29 maio 2016

MAIS TE ENCONTRO, MAIS TE PROCURO AINDA

      1. Ó Deus, Trindade Santa,/ ó luz mais radiosa que toda a luz,/ fogo mais ardente que todo o fogo,/ Tu és um oceano, a paz,/ Tu és um mar sem fundo,/ mais eu mergulho, mais eu me afundo,/ mais eu Te encontro, mais eu Te procuro ainda./ Sede que Tu saciaste no deserto um dia,/ para sempre ficar com sede de Ti[i].
Esta oração é um poema. Não precisa de comentários. Traz consigo a sua própria inteligibilidade simbólica. Pode exigir uma iniciação, mas nunca a sua substituição.
Tentei, desde muito cedo, inscrever-me numa corrente de pensamento teológico que pratica a modéstia subversiva como atitude básica da inteligência da fé. Estou a referir-me a S. Tomás de Aquino que, em poucos anos de vida – morreu aos 49 anos – produziu uma obra monumental de análise filosófica, de exegese bíblica, de selecção patrística, sempre em confronto aberto e criativo com as várias correntes do seu tempo, de horizontes culturais e religiosos muito diferentes. Ditou um impressionante e rigoroso guião para principiantes na investigação teológica, para que não se perdessem na floresta de opiniões para todos os gostos[ii]. Procurou abrir novos caminhos, na escola de Alberto Magno. Mas os pseudo discípulos viram nesse guião um repouso, uma preguiça, um substituto de constantes interrogações. Como escreveu Umberto Eco, fizeram de um incendiário, um bombeiro. Um pensador subversivo e condenado foi promovido a padroeiro de uma ignorante ortodoxia.
Para S. Tomás – que também era um grande poeta - a teologia não é um produto intelectual como a geometria. Pressupõe uma inteligência afectiva, de conaturalidade espiritual. Essa conaturalidade, paradoxalmente, não dispensa, pelo contrário, exige o estudo aturado, bebido nas mais diversas fontes, pois a graça não substitui nem diminui a natureza.
Nunca se esqueceu de unir duas atitudes que, aparentemente, parecem excluir-se: a razão argumentativa e o pensamento simbólico, a teologia afirmativa e a teologia negativa, cuidando que o ridículo não fosse apresentado como defesa ou apologia da fé. O nosso modo de dizer Deus é sempre abissalmente inadequado.
Este cuidado é a alma da sua teologia. No entanto, para viver e pensar a fé cristã, no século XXI, não dispomos de nenhuma receita. Encontramo-nos polarizados por aceleradas mudanças em todos os domínios. Como se costuma dizer, teremos de encontrar o caminho, caminhando[iii].
2. A liturgia dá que pensar se assumir a sabedoria inscrita na prática simbólica e ritual. O exercício do pensamento simbólico assume a presença e a distância. No Domingo passado, foi celebrada a SS Trindade. A festa do Corpo de Deus deixou este Domingo porque conquistou o seu feriado.
Como o Pentecostes não é uma clausura, mas a entrada numa criatividade sem fronteiras, as duas festas referidas nasceram para tentar entender, em novos contextos culturais, palavras e gestos simbólicos de Jesus que suscitaram vivas controvérsias.
Fora da linguagem do pensamento simbólico, tanto a celebração da SS. Trindade como a do Corpo de Deus, oscilam entre banalidades e subtilezas pseudo filosóficas. Digo isto, porque me lembro da confusão que me faziam na catequese, as explicações da Trindade à base do trevo e de uma palavra feminina para dizer três masculinos. Mas era lindo rezar três vezes ao dia, ao toque do sino, o toque das Trindades: de manhã; ao meio dia e ao escurecer. Tudo parava para santificar o dia, o trabalho e o repouso.
Na vida adulta delirava com as anedotas que se contavam desse mistério. Descobri místicos trinitários, teologias muito subtis, disputas conciliares e a loucura da separação das Igrejas do Oriente e do Ocidente mediante a arma ridícula do anátema recíproco sustentado por uma série de banalidades, incluindo as da formulação trinitária.
3. Apesar de todas estas polémicas, existia como não existindo. O teólogo K. Rahner escreveu que se o dogma trinitário fosse eliminado como falso, a maior parte da literatura religiosa poderia permanecer quase inalterável. Goethe não encontrava na fé trinitária a mais pequena ajuda. I. Kant escreveu algo que já evoquei nestas crónicas: “tomada em sentido literal, a doutrina da Trindade, mesmo se se julgasse compreendê-la, é totalmente inútil em termos práticos e, menos ainda, ao reconhecer que ultrapassa totalmente os nossos conceitos”. Leonardo Boff reagiu a essa posição. Durante o ano de silêncio imposto, escreveu uma obra que tentava mostrar a Trindade como a melhor comunidade. P. Blanquart via na expressão trinitária da fé virtualidades democráticas: todas as pessoas são iguais e diferentes, todas activas sem subordinação, todas autónomas e todas em relação.
Essas tentativas valem o que valem. A teologia é uma vigilância da linguagem para não ceder à ilusão de meter Deus dentro dos nossos conceitos, transformando-O num ídolo. A teologia negativa favorece o humor e a ironia ao criar a boa distância e a boa proximidade.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 29.05.2016


