28 janeiro 2018

ANDRÓIDES, PROFESSORES DE TEOLOGIA?


       1. Hiroshi Ishiguro é um académico japonês, de 54 anos, professor da Universidade de Osaka, que desenvolve robôs inteligentes com aparência humana. Veio a Lisboa fazer uma conferência na Universidade Católica. João Pedro Pereira, do Público, conversou com este criativo[1].
       Hiroshi desejou ser pintor para entender a humanidade. Mudou-se para a área da robótica e da inteligência artificial. Ao verificar que a inteligência artificial precisava de um corpo apropriado, criou, nos últimos anos, vários andróides. Trabalha com diversas empresas no Japão para desenvolver múltiplas aplicações práticas. Toda a gente consegue interagir com robôs semelhantes a seres humanos. No ambiente de laboratório, a aparência e os movimentos dos andróides têm vindo a ser aperfeiçoados. A inteligência artificial torna-se cada vez mais sofisticada e permite que as máquinas possam ter conversas razoáveis com pessoas. Contudo, na construção de robôs que funcionam como humanos a consciência será, provavelmente, a última barreira.
       Ishiguro acredita que um dia, não hoje, esta dificuldade será ultrapassada. Talvez demore duas ou três décadas. Julga que o que já pode dizer, com clareza, é que os investigadores, os neurocientistas e os cientistas de robótica, estão muito interessados na consciência. Depois da inteligência artificial, a próxima meta é a consciência artificial.
        Um amigo meu que leu este artigo telefonou-me. Alternava a irritação com a indignação. Estava-se nas tintas para essas máquinas, mas não podia aceitar o atrevimento da Universidade Católica em acolher esse desvairado professor. Os católicos acreditavam, e acreditam, que o ser humano foi criado à imagem de Deus. Voltaire dizia, com humor, que o ser humano pagou-lhe bem. Fez deuses à sua imagem e semelhança. Agora, prescinde-se de Deus e fazem-se máquinas à imagem do ser humano! Qualquer dia já vão começar a pedir o Baptismo para esses andróides e a conceder-lhes ministérios eclesiais que negam às mulheres. Em vez de padres estrangeiros vamos ter padres andróides de rosto bem português. A indignação deste amigo levou-o até ao fim: não me admirava que a Católica viesse a nomear andróides professores de teologia.
       O Papa já se indignou com os telemóveis na missa: corações ao alto, não telemóveis ao alto. Não sei se estará informado de que muitos padres já celebrem por telemóvel e Ipad.
       2. É preciso ter em conta que sem máquinas já havia, na Igreja, muitos comportamentos maquinais. A forma como, alguns clérigos, celebram os sacramentos, mesmo com os livros à frente e já traduzidos para português, como sabem de cor as fórmulas, é sempre a despachar. As orações da missa parecem invocar um deus robótico, omnipotente, omnisciente e eterno. Por outro lado, certa teologia do Magistério eclesiástico que se limitava a repetir os manuais da doutrina oficial, as decisões dos antigos concílios e seus anátemas, o Direito Canónico e a invocação da infalibilidade do Pontífice Romano, a partir do Vaticano I, toda essa teologia podia ser muito bem substituída por uma maquineta. Não falta quem se sinta um teólogo porque já tem bibliotecas e documentos da Igreja no seu telemóvel. Se perguntarem a quem dispõe dessa completíssima documentação e como a utiliza, vai encontrar quem sinceramente responda: deixo-a dormir.
       Soube que um católico perplexo acerca de algumas questões teológicas foi consultar uma pessoa que julgava competente, e até talvez fosse, mas a resposta desencorajaria qualquer um. Levado a uma grande biblioteca recebeu a máxima informação: está tudo aí.
       3. Ausência de teologia significa falta de inteligência ou falta de fé ou falta das duas. A prática teológica, no âmbito do cristianismo, é um mundo de vários mundos. Já foram escritas, no séc. XX, muitas iniciações e introduções a esse universo cultural[2].
     O Vaticano II tornou-se uma data incontornável. Não é para aqui a descrição das grandes correntes da prática teológica que o precederam e que o seguiram.
       Em 2017, a Associação Teológica Italiana completou meio século. O Papa Francisco ao recebê-la destacou que o primeiro artigo do seu estatuto reza assim: no espírito de serviço e comunhão indicado pelo Concílio Ecuménico Vaticano II. E não comentou por acaso: a Igreja deve referir-se sempre àquele acontecimento, através do qual teve início uma nova etapa da evangelização e com o qual ela assumiu a responsabilidade de anunciar o Evangelho de um modo novo, mais adequado a um mundo e a uma cultura profundamente transformados. É evidente que aquele esforço exige da Igreja inteira, e em particular dos teólogos, que seja recebido no sinal de uma fidelidade criativa: na consciência de que nestes cinquenta anos se verificaram ulteriores mudanças e na confiança de que o Evangelho possa continuar a sensibilizar, também, as mulheres e os homens de hoje.
       Depois de louvar o estilo do trabalho realizado, passou para outro universo. O ministério teológico continua a ser uma grande necessidade da Igreja, mas para ser genuinamente crente não é preciso realizar cursos académicos de teologia, pois existe um sentido das realidades da fé que pertence a todo o povo de Deus.
       A teologia na Igreja não pode ser um gueto de “escribas e fariseus”, que ocultam e sufocam a criatividade de todos os cristãos. Deve ser praticada no desejo e na perspectiva de uma Igreja em saída missionária. Deste ponto de vista e nesta conjuntura histórica, a teologia é particularmente importante e urgente.
       Todas as paróquias, grupos, movimentos e instituições católicas deveriam ter um ministério, de mulheres e homens, de jovens e adultos que ajudasse na interpretação e no discernimento dos sinais dos tempos para encontrar, em cada momento, os caminhos da fidelidade ao Evangelho. Menos cerimónias de culto e mais inteligência afectiva e comprometida não faziam mal a ninguém. E talvez não seja assim tão urgente encontrar andróides para este ministério. Além disso, são caros.
       Frei Bento Domingues, O.P.
       in Público 28.01.2018



