30 março 2014

Afinal Jesus também tinha discípulas

Frei Bento Domingues, O.P.

1. João Paulo II, ao marcar os limites inultrapassáveis do papel das mulheres na Igreja, deixou uma herança pesada ao Papa Francisco. Não se atreveu a enunciar qualquer dogma, mas tentou barrar definitivamente o acesso das mulheres aos ministérios ordenados, ao sacramento da Ordem.
Nenhum católico está obrigado a receber os sacramentos todos. Mas as mulheres, mesmo que o desejem, mesmo que manifestem as maiores capacidades para serem chamadas a liderar uma comunidade cristã, o facto de serem mulheres constitui um impedimento radical. Pelo contrário, os homens, por serem homens, podem ser chamados à ordenação presbiteral ou episcopal mesmo sem grande talento. Não se trata de um direito, mas da possibilidade de vir a prestar um serviço estruturante, se para tanto forem convidados pelo respectivo Bispo.
Dir-se-á que assim é que está bem. Segundo a narrativa bíblica, na sua linguagem mítico-simbólica, Deus criou o ser humano: homem e mulher. Se é divina essa diferença, ela deve ter a sua significação. Concluir daí que as mulheres ficam impedidas de aceder à liderança das comunidades cristãs é ridículo.
Sustentam alguns que a Igreja não está autorizada a contrariar a vontade de Cristo. É ele que manda na Igreja e não o contrário. Enuncia-se algo que não pode ser mais acertado. Dizer, porém, que a negativa da hierarquia católica e ortodoxa cumpre a vontade de Deus é um salto muito atrevido e não conheço nenhum raciocínio teológico que o permita. As tradições das Igrejas nem sempre reproduzem um desígnio do seu fundador.

2. Urge reexaminar esta questão, pois está semeada de ambiguidades. Quando o movimento feminista católico denuncia esta situação, alguns concluem: as mulheres, ávidas de poder, estão a querer reproduzir, na Igreja, o que acontece na sociedade. Lutam, como os homens, por um lugar ao sol, por carreiras profissionais e por lideranças políticas. Para aptidões iguais, possibilidades iguais. No mundo laboral persiste a desigualdade salarial: para trabalho igual, as mulheres recebem menos e nunca poderão aceitar esta descriminação.
Como na Igreja se continua a pensar que ser padre ou bispo é uma posição superior à dos outros baptizados, coroa de uma carreira eclesiástica, um caminho do poder, as mulheres, ao reivindicarem a possibilidade de aceder ao presbiterado e ao episcopado, estariam também elas a sonhar com a dominação das comunidades católicas. Mesmo que isso possa existir, só pode ter sentido numa eclesiologia piramidal, como a que vigorou antes do Vaticano II, e para quem continua ainda com os  esquemas mentais e com os desejos derrotados nesse concilio.
A questão real é outra: na celebração do baptismo, confessamos que todos acedem à mesma condição de povo sacerdotal, real e profético. Todos são sacerdotes, reis e profetas. Todos são Igreja ao mesmo título e pela mesma razão.
As comunidades cristãs precisam de serviços organizados, hierarquizados, a que chamam ministérios ordenados, para garantir a todos a comunhão nos seus bens espirituais: a Palavra de Deus, a celebração dos sacramentos, a evangelização movida pela fé, pela esperança e pelo amor, que provoca a organização social da justiça.