[i] Oração de Santa Catarina de Sena
[ii] Cf.Summa Theologiae,I parte; q.1,a.6,8, 9; q.3,prol. ; q.12; q.13;q.32; q. 46 a. 2
[iii] Cf Jacques le Goff, Em busca da Idade Média, Teorema, 2003, pag.90-91; Juan A. Estrada, 

22 maio 2016

FIGURAS DE SANTIDADE

        1. A incerteza, sublinhada pelo Papa Francisco, acerca da sua vinda a Fátima, em 2017 - “Um momento, ainda não disse que vou, mas que gostaria de ir…” - não ajuda o apetecido desenvolvimento comercial da preparação de um evento marcante nos anais do Santuário mais rico do país. O investimento exige um quadro estável para os negócios. Fátima, com 55 hotéis disponíveis, não deixará os seus peregrinos sentir o que eram as agruras e privações de há cem anos!
O bispo de Leiria-Fátima está, no entanto, absolutamente convencido que o argentino virá, a menos que problemas com a saúde o impeçam[1].

Nesta vinda ainda não se fala de um programa para pôr a Igreja portuguesa a mexer, acusada, em alguns sectores, de estar muito parada e só reagir quando vê os seus interesses corporativos ameaçados. Como, porém, dispomos da imagem de Nossa Senhora a viajar pelo país e pelo mundo, compreende-se que os católicos lusitanos, no geral, não sofram de ansiedade com as propostas da nova evangelização. Esperam que a “debandada da juventude” se cure com a idade.
      Oiro sobre azul seria que a presumível visita papal coincidisse com a canonização dos pastorinhos e a beatificação da Irmã Lúcia, embora haja outros casos bem colocados na fila de espera.
       Quanto a canonizações, como a de Frei Bartolomeu dos Mártires parece garantida, não escondo que gostava muito que o Padre Américo, da Obra do Gaiato, viesse juntar-se a S. João de Deus. São duas figuras do catolicismo português que fizeram da fé uma vitória sobre a alienação religiosa e a exclusão social. Os meninos da rua encontraram no Padre Américo um caminho inédito para a alegria de viver. S. João de Deus, o louco de Montemor-o-Novo e de Granada, experimentou, ele próprio, no corpo e no espírito, o que não aceitou nos abandonados, nos pobres e nas vítimas de todas as doenças. Pelo que viveu, sofreu e criou é reconhecido como padroeiro dos hospitais, dos doentes e dos enfermeiros.
      Estas são incarnações cristãs, em épocas diferentes, que abalam os muros ideológicos e pseudo religiosos das Igrejas. São pessoas que partem para as periferias mais assustadoras, sem medo de serem surpreendidas pelo bem ou pelo mal. Cada passo pode tornar-se uma oportunidade para encontrar a vida heroica e humilhada, entrelaçadas, onde menos se espera. Sabendo também que cada instituição, por mais santa que se diga, é sempre uma decepção.
