foi feita ainda no Pontificado de João Paulo II e dá aos chamados ‘cardeais eleitores’ um estatuto duplamente especial: só eles têm o direito acumulado de votar e de ser eleitos. Isto é, qualquer um pode ser Papa desde que reúna a maioria de votos do Conclave.

Contas feitas, com as recentes nomeações anunciadas no último domingo, a vantagem da ala reformadora protagonizada pelo Papa Francisco é clara: entre os 124 cardeais eleitores, 66 foram escolhidos por ele, contra 42 designados por Bento XVI e 16 por João Paulo II (ver infografia).


A PERIFERIA NO TOPO

Em seis anos de pontificado, a marca de Francisco veio para ficar. E, pelo menos, no topo da hierarquia da Igreja as recentes escolhas de cardeais dão sinais de uma mudança com raízes para o futuro. Veja-se, por exemplo, a ascensão ultrarrápida de Tolentino Mendonça (ver fotolegenda) que em menos de um ano e meio passou de capelão do Rato, em Lisboa, a cardeal em Roma. Há poucos meses, o poeta e padre português era alvo de ataques diretos da ala mais radical da Igreja, que em carta aberta enviada ao Papa e assinada por 19 padres e teólogos acusavam Tolentino de alegadamente defender “a moralidade dos atos homossexuais e o aborto como direito”. Francisco não respondeu, nem mesmo quando quatro cardeais se juntaram a estas vozes críticas e avançaram com uma dubia (dúvida de legitimidade) ao próprio Papa, argumentando que promovia “uma atmosfera de materialismo, relativismo e hedonismo, em que se coloca em questão a existência de uma lei moral absoluta e sem exceções”.

Ou, talvez, a escolha do português para cardeal seja a resposta de Francisco de que não está disposto a ter em conta as críticas da ala ultraconservadora da Igreja. O mesmo se pode dizer da designação como cardeais do arcebispo espanhol Miguel Guixot ou do jesuíta de origem checa Micael Czerny. O primeiro fez parte do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e o segundo, depois de duas décadas no Quénia, integrou a secção de Migrantes e Refugiados, do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral da Santa Sé. As prioridades da agenda do Papa mantêm-se, mesmo contra ventos e marés: o diálogo ecuménico e a presença da Igreja junto dos mais frágeis são prioridades absolutas.

O Papa, que desde o seu primeiro discurso fez questão de afirmar que vinha “do fim do mundo” e que também por isso tinha por objetivo trazer “as periferias para o centro” do debate e dos objetivos do Vaticano, cumpriu a promessa. Por vontade própria, reduziu progressivamente o peso dos continentes mais ricos (Europa e América do Norte) no colégio dos cardeais, ao mesmo tempo que deu força à participação das igrejas latino-americanas, africanas e asiáticas.

Na sua última intervenção dirigida “a todos os sacerdotes”, enviada em agosto às dioceses de todo o mundo, o Papa voltou a frisar as prioridades da sua missão apostólica: “A conversão, a transparência, a sinceridade e a solidariedade para com as vítimas devem tornar-se a nossa maneira de fazer a História”, resume. E os sinais de que quer rodear-se daqueles que, assumidamente, estão com ele são evidentes. Na primeira reação à sua nomeação, José Tolentino Mendonça fez questão de assumir que entende a nomeação papal como “um chamamento para um serviço mais radical” à Igreja. E, António Marto, chamado, no ano passado, por Francisco ao cardinalato também não tem dúvidas de que Tolentino será, tal como ele próprio, “um grande apoiante deste Papa”. Aos dois cardeais portugueses, junta-se o patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, que assume a sua “comunhão profunda” com Francisco. Não restam dúvidas de que os representantes portugueses no próximo Conclave vão engrossar a ala reformista da Igreja. Falta saber se algum deles pode mesmo chegar a ser Papa.