[1] CF Público, 22.01.2018
[2] Hans Küng, Os grandes pensadores do cristianismo, Ed. Presença, 1999, procurou escrever através deles uma pequena introdução à teologia.

21 janeiro 2018

AS TRAPALHADAS COM AS MULHERES NA IGREJA(II)

      1. No passado Domingo, o Público apresentou uma deliciosa reportagem[1] sobre as celebrações dominicais promovidas e orientadas por leigos, mulheres e homens e um oportuno editorial de Lurdes Ferreira, sobre O tempo dos leigos.
As trapalhadas com os ministérios na Igreja afectam, sobretudo, a celebração da Eucaristia e são uma dificuldade para a hospitalidade eucarística entre as Igrejas cristãs[2]
Na reportagem sobre as pessoas que tomam a iniciativa de reunir e formar uma comunidade que não tem ministros ordenados para presidir à Eucaristia, por que razão não poderá o bispo ordenar alguém que é reconhecido como competente e zeloso na formação e no crescimento dessa mesma comunidade?
Edward Schillebeeckx[3] tentou, em 1980, uma solução para o serviço de presidência da Eucaristia, nas comunidades eclesiais. Aparentemente não correu bem, mas ele não desistiu. Esse caminho é, neste momento, aquele que nos pode abrir um presente e um futuro para a vida eucarística das comunidades católicas. Em nome de uma disciplina canónica inadequada, estamos a deixar as paróquias, os grupos e os movimentos católicos à deriva. Insiste-se na celebração da Eucaristia como o sacramento dos sacramentos. Com toda a razão. As comunidades de baptizados têm direito a participar na sua celebração. De facto, arranjam-se cenários para as impedirem. O pretexto é sempre o mesmo: não há padres. Se não há, façam-nos. Não faltam candidatos e candidatas preparados, ou que podem ser preparados, com desejo de receberem esse ministério. Mas não nos moldes actuais. O modelo presente já não pode ser o único. Sem imaginação, sem vontade de alimentar e dinamizar as comunidades católicas, as lideranças da Igreja só se podem queixar de si mesmas.
Importa entender o percurso e as razões deste dominicano holandês para perceber duas coisas: nunca se conformou com os obstáculos criados às reformas propostas pelo Vaticano II, nem se contentou com repetir os seus documentos. Procurou inovar e não se resignou perante os repetidos processos que Roma lhe moveu, sem nunca o conseguir condenar.
2. O primeiro processo foi sobre as suas posições acerca da secularização (1968). Soube, por um amigo, K. Rahner, que estava a ser perseguido. Este tinha recebido do Santo Ofício, sob sigilo rigoroso o material dessa acusação. Rahner violou esse grave sigilo porque, dizia, o direito natural vale mais do que uma medida eclesiástica! No final do processo, confidenciou-lhe: apesar de tudo, dois terços dos consultores da Congregação partilhavam as ideias do acusado!
O segundo processo foi sobre a sua cristologia (1979). Respondeu a todas as questões que lhe enviaram em 1976, mas em 1978 já estava com outro processo às costas e teve de ir a Roma esclarecer a sua posição.
Nessa altura, eu estava em Roma e conhecia muito bem um dos professores que o iriam examinar. Lembro-me de Schillebeeckx ter declarado: o que se passar nesse interrogatório será comunicado aos jornalistas, o que aconteceu. Não foi condenado, mas recebeu, em 1980, uma carta para novos esclarecimentos. Havia uma distinção entre as posições da Congregação e as de Schillebeeckx, mas não acerca da fé cristã. O pior estava para vir.
