Deus
não sabia o seu nome?, de Frei Bento, Uma Quaresma para o mundo, do P. Anselmo,
O humor do Cardeal, do P. Tolentino e Fazer a diferença, do P. Vitor
Gonçalves
DEUS NÃO SABIA O SEU NOME?
Frei Bento Domingues, O.P.
1. Se Deus fala, é porque tem boca e
diz coisas com sentido. Se tem boca, tem de ter um rosto. Se tem um rosto, tem
uma cabeça. Quem já viu essa boca a pronunciar palavras? Numa reunião de
catequese, a catequista viu-se surpreendida com essa pergunta de uma criança,
já não tão criança. Ela própria ficou tão embaraçada que lhe disse: ó menina,
isso não é pergunta que se faça, é uma maneira de dizer. A criança insistiu:
mas Deus fala ou não fala?
No ambiente litúrgico e catequético,
e até na linguagem corrente, os líderes das comunidades cristãs não se dão
conta, pelo hábito de falar sem se explicarem, dando por sabido o que nem eles
sabem, de que estão a preparar pessoas para confessar um credo e praticar
rituais, mas sem a mínima inteligência do que dizem e fazem. Com o tempo, estão
a preparar descrentes.
Já na Idade Média, Tomás de Aquino
afirmava que, quando se pretende levar alguém à inteligência da raiz da verdade
que confessa, tem muito que investigar para responder à pergunta: como é que é
verdade aquilo que confessas ser verdade? Não basta recorrer a argumentos de
autoridade. Nesse caso, o ouvinte fica sem ciência nenhuma e vai-se embora de
cabeça vazia. Não é boa recomendação a fé ignorante.
No âmbito religioso, estamos tão
habituados a um certo uso da linguagem que julgamos estar sempre perante
comunidades que merecem o elogio de S. Paulo: «tendo recebido a palavra de
Deus, que nós vos anunciámos, vós a acolhestes não como palavra de seres
humanos, mas como ela é verdadeiramente: palavra de Deus, a qual também actua
em vós que acreditais» .
A criança a que nos referimos diria
ao apóstolo: e como é que sabes que é palavra de Deus, se todas essas palavras
são humanas, criadas por seres humanos?
Responder que, na Bíblia, o uso de
gestos simbólicos, de parábolas e de metáforas, é a forma de dizer o indizível
não basta, pois, se é indizível porque é andam sempre a esforçar-se por dizer?
Mas cuidado, esse é o belo ofício dos poetas.
Estamos perante um tema imenso, mas
não nos podemos esquecer que Jesus também não confiou no amontoado de
explicações dos sábios e entendidos que deixavam nas trevas os que mais
precisavam de uma nova luz. Como filho de Deus, agradece o advento de uma nova
época que varre séculos e séculos de ignorância, como já disse numa destas
crónicas . O que importa é libertar a catequese, as homilias, a teologia de
rotinas que impedem a alegria do Evangelho para os dias de hoje, isto é, nas
mudanças culturais.
2. A liturgia de hoje oferece um dos
textos bíblicos que mais tem dado que falar em todos os tempos . O cenário é de
uma experiência do sagrado, do intocável, do tremendo e fascinante .
Moisés quer aproximar-se de um
espectáculo que o atrai, mas há uma voz que lhe diz: não te aproximes. Tira as
sandálias dos pés porque o lugar que pisas é terra sagrada. E acrescentou, eu
sou o Deus dos teus pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob. Com o
receio de olhar para Deus, Moisés cobriu o rosto.
Mas Deus olhou para o povo oprimido e
manifestou a Moisés as suas intenções libertadoras. No final, Moisés quer saber
mais do que lhe está a ser comunicado e atreve-se: Eis que eu vou ter com os
filhos de Israel e digo-lhes: o Deus dos vossos pais enviou-me a vós. Eles
dir-me-ão: qual é o nome dele? Que lhes direi eu?
