02 novembro 2012

FUNDAMENTOS ÉTICOS DA REFORMA

1. Nas sociedades pluralistas em que vivemos, se os imperativos éticos não forem incondicionais, se a moral não tiver uma justificação, uma fundamentação, as nossas sociedades não serão pluralistas, mas relativistas, pois não haverá distinção entre bem e mal, tudo será aceitável –“vale tudo”- basta que corresponda às tendências actuais, aos desejos de cada um, à moda. A pura actualidade sem horizonte, dominada pelo corrupio das notícias, sem referência para uma orientação de longo alcance, tende a considerar tudo provisório, com medo do império de falsos absolutos. Será uma época que tem cada vez mais recursos, mas uma época de “meios sem fins”. O declínio da causalidade final torna difícil a pergunta pelo sentido.
2. Esta justificação terá que ser imanente, reconhecível por crentes e não crentes, para valer como universalmente válida. A filosofia nasceu da religião, mas por um processo de racionalização, o símbolo foi cedendo lugar ao logos. A própria religião surge, do ponto de vista fenomenológico, como “um facto humano específico que tem origem no reconhecimento, por parte do ser humano, de uma realidade suprema, a qual confere o sentido último à própria existência, ao conjunto da realidade e ao curso da história” (J. Martín Velasco).
 Na linha da Modernidade, a fundamentação deverá ser antropocêntrica, pois o ser humano (Cf. Summa Thelogiae, I, q. 75-102) na sua complexidade, é o único ser ético – o único que é princípio das suas obras, possuindo livre-arbítrio e domínio sobre as suas acções( Cf.S. Th., II-II, Prólogo).
3. Não basta, porém, fundamentar as grandes linhas de orientação ética e manter-se nos princípios universais, pois as acções humanas realizam-se no concreto, no singular circunstanciado, onde se provam as energias virtuosas e se faz um juízo prático a partir da informação, com os dados disponíveis e se decide com base na virtude da prudência , a virtude da decisão informada. Mas sem a apreensão do mundo como experiência de profundidade, perdemos o sentido da temporalidade e trocámo-la pela canonização do que existe, estetização banal da banalidade. É certo que as tecnologias têm o carácter de estabilizadores eufóricos para muita gente. Dir-se-ia que a tecnologia é o novo instrumento de reencantamento do mundo . Basta carregar no ponto certo e está tudo. Como se diz frequentemente, a máquina tem sempre razão.
4. As propostas éticas - que não sejam a sua negação - estão todas inseridas numa tradição. Procuram, pelo menos, interlocutores na história.
Paul Ricoeur, na confluência das tradições aristotélica e kantiana, sem juramentos de fidelidade  ortodoxa a  nenhuma delas - distinguindo ética e moral -, apresenta o seu programa  de forma  sintética: “Visée de la vie bonne, avec et pour les autres, dans des institutions justes” (Cf. RPF, Jan.-Março, 1990, pp.6-17).
a)  I. Kant insere a questão ética num conjunto muito vasto, mediante quatro perguntas: - Que posso saber? - Que devo fazer? - Que me é permitido esperar? - O que é o homem?
À primeira, responde a metafísica; à segunda, a moral; à terceira, a religião e à quarta, a antropologia, já incluída nas anteriores.
É uma ética do dever e da dignidade humana – o ser humano nunca deverá ser meio. É sempre um fim. Não deve ser instrumentalizado. Não tem preço. Tem valor.
b) A tradição aristotélica é diferente. É uma ética da procura da vida boa (não da boa vida), da felicidade humana, do agir virtuoso, prudencial, do caminho da boa medida, que culmina na alegria. Como diz o grande helenista  A. –J.Festugière,  nas mais autênticas tradições gregas, o bem agir é a condição da euforia, mas a euforia é, por sua vez, a companheira inseparável da actividade virtuosa. A norma para o grego não é “ tu deves”, mas “tu podes” ser humano. O importante é saber e querer desenvolver as capacidades para realizar uma vida boa enquanto humana, isto é virtuosa, em e com os outros, em instituições justas, como sintetizou P. Ricoeur.
5. Não vou entrar aqui nas propostas de Apel-Habermas (a ética da razão comunicacional, dialógica) nem na teoria da justiça de Rawls. Mas Lévinas, com  “a presença do rosto - o Infinito do Outro - é nudez, presença do terceiro ( quer dizer  de toda a humanidade) que nos olha)”, nos olhos do  outro que me olha, olham todos os outros, a humanidade inteira”. Não posso desviar o olhar, sou responsável pelo outro, por todos os outros que se apresentam no rosto que me interpela.
