29 abril 2012

Jesus, Mulheres e Igreja

João XXIII, na Pacem in Terris, identifica 3 sinais dos tempos, sendo o 2º a “entrada da mulher na vida pública, nº41:
“Mais acentuado talvez em povos de civilização cristã; mais tardio, mas já em escala considerável, em povos de outras tradições e cultura. Torna-se a mulher cada vez mais cônscia da própria dignidade humana, não sofre mais o ser tratada como um objecto ou um instrumento, reivindica direitos e deveres consentâneos com a sua dignidade de pessoa, tanto na vida familiar como na vida social”




João XXIII escreve a Pacem in Terris na segunda metade do Século XX. Estamos a 2 mil anos de distância de Jesus e numa outra cultura. A sociedade judaica, no tempo de Jesus, embora bastante plural, era marcadamente patriarcal. Ser mulher, nesse contexto, significava viver num estado de inferioridade permanente, em total dependência de um homem: pai, marido ou filho.
A narrativa da Criação que estava mais presente na mentalidade das pessoas era a do Gn 2, em que a mulher é criada a partir do homem e, apenas, para proporcionar a este uma ajuda adequada. Portanto, a mulher era “propriedade” do homem e a sua função estava bem definida: ter filhos e servir fielmente o seu marido.
Faço um parêntese para contar uma outra narrativa da Criação, que não vem na Bíblia, mas era uma história judaica, contada por Frédéric Lenoir, director da revista Le Monde des Religions, ao ser entrevistado, e que o Frei Bento nos deu a conhecer na sua intervenção a 25 de Fevereiro deste ano: No Paraíso, Deus criou, em primeiro lugar, a mulher e não o Adão. Eva aborrece-se. Pede, então, a Deus companhia. Deus criou os animais. Eva continua insatisfeita e pede a Deus um companheiro que lhe seja semelhante, com quem pudesse ser mais cúmplice. Deus criou Adão, mas pôs uma só condição a Eva, que ela nunca revelasse ao homem que tinha sido criada antes dele, para não irritar a sua susceptibilidade. E Deus concluiu: «que isto fique um segredo entre nós… entre mulheres!».
Pelos vistos, no povo judaico não havia um pensamento único, felizmente! A própria Bíblia é testemunha disso mesmo, pois mantem duas narrativas diferentes da Criação. De facto, na 1ª, o ser humano é criado à imagem de Deus: «homem e mulher o criou».
Um outro controlo pesava sobre elas: as regras de pureza. A mulher era, ritualmente, impura durante o período menstrual e no parto – perlongando-se por 40 dias no nascimento de um menino e por 80 dias se fosse menina. Nestas situações era considerada impura e tornava impuro tudo o que tocasse: pessoas ou objectos.
Além disso, como a narrativa bíblica apresenta a mulher a dar a comer o fruto proibido – que lhes mereceu a expulsão do paraíso – era vista como um ser tentador, mas também vulnerável, frívolo, sensual, que precisava de protecção e de controlo. Não podia ter vida própria. O seu espaço específico era o interior da sua casa e nem precisava de ir ao Templo ou à sinagoga.
Há indícios, por outro lado, ainda que escassos, de que na Galileia, por exemplo, havia aldeias onde as mulheres gozavam de uma maior liberdade social.
Os textos evangélicos nada nos dizem se Jesus se interrogava ou não sobre estas questões. O que nos apresentam é um grupo de mulheres, de várias proveniências, a acompanhar Jesus desde o início da sua pregação, sem lhes ser perguntado se tinham licença do pai, do marido ou do filho. Estas mulheres deixaram o recato do seu lar para andarem de terra em terra, seguindo e aprendendo os ensinamentos do Nazareno. Não há notícia de nenhum outro profeta de Israel que se deixasse acompanhar por mulheres.
Afastar-se de casa, andar sozinha na rua, tomar parte em refeições “sociais” ou em actividades reservadas aos homens, eram consideradas condutas desviantes, próprias de mulheres que descuravam a sua reputação, a sua honra. Jesus sabia isso quando as aceitou em sua companhia.
Como diz José Antonio Pagola, «as mulheres judias, sem verdadeira autonomia, servas do seu próprio esposo, reclusas no interior da casa, suspeitas de impureza ritual, discriminadas religiosa e juridicamente, formavam um sector profundamente marginalizado na sociedade judaica» E pergunta: «seria realmente isto o que Deus queria? Que poderiam esperar as mulheres com a chegada do reino de Deus?»
[1].