2. Descobrir que a vida humana é “sem repetição, sem paralelo, sempre uma atribuição nova, uma concessão do divino, uma excepção em cada uma das suas formas, cânticos e ultrajes”, é uma graça inesperada. O romance, Os Incuráveis, de Agustina Bessa Luís, é uma das obras portuguesas de ficção que revela, aos solavancos, o mais sublime nas situações mais abjectas. Ao criar, na figura da miséria extrema, a existência digna de adoração, aponta para o verdadeiro modelo de vida que vale a pena canonizar, pelo menos segundo os critérios do Evangelho.
“ (…) Uma mendiga, a Perdiz, abusada de mil formas ao longo dos anos, arrastando-se de um lado ao outro da estrada sobre umas joelheiras de pneu, coçando as pústulas das pernas, que pareciam decepadas e à parte da sua existência, (…) é surpreendida pela voz de Maria .
- Ainda és viva, Perdiz?
- Já devia ter ido que não faz falta a ninguém, disse a vendedeira das castanhas,
- “Mulher! A vida é só dos ricos? A vida é de cada um, não é só dos que têm pernas para andar e pão para comer! “
A partir daí, Agustina escreve o hino mais belo sobre a condição humana, que deveria figurar em todas as escolas do mundo.
“ (…) eu te digo, princesa, dona de todas as riquezas, ó fabulosa, ó digna de todos os reinos da Atlântida e de Sabá – porque tu, manchada, viciosa, cuspida, és o sacrário da vida, és alta e magnificente como as sequoias, ou como o céu”.
3. Para Agustina, não vivemos apenas para cantar a beleza da santidade humilhada. A realidade responsabiliza-nos.
“ (…) Em vão pousamos as mãos sobre os olhos e ouvidos, e dizemos não assistir, não comparticipar, não sermos responsáveis de um simples cortejo fúnebre, dessa fisionomia carregada e alvar que o segue, não acompanharmos nem a sua frieza, nem a sua dor, nem a fealdade desse corpo mutilado, nem o rasto pimpão dessas botas negras e que reluzem. De facto, nós estamos lá; em consciência, até ao fim do mundo, recusando ou aceitando, negando três vezes como Pedro e chorando a nossa cobardia, pactuando com o nosso não e o nosso sim. Todos nos viram lá não há trevas, em todos os crimes, em todas as redenções nós somos cúmplices, e aliados, e irmãos. Eis que, tremendo, muitas vezes forjamos um Deus que nos substitua nessa tarefa sempre sem precedente que é estar vivo, contribuir com a nossa força, a nossa vontade. Mas, enquanto que o homem é toda a linha condutora do passado e só ele, apenas ele, Deus é o tempo anónimo que se converterá a nós”[2]. Deus nunca é desculpa! 
Frei Bento Domingues, O.P.                                                                                            in Público 22.05.2016


[1] Aura Miguel, Papa em Fátima para o ano. "Para nós, é uma certeza", 11.05.2016

[2] Cf. Maria Luiza Sarsfield Cabral, A dimensão religiosa na obra de Agustina Bessa Luís, in Frei Bento Domingues, Paulinas, 2012, pp 419-445

