21 fevereiro 2016

Esta Quaresma começou bem (1)

A falta de humor teológico e litúrgico acaba sempre por sacralizar o ridículo.


1. As Igrejas Católica Romana e Católica Ortodoxa, em 1054, consumaram, de forma solene, o seu progressivo divórcio: excomungaram-se reciprocamente. Dizia-me um amigo, pouco entendido em questões de religião: isso de excomunhões deve ser com como lançar um feitiço para o quintal do vizinho. Só funciona se os dois acreditarem nisso.
De facto, quase durante um milénio, foi mantida essa sacralizada ficção. As duas partes faziam de conta que Deus dependia das suas quezílias teológicas e culinárias. Teológicas, porque se imaginavam a viajar pelo interior da Santíssima Trindade e a observar o percurso seguido pela fonte do Espírito Santo. Culinárias, porque não se entendiam acerca do uso do pão, fermentado ou não fermentado, na celebração da Eucaristia, nem reconheciam a cada uma das igrejas a liberdade de seguir a receita da sua preferência.
A falta de humor teológico e litúrgico acaba sempre por sacralizar o ridículo. Certas instituições e pessoas que pretendem manter intacto o depósito da fé e as invioláveis tradições litúrgicas esquecem que não há imagem nenhuma nem nenhum conceito que possam corresponder a Deus. A idolatria confunde a imagem com a realidade. Todas as artes, a começar pela música e pela poesia, são aspirações à plenitude, mas sabem que não são a plenitude, são apenas pontes para o invisível e inaudível. Confessam, no mais sublime que conseguem, o que lhes falta. Como dizia Messiaen, ficam na zona da imperfeição.
A linguagem litúrgica é simbólica, é a poética da fé, mas não é divina. A teologia que esquece que só conhece a Deus como desconhecido resvala para a arrogância pastoral e incapacita-se para reconhecer que lhe falta o essencial: o Outro.
Com o Vaticano II, a Igreja redescobriu que não existe ecumenismo, diálogo inter-religioso e diálogo com o mundo, na sua diversidade, sem o acolhimento do que não pode dominar: Deus e os outros.
2. O abraço de Paulo VI e do Patriarca Atenágoras [1] foi o reconhecimento público de que as Igrejas Católicas Romana e Ortodoxa vivem mal uma sem a outra. As excomunhões, que serviam apenas para camuflar orgulho e vontade de poder, foram anuladas. Só agora [2], no entanto, o Papa Francisco e o Patriarca Kirill saltaram, a pés juntos, um abismo milenar de suspeitas e acusações. Razão tinha Bergoglio quando disse, a propósito de um encontro entre católicos e protestantes: se deixarmos nas mãos de teólogos obtusos o processo ecuménico, teremos de esperar pela eternidade para ver a unidade entre as igrejas cristãs.
Importa destacar que este encontro não foi apenas para que os dois bispos se falassem de viva voz, coração a coração. Foi para que as duas Igrejas se tornassem, em simultâneo, Igrejas de saída para as periferias do Mundo.
A histórica declaração conjunta não precisa de ser explicada. Não é um texto esotérico. Precisa de ser conhecida. Estes irmãos na fé cristã analisaram as relações mútuas entre as duas Igrejas, os problemas essenciais dos seus fiéis e as perspectivas de progresso da civilização humana.
Porque terão realizado este encontro em Cuba? Porque é a encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste. Foi a partir desta ilha, símbolo das esperanças do “Novo Mundo” e dos acontecimentos dramáticos da história do século XX, que dirigiram a sua palavra a todos os povos da América Latina e dos outros continentes.
Destacaram o crescente dinamismo da fé cristã, o forte potencial religioso da América Latina, a sua tradição cristã secular, presente na experiência pessoal de milhões de pessoas, como garantia de um grande futuro para esta região.
Em Cuba, longe das antigas disputas do “Velho Mundo”, sentiram-se mais fortemente a necessidade de um trabalho comum entre católicos e ortodoxos, chamados a dar ao mundo, com mansidão e respeito, a razão da esperança que está em nós [3].
Partilharam a Tradição espiritual comum do primeiro milénio do cristianismo, cujas testemunhas são a Virgem Maria, Santíssima Mãe de Deus e os Santos que veneramos. Entre eles, contam-se inúmeros mártires que testemunharam a sua fidelidade a Cristo e se tornaram semente de cristãos.
Deixaram transparecer o espanto e uma interrogação: como é possível, com uma Tradição comum dos primeiros dez séculos da Igreja, católicos e ortodoxos estarem privados da comunhão na Eucaristia, há quase mil anos?
3. Estamos divididos por feridas causadas por conflitos de um passado distante ou recente, por divergências – herdadas dos nossos antepassados – na compreensão e explicitação da nossa fé em Deus, uno em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Deploramos a perda da unidade, consequência da fraqueza humana e do pecado, ocorrida apesar da Oração de Cristo: Para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti; para que assim eles estejam em Nós [4].
As Igrejas só podem ser fiéis ao projecto de Jesus se procurarem a sua união como serviço da união de todos os seres humanos: para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos [5].
A Quaresma ainda não terminou.