3. Terminei o texto do passado Domingo, acerca do diálogo efectivo entre Jesus e a samaritana, com a seguinte pergunta: porque teria Jesus, segundo as narrativas da Ressurreição, confiado a evangelização da própria Igreja às mulheres?
Falamos sempre de discípulos de Jesus, alguns eram designados apóstolos. De uma forma explícita, nunca se fala de discípulas.
Os apóstolos, perante o apelo de Jesus, largaram tudo e seguiram-no. O Mestre descobriu, depois, que tinha havido um grande equívoco registado, com toda a crueza, por S. Marcos e que os outros evangelistas procuraram atenuar. Esse Evangelho, desde o cap. 4 ao cap. 10, repete 8 vezes que eles nunca entenderam nem as palavras, nem os actos, nem os gestos do Mestre.
Jesus acabou por perceber qual razão porque não o conseguiam entender: largaram tudo para o seguir porque julgavam que, quando ele conquistasse o poder, seriam recompensados com posições destacadas no governo. Tiago e João adiantaram-se para pedir postos cimeiros. Jesus convocou todos e disse-lhes: entre vós quem quiser ser o primeiro seja o servo de todos. Por uma razão simples: Jesus veio para servir e não para ser servido. É só pelo desejo e pela prática do serviço desinteressado que se pode ser seu discípulo.
Quando viram que Jesus era um rei crucificado, um perdido, abandonaram-no. Pelo contrário, as mulheres que o seguiram, por pura sedução, sem outra convocatória – as verdadeiras discípulas – nunca o abandonaram, nem na vida nem na morte. Quando os discípulos se afastaram, elas até no sepulcro o procuraram. Estavam habitadas pela memória do seu Mestre.
Foi a estas discípulas que Jesus manifestou que tinha vencido a morte e mandou-as evangelizar os discípulos. É o único prémio daquelas que nunca procuraram ganhar nada com o seguimento de Jesus: era só ele e a sua mensagem que as interessava. Foram compensadas e toda a Igreja por meio delas.

Encontro/debate

Vozes de Religiosas Portuguesas
Audio disponível
Painel com a participação de

Irmã Isabel Balbino
(Franciscanas Missionárias de Maria)

Irmã Mafalda Leitão
(Servas de Nossa Senhora de Fátima)

Irmã Maria Julieta Dias
(Religiosas do Sagrado Coração de Maria)

Moderado por Alfreda Ferreira da Fonseca

25 de Março 2014, 21h30
Capela do Rato

23 março 2014

A SAMARITANA NÃO SE DISFARÇOU DE SANTA

     
1. Ao longo dos anos, foi-se desenvolvendo nestas crónicas a convicção do nosso atraso, como Igreja e como sociedade secular, em relação ao questionamento social e místico de Jesus Cristo: não vos conformeis com a situação actual do mundo! Ao ler o texto do Evangelho na Missa, em vez do ritual, “naquele tempo”, parece-me preferível um convite: escutemos o que diz, hoje, Jesus aos seus discípulos…

Pensava nisto, ao entrar numa casa de artigos religiosos sem qualquer beleza, acompanhados de livrinhos de piedade rançosa, quando deparei com um título inesperado naquele cenário: As 23 Mulheres do Concílio. A presença feminina no Vaticano II.

       O papa Paulo VI anunciou oficialmente a presença de vinte e três mulheres, como auditoras, no Concílio Vaticano II. De Setembro de 1964 a Agosto de 65, foram chamadas, uma por uma: dez religiosas e treze leigas, escolhidas segundo critérios de competência e de internacionalidade”.

       Na previsão de muitos padres conciliares, a participação delas deveria revestir-se, sobretudo, de carácter simbólico. Essa presença depressa ultrapassou as barreiras previstas, acabando por deixar, nos próprios documentos conciliares, sinais importantes detectados na investigação da historiadora e teóloga, Adriana Valerio. Ao apresentar as figuras e os meandros das intervenções destas madres conciliares que, pela primeira vez, tomaram parte, de forma eficaz, nos trabalhos de um Concílio ecuménico, mostra o longo caminho a percorrer para desempenharem na Igreja a missão que o Ressuscitado lhes confiou.

Na Aula conciliar, propriamente dita, nem sequer puderam agradecer terem sido convidadas. Ouviram do secretário do Concílio, P. Felice, a proibição paulina, as mulheres estejam caladas nas assembleias (1Cor 14, 34).