O CAPELÃO QUE SURPREENDEU O PAPA COM O ELOGIO DA SEDE

A 5 de outubro, José Tolentino Mendonça será o mais jovem cardeal do colégio cardinalício do Vaticano. Aos 53 anos, o antigo capelão da Universidade Católica de Lisboa e, mais tarde, da Capela do Rato, integrou o Conselho Pontifício da Cultura, nomeado pelo Papa Bento XVI. Poeta e biblista, foi convidado, em fevereiro de 2018, para conduzir o retiro quaresmal do Papa Francisco. “Interessa-me sobretudo uma espiritualidade do quotidiano”, disse, na altura para justificar as ‘lições’ que deu sobre “o elogio da sede”. A impressão causada junto do Papa fica expressa pouco depois. Bastaram dois meses para que Tolentino fosse nomeado arcebispo e chamado a dirigir a Biblioteca do Vaticano. Agora chega ao cardinalato.

Tolentino visto por alguns dos seus paroquianos

Uma jornalista, uma líder política e um ator. Em comum têm o facto de terem conhecido “o padre Tolentino”, agora nomeado cardeal, nos tempos em que o poeta era pastor de ovelhas em pequenas capelas católicas. O Expresso convidou-os a escrever. Alice Vieira, Assunção Cristas e Luis Miguel Cintra, aceitaram

Três depoimentos, transcritos na íntegra nesta edição Diária e na versão digital do semanário Expresso, podem ser lidos no Expresso deste sábado. Integrados num trabalho sobre a nomeação de José Tolentino de Mendonça como cardeal, ajudam a perceber as características do homem que o Papa Francisco fez questão de chamar para um dos mais altos cargos da hierarquia católica. Tolentino é uma das peças da reforma da Igreja que o atual Papa está a realizar. Francisco já mudou o perfil do Conclave que irá decidir o seu sucessor e, se não está (ainda) de saída, é certo que já está a preparar o futuro.

O meu amigo Zé
Alice Vieira Jornalista e escritora

“Para mim, o cardeal Dom José Tolentino Mendonça é, e há-de ser sempre, o meu amigo Zé Tolentino.

Conheci-o há muitos anos quando ambos fomos, pela primeira vez, à Feira do Livro de Frankfurt.

Ficámos logo bons amigos — e só quando cheguei a Lisboa é que descobri que ele era padre.

Ao longo de todos estes anos ele tem sido sempre o Zé a quem posso recorrer, e que me manda postais nos anos e noutras alturas . Que encontrava na Igreja de Santa Isabel, depois na Capela do Rato, às vezes na Universidade Católica. E outras, apenas para bebermos um café como dois simples amigos.

Ajudou-me muito quando escrevi as minhas “Histórias da Bíblia” para crianças.

Aproximou-me da grande poesia, assim como me aproximou da Igreja. E foi um grande dinamizador dos encontros mensais no Convento das Monjas Dominicanas do Lumiar (o Luis Miguel Cintra ia lá muitas vezes falar…), que também já acabaram.

Nunca me hei-de esquecer das suas homilias na Capela do Rato — onde conseguiu uma maneira de os divorciados não serem totalmente excluídos da comunhão; onde tinha sempre uma série de crianças aos seus pés; onde arranjava sempre maneira de falar de cultura (literatura, pintura, etc ).

A sua elevação a cardeal é uma honra para todos nós.

Mas o meu amigo Zé vai fazer-me muita, muita falta.”

O Tolentino aproveita tudo
Assunção Cristas Líder do PP

“Conheci o Padre Tolentino no início da década de noventa, era ele capelão da Universidade Católica e assistente espiritual das Equipas de Jovens de Nossa Senhora. Naquela altura, fomos criando o hábito de sair a correr das aulas da “Clássica” (Universidade de Lisboa) para assistirmos à missa que o Tolentino celebrava na Católica. Ao mesmo tempo que ia conhecendo o padre, ia descobrindo a sua poesia. Não sei o que mais me fascinava: a dupla qualidade de poeta e padre tinha tanto de improvável quanto de deslumbrante e arrebatador. Casou-nos, batizou os nossos filhos, é padrinho da nossa filha mais nova. Fomos tecendo uma amizade para a vida, muito construída na nossa equipa de casais de Nossa Senhora e alimentada na Capela do Rato.