15 maio 2016

O ESPIRITO DA TEOLOGIA

     1. O que verdadeiramente custa é o presente. Quando o presente é difícil de enfrentar, refugiamo-nos no passado, no culto da memória, ou sonhamos com um futuro consolador. Na celebração do Pentecostes, passamos de uma Igreja apavorada, com sonhos de um império que nunca mais chegava, para um presente que varria todos os medos e impulsionava os mais assustados a percorrer os caminhos do mundo. Um impetuoso vendaval desatou todas as cadeias. Apareceram umas línguas de fogo que encheram os discípulos de uma corajosa sabedoria: tornara-se possível entender que Deus estava mesmo do lado das opções de Jesus Cristo. Doravante, a causa do Evangelho podia ser de plena actualidade, em qualquer língua, povo ou cultura. O futuro começava no presente. O próprio desentendimento entre hebreus e helenistas anunciava que a alegria do Evangelho não podia ser propriedade privada de nenhum povo ou cultura. Não é a globalização que arrasa as diferenças: cada um os ouvia na sua própria língua[i].
O cristianismo só pode viver saudavelmente a partir de um presente criador. Quando enfatiza o passado, afoga-se no depósito da Fé ou na indústria da conserva dogmática. Quando foge para o Paraíso, perde a terra e o céu. Um dos dramas do catolicismo na época moderna foi sintetizado numa expressão luminosa de Yves Congar: a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião. Tinha-se perdido o sentido da incarnação contínua do divino no humano.
O que este Papa tem de tão especial é a capacidade de nos mostrar que não adianta desviar os olhos da complexidade do mundo actual, em qualquer latitude. Não é para nos resignarmos! O que lhe importa, e que nos deve interessar, é a resposta a esta pergunta: como poderemos transformar esta situação num mundo melhor? É a exigência de lucidez para o nosso presente que o impele a ir beber a todas as fontes e momentos da tradição cristã, sem nunca esquecer o contributo das diversas sabedorias, religiosas ou seculares, do presente e do passado, sem ficar prisioneiro de nenhuma.
2. A concepção dinâmica do cristianismo, como ressurreição contínua, foi aplicada por Tomáš Halík[ii] à própria celebração dos sacramentos. É importante para não se cair em automatismos mecânicos ou místicos. Tínhamos um catolicismo de baptizados com mais ou menos sacramentos e assunto arrumado.
Esta atitude na acção pastoral, apesar de todas as correcções que lhe possam introduzir, é um desastre.
Quando, no catecismo, se pergunta o que nos faz discípulos de Cristo, responde-se que é o Baptismo. Resposta certa, mas que não evita o inconveniente da ideia de um automatismo. Fez-se a cerimónia, está baptizado. A pergunta mais fecunda é um pouco diferente. Como nos tornamos cristãos? Uma pessoa não se torna subitamente cristã: é um processo.
O autor referido confessa que quantas mais pessoas acompanha na preparação para o Baptismo e quantas mais baptiza, mais se apercebe que o baptismo é um sacramento dinâmico. Tal como o Matrimónio e a Ordem, o Baptismo é um acontecimento que não fica completo no momento em que é conferido, mas que tem efeito de permear o futuro de uma vida, se consentirmos activamente nesse processo. É um fermento que precisa de ser levedado.
Se T. Halík já tinha falado da ressurreição contínua, ao referir-se à vitória de Jesus sobre a morte, pode, agora, falar dos sacramentos como acção contínua. Deus não está ligado aos Sacramentos. Está presente na sede espiritual das pessoas, seguindo um processo complexo, muitas vezes como uma peça de teatro fascinante, com muitos actos, com inesperadas viragens no enredo, além de intervalos e catarses.
3. A actualidade cristã, para conservar a sua frescura, tem de regressar às fontes, mas não pode ser um trabalho de pura arqueologia ou de visita às bibliotecas patrísticas. Seria perder-se no passado. A viagem de ir e vir das fontes para a actualidade e da actualidade para as fontes é a única que nos pode guiar para abrir janelas para o futuro.
A obra de Isidro Lamelas[iii] é indispensável para beber nas melhores fontes. Fazia muita falta dispor dos verdadeiros clássicos do cristianismo, traduzido para português das línguas originais. Bem-haja!
A investigação só atrapalha a preguiça ou o medo. É curioso que ao completar 100 anos das chamadas Aparições de Fátima, o contributo das ciências humanas, das experiências pastorais, das narrativas testemunhadas, dos percursos espirituais dos peregrinos, da reflexão teológica sejam de uma magreza de escrita muito estranha. A maior peregrinação do Ocidente confia no seguinte: cada peregrino tem a sua Fátima e ninguém tem nada com isso. A hierarquia apenas lhe dá um cenário litúrgico, mas o colectivo, como colectivo só se reconhece na Procissão das Velas e no Adeus. Que dizer da devoção à imagem de N. Senhora de Fátima obrigada a ser ainda mais peregrina do que os peregrinos?
Frei Bento Domingues, O.P.
        in Público 15.05.2016