Quem eram as mulheres que saíram de suas casas para seguir Jesus? Concretamente, apenas sabemos de uma que foi curada por Jesus: Maria de Madgala (Lc 8, 2). Das outras nada sabemos da sua realidade pessoal, familiar ou social. Percebemos, pelos textos, que faziam parte dos chamados pecadores e indesejáveis que se sentavam a comer com Ele, o que deixava perplexos, e até escandalizados, os homens «bem conceituados». Percebemos, pelos textos, que Jesus as acolhia com respeito e compaixão e com uma inusitada simpatia. Percebemos, pelos textos, que, para Jesus, gerar filhos não era tudo na vida de uma mulher: feliz antes a que escuta a Palavra de Deus e a põe em prática (Cf. Lc 11, 27-28). Percebemos, pelos textos, que a grandeza e a dignidade da mulher, como as do homem, radicam na sua capacidade de escutar a mensagem do reino de Deus e de entrar nele. Percebemos, pelos textos, que a mulher não pode ficar reduzida às lides da casa (Lc 10, 38-42). Percebemos, pelos textos, que a mulher não pode ser culpabilizada para justificar o mau comportamento dos homens (Jo 8, 1-8). Percebemos, pelos textos, que Jesus olhava de maneira diferente dos outros para as mulheres e estas compreendiam-no muito bem (por exemplo: Jo 4, 1-42; Mc 14, 3-9 e par.: Unção).
Quando queria falar de Deus, Jesus tanto escolhia exemplos de homens (bom pastor, pai que acolhia o filho pródigo…) como exemplos de mulheres (mulher que procura a dracma perdida…). Deus realiza algo parecido ao que elas faziam na preparação do pão: introduzir no mundo uma força transformadora, o fermento que leveda a massa; para falar de Deus que não descansa enquanto não encontra quem anda perdido, Jesus tanto utiliza a metáfora do pastor que deixa as 99 para ir à procura da ovelha que se transviou, como da mulher que remexe toda a casa para encontrar a moeda que perdera. No que à sua pessoa diz respeito, Jesus, ostensivamente, mostra que a impureza ligada á mulher não tem sentido no reino que veio estabelecer entre nós.
Numa ocasião, quando fez questão que a mulher saísse do anonimato, não foi para a envergonhar ou culpabilizar por o ter tocado, mas para enaltecer a sua fé, enaltecer a sua dignidade (Mc 5, 25-34).
Pelos textos, conhecemos apenas uma única vez em que Jesus renuncia à sua opinião para aceitar a de interlocutores: no seu encontro com a mulher pagã. No diálogo que trava com ela, compreende, efectivamente, que a sua mensagem não pode ficar confinada ao povo de Israel, como julgava, mas que se deve estender a todos os povos (Mc 7, 24-30; Mt 15, 21-29).
Enquanto os homens se afastavam das mulheres, dos pecadores, dos doentes, para se aproximarem de Deus, Jesus não se afastava de ninguém para poder estar perto de Deus.
As mulheres são as suas interlocutoras reais: discutem com Ele, interrogam-no abertamente, antecipam seus gestos e palavras, ironizam, amam-no… Sintetizando, comportam-se como convém ao ser humano, digna e livremente (samaritana, cananeia, Marta na morte de Lázaro, etc.).
Nos textos, não se fala de “discípulas” porque só existia o termo no masculino (o mesmo acontece com a palavra “apóstolo” que, ainda hoje, os nossos dicionários não reconhecem, embora já incluam o termo “discípula”. Na Carta aos romanos, Paulo designa Júnia como “apóstolo exímio”).
Pelos textos, sabemos que Jesus envia homens e mulheres em missão. Depois da morte de Jesus, todos os evangelistas atestam que foram as mulheres as mandatadas, as enviadas a anunciar a Boa Nova da Ressurreição. São as apóstolas (que significa enviadas) do Cristo que venceu a morte.
Não encontramos, nos textos, que Jesus tivesse deixado algum modelo de organização para o seu discipulado. Podemos, no entanto, verificar que estabeleceu alguns princípios:
Sabeis que os governadores das nações as dominam e os grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o vosso servo. Desse modo, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida (Mt 20,24-28).
Os escribas e fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei e observai tudo quanto vos disserem, mas não imiteis as suas acções, pois dizem mas não fazem (...).Gostam do lugar de honra nos banquetes, dos primeiros assentos nas sinagogas, de receber as saudações nas praças públicas e de que os homens lhe chamem “Rabi”. Quanto a vós, não permitais que vos chamem “Rabi”, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. A ninguém na terra chameis “Pai”, porque um só é o vosso Pai, o celeste. Nem permitais que vos chamem “Guias”, pois um só é o vosso guia, Cristo. Antes, o maior dentre vós será aquele que vos serve (Mt 23,2-11).
Lucas (22,24-28) coloca a questão do serviço no contexto da Ceia. Liga a celebração da Eucaristia ao serviço prestado aos irmãos: os chefes das comunidades não podem esquecer o seu dever de servir. É nisto que consiste a recomendação, de repetirem o Seu gesto eucarístico (Lc 22,19)
[2].
Nesta mesma linha, o 4º Evangelho substitui o relato da Ceia pelo do Lava-pés (Jo 13,2-17): Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais, isto é, assim como eu sou verdadeiro alimento para vós, também vós deveis ser alimento para os outros, servindo-os. Sereis um grupo de iguais, de irmãos, irmãs e mães e ninguém pode reclamar, para si, a autoridade do pai porque ela pertence, exclusivamente, a Deus; ninguém pode reclamar, para si, a função de guia porque ela pertence, exclusivamente, a Cristo e ao seu Espírito (cf. Jo 16,13). Sereis um grupo inclusivo, aberto a todos e de modo particular aos marginalizados religiosa e socialmente.
Nisto se distingue o movimento iniciado por Jesus – abolição das hierarquias e abertura aos excluídos – de outros grupos religiosos que procuravam controlar o acesso à presença e ao poder de Deus. «Jesus e o seu movimento ofereciam uma interpretação alternativa da Torah, interpretação que abria o acesso a Deus a todos os que eram membros do povo eleito de Israel e em especial aos que, em virtude da sua situação social, tinham poucas hipóteses de experimentar o poder de Deus no templo e na Torah»
[3].
Esta compreensão que as primeiras comunidades tinham de si mesmas, depressa se fixou numa fórmula lapidar adoptada como Credo baptismal: a unidade da Igreja expressa-se na igualdade de todos os baptizados. O baptismo no Espírito remove as discriminações históricas, invalida, por princípio, todos os privilégios por causa da religião, sexo, nacionalidade, classe ou raça: Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não homem e mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus (Gal 3,28)
[4]. Credo que oferecia uma «nova visão às mulheres e escravos e negava todas as prerrogativas religiosas masculinas na comunidade cristã baseadas em papéis sexuais. Assim como os nascidos judeus tinham de abandonar a noção privilegiada de que somente eles eram o povo escolhido de Deus, assim também os proprietários tinham de deixar o seu poder sobre os escravos e os maridos o seu poder sobre as esposas e filhos. Uma vez que esses privilégios socio-políticos eram ao mesmo tempo privilégios religiosos, a conversão para o movimento cristão significava, para os varões, abandonar as suas prerrogativas religiosas... Na medida em que esta autocompreensão cristã igualitária afastava todos os privilégios masculinos de religião, classe e casta, permitia não só aos gentios e aos escravos, mas também às mulheres, exercerem funções de liderança dentro do movimento missionário»[5].
Esta mesma compreensão do movimento de Jesus que deu origem à Igreja leva o autor da carta aos Hebreus a insistir no uma-vez-por-todas do sacerdócio e do sacrifício de Cristo (Hb 7,27; 9,12.26.28; 10,10; cf. Rm 6,10; 1Pd 3,18) porque, para os que se diziam cristãos, o seu encontro com Deus acontecia no acto de servir o outro (Hb 13,1-3.16; Mt 25,31-46; cf. Lc 24,13-35)
[6]. Jesus não inaugura um novo sacerdócio, mas atinge a sua realização plena, fechando o ciclo sacerdotal[7]. Na Nova Aliança, o Sumo-Sacerdote é Cristo e, Nele, todos somos sacerdotes, como diz a 1ª Carta de Pedro (2, 4-10).
Segundo Elizabeth A. Johnson, «historicamente, à medida que a Igreja dos primórdios se foi inculturando no mundo greco-romano, aos poucos foi-se modelando de acordo com o padrão da família patriarcal e, em seguida, dentro do padrão do império. Em razão disso, a imagem de Cristo assumiu os contornos do chefe masculino, na família, ou do soberano, no império, acontecendo um movimento correspondente de desenvolvimento similar, na visão do ofício eclesiástico. Cristo foi então considerado o princípio da supremacia da ordem cósmica, o rei soberano da glória, (…) cujo reino celestial estabelece e sustenta a norma terrestre do chefe de família, do império e da própria Igreja. A obediência a essas autoridades era a obediência ao próprio Cristo; a desobediência a elas punha em xeque a própria fidelidade a Cristo»
[8]
Em jeito de conclusão, recordo dois factos evangélicos sem comentários:
- O que diziam de Jesus, perante o que Ele dizia e fazia: Beelzebu está nele; é por Beelzebu, o príncipe dos demónios, que ele expulsa os demónios (cf. Mc 3, 22; Mt 9, 34; 12,24; Lc 11, 15…).
- O que Jesus respondeu aos que O acusavam de não observar as tradições: «Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, quando escreveu: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.
Vazio é o culto que me prestam e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos. Descurais o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens.» E acrescentou: «Anulais a vosso bel-prazer o mandamento de Deus, para observardes a vossa tradição» (Mc 7, 6-13).