Ao verificarem a involução do Concílio, comprovada no Sínodo de 1971, não se conformaram e remaram contra a maré até ao limite das suas possibilidades, chegando a apresentar a sua demissão. Acabou por vencer, de forma autoritária, quem não dispunha de argumentos. Quem julga que está tudo definitivamente resolvido, talvez se engane. O passado do Evangelho é voz da promessa irrevogável. Vejamos.

2. No Novo Testamento (NT), a conhecida hostilidade entre vizinhos, judeus e samaritanos, é realçada para destacar a arte de Jesus na destruição dos preconceitos do seu próprio povo. Repreendeu os seus discípulos, com sede de vingança, pelo mau acolhimento na Samaria (Lc 9, 54-55). Mas não só. Depois de tudo o que já tinha sido dito sobre o ardente amor a Deus e ao próximo, surge a pergunta de quem gosta mais de conversar do que de meter as mãos na massa - mas quem é o meu próximo? – Jesus arruma aquela petulância, escolhendo um samaritano, um herético e cismático, de quem não se podia esperar nada de bom, para tecer uma parábola de contrastes: Descia um homem de Jerusalém para Jericó e foi assaltado, despojado, espancado, ficando quase morto. Um sacerdote viu-o e passou adiante; veio um levita, viu-o e não parou. Um samaritano viu, encheu-se de compaixão, desceu da sua montada, levou-o a uma estalagem para ser tratado, pagou todas as despesas e só depois foi à sua vida. Foi a vez de Jesus questionar o perguntador retórico: o nosso próximo é aquele cuja situação real nos interroga, nos move e nos comove (Lc 10, 29-37).

3. Para alguns intérpretes do NT, a presença das mulheres é tão irrelevante que poderia ser suprimida, sem se perder grande coisa. Figuram, nos Evangelhos, como as 23 mulheres no Concílio Vaticano II: puro adorno dispensável.

Seria possível suprimir o longo diálogo entre Jesus e a Samaritana (Jo 4,1-42), tema de fundo da Missa deste domingo, que mostra o nosso inveterado atraso eclesial, acima evocado?

Vale a pena percorrer a espantosa narrativa do encontro de um “judeu marginal”, Jesus, com uma samaritana pouco recomendável, junto a um poço, no pico do calor. A arte de S. João consiste em dar a impressão de que eles estão sempre a desconversar, saltando de assunto para assunto, sem linha de conversa e a entenderem-se cada vez mais profundamente. Foi Jesus quem quebrou a animosidade inicial, mas a samaritana acaba por se esquecer do que foi fazer ao poço, sentindo-se perfeitamente compreendida por aquele judeu que desloca a religião do Templo de Jerusalém e do monte Garisim, para o culto do Pai, em espírito e verdade. Pressente que está a nascer nela uma fonte de eternidade, uma outra religião, um futuro novo.

Os discípulos de Jesus, meio escandalizados com o cenário não entendem, como de costume, o que se está a passar. Entretanto, a mulher partiu em missão: contou a sua experiência, não como protagonista, mas para levar os samaritanos a fazerem eles próprios o seu caminho.

Esta narrativa concentra todos os temas e percursos da verdadeira evangelização: a passagem da suspeita ao diálogo, do diálogo à mútua compreensão, da mútua compreensão à alteração da rivalidade religiosa, da rivalidade das instituições religiosas, a uma compreensão nova e universalizante da religião.

Porque teria Jesus, segundo as narrativas da Ressurreição, confiado a evangelização da própria Igreja às mulheres?