Creio que a amizade não me trai a isenção: Dom José Tolentino tem uma dimensão humana, de humildade e simplicidade, capaz de tocar o coração de todas as pessoas, e uma abrangência cultural ímpar que cria pontes e junta em seu torno pessoas de territórios muito diversos, crentes e não crentes.

Como comentava uma querida amiga não batizada: o Tolentino aproveita tudo, não desperdiça nada. É verdade, com a sua “gramática do amor” transforma todos os farrapos de vida, todos os feixes de luz, estejam eles numa pintura antiga ou numa música contemporânea, na poesia de um ateu ou na escultura de um crente, numa tragédia clássica ou num filme de hoje, na vida dos santos ou na vida de cada pessoa com quem se cruza, na certeza inabalável de que é Jesus quem nos salva a todos.”

Aqui vos juro que esta modéstia não é fingida
Luís Miguel Cintra Ator

“Hoje, parece-me que já ninguém é capaz de dizer: “eu não me meto em política” ou “isso é com os políticos”. Foi difícil chegar a esta inteligência mínima, mas creio que toda a gente já percebeu que a política é a arte de organizar a vida de toda a gente. Mas “arte” é o que eu gostaria que ela fosse, terreno de responsabilidade por excelência (individual e coletiva, e não há duas, é uma só). E também as palavras se deixaram contaminar pela organização da vida em que o capitalismo nos meteu. E até a palavra Arte — que transportaria consigo inovação, comunicação, alegria, movimento, imaginação, em suma, tudo o que não pode ser garantido mas se espera e se deseja que dê à nossa vida uma razão de existir, longe da exploração do homem pelo homem e do exercício do poder e da opressão, à escala privada, pública e universal — passou a ser encarada como designando um produto que, com a ajuda de algum desenvolvimento técnico, se tornou em eficaz passatempo, motor de vida turística e arma importante de subida de escalão social, de conquista de um fictício estatuto.

E a polis, essa palavra grega que queria dizer 'cidade' e de onde vem a palavra 'política', agora é economicamente uma única para o mundo inteiro e as diferenças na memória cultural do que resta das comunidades que ainda funcionam à escala humana, farrapos desintegrados de diferentes maneiras de pensar e viver. As pessoas já perceberam que a política não está de acordo com a sua vida, que é feita de leis que as deviam defender, que há a democracia. Mas podiam lembrar-se que a democracia foi inventada numa terra , a Grécia antiga, onde as casas ainda hoje têm as janelas abertas dia e noite, em cidades-estados pequenas, à escala dos homens e, mesmo assim, depressa se encheu de vícios. E hoje as pessoas gostam de votar, mesmo mentindo a si próprias sobre a real representatividade e liberdade de escolha entre o vários programas eleitorais ou políticos e que, dizem, defendem os povos “desenvolvidos” porque ainda não se encontrou melhor sistema.

E até isto se julgará mais que dito e redito. Mas, apetece-me voltar a recorda-lo também a propósito da recente, extraordinariamente rápida e entusiástica, nomeação pelo magnífico Papa Francisco daquele que, ainda há poucos anos, era só um padre poeta, de simpatias políticas indefinidas, professor de Teologia na Universidade Católica: o padre José Tolentino de Mendonça.

Primeiro foi chamado para orientar o retiro pascal da Cúria. Depois, saltando na hierarquia da igreja católica o degrau de bispo, a nomeação para lugar de diretor da Biblioteca Vaticana (eu diria, da “memória do mundo”), e agora cardeal, membro da Cúria. Cargos esses a que o próprio Tolentino chamou, em cima do momento numa entrevista à rádio, de “colaborador do Papa”.

VIVER COMO QUEM FAZ TEOLOGIA

“E eu, que tenho tido a grande sorte de me tornar em muito grande amigo seu, aqui vos juro que esta modéstia não é fingida. Ele é, naturalmente, o homem raríssimo nos tempos que vivemos, capaz de dar vida aos textos bíblicos como a uma simples fórmula de respeito e de nunca dizer uma frase que seja postiça, de viver como quem faz teologia. De, como o Papa (que não me surpreende que tenha visto nele um excelente continuador do seu pensamento) lançar, com pontuais e levíssimas intervenções, pequenas bombas que deixam expostos cancros ou fundas feridas do mundo político católico. E, por esse mesmo gesto “guerrilheiro” confiadas à iniciativa de toda Igreja, e, além disso, numa época como a nossa, elevar as mais pobres comunidades católicas como a mais importante e necessitada parte de toda a comunidade católica.