[1] José Antonio Pagola, Jesus uma abordagem histórica, Gráfica de Coimbra 2, 2008, p. 221
[2] Jean-Marie R. Tillard, Chair de l’Église, chair du Christ. Aux sources de l’ecclesiologie de communion, Cerf, Paris, 1992, 104-105.
[3] Elisabeth S.Fiorenza, As origens cristãs a partir da mulher, EP, São Paulo, 1992, 177.
[4] E. Schillebeeckx, Por uma Igreja mais humana, EP, São Paulo, 1989,54-55; Elisabeth S.Fiorenza, Op. cit., 330.
[5] Elisabeth S. Fiorenza, Op. cit., 253.
[6] Jean-Marie R.Tillard, Op. cit.,
[7] J.M.R.Tillard, La “qualité sacerdotal” du ministère, in NRT 5 (1973), 488-489.
[8]Aquela que É. O mistério de Deus no trabalho teológico feminino, Petrópolis 1995, pp. 223-224

Lisboa, 14 de Abril 2012
Maria Julieta, rscm


Texto da intervenção da Irmã Julieta na conferência do NSI-PT, Jesus, Mulheres e Igreja

22 abril 2012

Missas americanas

Encontro-me temporariamente nos Estados Unidos. Já fui a duas missas aqui nos Estados Unidos, uma na Catedral de Chicago outra na igreja de St Clement situada num bairro bastante nobre da cidade. Ambas usaram, evidentemente, a nova tradução do missal romano, que entrou em vigor há menos de um ano, em que o inglês é mais próximo do missal romano original e usa linguagem pesada e intrincada, nada próxima do que se usa quotidianamente.