Em 1984 surge um terceiro processo. Neste caso sobre os ministérios na Igreja. A questão de fundo era a que ainda hoje nos perturba: o serviço de presidência da Eucaristia. Ele defendia um ministério extraordinário quando não houvesse padre ou bispo para esse serviço. O cardeal Ratzinger perante o relatório de teólogos holandeses sobre o livro de Schillebeeckx, publicou uma carta que excluía a posição desse teólogo e acrescentava que era um assunto que já tinha sido resolvido no IV Concílio de Latrão: só os padres podiam presidir à celebração eucarística. O assunto estava arrumado. Essa recusa não convenceu o teólogo flamengo observando que Ratzinger esquecia que o objecto desse Concílio era a exclusão dos diáconos que substituíam o bispo, quando este não podia estar presente.
O professor de Nimega não se dá por vencido e escreve um novo livro no qual já não fala do ministro extraordinário da presidência da eucaristia, mas apela para uma outra categoria, para dizer a mesma coisa. Pede uma espécie de sacramento para os agentes de pastoral, a fim de poderem receber uma ordenação, no quadro dos ministérios sacramentais. Se não desejam soluções extraordinárias, sigam o caminho do que deve ser normal.
3. No final desses processos, perguntaram a Schillebeeckx se tinha sofrido muito. Não, outros sofreram mais. Mas quando soube, por K. Rahner, que estava ser objecto de um inquérito, sem saber porquê, disse-lhe: “eis a recompensa reservada aos que trabalham, dia e noite, para a Igreja! Depois, tudo aquilo me irritou. Nós, os teólogos não somos infalíveis, mas há maneiras e maneiras de tratar as pessoas”.
Quando lhe perguntam se tinha pensado em abandonar a Igreja e sair da Ordem, respondeu: “Nunca. Nunca. Pertenço à Igreja Católica Romana, mas isso não significa que esta Igreja não possa cometer erros. De facto, comete. É preciso ter coragem de o dizer. Abandonar a Ordem dos Dominicanos? Nunca pus em questão a escolha que fiz aos 19 anos. Para concluir este capítulo dos processos tenho de dizer: nunca recebi qualquer tipo de condenação até agora e espero nunca receber. Apesar destas aventuras, sou feliz por pertencer à Igreja e à Ordem Dominicana”.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 21.01.2018


[1] Margarida David Cardoso, Ou Rosa dava a “missa” ou a igreja fechava,
[2] Cf. Frei José Nunes, Ministérios Laicais no Novo Testamento e primeiros séculos da vida da Igreja, in Laicado Dominicano e a pregação, XII Jornadas Nacionais da família dominicana, Fátima, 8 a 10 de Novembro de 2013; D. Borobio, Ministérios Laicais, Ed. Perpétuo Socorro, Porto 1991; J. Estrada, La identidad de los laicos, Paulinas, Madrid, 1990; A. Faivre, Naissance d’une hiérarchie, Beauchesne, Paris, 1977; Pierre Bühler, Foi o Papa e não Lutero quem provocou a rutura (entrevista de António Marujo, Revista Expresso 6 de Janeiro 2018)
[3] Edward Schillebeeckx, Je suis um théologien heureux, Paris, Cerf, 1995

14 janeiro 2018

AS TRAPALHADAS COM AS MULHERES NA IGREJA (I)