Resposta de Deus: Eu sou aquele que
sou, yhwh (Iavé). Assim dirás aos filhos de Israel: Eu sou enviou-me a vós!
De facto, as frases, Eu sou aquele
que sou (‘ehyeh ‘axer ‘ehyeh) e Eu sou (‘ehyeh) são explicações etimológicas do
tetragrama, yhwh. O verbo ‘ehyeh, ser/estar, tanto pode ser dito no presente
como no futuro (eu sou-serei/eu estou-estarei).
Usado mais de 6800 vezes no AT, YHWH
(Iavé), o chamado tetragrama (literalmente, quatro letras), é o mais frequente
nome próprio do Deus Bíblico e está documentado em várias inscrições
extra-bíblicas.
Como escreveu o grande exegeta,
Francolino J. Gonçalves , judeus e cristãos crêem que as suas respectivas
sagradas Escrituras são palavra de Deus. Os próprios muçulmanos reconhecem a
origem divina das ditas Escrituras. Para o leitor que não usa o projector da
fé, porque não o tem ou não se serve dele, Deus não é o único locutor na
Bíblia. No entanto, é o seu protagonista. Deus desempenha na Bíblia um papel
incomparavelmente mais importante do que qualquer uma outra das numerosíssimas
personagens humanas. É sujeito de muitos discursos e objecto ou destinatário de
muitos outros. É um dos narradores e, com muito mais frequência, objecto das
narrativas.
Se, de facto, Deus fala na Bíblia de
uma ponta a outra, só pode fazê-lo pela boca das pessoas humanas que nela
intervêm, falando todas elas, explícita ou implicitamente, em seu nome. Para os
leitores crentes, há uma sinergia entre Deus e os locutores humanos. A Bíblia é
ao mesmo tempo palavra divina e palavra humana ou, melhor dito, palavra divina
em palavras humanas. Nela está em acção o princípio da encarnação, que culmina
no Verbo de Deus feito homem. Para os crentes, a Bíblia não é só palavra de
Deus, mas também palavra sobre Deus. Directa ou indirectamente, ela fala de
Deus de uma ponta a outra. Em geral, não fala de Deus por si mesmo, mas em
relação com a criação e/ou com o seu povo.
3. Quando se diz, como no título
desta crónica, Deus não sabia o seu nome, não é fazer dele um ignorante. Em
certas culturas, conhecer o nome é tomar posse de uma pessoa, de um animal ou
de uma coisa. Tive um professor de exegese que era alérgico à metafísica
elaborada a partir da Bíblia. Não gostava nada de ouvir falar de metafísica
sagrada do Êxodo, incluída na expressão, Eu sou.
A resposta que Moisés recebeu é uma
forma de afirmação da transcendência divina. Deus não cabe em conceitos, em
representações que, facilmente, resvalam para a idolatria e, por seu lado, a
linguagem simbólica não diz, sugere. O célebre Mestre Eckhart rezava: Deus
livra-me de Deus, de representações que pretendem substituí-lo. Outros místicos
falam de Deus como nuvem luminosa, a luz misteriosa do mundo.
O Deus da Bíblia não é o Deus do
silêncio nem o Deus das definições, mas precisamos de muito silêncio para O
escutar nas suas mil vozes.
in Público, 24. 03. 2019
https://www.publico.pt/2019/03/24/sociedade/opiniao/deus-nao-sabia-nome-1866332
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Uma Quaresma para o mundo
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
1. Uma ilustre Catedrática da Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto entrou em contacto comigo, porque queria
saber algo sobre a relação entre o jejum e a espiritualidade.
Lembrei-me então de que estamos na Quaresma.
Ela é mais para os católicos, que durante 40 dias se preparam, pelo menos,
deveriam fazê-lo, para a festa que constitui o centro do cristianismo, a
Páscoa. De qualquer forma, animam-na ou
devem animá-la valores que são universais, de tal modo que poderíamos fazer a
pergunta: Como seria o mundo, se tivesse anualmente a sua Quaresma, tendo na
sua base esses valores: jejum, abstinência, oração, silêncio, esmola,
sacrifício, conversão?