Na primeira missa, para além disto, usaram-se orações rebuscadíssimas, com duas pequenas litanias de santos e referências às "santas e veneráveis mãos" de Jesus. Na oração dos fiéis havia uma prece para que os indivíduos e as organizações cristãs tivessem "liberdade de mandatos governamentais" para poderem agir — numa clara referência à contracepção que deve estar presente em todos os planos de saúde.

Na segunda, que foi verdadeiramente refrescante, o padre usava microfone de lapela, o que lhe permitiu rondar o altar num momento em que estava a dar um exemplo de como através da coscuvilhice sacrificamos os nossos próximos e as suas reputações. Esta homilia com encenação e gestos não retirou nada à dignidade da celebração, em que, por exemplo, os cânticos eram acompanhados a órgão de tubos. No fim da missa, o padre perguntou se havia paroquianos livres numa certa semana em Maio, pois ele ia deslocar-se a uma paróquia geminada à de St Clement, em El Salvador, para aí atribuir a "
Romero Scholarship" — e gostaria de ter companhia. À saída da igreja havia também vários painéis com informação, um deles destinado a católicos que tinham deixado de ir à missa. As duas primeiras frases eram "Have you left the Church? Has the Church left you?".

Entre um modelo de igreja com centro em si mesma, na rigidez das suas liturgias e das suas doutrinas, e outro com centro nas pessoas e nas suas vidas, a escolha de Cristo seria simples.


Pedro Freitas

21 abril 2012

Gala de Solidariedade

Já foi há uns tempos e, por esse motivo, esta informação poderá parecer antiga nesta espécie de cultura da última novidade em vez da boa notícia. Mas para aquilo que é eterno não há tempo. Por isso permanece actual o que aconteceu no dia 27 de Março, à noite, no cinema S. Jorge, em Lisboa. A Grande Gala da Solidariedade, destinada a recolher fundos para dez instituições, teve a beleza da simplicidade, o encanto de um sentimento comum em muita gente diferente, a melodia silenciosa que toca nos corações disponíveis a acolher outros mundos.
Isabel Salema escreveu as letras, João Veiga criou as músicas, Salvador Taborda cantou os dez fados, mais um, dedicados a cada uma das instituições visadas. Dedicados tendo em consideração aquilo que elas são, a sua alma, a sua paixão, o seu voo iluminado pelo sonho de um melhor presente no futuro. Gravados em CD sob o título Nome de Causa, o nome do 11º é: No palco da vida. Além de representantes das instituições estavam também ali muitos dos que delas beneficiam: coxos a correr para o palco no final da apresentação, cegos a olharem-nos com olhar incerto mas a verem-nos por dentro, carentes de todo o tipo a sorrirem com seus sorrisos distorcidos, a abraçarem com seus braços desengonçados, uns elevados de euforia outros suspensos em fragilidades musculares, mas todos iluminados. Iluminados pela luz que tinham dentro e para nós resplandecia. Tivemos a graça de ver ali que “ser diferente é ser igual a toda a gente”. Todos somos diferentes e nisso somos iguais.
Há muito tempo houve também um dia, celebrado há duas semanas, em que toda a gente que era diferente passou a sentir-se igual. As suas diferenças eram motivo para serem diferenciados e, assim, descriminados, empurrados para fora do círculo dos iguais. Mas houve uma tampa que saltou, uma tampa de um túmulo aberto ao mundo, vazio, e o cerco foi rompido. A partir daí todas as diferenças foram assumidas e toda a gente passou a ser igual nas suas diferenças.
Neste palco do dia 27 de Março esteve reunida toda a humanidade e nela o sonho de subir ao mais alto das alturas, onde o vento sopra futuros e as nuvens orvalham esperança. Veio-me então à mente o que, dois dias antes, aqui escrevia Leonor Xavier: “Impossível, na cultura cristã que foi a minha, apagar as cenas vividas em tempo de primavera, quando as glicínias caíam em cachos roxos a envolver o Senhor dos Passos e a terra explodia em fertilidade de sabores à mesa, ajuda ao cumprimento da abstinência das Sextas-feiras”. Em plena Quaresma também aqui tivemos glicínias e outras flores de muitos jardins invisíveis. Umas a envolver o Senhor dos Passos, outras a seguirem os passos do Senhor.
f
rei matias, op