Frei Bento Domingues, O. P.         
in Público
         23.03.2014

21 março 2014

As ambulâncias e a lei do Sábado

    
Tenho um amigo que embirra visceralmente com as ambulâncias. Fica tão irritado quando elas passam a gritar, a passar os sinais vermelhos e por cima dos passeios que eu já lhe disse que qualquer dia lhe dá um ataque e temos que chamar uma para o levar. Pensando bem, as ambulâncias até representam o que nos evangelhos é uma revolução extraordinária. Ressentidos com a liberdade de Jesus face à primazia do ser humano, os homens da Lei andavam sempre a embirrar com ele. Uma das coisas que não suportavam era ele curar e cuidar de pessoas ao sábado. O Sábado era um dia de descanso dedicado apenas ao Senhor, por certo no sentido do descanso do próprio Deus depois da trabalheira da criação. Para que o dia fosse cumprido com rigor os homens da Lei foram tecendo um arame farpado de leis às centenas para não se transgredir e ser-se obrigado a cumprir o dia do Sábado. O resultado foi que aquele que deveria ser um dia de liberdade tinha-se tornado um dia de prisão e castigo. Às vezes prega-se que Jesus era contra o Sábado e suas leis, mas é mais correcto dizer que punha as pessoas acima de tudo, mesmo o Sábado. Criticava e transgredia as leis do Sábado naquilo em que elas impediam de atender e cuidar daqueles que precisavam. Entre várias das suas intervenções, há uma muito expressiva: “Se um de vocês tiver uma ovelha e ela cair num poço ao sábado, não vai logo tirá-la de lá para fora? Ora, um homem vale muito mais que uma ovelha! Por isso é permitido fazer bem ao sábado” (Mt 12). Aquelas leis acerca do sábado eram semelhantes às do Código da Estrada, proibições e obrigações. Com a grande diferença de que as leis de trânsito são para favorecer a vida e a convivência e aquelas eram leis que, com uma boa intenção inicial, se tinham tornado contra as pessoas. E, assim, também contra Deus apesar de dizerem que eram Lei de Deus. A embirração do meu amigo pareceu-me semelhante à embirração dos fariseus, e o comportamento das ambulâncias pareceu-me derivar das palavras e do comportamento de Jesus. Claro que as leis de trânsito foram feitas para que tudo seja bom para todos de igual modo. Não têm valor em si mas, devido à sua função, transgredi-las pode causar problemas mesmo ao transgressor. Porém as ambulâncias têm um estatuto diferente, levam alguém que tem prioridade sobre todas as coisas, a começar pelas leis de trânsito. Para salvar uma vida as ambulâncias podem gritar, ir a uma velocidade acima do permitido, passar o sinal vermelho ou por cima de passeios. Nessa situação todos os saudáveis perdem por momentos os seus direitos e o mais sensato que têm a fazer é suspenderem por pouco tempo os seus objetivos. Se não o fizerem e persistirem em não dar prioridade a uma ambulância, serão censurados por toda a gente a começar pelas autoridades cujo ofício é obrigar a cumprir a lei. No mínimo fica feio ter uma atitude dessas. E no momento em que termino estas linhas ouço gritar duas ambulâncias. Ainda bem que esse meu amigo não está aqui para as ouvir. Que Deus vos guie ó ambulâncias, mas não abusem do estatuto que a emergência vos confere. Com o tempo até os pavões perdem a exuberância da sua cauda.
Frei Matias, O.P.

CONVITE

                                                   
CONFERÊNCIA/DEBATE

'Vozes de Religiosas Portuguesas'

 

PAINEL COM A PARTICIPAÇÃO DE

 

Irmã Isabel Balbino

(Franciscanas Missionárias de Maria)

Irmã Mafalda Leitão

(Servas de Nossa Senhora de Fátima)

Irmã Maria Julieta Dias

(RELIGIOSAS DO Sagrado Coração de Maria)

 

Moderadora  Alfreda Ferreira da Fonseca

 