2. O que se segue é uma breve reflexão que
tenta responder a esta pergunta. Começando pela urgência de um retiro. De
facto, a Quaresma refere-se aos 40 anos que os judeus passaram no deserto a
caminho da Terra Prometida e aos 40 dias que Jesus esteve no deserto, em
retiro, preparando-se para a sua vida pública, na qual o centro seria a
proclamação, por palavras e obras, do Evangelho, a mensagem da salvação de Deus
para todos os homens e mulheres.
Aí está: retirar-se para meditar e reflectir. O
que mais falta faz hoje. Quem se retira para fora do barulho e da confusão do
mundo, para meditar e reflectir, ir mais fundo e mais longe, ao essencial? O
sentido dos 40 anos e dos 40 dias: a libertação da opressão e da escravidão, a
caminho da liberdade e, consequentemente, da dignidade. Para a felicidade,
evidentemente.
Neste contexto, os valores da Quaresma.
2. 1. Aí está o jejum. Diz o Evangelho que
Jesus jejuou durante 40 dias e 40 noites e teve fome. O diabo — é uma maneira
de figurar a tentação — tentou-o. Jesus respondeu-lhe: “Nem só de pão vive o
homem, mas de toda a palavra que vem de Deus”.
Jejum e espiritualidade? Quem é que, andando em
permanentes comezainas e bebedeiras, se vai sentar para meditar e continuar a
escrever ou de outro modo qualquer realizar uma obra, entregar-se às coisas do
espírito? São Paulo preveniu, na Carta aos Filipenses, contra aqueles cujo “fim
é a perdição, o seu Deus é o ventre e gloriam-se da sua vergonha”. E alerta
contra os beberrões e a sua degradação.
Mas o jejum não tem que ver apenas com a
temperança no comer e no beber. Tem de haver jejum de tanta vaidade ridícula,
jejum de tanta insensatez falaz, de tanta cobardia envergonhada, de tanta
voracidade egoísta... Ao jejum está ligada a abstinência, que não é só da
carne. É preciso abster-se da injustiça, das mentiras, dos interesses
partidários e pessoais colocados acima dos interesses do bem comum, abster-se
das medidas e dos programas político-partidários eleitoralistas com promessas
que se sabe não vão ser cumpridas, de programas televisivos sem sentido e
deletérios que degradam nomeadamente a mulher. E aí está uma das contradições
brutais do nosso tempo, por causa das audiências e, em última análise, da
idolatrização do deus Dinheiro: por um lado, e bem, há toda uma campanha para
defender a mulher, mas, por outro lado, ela é humilhada concretamente nesses
programas...
Abster-se
da corrupção... O Papa Francisco acaba de pedir uma “política sã”, alertando
contra a corrupção: “A corrupção degrada a dignidade do indivíduo e destrói
todos os ideais bons e belos. Com a ânsia de lucros rápidos e fáceis, na
realidade empobrece a todos, minando a confiança, a transparência e a
fiabilidade de todo o sistema”. A receita: “transparência e honestidade” para
reconstruir “a relação de confiança entre o cidadão e as instituições, cuja
dissolução é uma das manifestações mais sérias da crise da democracia.”
Hoje, sabemos que o jejum e a abstinência
contribuem em grande medida para a saúde e até para a beleza. Quanto à
espiritualidade, não há dúvida. Significativamente, a sabedoria de todas as
religiões esteve sempre aberta ao jejum sadio.
2. 2. A oração. Para colocar o ser humano em
contacto com o Mistério último da realidade e da vida. Dialogar com o mais
fundo da Vida. Estar ligado ao Fundamento, à Fonte, ao Sentido último. Para se
não perder na dispersão, completamente desorientado, desorientada, sem
referências, perigo maior do nosso tempo.