17 abril 2012

CATÓLICOS E INDIFERENTES

Tenho uns amigos que sendo pessoas de fé, profundamente crentes por palavras e por obras, passaram à categoria que Clara Pinto Correia tão bem classificou referindo-se a si-mesma como “católica em autogestão”. Estão se “nas tintas” para a hierarquia da Igreja Católica, o que ela diz e o que faz!
Deixaram de se irritar, de aplaudir, de criticar e de comentar. A estrutura da Igreja e o seu modo de o ser é-lhes indiferente, consideram-na irrelevante para as suas vidas, assim como a forma como a Igreja se relaciona com a sociedade. O risco de cisma silencioso de que falam os teólogos é provavelmente o que se passa nesta atitude.
Nos últimos anos temos seguido a “telenovela romanesca estilo Dan Brown” que se tem desenrolado com episódios que vão da pedofilia, às lutas de poder nos bastidores da cúria do Vaticano, até aos dinheiros de proveniência e aplicações pouco católicas, passando pela condenação de teólogos e da recusa firme em abrir sequer o debate sobre questões como a ordenação de padres casados, a das mulheres ou o fim do celibato obrigatório.
Tudo isto são questões que felizmente, têm vindo a público, mas os aspetos relevantes que a mensagem da Igreja transporta, a Boa Nova, corre o risco objectivo de nunca chegar aos destinatários, isto é, a toda a gente, perdendo-se nos meandros desta teia de intrigas e de golpes mais ou menos palacianos...
Bento XVI faz 7 anos de pontificado esta semana. Não lhe invejo a sorte. A cadeira de Pedro tem sido quase sempre um lugar solitário, com pompa e circunstância mas com uma missão impossível, (a não ser que o Espírito Santo cumpra o prometido). Está rodeado de gente que vive num mundo fechado, uma gerontocracia de idade e sobretudo de mentalidade que procurou fazer uma leitura interpretativa do Concílio Vaticano II “contornando-o”, mudando alguma coisa para que tudo ficasse na mesma, e conseguiram-no, até ver!
Nem mesmo os integristas Lefèbvreanos da Fraternidade São Pio X parecem contentes, para eles ainda há demasiado progressismo em Roma. Quanto aos “perigosos progressistas” que se têm manifestado um pouco por todo o lado mas particularmente na Áustria e Alemanha, nem se fala; descontentes por verem a pesquisa teológica encurralada nos limites da linha predominante na congregação da doutrina da fé, e por verem que a gestão corrente das paróquias e outras estruturas não se pode continuar a fazer de modo clerical, apenas reivindicam o que o concílio já tinha aberto; a janela do vento de mudança de uma Igreja fechada sobre si-mesma para que se transforme cada vez mais em Igreja lugar de interpelação de todo o Povo de Deus.
As formas desastradas como têm sido, muitas vezes, tratadas as pessoas que vivem situações fraturantes como o divórcio e o novo casamento, as uniões de facto, etc. e o pensamento oficial da Igreja sobre essas questões, leva a que muita gente reaja ao Magistério simplesmente ignorando-o. Não o fazem por qualquer má vontade particular para com a hierarquia católica, mas passam ao lado.
Um dos meus amigos teve a correr durante vários anos um processo de nulidade de um primeiro matrimónio numa das dioceses de Portugal, casou-se de novo e queriam ambos casar-se não só à face à sociedade civil mas queriam-no fazer na Igreja como expressão da fé que ambos partilham e praticam. Ainda não obtiveram a solução do caso. Acontece que ele enviuvou entretanto. Perguntei-lhe se, em vista da sua nova situação, sempre queria casar pela Igreja. Respondeu-me que não, agora já não faz sentido. Sentiram-se sempre casados perante Deus mas os seus ministros na terra foram tão burocratas que os fizeram perder a paciência. Deixou de ser relevante!
São mais uns católicos em autogestão. Já não se irritam, não comentam, só lamentam. E “dão o desconto” porque sabem bem que todos transportamos o tesouro em vasos de barro.
O “Movimento Nós Somos Igreja” não desiste, não fica indiferente, não considera irrelevante o modo de ser Igreja, a afirmação do nome é isso mesmo. Não é uma ameaça de cisma, mas muito pelo contrário é um manifesto por querer continuar a contribuir com a sua quota-parte para uma Igreja que seja mais fiel ao seu Senhor, que mostre a bondade e o acolhimento em vez de um catálogo de normas e de interditos. Ser perita em humanidade é afinal procurar reconhecer os sinais de Deus na História e nas histórias pessoais que cada homem e mulher vão vivendo nos quatros cantos do mundo.
A útil iniciativa da conferência episcopal portuguesa de lançar um grande inquérito sociológico sobre a situação dos católicos portugueses mostra uma diminuição de laços de pertença efectiva à Igreja. Menos 2 milhões do que os dados anteriores! Este afastamento para a autogestão e/ou a indiferença deve ser também uma oportunidade de mudança radical de paradigma eclesial. Como se verifica, este caminho já não serve. Há que procurar outros, sem aquele hábito de reciclar formas pastorais passadas como se fossem nova evangelização!
Se nada se fizer de realmente novo continuará a verificar-se o que estes meus amigos fizeram, fecharam a porta de mansinho, sem barulho. Simplesmente porque a Igreja se lhes tornou irrelevante.
AFF
16-04-2012

15 abril 2012

E viva a primavera! Tempo para renascer

Todos os anos em meados de março, a entrada da nossa casa enche-se de alegria e de fragâncias anunciadoras da primavera: o vaso com jasmim que temos logo junto ao portão, cobre-se de pequenas flores brancas que emanam um forte perfume. Chegamos a casa e sentimos a primavera.
No parque vizinho, as árvores começam a mostrar a roupagem nova logo no início de fevereiro, devagar, devagarinho. Primeiro, só se vislumbra uma ligeira penugem verde clara, mas aos poucos as mini-folhinhas vão ganhando força, vão crescendo e as árvores começam a ganhar o seu esplendor estival. Só os choupos mantêm a teimosia invernal e recusam ainda a abrir-se à vida. Só lá para finais de abril é que concluem que não vale a pena a teimosia e se deixam cobrir de verde.


Também nós devemos seguir os exemplos das árvores. Morrer para renascer. Para os cristãos, o fim do inverno coincide quase sempre com a Quaresma e que, com a sua sugestão de jejum, não é mais do que uma preparação para a nova vida que se nos oferece. Na nossa vida diária cheia de azáfamas diversas, convém fazer pausas. O jejum é um convite à pausa, à meditação, a olharmos para dentro e repensar a vida.
 