25 de Março 2014, 21.30H

Capela do Rato

Cç. Bento da Rocha Cabral (ao LG. do RaTo)
Lisboa

16 março 2014

CONVERSÃO DA IGREJA AO SERVIÇO DA TRANSFIGURAÇÃO DO MUNDO

    
1. Há quem diga que a melhor atitude perante as tentações é não lhes resistir. Como piada, não está mal.

Tanto no sentido moral como religioso, tentar é induzir ao mal ou pôr alguém à prova. É neste último sentido que se fala das tentações diabólicas que assaltaram Jesus, durante o seu retiro no Deserto. Foi solicitado a assumir, de forma milagrosa e espectacular, o poder económico, político e religioso de um país ocupado pelo império romano, provando assim, a sua divindade messiânica. Essas propostas já foram evocadas na Eucaristia do passado domingo. As suas versões são diferentes em cada um dos Evangelhos sinópticos, mas coincidentes no essencial (Mc 1, 12-13; Lc 4,1-13;Mt 4,1-11). Para alguns autores do Novo Testamento (NT), as tentativas para fazer de Jesus o líder de uma insurreição nacionalista nunca o abandonaram, tendo encontrado cúmplices activos entre os apóstolos mais chegados. Jesus chegou a considerar Pedro como um diabo.

        Estamos perante textos de uma cultura semita de há mais de 2.000 anos, com referências ao Antigo Testamento (AT) e continuamente reinterpretados na história das Igrejas. Exigem, por isso, que se volte a perguntar: as tentações de dominação económica, política e religiosa terão, ainda hoje, expressões significativas no mundo contemporâneo? Poderá a Igreja assumir as recusas radicais de Cristo ou terá de as corrigir, para poder voltar a sonhar com uma Cristandade poderosa no futuro?

F. Dostoiévsky (1821-1881), no romance, Os Irmãos Karamozov, com A Lenda do Grande Inquisidor, retomou, de modo impressionante, a centralidade desse tema de que só posso transcrever um breve trecho: “Se fosse possível imaginar, só a título de exemplo, que estas três perguntas tentadoras tivessem desaparecido das Escrituras e que fosse preciso reconstituí-las, reinventá-las, imaginá-las de novo, para as reintegrar nas Escrituras, se fosse preciso, para isso, reunir todos os sábios da terra – os reis, os cientistas, os filósofos, os poetas – e dizer-lhes: inventai, imaginai três perguntas que correspondam não só à grandeza do acontecimento, mas exprimam, além disso, em três palavras, em três frases humanas, toda a história do mundo e da humanidade, pensas que toda a sabedoria da terra teria podido inventar qualquer coisa que igualasse em profundidade e em força estas três perguntas que Te foram apresentadas no deserto, pelo espírito poderoso e inteligente?

Bastam essas perguntas, basta o prodígio que elas representavam, para se compreender que não se tratava duma inteligência humana, transitória, mas duma inteligência eterna e absoluta. Porque nestas três perguntas estava condensada e predita toda a história ulterior da humanidade. Elas resumiam, também em três imagens, todas as insolúveis contradições históricas da natureza humana. Isto podia não ser tão evidente, então, porque se desconhecia o futuro; mas agora, quinze séculos mais tarde, vemos que tudo o que foi adivinhado e predito nestas três frases se realizou a tal ponto que nada mais se lhe poderá acrescentar ou tirar”.

2. Não interessa muito saber se, do ponto de vista histórico, tudo se passou como vem contado nos Evangelhos. No campo literário, o mais simbólico, o mais poético é também o mais real. O que importa, em textos desta natureza, é o seu processo de significação. A sua interpretação em contexto litúrgico depende da seguinte pergunta: em que medida ajudam a interpretar a nossa experiência actual e, por ricochete, como é que a situação actual ajuda a redescobrir a fecundidade de textos exemplares, do ponto de vista humano e cristão?

Faço este apontamento não só por causa dessa questão, mas também pelas interrogações suscitadas pela leitura das passagens do livro do Genesis (c.2-3) e de S. Paulo (Rm 5), na mesma celebração. Continuam a alimentar a crença no pecado original, no qual todos os seres humanos teriam sido concebidos e que Jesus Cristo teria vindo redimir. Apesar de todo o trabalho exegético e teológico realizado, tudo isso que parece absurdo, ainda funciona como um arquétipo. Será porque nos continua a servir de desculpa pelo mundo tremendo em que nascemos e para o qual não se vê, ou não se quer ver, remédio? 