Quer no nosso, daqui a dias, cardeal Tolentino, quer na linha de atuação do Papa, a recusa de uma Igreja toda assente no esquema de poder imitado do poder profano, não é sequer uma decisão: é natural e evidente, tal como é uma evidência que o monstruoso desenvolvimento da Santa Sé ao longo da História é um desvio da justiça criminosa, que os católicos herdaram e que têm como responsabilidade corrigir.

É paralelo aos que os poderes laicos herdaram da marcha da História…e que também muito poucas vezes corrigiriam. Só que o Cristianismo se define como fé num Deus tripartido: Pai, Filho e Espírito Santo e tem a incarnação de uma das três pessoas na humanidade como eixo de toda a doutrina que como único mandamento tem o Amor. A motivação católica para trabalhar, e para assumir o pecado do mundo, a sua aceitação da morte, é com certeza mais forte, não se resolve com novas tomadas de poder, nem assenta na acumulação de capital, como o único critério. A relação com a Arte é a inversa. A esperança é central na própria doutrina e quem rege tudo isto é outra das figuras sem imagem.

Foi com o Tolentino que percebi, pela primeira vez e apesar da austera e rigorosa formação que recebi da família, o que é o Espírito Santo e como a imagem da pomba a que a Igreja e a arte religiosa permaneceram fieis, é insuficiente,

O Tolentino, numa atitude de absoluta lealdade e respeito pela minha liberdade, passou a ser aquela pessoa que, de todos os eclesiásticos que conheci, mais “naturalmente” passou a fazer parte da minha vida. Como se costumava dizer entre católicos, numa atitude de diretor espiritual, pura e simplesmente porque se propôs, não dirigir, mas partilhar dúvidas e encontrar na busca da “santidade”, não uma atitude moralizadora da vida, mas a própria natureza da vida, como descoberta. É como se estivesse continuamente a desafiar os outros, foi isso que comigo aconteceu, para reinventar, poeticamente, o pensamento cristão, entendido como caminho para a alegria de descobrir o transcendente, a beleza da contradição humana, a vida.

No seu primeiro contacto comigo, dirigiu-se a mim. Estava à porta da Basílica da Estrela à minha espera, para me prevenir que a situação em que me ia envolver não era uma simples leitura em voz alta de poemas seus, era a participação numa celebração eucarística presidida por um bispo, coisa que podia não me agradar. Era, de facto, o que acontecia.

Veio outro sacerdote levar-me ao altar-mor, num gesto que se tornou, automaticamente, simbólico de uma reintregração espetacular na prática religiosa. Daí em diante, passei a tornar aquele equívoco em ponto de partida de uma partilha, de uma nova maneira de estar, baseada na confiança que é, na verdade, uma prática de fraternidade — em oposição a uma atitude da Igreja, de que me afastara, por considerar abusiva e alheia a qualquer santidade, a tradicional interferência e abuso moral da autoridade da Igreja na vida religiosa dos cristãos.

Desafiou-me, depois, para lhe escrever um prefácio a um livro seu de orações, que fosse um texto sobre a própria oração. Lancei, 'tentativamente', a ideia de que rezar seria a capacidade de viver em estado de oração, de contemplação ativa da vida como obra divina. Um passo só um pouco mais largo com a palavra Deus, que o da atitude do poeta, do artista. E quando, na apresentação do livro, ousei dizer que reconhecia na Igreja — entendida como o conjunto dos cristãos — muita gente que já rezava assim, e que conhecer o Tolentino me dava a alegria e a confiança de reencontrar a alegria de lhe poder justamente chamar padre, foi a casa abaixo, como se diz no teatro.