O jejum, uma abstinência total ou parcial de alimentos por um período definido e com um propósito específico, traz imensos benefícios físicos com a desintoxicação que produz no corpo. E obriga-nos a pensar. É a (re)aprendermos a prescindir, algo que na vida atual já praticamente deixou de fazer parte da nossa vida. Quem está disposto a prescindir do que quer que seja, numa sociedade de consumo, numa sociedade onde há - ou parece haver - tudo em abundância para se usar e abusar?
 

É importante para o nosso equilíbrio mental prescindir conscientemente do que ali temos à mão de semear - seja um prescindir de comida, de bebida, de tudo o que nos toma tempo e nos ocupa, inutilmente, espaço mental. É um passo para o nosso renascimento interno. Ao libertarmo-nos do que fazemos automaticamente sem pensar, estamos a crescer intimamente, a reencontrarmo-nos. Apreendemos melhor o nosso mundo, estamos com os olhos mais abertos. E é também um passo para a melhorarmos a sociedade em que vivemos. Pois ao estarmos de olhos abertos, com a mente mais liberta, vemos com olhos de ver e muitas vezes encontramos as soluções.
 

É preciso morrer para renascer. Sigamos o exemplo da natureza.

(Esta crónica foi publicada a 6 de abril de 2012 em 
http://www.grupocronicasrevista.org/2012/04/06/viva-la-primavera-tiempo-para-renacer/)

14 abril 2012

Metade da humanidade perturba?

Enviei recentemente para alguns dos meus contactos de e-mail o convite referente à Conferência que o Movimento Nós Somos Igreja organiza no sábado dia 14 de Abril, às 16.00, no Convento dos Dominicanos em Lisboa, sobre Jesus, Mulheres e a Igreja onde falarão as teólogas Julieta Dias e Teresa Toldy, por ocasião do Dia Internacional de Oração pela Ordenação das Mulheres Católicas.
Obtive três respostas interessantes que me fizeram reflectir como são tão apropriadas as palavras do Evangelho segundo as quais na casa do Pai há muitas moradas, em plena sintonia com a diversidade humana criada e por isso desejada por Deus. E como temos em cada dia de cultivar o respeito pela diferença, estabelecendo, contudo, fronteiras firmes no que diz respeito aos direitos humanos que, por sua vez, assentam em valores evangélicos.
Uma das minhas correspondentes escreveu que se tratava de um tema «muito afastado das minhas convicções e perante o qual a minha posição é de total desacordo». Citando as palavras que o Papa pronunciou na Homília de 5ª feira Santa, rejeitando a ordenação das mulheres, acrescenta que nos devemos antes
unir «ao sucessor de Pedro na difícil condução da Igreja do nosso tempo.»
Um homem, também católico, comentou: «não me parece certo pedir a Deus que trave por mim o combate que Ele nos encarregou de travar em Seu nome, em virtude do sacerdócio que a todos os seguidores confiou. Para mim a questão é tão clara à luz dos Evangelhos que negar a ordenação das Mulheres é um absurdo e é anti-cristão. Invocar a tradição é negar o carácter renovador da Palavra, a mesma que justificou a encarnação. É também quase uma recusa de que a encarnação e a revelação são intemporais, não estão acabadas, acontecem hoje como sempre através daqueles que estão abertos ao Espírito. A obsessão com integristas que poderiam escandalizar-se é ofensiva para Quem foi motivo de escândalo - e é uma preocupação "temporal" da parte dos que foram convidados a dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.... De resto, há outras infidelidades a corrigir e eu estou perplexo com a passividade do colégio episcopal. Sinceramente, necessitamos de um Concílio, 50 anos passados sobre o anterior. Mas não ouvem o que foi dito: Não temais.Não vos esquecerei amanhã.»
Finalmente, uma outra mulher, escreveu:
« agrada-me a ideia da luta de ordenação de mulheres católicas. Só a luta. Não sei se lhe disse, mas quando era pequena, numa rodinha de escola, "giroflé, giroflá", havia uma pergunta cantada: "E que ofício lhe dareis, giroflé, giroflá?"... deram-me o ofício de costureira. Eu fiz parar a roda e disse que não queria ser costureira, queria ser padre. Foi uma gargalhada geral. Disseram-me as minhas companheiras que não podia ser padre porque era rapariga. Eu não acreditei e corri para casa a perguntar à minha mãe. A minha mãe, uma mulher rural que nem a terceira classe tinha, deu-me a maior lição de história da minha vida - mostrou-me que o mundo era masculino, o presidente (Salazar), ministros, o regedor, o presidente da Junta, o médico... tudo que era chefe era masculino como Deus e o padre. A nós mulheres restava-nos nunca precisar dos homens nem do Estado e aconselhou-me a rezar a Nossa Senhora. Mais tarde prossegui estudos, estudei as religiões todas e suas origens.. e para mim não foi Deus que nos criou mas nós que criamos Deus à semelhança de quem tem o poder. Hoje as mulheres podem ser ordenadas à vontade que para mim é tarde demais. Ordenadas para quê? Para ensinarem que a maternidade é castigo como vem no Génesis e Levítico? Acho a Bíblia o livro mais machista que li e considero que, depois do séc. XIX, Nossa Senhora, ou seja, o sagrado feminino, está a ocupar a alma e coração dos crentes. Sobretudo das crentes. Nossa Senhora não discrimina como já acreditava a minha mãe. Acho que a Igreja nos discriminou muito tempo depois de nós termos entrado na escola e podermos ler. As mensagens de há dois mil anos e mais serão importantes para os saudosistas. O mundo mudou. E qual a mulher que hoje acredita que o Deus verdadeiro nos considera seres de segunda, nos criou de uma costela porque o homem se sentia sozinho? Não entendo como nos casamentos ainda se leem as palavras de S. Paulo que mandam a mulher obedecer ao marido como a Igreja obedece a Cristo.... Eu tenho uma ideia mais positiva de Deus do que a oficial... Desejo muitas felicidades para a sua luta. Mas, após nos fecharem tantos anos as portas dos seminários, talvez quando as abrirem já não haja quem nelas queira entrar.»
Ana Vicente