1. O Cardeal norte-americano, Joseph William Tobin, arcebispo de Newark, nasceu em 1952. É o mais velho de 13 irmãos, entre os quais, 8 são mulheres. Numa entrevista, revela a sensação generalizada de frustração e retrocesso produzida pela continuada proibição das mulheres receberem as ordens sagradas na Igreja Católica. Vive num país e numa cultura em que todas as áreas da vida se vão abrindo às mulheres, menos na Igreja. Este género de obstáculos acaba por as afastar. Está, no entanto, optimista. É desejo do Papa Francisco reconhecer-lhes um papel mais activo. Esse desejo não se pode realizar, apenas, com algumas nomeações isoladas para certas funções na Cúria Romana. Lembra, de forma astuta, que para alguém ser nomeado cardeal, isto é, para o próprio governo da Igreja, não é preciso ter o sacramento da Ordem, pois, no século XIX, houve cardeais leigos. Conclusão: não há nenhum obstáculo, de ordem teológica, que impeça a nomeação de mulheres para o cardinalato, para ajudar o Papa no governo da Igreja.
Parece-me uma posição habilidosa. Se as mulheres passarem a ter influência na orientação e no governo da Igreja, poderão ajudar a que os argumentos pseudo-teológicos, que as impedem de receber o sacramento da Ordem, sejam revistos e acabem com a ideia da chamada impossibilidade definitiva[1]. Este arcebispo propõe: já que não as deixam entrar pela porta, sugiro que entrem pelo telhado!
2. Na Revista Brotéria apareceram dois artigos interessantes sobre o sacerdócio e a mulher[2].
O texto de Stella Morra é muito estimulante. Recomendo a sua leitura integral. Começa por uma citação do Concílio de Calcedónia (451): “Não se ordene como diácono uma mulher antes dos quarenta anos e não sem um diligente exame. Se, por acaso, depois de ter recebido a imposição das mãos e ter exercido durante algum tempo o ministério, ousasse contrair matrimónio, desprezando dessa forma a graça de Deus, seja excomungada juntamente com aquele que se uniu a ela”.
Apesar do carácter hilariante desta citação, isto significa, no entanto, que a ordenação actual de diaconisas não constitui grande novidade. O importante será, agora, determinar as competências que elas deverão ter na Igreja. Já temos a ordenação de homens casados como diáconos permanentes. Espero que, pelo menos, as mulheres também possam ser casadas e diaconisas.
O artigo de Vasco Pinto de Magalhães, SJ, fixa-se em duas feministas, Lucetta Scaraffia e Ana-Maria Pelletier, para mostrar que, segundo elas, o papel das mulheres na Igreja pode conseguir-se sem passar pelo sacerdócio, respeitando, assim, melhor, pela diversidade, a imagem de Deus: homem e mulher.
Este argumento parece-me algo falacioso. A mulher e o homem só poderão ser imagem de Deus no caso de haver tarefas exclusivas para homens e tarefas exclusivas para mulheres? Um médico não poderia exercer a medicina se a esposa, também médica, exercesse a mesma profissão? Seria uma anulação desta diversidade, um atentado à imagem de Deus? Uma médica não anula a sua condição feminina por ser médica. Tanto ela como ele, exercendo a mesma profissão, não anulam a sua diversidade humana nem, por esse motivo, deixam de exprimir a imagem de Deus, ao que me parece.
Quando se pretende, com esse argumento, negar a ordenação sacramental às mulheres, por muita mais razão deviam exigir, para respeitar a imagem de Deus, um sacramento do Baptismo para homens e outro para mulheres.
Nunca ninguém se atreveu a propor, para salvaguardar a imagem de Deus, dois sacramentos do Baptismo. S. Paulo, na Carta aos Gálatas, afirma: todos vós, que fostes baptizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus[3]. Não consta que, pelo mesmo baptismo, as mulheres deixem de ser mulheres e os homens deixem de ser homens. O modo das mulheres viverem em Cristo será necessariamente diferente do dos homens. Por outro lado, não há mulheres clonadas nem homens clonados. Têm todos sensibilidades diferentes. A diferença má é a que resulta da desigualdade. Todos unidos em Cristo, na sua diferença. O que Paulo afirma é que não se pode invocar a diferença para criar a exclusão.
Julgo que, para S. Paulo, Cristo sente-se tão bem na vida das mulheres como na dos homens.
3. O Baptismo é a fonte do sacerdócio cristão. Como não há dois Baptismos, as mulheres são tão sacerdotes, na sua diferença, como os homens. Chamar-lhe sacerdócio comum resulta, precisamente, dessa condição primordial na qual assenta toda a vida cristã. O Novo Testamento chama sacerdote a Cristo e aos que receberam o Baptismo. Aqueles que são designados, correntemente como “sacerdotes”, padres e bispos, são antes de mais, sacerdotes como todos os outros cristãos. Os diáconos, os padres e os bispos, pelo sacramento da Ordem, pela imposição das mãos, não perdem a condição cristã, não se colocam num mundo à parte, ficam com o encargo do sacerdócio de todos. Sto. Agostinho exprimiu esta realidade de forma exemplar: convosco sou cristão, para vós sou bispo. Chama-se ministério sacerdotal porque está ao serviço do povo sacerdotal.
Quanto na Lumen Gentium (nº 10) se diz que o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico são diferentes um do outro na sua essência, e não apenas em grau, mas ordenam-se um para o outro, com efeito, um e outro participam do sacerdócio de Cristo, segundo o seu modo peculiar.
Se o principal é o sacerdócio baptismal, comum a homens e mulheres, que obstáculo poderá existir, de ordem teológica, isto é, de condição cristã, para que seja impossível conferir o sacramento da Ordem às mulheres? Se não existe obstáculo a que as mulheres recebam o sacerdócio baptismal, que obstáculo haverá, na condição feminina que as incompatibilize, para sempre, com a possibilidade de serem chamadas a receber o Sacramento da Ordem? Quem pode o mais também pode o menos.
Como nem todos os homens querem ser padres, também nem todas as mulheres querem ser ordenadas. O que está em causa é uma outra interrogação: que deficiência haverá nas mulheres para que não possam ser chamadas à ordenação presbiteral ou episcopal para servirem, com a sua sensibilidade, as comunidades cristãs, para as colocar ao serviço da sociedade?
As consequências das trapalhadas não ficam por aqui…
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 14.01.2018