Bastantes anos de amizade depois, anos que me levaram a responder a tantos desafios seus de natureza religiosa e artística e à vaidade (de todos os meus pecados aquele que mais prazer tenho em continuar a praticar com a melhor das consciências) de, nas missas celebradas por ele, ter passado a ser regra ele me convidar a ser também celebrante, ao desafiar-me para lhe “emprestar” a minha voz e subir ao “ambão” para ler o evangelho, tive a sensação de assistir a um milagre (sim, acredito nos milagres mas tenho a maior empatia com São Tomé, tanto como choro de emoção com todos os quadros que tomam por tema o “Noli me tangere”, o encontro de Maria Madalena com Cristo ressuscitado na figura de um jardineiro).

Quando me vi no Mosteiro dos Jerónimos perante o poder secular, que lá se deslocou para assistir à investidura de Arcebispo por vontade de um Papa tão extraordinário que usa o próprio poder que a Igreja lhe confere para permanentemente o desconstruir, e vi o gesto do novo Arcebispo (“what’s in a name!”). Quando, depois da ostentação espetacular de um poder hierárquico tão venal como aquele que a tradição da igreja sempre mais ocupada em conservar que em inovar continua a praticar, (aliás com enorme eficácia apurada de século em século), o “nosso” Padre Tolentino, pegou no báculo que o cardeal Patriarca(cargo com um passado tão pesado e que tanta coragem exige de quem o assumir) lhe estendeu, e, vestido de arcebispo, literalmente, correu para o fundo daquela Catedral que celebra a conquista do mundo pelos crucifixos e pelas espadas dos (maus) colonizadores portugueses cristãos; quando desceu aquele degrau e passou para o lado dos “pequenos” e se ouviu rebentar como um trovão a mais sonora salva de palmas a que me foi dado assistir (e ouvi algumas, ainda me lembro…), disse para mim próprio: acabo de assistir a um milagre.

Era espetáculo, eu sei, mas o cargo de Director da Biblioteca Vaticana, a rapidíssima nomeação para cardeal, que já são dados de uma atribuição não de prémios mas de responsabilidades, transcende tudo isso. E com a lealdade e a generosidade com que eu sei que o Tolentino assumirá tais postos por confiança do Papa Francisco, novo guerrilheiro da consciência política (da sua amizade, palavra ou conceito em que mais uma vez me sinto tão perto), chego a esperar que o Cristianismo, como toda a História do Mundo, talvez precise de passar pelo Caos, como o Comunista Heiner Muller por seu lado pregava, mas também está simbolizado na imagem da primavera das árvores em flor do início do “Acto da Primavera”, de Manoel de Oliveira.

Com o Tolentino, com o seu convívio, aprendi a esperança, que é o contrário da utopia, que é a palavra venenosa com que se engordam os cínicos. Ter fé é colaborar com a vida que acreditamos e queremos que exista para além de nós, antes do fim do Mundo. Princípio e fim são palavras. Inventou-as o Homem quando começou a falar e a dar nome às coisas. Teve a ilusão de, com as palavras, inventar o mundo e o poder dos homens e dominar o Tempo.

O Tolentino felizmente é poeta. Acredita na revolução do pensamento que a linguagem metafórica da arte traz consigo. Acredita que passa pela transformação do pensamento e da sua maneira de se manifestar e conduzir a vida, o aperfeiçoamento da humanidade. Passei a acreditar, também, que a fé não é estática. Tem de ser dinâmica. Acredito que aos Cristãos pode caber um papel fundamental, pela nova maneira de viver a relação com os outros e que acabará por levar a Humanidade a destruir o sistema capitalista.

É preciso a confiança em Deus, a Fé, a abertura de cada um ao que sei agora os cristãos chamam o “Espírito Santo”. Nesta travessia do deserto ou no inferno pagão tem-me valido …. o cardeal Tolentino. Tal como outro grande amigo, Manoel de Oliveira que há pouco tempo me ensinou o que é morrer: “O espírito sai do corpo, que morre. E com ele morre a personalidade. Mas o Espírito não morre, junta-se ao Espírito Universal.”

A diferença que vai de Universal a Santo acredito que temos de a ir entendendo à custa de metáforas.”
in Semanário Expresso 07.09.2019 p40
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2445-2/html/primeiro-caderno/sociedade/francisco-prepara-sucessao


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