08 abril 2012

AS MULHERES DA PÁSCOA

AS MULHERES DA PÁSCOA
Frei Bento Domingues, O.P.

1. As mulheres entraram muito cedo e de vários modos na vida de Jesus de Nazaré. Hoje, é quase impossível imaginar a importância desse fenómeno. Seria necessário estudar o lugar da mulher na cultura religiosa do tempo de Jesus, para perceber o alcance da revolução que ele desencadeou. Vivemos numa época na qual a mulher tem um papel cada vez mais activo na vida e na liderança das sociedades, mas a sua situação na Igreja é um anacronismo que, esperamos, os anos se encarregarão de vencer.
A exegese feminista conquistou, no âmbito das abordagens contextuais, um lugar, ainda não ao sol, mas à sombra, no documento da Comissão Pontifícia Bíblica, de 1993, (A interpretação da Bíblia na Igreja).
O que espanta é a lentidão em reconhecer o que parece claro no Novo Testamento e que, ainda hoje, muitos não querem ver o que estão a ver, devido à resistência de uma cultura secular anti-feminista que os torna cegos, mas vamos por partes.
2. No Evangelho de S. Lucas, depois da cena escandalosa da mulher que surpreendeu, tocou e beijou Jesus, na casa de um fariseu, onde ele estava a jantar – e para onde ela não tinha sido convidada - (Lc. 7, 36-50), são as mulheres que surgem em grupo, de uma forma estranha e ambígua. Vale a pena transcrever o texto: “depois disso, ele andava por cidades e aldeias, pregando e anunciando a boa nova do reino de Deus. Os Doze acompanhavam-no, assim como algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demónios, Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes, Suzana e várias outras, que os serviam com os seus bens.” Iremos encontra-las depois da Ressurreição dedicadas a converter, muito a custo, os Apóstolos que lhes não davam crédito (Lc. 24, 9-11). São elas as mulheres da Páscoa cristã.
O grande historiador judeu, Flávio Josefo (
37 ou 38 – c. 100 d.C), nas Antiguidades Judaicas, afirma, por duas vezes, que ”o testemunho das mulheres não deve ser aceite por causa da fragilidade e presunção do seu sexo”. Noutra passagem, com outras palavras, repete a mesma ideia: “das mulheres não se pode aceitar nada como certo, por causa da ligeireza e temeridade do seu sexo”.
Um outro judeu, Jesus de Nazaré, parece que estava apostado em atirar pelos ares, costumes e ideias, que perpetuavam a marginalização do testemunho das mulheres. A opção deste Nazareno era de um atrevimento escandaloso, ao fazer delas testemunhas da sua Vida, da sua Paixão, da Ressurreição e do Pentecostes.
É certo que começam a aparecer, no Evangelho de S. Lucas, em grupo, mas de uma forma sorrateira e como que, apenas, financiadoras do novo projecto. Dá a ideia que foram conquistando terreno até ao momento extremo de tornarem o futuro do movimento cristão dependente delas. Não me parece nada que tenha sido assim, embora não tenha espaço para o demonstrar.
As narrativas do Novo Testamento, aquilo a que chamamos os Evangelhos, são fruto de várias tradições, de várias comunidades, de tempos e culturas diferentes. O que espanta é que sendo textos escritos por homens, também eles marcados pela mentalidade reflectida por Flávio Josefo – basta ver o que pensavam os apóstolos quando elas os procuravam evangelizar (Lc. 24, 9-11) – como é que os seus escritos testemunham uma presença impressionante de mulheres em torno de Jesus e nas Igrejas nascentes. Aqueles que desejam abafar o papel que as mulheres devem desempenhar actualmente na Igreja, imaginam Jesus, de Mitra e Báculo, a ordenar, numa Missa solene, os doze apóstolos, mostrando assim que Jesus, de Mitra e Báculo, não ordenou nenhuma mulher. E homens?
É uma imaginação a funcionar ao contrário. O que podemos e devemos imaginar é o que deve ter sido a presença activa das mulheres, em todo o percurso de Jesus, para ter resistido ao aperto cultural e religiosos do seu tempo.
3. Pertence aos exegetas continuar a analisar, com todos os métodos de que dispõem, as narrativas sobre o túmulo vazio e as aparições do Ressuscitado. Essas narrativas coincidem em algo essencial: A morte não teve sorte com Jesus: Ele está vivo e para sempre; é o mesmo, embora já não da mesma maneira. Aos discípulos pede que sejam testemunhas dessa esperança, essa memória de futuro.
Não se trata de nada que se possa provar por qualquer das ciências que existem. É de outra ordem. A fé, como diz o filósofo Wittengstein, é fé naquilo de que necessita o meu coração, a minha alma e não a minha inteligência especulativa. Pois é a minha alma com as suas paixões, por assim dizer, com a sua carne e sangue, que tem de ser salva e não a minha razão abstrata. Só o amor pode acreditar na Ressurreição.
O espantoso capítulo 20 do Evangelho de S. João conta que uma mulher, Madalena, liberta e apaixonada, não largou Jesus nem na vida, nem no vazio da morte, nem no túmulo. Continuou a procurá-lo. Não o encontrou, mas foi encontrada por aquele que sabia o seu nome. A sua recompensa foram novos trabalhos, uma encomenda directa do Ressuscitado: “vai, a meus irmãos e diz-lhes: Subo a meu Pai e vosso Pai, a meu Deus e vosso Deus”. Maria Madalena foi anunciar aos discípulos: vi o Senhor e as coisas que ele lhe disse.
Porque impedir as mulheres da Páscoa de realizarem a sua missão apostólica na vida da Igreja ao serviço da transformação do mundo?
Artigo copiado do Jornal Público de 8 de Abril 2012