[i] Act 1-2
[ii] Tomáš Halík, Quero que tu sejas! Podemos Acreditar no Deus do Amor?, Paulinas, 2015, pp 155-157
[iii] Isidro Pereira Lamelas, Sim, Cremos. Os credos explicados pelos Padres da Igreja. Lisboa, UCT 2013; As origens do Cristianismo, Padres Apostólicos, Paulus, 2016

08 maio 2016

UMA IGREJA SEM CONFLITOS?

1. Igreja sem conflitos? Nem hoje nem ontem nem amanhã. A própria evocação dos seus mortos mais célebres serve, muitas vezes, para levantar conflitos entre os vivos.
Ninguém dispõe da fórmula exacta para realizar o mundo de novos céus e nova terra, sem lágrimas de dor ou de luto . Ao sair da Missa onde foi anunciado esse sonho antigo, dizia-me um amigo: nos anos 50 do século passado, o P. Lombardi e o P. Vieira Pinto, contentavam-se com modestas propostas para um “mundo melhor” e nem aí chegamos! A própria União Europeia perdeu a pouca alma que tinha, desistiu da ousadia e caiu na burocracia.
       Sem condições para comentar a significação do papel dos sonhos de uma “terra sem males”, comum a várias culturas arcaicas – com frutos amargos quando se tentou convertê-los em “programas científicos” de ordem social e política –, observei apenas que também a opção pelos “paraísos fiscais” talvez não seja a festa da ascensão aos céus da população mundial. Por aí ficamos.
 No Domingo passado, transcrevi uma breve passagem da extraordinária Exortação, A Alegria do Amor, na qual o Papa Francisco se referia a duas lógicas que percorrem toda a história da Igreja, desde o concílio de Jerusalém  até hoje: marginalizar e reintegrar. Jesus, morto por uma coligação táctica, foi excluído de Israel e do Império romano .
A lógica que Bergoglio deseja adoptar é, sem dúvida, a da reintegração. Quando é possível. Perante situações escandalosas que envenenaram o serviço que a Cúria vaticana deve prestar à Igreja – os escândalos bancários, a vida faustosa de alguns cardeais e a situação de eclesiásticos pedófilos – impõem-lhe a destruição dessa falsa paz alimentada por corruptos. A justiça que é devida às vítimas desse nojo não é matéria de negociação. As manobras dos lobistas, desde há muito estabelecidas, não são fáceis de neutralizar, embora o Papa afirme que não desiste da linha de actuação anunciada, desde o começo. Ele não é omnipotente. Uma verdadeira reforma não se decreta nem se consegue apenas com a mudança de alguns nomes. Por vezes, quando se pensa que se conseguiu um bom colaborador encontrou-se um judas.
2. O desígnio pastoral de Bergoglio continua o de um verdadeiro pontífice: fazer pontes onde outros levantam muros, voltar os nossos olhos para a vergonha de um mundo sem os mínimos éticos e tornar a Igreja um exemplo de democracia participativa. Isto exige um clima eclesial onde a união se realize na diversidade criadora. Mas, para ser autenticamente pastoral, precisa de se deslocar para as periferias existenciais, o centro esquecido das comunidades cristãs.
Os obstáculos à sua lógica de reintegração revestem-se, muitas vezes, de razões pseudo dogmáticas e de doutrinas ditas irreformáveis, sobretudo no tocante aos ministérios ordenados, à moral sexual, à situação da Mulher na Igreja e às chamadas situações familiares irregulares.
O Papa abriu um debate que, por ele, teria sido muito mais fecundo se a consulta às dioceses tivesse sido mais ampla, mais aprofundada e com menos boicotes. Mesmo assim, não se deixou intimidar pelas manobras que ameaçavam rupturas irreparáveis. Pelo contrário, geriu, com muita firmeza, os conflitos, mantendo aberto o diálogo entre todas as tendências, para que todos pudessem aprender com todos. Fez do diálogo e da firmeza o seu comportamento.
3. As origens do cristianismo não foram um mar de rosas. Estão semeadas de conflitos e dois mil anos de história das igrejas também não são o deslisar de um rio pacífico, muito pelo contrário.
O livro admirável dos Actos dos Apóstolos – uma obra sem epílogo, abrindo apenas o futuro – oscila entre uma imagem idílica da comunidade cristã dos começos  e a do conflito entre hebreus e helenistas , apresentando, depois, uma suave abertura aos gentios , muito diferente da relatada por Paulo . O seu projecto não esconde a lógica das tentativas de marginalização, mas a opção do seu projecto literário é marcar a vitória da lógica da integração, mostrando os resultados da boa gestão dos conflitos.
Hoje, celebra-se a festa da Ascensão do Senhor. S. Lucas já tinha, no primeiro volume da sua obra, tocado nesta metáfora de fim de carreira . Agora, nos Actos dos Apóstolos, desenvolve o cenário com mais cuidado. Tem de resolver duas situações. A primeira é a da ânsia de poder que continua a dominar os discípulos de Jesus: o único poder que vos garanto é o do Espírito Santo que vos vai meter em trabalhos até aos confins da terra. A segunda é a do medo: preparai-vos para acolher essa divina energia e não fiqueis pasmados a olhar para o céu. Há muito que fazer .
Igrejas sem conflitos? Nem ontem nem hoje nem amanhã. A grande sabedoria consiste em não os negar nem os acirrar. As comunidades católicas não deveriam dispensar bons gestores de conflitos.
Frei Bento Domingues, O.P.