2. 3. Mas a oração e o que é essencial exigem o
salto para fora do barulho ensurdecedor. Que se faça silêncio. Num tempo em que
se é invadido e esmagado pelo tsunami das informações, entrando no mundo caótico
da dispersão e da fragmentação, da “agitação paralisante e da paralisia
agitante”, segundo a expressão do famoso bispo do Porto, D. António Ferreira
Gomes, é urgente parar, fazer pausa. Para ouvir o silêncio. Sim, ouvir o
silêncio. No meio da vertigem dos vendavais de palavras em que vivemos, que nos
atordoam e paralisam, ouvir outra coisa. Ouvir o quê? Isso: o silêncio. Só
depois de ouvir o silêncio será possível falar, falar com sentido e palavras
novas, seminais e iluminantes, criadoras. De verdade. Onde se acendem as
palavras novas, seminais, iluminadas e iluminantes, criadoras, e a Poesia,
senão no silêncio, talvez melhor, na Palavra originária que fala no silêncio?
Ouvir o quê? Ouvir a voz da consciência, que sussurra ou grita no silêncio. Quem
a ouve? Ouvir o quê? Ouvir música, a grande música, aquela que diz o indizível
e nos transporta lá, lá, ao donde somos e para onde verdadeiramente queremos
ir: a nossa morada. Ouvir o quê? Ouvir a sabedoria. Sócrates, o mártir da
Filosofia, que só sabia que não sabia, consagrou a vida a confrontar a retórica
sofística com a arrogância da ignorância
e a urgência da busca da verdade. Falava, mas só depois de ouvir o seu daímon,
a voz do divino e da consciência.
O grande filósofo A. Comte-Sponville é partidário
de um “ateísmo místico”, no quadro de “uma espiritualidade sem Deus”.
Constituinte dessa espiritualidade é precisamente o silêncio. “Silêncio do mar.
Silêncio do vento. Silêncio do sábio, mesmo quando fala. Basta calar-se, ou,
melhor, fazer silêncio em si (calar-se é fácil, fazer silêncio é outra coisa),
para que só haja verdade, que todo o discurso supõe, verdade que os contém a
todos e que nenhum contém. Verdade do silêncio: silêncio da verdade.”
O problema está em que já Pascal, nos
Pensamentos, se queixava: “Toda a desgraça dos homens provém de uma só coisa,
que é não saber permanecer em repouso
num quarto.” Hoje é ainda pior do que no tempo de Pascal. Ninguém suporta o
silêncio. Por isso, é preciso constantemente pedir com Sophia de Mello Breyner:
“Deixai-me com as coisas/Fundadas no silêncio.”
2. 4. Outra característica da Quaresma era a
esmola.
Cá está. Quem fizer silêncio para ouvir o
silêncio, também ouvirá os gemidos dos pobres, os gritos dos explorados, dos
abandonados, dos que não podem falar, das vítimas das injustiças. E perceberá
que se não pode dar como esmola o que pertence fazer como justiça.
E volta-se
à corrupção e ao roubo e às
injustiças estruturais e aos Bancos que abriram falência e que mataram vidas
inteiras de gente que trabalhou e que se sacrificou e que poupou o que pôde e o
que não podia e que, no fim, ficou espoliada do pouco que tinha... E, tirando o
facto de os contribuintes continuarem a pagar até essas falências e roubos,
mesmo que se minta dizendo que não custará aos contribuintes um cêntimo
(afinal, quem é o Estado?), não acontece nada. Alguém mete a mão na
consciência? Não. Porque já não há consciência... Onde estão os valores da
honra e da dignidade?
E ainda perguntam para que poderia servir uma
Quaresma para o mundo, incluindo para políticos e banqueiros?