   3. Estamos no Domingo das Transfigurações. Celebramos o 1º aniversário da eleição do Papa Francisco, que já começou a transfigurar o Vaticano ao serviço da transfiguração da Igreja e a transfigurar o olhar de todos sobre a sociedade: ver o mundo a partir das periferias.

70 personalidades assinaram um manifesto sobre a reestruturação da dívida. A dívida é cada vez maior. Seja qual for a opinião acerca deste gesto, o que parece claro é que nunca iremos ter possibilidades de a pagar. Nestas crónicas antecipámos uma transfiguração quaresmal. O perdão das dívidas é um assunto bem conhecido do AT e NT. É melhor não os esquecer nesta Quaresma, que deve ser transfiguradora. A Alemanha não está arrependida de lhe terem perdoado uma dívida imensa. Desse perdão dependeu o seu milagre económico.

Os deputados, todos os deputados, não se esqueceram das suas condições de vida. Quando acordarem para a situação de vida da maioria dos seus eleitores, talvez descubram que muitos deles já morreram e outros imigraram.

Frei Bento Domingues, O. P.

16.03.2014

in Público

09 março 2014

O SER HUMANO TEM CURA (2)

    
1. Dizem-me que a verdadeira cura do ser humano seria a sua substituição pelo pós-humano, realidade sem memória nem futuro, sem infância nem velhice, liberto da doença e da morte, despido de qualquer interrogação metafísica ou preocupação ética. Ao que parece, existem ciências e técnicas disponíveis para uma “saída limpa” da nossa humanidade cansada e, mesmo assim, irritantemente belicosa.
Como já sou velho, tenho dificuldade em me adaptar à ideia e não alinho em soluções de desespero. Prefiro recorrer a um aforismo de Heráclito: sem esperança, não encontrarás o inesperado. S. Paulo também não prometeu muito mais. Na célebre Epístola aos Romanos (cap.8), depois de muita ginástica mística e antropológica, observa com modéstia: vivemos suspirando e gemendo pela redenção do nosso corpo, num mundo em dores de parto, pois só estamos “salvos em esperança e ver o que se espera não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? Se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos”.
Contamos com a aurora depois da noite, deixando aberto o mistério indizível da existência. Não é inevitável que só a criança viva de perguntas e o adulto se afogue em respostas apressadas. Renascemos numa atitude de permanente interrogação. A invocação convencional de Deus, como pronta e beata solução para todas as questões e enigmas, confunde a divindade em que vivemos, nos movemos e existimos - como diziam os pagãos (Act 17,27) - com um irrisório tapa buracos de nada. A verdade está na procura.
  Humanizar-se é abrir-se às surpresas do céu e da terra, de dentro e de fora, do presente e do futuro. Mas sem romper com o reino das aparências, não é possível descobrir e curar a vontade de dominação que se esconde nos projectos mais grandiosos.
2. Ao glorificar a prodigiosa história do esforço humano que desde as cavernas criou e desenvolve uma civilização cada vez mais prodigiosa e sofisticada, procura-se ocultar a face escura desse percurso. Quem recorda vítimas esquecidas do progresso, as civilizações sepultadas, a memória eternamente apagada das pessoas que ninguém lembrará? Porque insistirmos na falta de respeito à natureza e aos seus precários equilíbrios, sabendo que comprometem o futuro das próximas gerações? Cada verão que passa, cada inverno que chega alarga-se mais o irreparável: a prevenção é demasiado económica.
Quando se celebra e interpreta a música, a literatura, a pintura, a arquitectura, esses frutos da espantosa criatividade de todos os povos e culturas, não se deve esconder tudo o que foi impedido e arrasado. Não nascendo de uma razão utilitária, esse tipo de cultura manifesta que o ser humano não tem preço, tem dignidade.