in Público 08.05.2016
A Temas e Debates e Círculo de Leitores têm o prazer de convidar para a sessão de apresentação de
Francisco o Papa que põe a Igreja a mexer
de Frei Bento Domingues
que terá lugar no dia 10 de maio, pelas 18h30,
na Fundação Cidade de Lisboa
(Campo Grande, 380, ao lado da Universidade Lusófona).
A obra será apresentada por Maria Rueff.
Será servido um porto de honra.

01 maio 2016

Mulheres e Ambiente

Conferência "Mulheres e Ambiente"
3ª feira, 5 de abril, 21h
Capela do Rato


Com:

- Catarina Albuquerque - Jurista, conselheira junto da ONU para os assuntos da Água

- Catia Duarte Sousa - Economista, Professora na Universidade Lusófona sobre Direito do Ambiente e Recursos Naturais

- Luisa Schmidt - Socióloga, jornalista do "Expresso" e especialista em Ambiente

- Moderadora: Filipa Vicente - historiadora


Para ouvir a Conferência ir a: https://archive.org/details/MulheresAmbiente

A ALEGRIA DO AMOR (III)

1. “Não é necessário acreditar em Deus para se ser boa pessoa. Em certo sentido, a ideia tradicional de Deus não está actualizada. Pode-se ser espiritual, sem se ser religioso. Não é preciso ir à Igreja e dar a esmola. Para muitas pessoas, a natureza pode ser uma igreja. Na história, algumas das melhores pessoas não acreditavam em Deus, enquanto alguns dos piores actos foram cometidos em Seu nome.”
Estas declarações, atribuídas a este Papa, circulam na internet, em forma de postal. Talvez não tenham sido ditas assim de seguida. Parecem-me um arranjo de várias declarações. Servem aos seus adversários para dizerem que temos um Papa a difundir a indiferença religiosa; para os seus admiradores, ele é tão firme e límpido na sua fé cristã, que não a confunde com o sectarismo ideológico ou religioso. A verdade e o amor venham de onde vierem, são fruto do Espírito Santo. Vejamos.
Não se pode esquecer a declaração de S. João: Nunca ninguém viu a Deus[i]. Jesus, em tudo o que fez, disse e sofreu, mostrou que Ele é um amor infinitamente mais misterioso do que poderíamos imaginar. Devemos, no entanto, como dizia S. Tomás de Aquino, procurar saber como Deus não é para não cair na tentação de O encarcerar nos nossos conceitos e favorecer o ateísmo.
 O amor que Deus nos tem não depende nem dos nossos méritos, nem das nossas catalogações religiosas, morais ou ideológicas. Não pode ser privatizado. Quem se atreve a dizer que Deus é nosso, da nossa Igreja e de mais ninguém, perdeu o sentido do ridículo.
As metáforas que forjamos acerca da divindade precisam de ser revistas, pois podem envelhecer e morrer. Metáforas mortas não ajudam a viagem mística, a pregação do Evangelho da alegria nem a descoberta de novos caminhos da graça divina.