04 abril 2012

TEMPO DE PÁSCOA, TEMPO DE MÚSICA

Eduardo Lourenço é uma surpresa permanente, mesmo para aqueles que são os seus devotados leitores e que julgam que já deram a volta à sua obra, que leram e releram. Surgiu, agora, Tempo da Música, Música do Tempo (Gradiva), obra organizada e prefaciada, de modo exemplar, por Barbara Aniello.
Eduardo Lourença já tinha revelado, em 1948: não nasci senão para ver e ouvir, para a imagem e som, arte e música. Como diz B. Aniello, chegou a hora de dar a conhecer o lado mais secreto do seu universo crítico e estético, até agora desconhecido, de ouvinte e comentador de eventos musicais. São 212 reflexões sobre a música, concebidas entre 1948 e 2006 e quase, na totalidade, inéditas.
Abrangem todo o arco temporal da sua carreira, acompanhando o percurso do filósofo e do homem, do viajante permanente. Inicialmente, Eduardo Lourenço não queria tornar público um material tão ocasional e fragmentado, considerando-se um simples amador. Certamente, se um dia voltar para Deus, a nenhuma outra coisa o deverei senão a estas estradas de uma melancolia lancinante que, desde o canto gregoriano até Messiaen devoraram em mim o sentimento da realidade do mundo visível.
Bach é um dos compositores eleitos do seu universo musical, uma ponte para o divino. Se Deus fez do Tempo a sua maior descoberta, a Música reinventa Deus. Tal como Ele, plasmando-os, ela organiza, separa e recompõe os sons e a sua duração.
Um grande poeta, filósofo da Arte e das relações entre música e religião, ou da presença da música na poesia, M.S. Lourenço, sustentava que há uma aspiração de toda a arte à condição de música. Na verdade todo o mundo é som e faz parte da constituição última da matéria, pois esta é vibração. Esta convicção tornou-se completamente consciente num período da cultura ocidental, que se inicia com os escritos órficos e pitagóricos onde esta tese (matéria como vibração) constitui o pensamento condutor de todo o sistema cosmológico, religioso e filosófico. O fim da Idade Média trouxe consigo o fim do Homem auditivo e a imposição de uma nova cultura visual, com a consequente criação de um novo tipo de percepção dominante, a do Homem visual. Para ele, o ser humano da Idade Moderna está alienado da essência do mundo e da sua própria, por ter perdido a consciência de ter sido vítima de um segundo pecado original, o qual consistiu na desvalorização do mundo do ouvido. (Cf. Os Degraus do Parnaso).
Todos sabiam que Eduardo Lourenço viveu sempre no mundo da literatura e, dentro desta, no mundo da poesia que não pode existir sem a vibração musical. Com a publicação de Tempo da Música, Música do Tempo, sabemos que morou sempre no interior da música. Se nasceu para ver e ouvir, agora sabemos que, sobretudo, para disfrutar da grande música. Reconheceu, como já referimos, em S. Bach o seu músico preferido, que no Céu está a dar concertos para Deus. Quando escreve sobre música, a sua prosa também é musical. Deixamos aqui um pequeno texto de Páscoa.
«O que eu sou como ser mortal (o que todos somos), está contido na melancolia absoluta do allegretto da Sétima Sinfonia. Mas o que eu desejaria seria ser, o que não tenho coragem de ser, só se revela nesta Suite em Si Menor, de Bach. Diante desta torrente luminosa devia depor a minha velha pele, esta pele de que só a música me despe num instante, deixando-me nu e redimido, mas que no instante seguinte afogo em trevas. Delas só um Deus me poderia libertar. Digo Deus sabendo bem que esse absoluto que me atrevo a invocar é ainda o supremo álibi. É de mim, das ardentes seduções do meu próprio ser, que não quero ou de que não sou capaz de abdicar. Queria ir por um caminho de rosas para aquele sítio onde sei que me foi fixado encontro. E ninguém lá chega nunca sem antes morrer para si mesmo.»

Frei Bento Domingues, O.P.
2 de Abril de 2012