2. 5. O sacrifício. Digo sempre: o sacrifício
pelo sacrifício não vale nada. Mas é preciso, a seguir, gritar bem alto, num
tempo em que parece que só resta o hedonismo, o prazer imediato, confundindo a
felicidade com a soma de prazeres: Nada de grande, de valioso, de humanamente
digno se consegue sem sacrifício. Quem quiser realizar uma obra valiosa, viver
um grande amor, realizar-se a si mesmo na dignidade livre e na liberdade com
dignidade tem de saber que isso não é possível sem sacrifício. Aliás a palavra
sacrifício di-lo no seu étimo: sacrum facere: fazer algo sagrado.
3. O que seria o mundo depois de uma Quaresma
autêntica? O nosso mundo, o mundo de cada uma e de cada um? Dar-se-ia uma
conversão, palavra-chave da Quaresma, que significa mudança de vida, com um
novo horizonte de compreensão da existência, do mundo e da transcendência.
in DN 24.03.2019
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/24-mar-2019/interior/uma-quaresma-para-o-mundo--10717817.html?target=conteudo_fechado
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QUE COISA SÃO AS
NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
O HUMOR DO CARDEAL
O HUMOR QUE SEAN O’MALLEY, CARDEAL DE BOSTON, EMPREGA NÃO É FEITO PARA
SER DELICIOSO
Este ano coube ao cardeal de Boston, Sean O’Malley, a
pregação do retiro quaresmal aos bispos portugueses. O conjunto das meditações
acaba de ser editado num volume, com um título curioso: “Procura-se amigos e
lavadores de pés” (Paulinas: 2019). E é um livro que se lê e não se esquece:
antes de tudo pela certeira intensidade espiritual, mas também por um elemento,
porventura, marginal e inesperado: o humor.
O filósofo Emil Cioran explicou-o bem quando escreveu
que “as lágrimas são aquilo que nos pode tornar santos, depois de termos sido
humanos”
Se numa sondagem
for perguntado a que se deve associar o esforço de conversão, a resposta
esmagadora será: ao arrependimento e à tristeza pelos erros praticados. O
filósofo Emil Cioran explicou-o bem quando escreveu que “as lágrimas são aquilo
que nos pode tornar santos, depois de termos sido humanos”. Ora, ninguém poderá
dizer que o propósito do cardeal O’Malley seja outro que não inspirar uma
genuína conversão, mas o instrumento escolhido é o humor. E tal mostra a
originalidade e a sabedoria deste antigo frade capuchinho que é uma das grandes
vozes espirituais do nosso tempo. Não se trata daquele humor de sacristia que
se cola, como um cliché, aos eclesiásticos. Basta
recordar o primeiro gag do livro
para perceber a natureza do cómico que ele põe em jogo: um bispo, quando saía
da sua catedral, deparava-se invariavelmente com um homem, de nome Santiago,
prostrado num banco, coberto de cartões usados e jornais. O pobre tresandava a
álcool, mas levantava-se, cambaleante e afetuoso, para cumprimentar o bispo. Um
dia, ao atravessar a praça, o prelado não o viu e passaram-se semanas para que,
com surpresa, o reencontrasse, agora descendo a rua, quase irreconhecível.
Tinha a barba feita, um fato limpo, sapatos que brilhavam e uma Bíblia debaixo
do braço. Perguntou-lhe o bispo, atónito: “Que te aconteceu, homem?” Respondeu
Santiago: “Fui salvo.” O bispo felicitou-o e despediu-se. Um mês depois, sai o
prelado da catedral e vê Santiago no banco, no velho estado deplorável.