[2] Brotéria 185 (2017), Stella Morra, O sacerdócio e o lugar da mulher, pp. 1013-1026; Vasco Pinto Magalhães, SJ, A Mulher entre os múltiplos feminismos – o lugar da Mulher na Igreja, pp.1027-1036.
[3] Gal 3, 27-29

07 janeiro 2018

LEMBRAR AS VÍTIMAS NÃO EVITA NOVAS VÍTIMAS

         1. Com verdade ou maldade, ouvi repetir, desde há vários anos, que para os meios de comunicação, sobretudo para as televisões, os incêndios representam uma bênção. Fazem subir as audiências sem grandes custos, alimentam a morbidez pelos desastres, intoxicam o país de irremediáveis opiniões contraditórias e paralisantes. A visão dos nossos recursos, potencialidades e lacunas é substituída pelo espectáculo das chamas. Resta a conversa sobre as responsabilidades do Estado, cada vez mais diluídas e transnacionais, os interesses das empresas privadas, a desertificação do interior e os aproveitamentos partidários de circunstância. O reordenamento do território com a participação activa das populações é o tema nunca esquecido e sempre adiado. As suspeitas de fogo posto e as capacidades da lua incendiar a noite são enigmas recorrentes.
Se os meios de comunicação ajudam a fixar, em cada ano, os bodes expiatórios de serviço, não me parece que sejam eles os responsáveis pelo nevoeiro e escuridão que envolvem as explicações de um fenómeno que todos confessam ser muito complexo, acumulando anos de desatenção, que, agora, poderia ser resolvido por relatórios de alguns peritos ou por decreto presidencial ou governamental.
Antes de entrar noutras questões não posso, no entanto, evitar uma pergunta: querem os meios de comunicação contribuir para sarar as feridas das vítimas ou continuar a dificultar a sua cicatrização?  
Quem se mostrou pouco convencido da eficácia da repetição das imagens da tragédia foi António Leuschner, psiquiatra e presidente da comissão de acompanhamento, na área da saúde mental, das populações afectadas pelos incêndios de Pedrógão Grande. Numa lúcida entrevista ao Público (24.12.2017), mostrou que o excesso de manifestações emocionais, em vem vez de ajudar, pode dificultar a recuperação psicológica das pessoas mais afectadas. Defende atitudes de sabedoria.
 “Acho bem que as pessoas não se distanciem com frieza, devem dar sinais de que estão solidárias. Mas o pior que pode haver para um decisor é deixar-se afectar demasiado pela emoção, porque corre o risco de errar. Nem oito, nem oitenta. Nem excesso de emoção nem gelo ”.
 Como psiquiatra, observa que apesar de tudo há muita gente que já deu a volta e que ninguém se suicidou. Algumas situações mais graves foram encaminhadas para a psiquiatria. Foram excepções.
António Leuschner pensa que a divulgação das circunstâncias em que 64 pessoas morreram em Pedrógão pode ter mais efeitos maléficos do que benéficos. É altamente patogénica porque desperta sentimentos que não ajudam as pessoas. Sem acusar ninguém, lembra que estar a recordar tudo passado um mês, dois, três, quatro, cinco, seis meses, não faz bem às pessoas, não contribui em nada para a felicidade de quem sofreu muito.
Este psiquiatra ainda está para perceber a importância da divulgação do famoso capítulo sexto do relatório do investigador Domingos Xavier Viegas. “Pode ter importância para a investigação, para as autoridades judiciais, para se perceber o que correu mal, mas divulgar os detalhes… confesso que ainda não consegui entender o que é que se ganha com isso. Receio que tenha mais efeitos maléficos do que benéficos”.