6. A sentença ética universal (em forma negativa ou positiva), pois encontra-se em todas as sabedorias antigas é a seguinte: “ faz aos outros o que desejarias que os outros te fizessem a ti”.
7. A ética religiosa de alcance universal pode assumir as seguintes expressões: Que fizeste do teu irmão? (Genesis, 4,9); quem é o meu próximo? (Lc. 10, 25-37); tive fome… a história humana em três parábolas e o juízo ético radical (Mateus,25). São éticas do respeito, da compaixão, do cuidado, da responsabilidade ilimitada.
8. A questão de fundo sobre a “reforma” é a do percurso da questão antropológica para a questão da fundamentação ética.
 A chamada civilização ocidental está a universalizar-se, mas revela-se radicalmente ambígua, pois não sabe como poderá ser humanizada. Não se trata apenas de perguntar:  “descansamos para trabalhar ou trabalhamos para descansar”?,  embora haja cada vez menos trabalho devido às máquinas de substituição dos seres humanos. Os pragmáticos utilitaristas perguntam-se: a maioria dos seres humanos não estará a mais?
A questão de fundo, paradoxal é esta: por um lado, cultiva-se o respeito e a comunhão por tudo o que é vivo, pela natureza, ressuscitando o velho animismo e denunciando uma ilusória superioridade do ser humano sobre o mundo; por outro, trabalha-se na transformação da natureza humana, sonhando com o pós-humano, imortal.
9. Kant viu bem: tudo se concentra na antropologia e no dever de ser humano, de forma adulta, que pensa por si mesmo, de forma autónoma.
  Os gregos viram melhor: os seres humanos, na sua finitude, podem conjugar a grandeza da sua excepcional condição, mas sem ceder à “ubris”, à desmedida ou à humilhação, mantendo-se no sentido da sabedoria, do equilíbrio, da boa medida, da justiça para todos.
1O. Dito tudo isso, importa reconciliar o ser humano com a sua historicidade, tornando também suas as preocupações dos outros e com os outros em instituições justas. O que o implica na participação política do bem comum. Tomás de Aquino dizia que a virtude da  prudência política é de todos e para todos e não só para os governantes.
O fundamento ético da reforma encontra-se na historicidade e pluridimenção da condição humana: o ser humano não é, vai sendo, subindo e descendo e não pode ser reduzido a uma única função. Cuidar para que haja todas as idades da vida, com previdências e providências, pessoais, comunitárias e sociais para quando uma pessoa já não tiver condições para cuidar de si e dos outros. Com um cuidado especial por aqueles que não têm unhas nem viola.
 11. Numa civilização pragmatista, os idosos não valem, só estorvam; estão fora de prazo de validade. Paradoxo: caímos numa sociedade de idosos sem saber o que fazer com eles. O reformado não tem que ser um indesejado e arrumado a um canto, a esperar a morte com medo ou como alívio.
Como pensar a reforma como uma oportunidade de vida desejada por si e pelos outros, de serviço voluntário?
!2. As questões técnicas e as exigências sociais e económicas da reforma não podem esquecer a fundamentação ética, mas exigem outras competências para a poder realizar.
Mariano Rajoy declarou à TVE
... "A primeira prioridade é tratar os pensionistas da melhor maneira
possível. A minha primeira instrução ao ministro das Finanças é de que
as pessoas que não se devem prejudicar são os pensionistas.
"No Orçamento de Estado de este ano só há dois setores que sobem: os
juros da dívida e as pensões. Não tenho nenhum interesse e se há algo que não tocarei, são as pensões".
"Rajoy sublinhou que o pensionista é a pessoa mais indefesa, que tem
a situação mais difícil, porque não pode ir procurar outro posto de
trabalho aos 75 ou 80 anos, tendo uma situação muito mais difícil"...
Que não se arrependa!
Frei Bento Domingues O.P

Sobre os Idosos, ver Danusa Figueirinha; Inês Marques; José Augusto Simões, Ética na relação do Profissional de Saúde e Idoso nos Cuidados Continuados (Revista Portuguesa de Bioética, nº 16, 2012, pgs 31-46);  Diana Faria; Madalena Oliveira; José Augusto Simões, Políticas Públicas de Defesa e Promoção dos Direitos dos Idosos (ib. pgs 67-80)

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