Interroga-o o bispo: “Que te aconteceu, Santiago?”, “Monsenhor, voltei para a
única verdadeira Igreja.” É um humor assim que que faz implodir as nossas
injunções sonâmbulas, removendo os chavões a que reduzimos tantas vezes a
experiência religiosa. O humor que o cardeal Sean O’Malley emprega não é feito
para ser delicioso. O seu objetivo é escancarar-nos, mostrar-nos como somos,
levar-nos a renunciar à tentação gnóstica ou maniqueia que separa a ação
sobrenatural da nossa realidade como ela é, com as suas rugosidades e infâmias,
desmontar criticamente o discurso autojustificativo. Do ponto de vista das
influências podemos colocar O’Malley — que começou a sua carreira por fazer um
doutoramento em literatura portuguesa e hispânica — na peugada de importantes
autores católicos, dos quais G. K. Chesterton ou a romancista Flannery O’Connor
são, certamente, emblemas. Flannery dizia que “quanto mais um escritor deseja
tornar manifesto o sobrenatural, mais deve tornar real o mundo natural, pois se
os leitores não aceitam o mundo natural, certamente não aceitarão nenhum
outro”. Mas, no caso do cardeal, acrescentaria ainda uma segunda influência: a
tradição humorística do chamado risus paschalis,
recuperando o antigo costume segundo o qual, na homilia do dia de Páscoa, o
pregador devia literalmente divertir os fiéis, e fazê-los rir com anedotas e
histórias, para que a alegria chegasse a todos. Há, de facto, um sopro pascal
que atravessa a obra de Sean O’Malley. Ele insiste em que a dinâmica pascal de
Cristo opera uma radical inversão no nosso modo de compreender a fé e a
história, como o exprime aquele pequeno diálogo místico: Certo homem perguntou:
“Cometi muitos pecados. Se me arrepender, Deus perdoar-me-á?”; O místico
respondeu-lhe: “Não. Tu arrepender-te-ás, se Ele te perdoar.”
in Revista do Semanário Expresso,
23.03.2019
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2421/html/revista-e/que-coisas-sao-as-nuvens/o-humor-do-cardeal
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À PROCURA DA
PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
Domingo III da
Quaresma
“Vou cavar-lhe em
volta e deitar-lhe adubo.
Talvez venha a dar
frutos.”
Lc 13, 8-9
Fazer a diferença
São constantes as notícias de
sofrimento e mal. Das tragédias naturais, como a do ciclone no centro de
Moçambique e o mar imenso de destruição e sofrimento, às violências e
indiferenças que são fruto de actos humanos, ou melhor, desumanos, a lista é
imensa. E como o longe faz-se perto sobressalta-se-nos o coração a cada
instante. Entre a atenção e algum desejo de “desligar” não conseguimos ficar
indiferentes à humanidade que sofre. Por isso, começamos a fazer diferença
quando vencemos a indiferença e nos empenhamos na mudança. Não é isso que
significa “conversão”?
Há sofrimento inevitável que convive
com aquele que é evitável. E ainda que se passe do primeiro ao segundo com
muita facilidade, é este que está nas nossas mãos transformar. Se não podemos
mudar as causas do primeiro, podemos intervir naquelas que provocam o segundo.
Podemos voltar-nos para Deus e interrogá-l’O pela sua aparente passividade. Mas
não se revelou Ele a Moisés como aquele que “vê, escuta, desce, para levar o
seu povo a uma terra boa e espaçosa” (cf. Ex. 3, 7-8)? A grande diferença é que
Deus “não gosta” de fazer sozinho o que pode fazer connosco. Conhece-nos bem e
sabe como aprendemos e apreciamos melhor aquilo em que trabalhamos. Por isso
nos fez responsáveis pela criação e anda também connosco a “fazer novas todas
as coisas” (cf. Ap 21, 5)!
Continuamos a considerar o mal que
não entendemos como um castigo ou uma distracção de Deus? Gastamos mais tempo e
energias a procurar as “culpas” ou a transformar os corações e as situações da
vida? Jesus liberta de uma imagem de Deus a contabilizar pecados e méritos para
distribuir castigos e recompensas. A nossa responsabilidade está ligada aos
sofrimentos inúteis e destruidores, fruto de escolhas egoístas e atitudes
violentas, que propagam o mal em todas as direcções. Sim, o amor de Deus abraça
tudo e todos, e é esse amor que nos responsabiliza em tudo o fazemos.