2. Em Setembro de 2012, publiquei, neste espaço, uma crónica intitulada Queimar o País? Tinha-se sofrido um Verão terrível. Procurei, nessa crónica, alertar para a responsabilidade ecológica dos cristãos. Lembrava que a participação na Eucaristia dominical devia obrigar os católicos a não passarem ao lado das questões ecológicas e sociais localizadas. É o próprio Ofertório da missa que implica a aliança indissolúvel entre a sua dimensão material e espiritual: “Bendito sejas Senhor, Deus do Universo, pelo pão e pelo vinho que recebemos da vossa bondade, frutos da terra e do trabalho humano que hoje Vos apresentamos e que para nós se vão tornar pão da vida e vinho da salvação”.
Sem a integração, semana a semana, das tarefas com que tecemos o nosso dia-a-dia, traímos o sentido cósmico da celebração da Missa e esquecemos que “tudo tem a ver com tudo”. É nela e por ela que, no contexto de cada comunidade local, dizemos e alimentamos o sentido cristão da história humana e da vida espiritual de cada participante.  
Por causa dessa crónica fui convidado a participar num colóquio que me chocou profundamente. Reuniu pessoas de reconhecida competência científica e outras com interesses económicos respeitáveis. Talvez pela minha incapacidade de observação, pareceu-me que o país tinha sido o grande ausente.
3. Como se pode observar no Google, não faltaram colóquios antes e depois das tragédias do passado verão. Não duvido que vão ser muito úteis a médio e a longo prazo, mas a urgente mudança de mentalidade e de costumes, talvez exija métodos mais rasteiros. Na minha ingenuidade, vou continuar a crónica de 2012, com outras perguntas e sugestões. Em 2015, o Papa Francisco publicou a Carta encíclica Laudato Si. É um alerta para a Igreja e para a humanidade sobre a responsabilidade de todos no cuidado da Casa Comum. Enquanto católicos portugueses, temos o dever de assumir e interrogar o que fizeram e fazem os bispos portugueses nas suas dioceses, os párocos nas respectivas paróquias, que iniciativas lançaram nas suas intervenções? Mas não só. Que fizeram os responsáveis pela orientação ecológica da catequese e, no mesmo sentido, quais são os programas dos colégios católicos, da Universidade Católica, dos movimentos nacionais e diocesanos, da Rádio Renascença, das congregações religiosas para fazerem uma virtuosa mudança climática no país, isto é, vencer a indiferença?  
Não vale a pena, no fim do Verão, lamentar a ausência das comunidades locais na prevenção e nos cuidados a ter para que não se repita o que poderia ter sido evitado.
Aqui vai uma sugestão que precisa de diferentes desenvolvimentos. Começaria por desenhar, com alertas bem visíveis, em cada lugar, um mapa que assinalasse o que é urgente e possível fazer já, ao nível da prevenção, pelas próprias populações, com a ajuda do poder local, regional ou nacional, se for o caso.
Nesta sugestão, ao referir em cada local, é para se ter, de norte a sul do país, todo o território marcado de tal forma que não se continue com a conversa fiada sobre o nosso crónico défice democrático. Como fazer?
Voltarei ao assunto, mas a prática para que este texto aponta não precisa de esperar.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 07.01.2018