        Diz-se que Platão agradecia a Deus ter nascido homem e não bruto, grego e não bárbaro e, acima de tudo, ter nascido no tempo de Sócrates. O desprezo pelos membros dos outros povos, não revelava apenas a sua ascendência aristocrática, ofendia também a memória do seu mestre. A Sócrates, o filósofo dos filósofos, mediante o método da pergunta irónica e da maiêutica, só lhe interessava revelar os seres humanos a si próprios e torná-los virtuosos, vencendo a ignorância, fonte de todos vícios. Injustamente condenado à morte, observou: “é muito mais triste merecer um castigo do que sofrê-lo”.
      Na sua antropologia, a morte do corpo era uma cura. Libertava a alma dessa prisão. Ao ver os que choravam a sua condenação, terá reagido: “Porque chorais? Não sabeis que desde que nasci, estava condenado, pela natureza, a morrer?”
   Não basta vencer a ignorância e os erros que ela provoca. Não se pode deixar o nosso corpo à porta e viver como um puro espírito. O eu de cada pessoa é sempre um corpo animado por uma mente incarnada, ligado pelo conhecimento e pelo afecto aos outros, ao cosmos e a Deus.
Isto para dizer que não somos uma unidade monolítica nem uma pluralidade desarticulada. Compete-nos viver a nossa vocação espiritual na realidade carnal, ligados a tudo o que é espiritual e material, em múltiplas dimensões. As soluções unidimensionais, como as da troika, são um veneno.
3. A Quaresma não é um programa de dieta alimentar para vencer os desvarios do Carnaval. Este significa que, sem divertimento e prazer, fazemos do ser humano uma simples peça da cadeia de produção. O tempo de Quaresma é dedicado a descobrir quem somos: lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar. Uma tristeza! Os cristãos eram obrigados a voltar ao Antigo Testamento. A alternativa actual é muito melhor: arrependei-vos e acreditai no Evangelho da Alegria, acreditai que tendes cura.
Neste Domingo, o diabo arma-se em assessor de Jesus, com um programa já pronto. Se queres fazer alguma coisa de jeito, tens de conseguir – à base de milagre é mais seguro – a dominação económica, religiosa e política. Jesus recusou todas as propostas, pois a sua missão consistia em nos libertar da vontade de dominação, raiz de todos os conflitos e guerras. As tentações que Jesus venceu são aquelas em que nós, Igreja, mais facilmente caímos. Por alguma razão foi cunhada a expressão: ecclesia semper reformanda. Sem um processo de conversão continua a Igreja não tem remédio. Mas há remédio.
Frei Bento Domingues O. P.
in Público
09.03.2014

02 março 2014

O SER HUMANO TEM CURA (1)

    
  1. Este título contraria a conhecida sentença antropológica de José Saramago induzida da História e da observação quotidiana: o ser humano não tem cura. A patologia de que sofre parece resultar de um defeito de fabrico. É um animal que leva muito tempo para nascer e, em comparação com os outros mamíferos, vem mal equipado para enfrentar o mundo envolvente.

Uma criança vem ao mundo com enormes vantagens potenciais quanto a inteligência, emoções, linguagem, criatividade estética e capacidade técnica. É uma personalidade em gestação, um centro de relações com uma comunidade de conhecimento e de afectos que a precedeu e a torna apta para sonhar, projectar e realizar o que nunca existiu ou para destruir um património de milênios. As neurociências e as nanotecnologias prenunciam uma caixa de surpresas nos subterrâneos da mente, sem um alarme ético a avisar que nem tudo o que é possível fazer deve ser concretizado.  

Sem entrar nesse vasto mundo de conjecturas, olhando para o passado e para o nosso presente, cresce a sensação de que nunca mais ganharemos juízo. A Europa, por exemplo, talvez nunca tenha conhecido, como nos últimos 60 anos, um tempo tão longo de paz. No séc. XX, foi devastada por duas guerras mundiais. No entanto, foi possível reconstruir-se e gozar uma época de desenvolvimento. Caiu o muro que a dividia. Alimentou a ideia de que a democracia seria não só uma aspiração, mas uma realidade praticável, numa Europa solidária.