A diferença da atitude do vinhateiro
é a que nos é pedida. Perante a justa pretensão do dono da vinha que, ao longo
de três anos, não encontra frutos na figueira, o vinhateiro joga tudo na
esperança. Pede mais um ano. Oferece mais trabalho a cavar a terra em seu redor
e a adubá-la. Mostra um carinho inesperado e uma atitude diferente. Se a
figueira nos representa e o vinhateiro é Cristo, como havemos de não
frutificar? Começando por não ficar indiferentes a tanto cuidado, mais atentos
à dor dos outros, arriscando reparar injustiças e trabalhar para o bem de quem
precisa, em vezes de ficar por discursos ou análises. A diferença que vence a indiferença
é a surpresa de uma esperança activa. Se Deus a tem connosco, não a podemos ter
com todos os que nos rodeiam?
in Voz da Verdade, 24.03.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8044&cont_=ver2
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Senhores
Bispos
Leonor Xavier
Abusos sexuais na Igreja? Pedofilia? Já
sabemos. A Comunicação Social anuncia, disserta, desenvolve. A Conferência
Episcopal Portuguesa (CEP) já se pronunciou. Alguns bispos evocaram, nos seus
documentos quaresmais. O assunto não morreu, o tema ressuscita a cada dia. É
mais que universal. Monstruoso.
Tomando outro enfoque, centro-me na nossa
concreta sociedade, em que, sem distinção de classes, a tradição, o costume, a
prática de violência doméstica são hoje notícia constante. Os números
cortam-me: doze mulheres assassinadas nas primeiras dez semanas do ano. Nas
primeiras doze semanas, 131 suspeitos de crimes de violência doméstica por
violação, lenocínio, agressão grave. Por dia, duas pessoas, homens e mulheres,
detidas por violência doméstica, neste primeiro trimestre do ano. Falam os
magistrados em “números negros”, a procuradora-geral da República classifica
“este cenário desolador”.
Mais meios de responsabilizar, menos penas
suspensas, são considerados, ganham espaço de debate. Soubemos que, em
2018, a PSP e a GNR receberam 26.439
queixas de violência doméstica. “Mais luta e menos luto” foi frase pronunciada
no Parlamento, que aprovou maior transversalidade entre ministérios para a prevenção
e o combate contra a dita violência doméstica.
E tomo, assim, a liberdade de questionar a
nossa respeitável Conferência Episcopal sobre o seu silêncio em face desta realidade. Um número crescente de católicos
atentos espera uma palavra, uma posição, uma proposta de ação. Espera que a
nossa CEP aplique o discernimento à avaliação dos sofrimentos nas grandes
cidades e nas aldeias remotas. Existe uma rede paroquial que poderá, lúcida e
concretamente, atenuar estes sofrimentos. Considerando a dignidade dos mais
frágeis, mais pobres, mais vulneráveis, mais dependentes. Transformando
mentalidades, corrigindo conceitos de poder e submissão, debilidade e força,
simplesmente cumprindo a Palavra de Jesus. Neste tempo de retirada de Quaresma
e meditação sobre as desordens e desgraças da nossa condição humana, vou
desfiando perguntas que se encadeiam sem parar.
O que têm comum os consultórios dos médicos e
os confessionários dos padres? O corpo despido e a alma exposta? O espaço de
liberdade? O desabafo? A queixa? O ouvido que escuta? A misericórdia que
perdoa? Tanto quanto os médicos, os padres são ainda sabedores dos segredos de
nós e dos outros? Mesmo neste ambiente de desabafo anónimo em redes sociais?
E por aí fora, sem parar, chegaríamos ao
infinito da associação de ideias, no invisível das grandes perguntas, na
imaginação das rotinas, na imensidão de casos e gente que ao longo de uma vida
vai desfilando por nós. Na Comédia Humana a que assistimos, e em todas as
classes sociais, talvez hoje exista mais infelicidade clandestina do que o
sucesso que se quer afirmar, aparente.