Como observa o teólogo Tomáš Halík[ii], que nos próximos dias estará em Portugal, Deus vem ao nosso encontro mais como pergunta do que como resposta. A sua pergunta é inquietante: “que fizeste do teu irmão?” Toda e qualquer religião, que não seja purificada pelo alcance universal desta pergunta, absolutiza o desejo de dominar em “nome de Deus”. Como diz C. S. Lewis, é a suprema perversão: de todos os homens maus, os religiosos são os piores.
2. Chegados a este ponto, perguntar-se-á: mas que tem isto a ver com os Sínodos dos Bispos, acolhidos e interpretados na Amoris Laetitia? Eles não se reuniram para discutir a ideia de Deus! Nesta época de aceleradas mudanças sociais e culturais, o que está em causa são as formas de ajudar as famílias a redescobrirem hoje a alegria do amor, pois tudo o que temos no Novo Testamento é para que a nossa alegria seja completa[iii]. A pastoral da Igreja é para que todos tenham vida e a tenham em abundância[iv].
No Comunicado de Imprensa do movimento Nós Somos Igreja – já o lembrámos no passado Domingo - o Papa entregou o futuro das famílias aos bispos, aos teólogos, às Igrejas locais, mas não concluiu: tivemos um tempo de debate em que os Bispos, depois de consultarem as suas dioceses, disseram o que tinham a dizer. Agora acabou. Apliquem o que foi decidido!
Puro engano. O Papa Francisco não se contentou com recolher e transmitir o que recebeu dos dois Sínodos, acrescentando alguns retoques. Com esta Exortação alargou, de forma activa, o Sínodo a toda a Igreja. Inaugurou uma nova época de responsabilização das Igrejas locais, não só dos bispos, pois a Igreja local não se confunde com os bispos e as cúrias diocesanas. O cap. VIII exige a mobilização de todos os católicos para enfrentar os novos desafios, vendo, ouvindo e acolhendo os contributos das outras Igrejas cristãs, das outras religiões e de todas as pessoas de boa vontade, para agir com sabedoria e misericórdia.
3. Na Exortação A Alegria do Amor, Bergoglio explicitou a lógica da sua orientação: “O Sínodo referiu-se a diferentes situações de fragilidade ou imperfeição. A este respeito, quero lembrar aqui uma coisa que pretendi propor, com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos no caminho: Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita. Por isso, temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estarmos atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição“.[v]
Já não há muitas famílias católicas quimicamente puras. Que espiritualidade cultivar, nestas situações complexas, para encontrar os caminhos da alegria do Amor?
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 01.05.2016





[i] Jo 1,18
[ii] Quero que tu sejas!, Podemos Acreditar no Deus do Amor?, Paulinas, 2016, pp 15, 61-62; 45
[iii] 1Jo 1, 1-4
[iv] Jo. 10, 10
[v] Amoris Laetitia, Paulus, 2016, nº 296, cf. todo o cap. VIII