      2. Quando, porém, a Europa parecia curada, não houve paciência para estudar e calcular as consequências de cada uma das instituições que criava, dos tratados que assinava e das decisões que tomava, para o desenvolvimento de uma consciência europeia dos cidadãos e dos países com identidades próprias, a respeitar e a promover. Uma Europa democrática esquecida da democracia, ignorando as suas raízes e as suas culturas, sem um estilo de acolhimento da emigração que evitasse os guetos, só podia dar no impossível. Sem espírito europeu, nunca haverá União Europeia auto-sustentável.

A pressa em alargar, antes de experimentar e avaliar a Europa dos pequenos passos na direcção certa, perante situações tão díspares, não podia dar bons resultados. Agora, é a pressa em debitar soluções para sair do euro, para ficar no euro, para sair da UE, para continuar na UE, sem que os europeus saibam, em concreto, as vantagens e os riscos de qualquer dessas soluções. Os europeus, trabalhadores e empresários, sem dados concretos sobre a raiz das rejeições ou decisões, como poderão avaliar o que os beneficia ou prejudica? As conversas acerca dos prós e contras da troika são inúteis, se não servirem para colocar os portugueses a pensar e discutir o que lhes convém para depois da troika. As exigências de marketing eleitoral não devem servir para nos esconder os jogos dos mercados, da banca, dos poderes, nacionais e internacionais. Somos nós que precisamos de saber quais são os jogos e as regras a que nos obrigam.

3. Maria João Rodrigues[1], depois de muitos anos a viajar pela Europa, a viver e trabalhar com pessoas de tão diferentes nacionalidades, admira: “a organização dos alemães, o espírito crítico dos franceses, o profissionalismo sofisticado dos britânicos, a criatividade dos italianos, a sabedoria dos nórdicos, a têmpera combativa dos espanhóis, a abertura cultural dos portugueses e por aí adiante”. Ficam as interrogações: Quantas pontes precisaríamos de criar para restaurar a confiança, assegurar uma vida decente hoje e preparar o futuro? Quantas iniciativas europeias serão necessárias para as construir? Quantos europeus quererão falar europeu?

A Europa não é o mundo nem pode ser uma fortaleza, um mar de morte, e o Mediterrâneo, um cemitério. Reconhecido ou negado, o ser humano existe nos seres humanos. Em todos.

Conta Fr. Bartolomeu de Las Casas, na sua História das Índias, que no dia 21 de Dezembro de 1511, Fr. Antón Montesinos subiu ao púlpito, levando mandato de toda a comunidade dominicana da Isla Española[2], para, como voz de Cristo, tomar a defesa pública dos índios explorados: “esta voz, disse ele, declara que todos estais em pecado mortal e nele viveis e morrereis, pela crueldade e tirania que usais com estas inocentes gentes. Dizei-me: com que direito e com que justiça tendes estes índios em tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade fizestes tão detestáveis guerras a estas gentes que estavam nas suas terras, mansas e pacíficas, onde consumistes um número infindável delas, com mortes e estragos nunca ouvidos? Como é que os tendes tão oprimidos e esgotados, sem lhes dar de comer nem curar as suas doenças, que pelos excessivos trabalhos a que os sujeitais, vos morrem, melhor será dizer, os matais, para arrancarem e conseguirem ouro todos os dias. (…) Estes não são homens? Não têm almas racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto? Não sentis isto? Como estais adormecidos num sono tão profundo e letárgico? (…)

O ser humano tem cura, mas precisa de tomar os remédios. Quais?

Frei Bento Domingues O. P.

02.03.2014



[1] A Europa ainda é possível, Presença, 2013.pp 133
[2] Isla Española, actual República Dominicana