Senhores Bispos:
esperamos.
in 7Margens, 23.03.2019
https://setemargens.com/senhores-bispos/
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Des femmes
catholiques allemandes lancent un appel à « la grève »
Anne-Bénédicte
Hoffner
Que se
passerait-il dans l’Église catholique si les femmes n’étaient pas là ? Pour faire « entendre l’autre moitié
de l’Église », des paroissiennes de Münster, en Allemagne, lancent un appel à
la grève du 11 au 18 mai.
Du 11 au 18 mai, les catholiques allemandes sont
invitées à « ne pas mettre les pieds dans une église », à s’habiller de « blanc
», et à arrêter « tout service volontaire ».
« Nous, les
femmes, voulons un véritable renouveau de notre Église. Nous voulons y
contribuer et avoir notre mot à dire. Sur un pied d’égalité, femmes et hommes,
nous voulons suivre notre vocation et avancer fraternellement dans la même
direction : celle
de Jésus-Christ, qui nous a TOUS demandé de rendre visible son amour pour le
monde. »
Du 11 au 18 mai,
les catholiques allemandes sont invitées à « ne pas mettre les pieds dans
une église », à s’habiller de « blanc », et à arrêter « tout service
volontaire ». « Nous célébrerons la messe dehors, sur le parvis »,
affirment-elles crânement.
L’opération a été imaginée depuis la paroisse
Sainte-Croix de Münster (Rhénanie du Nord), lors d’une réunion mensuelle de
réflexion sur l’encyclique Laudato si’. L’ambiance était morose. « Nous étions
déprimées par les révélations d’agressions sexuelles commises par des prêtres
et par cette exclusion persistante des femmes, qui en est l’une des
causes », raconte Elisabeth Kötter dans la presse catholique
allemande.
Malaise
grandissant
Avec les autres membres de ce groupe de lecture,
femmes et engagées comme elle au sein de l’Église catholique, elles ont eu une
idée : montrer concrètement
ce se passerait si elles se mettaient en grève ! L’opération a trouvé son nom, « Maria
2.0 », et un logo : un portrait de
femme, un autocollant posé sur la bouche…
« Nous voulions donner une direction au malaise grandissant et
ressenti de longue date en chacune de nous », a expliqué Ruth Koch,
interrogée par le site Internet « Église et Vie ».
Grâce aux médias sociaux, l’appel a vite franchi les
frontières du diocèse. Une cinquantaine d’internautes ont déposé un message de
soutien sur leur page Facebook. « Enfin ! Une opération utile, que nous attendions depuis
longtemps ! »
« Ne plus se taire, c’est l’urgence aujourd’hui. » Parmi les
soutiens, beaucoup de femmes, mais aussi des hommes, de tous âges. « Il
est plus que temps. J’en suis », écrit Harald. « Tout le
monde devrait soutenir cet appel », ajoute Holger. Quant à Michaël, il
s’interroge : « La
dignité de l’homme est sacro-sainte… Pourquoi l’Église catholique
autorise-t-elle (cette inégalité) ? »
Lettre
au pape François
La Communauté des femmes catholiques allemandes (KFD)
a assuré de son soutien. Même l’évêque d’Essen (Rhénanie du Nord), Mgr
Franz-Josef Overbeck, et son vicaire général, le père Klaus Pfeffer, se
seraient abonnés à la page Facebook, assurent les organisatrices.
« L’appel s'adresse également à tous ceux qui
souffrent de l’Église et qui l’ont quittée », précise
Elisabeth Kötter.
Les initiatrices ont formulé une lettre au pape
François, que le cardinal Reinhard Marx, archevêque de Munich et président de
la Conférence des évêques allemands, devait lui remettre lors du sommet sur les
abus sexuels. Elles y demandent pêle-mêle l’adaptation de la morale
sexuelle « avec la réalité de la vie humaine », la levée
du célibat obligatoire pour les prêtres et l’accès des femmes à tous les
ministères.
Anne-Bénédicte Hoffner
in La Croix,
22/03/2019
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