[1] Jerusalém, 6.01.1964
[2] Cuba, 12 de Fevereiro 2016
[3] 1 Ped 3, 15
[4] Jo 17, 21
[5] Jo 11, 52

http://www.publico.pt/sociedade/noticia/esta-quaresma-comecou-bem-1-1723732?page=-1

14 fevereiro 2016

TANTA MISERICÓRDIA JÁ ABORRECE


1. À saída de uma Igreja em Braga, um senhor, que eu não conhecia, veio directo a mim, indignado: eu já não posso com tanta misericórdia! Sem suspeitar o que dali podia vir, pedi-lhe alguma para mim. Explicou-se. Como bom e velho bracarense, sou católico, desde pequeno. Aprendi a doutrina na família e na igreja, onde também casei. Tenho filhos e netos. A minha mulher educou-os bem, raramente falto à missa e pertenço a várias confrarias.
Sendo assim, disse-lhe que não precisava da misericórdia de ninguém. Sorriu e acrescentou: sei quem é e conheço as suas ideias. Quero desabafar.
O Deus de Braga – disse-me – foi sempre um Deus medonho. A maioria da população vivia com medo do inferno. Do purgatório ninguém escapava. Esse Deus vigiava, dia e noite, as nossas acções. Na confissão era preciso prometer que não voltaria a cair naqueles pecados que estavam na lista dos mais vergonhosos. O propósito de emenda era a artimanha necessária para receber a absolvição.
Pela conversa, percebi que tinha andado no Seminário. Ele tinha verificado uma grave incongruência na Missa: do começo até ao fim, pedia-se perdão a Deus e aos outros, mas para ir à comunhão era preciso confessar-se, em privado, a um padre!
Observei-lhe que, na altura, a Missa era em latim e as pessoas para não perder o tempo aproveitavam para rezar o terço. Tive réplica imediata: agora, as pessoas podem saber que a Missa é o sacramento dos sacramentos, a realização mais bela da reconciliação, mas não serve de nada. É apenas um faz de conta ritual. O que realmente conta é o confessionário.
Este bracarense não é contra a confissão privada. Podem existir razões pessoais para o encontro, a sós, com um confessor. Ouvir e ser ouvido é uma exigência humana fundamental. Os psicólogos fazem o seu trabalho, mas não podem substituir o papel espiritual do sacramento da misericórdia, da esperança. Importa libertar a memória perdida nos labirintos do passado que assombra o presente e fecha o futuro.
2. Acabei por lhe dizer que continuava a não perceber a sua indignação com o Jubileu da Misericórdia. No começo da conversa até pensei que pertencia a esses grupos integristas e conservadores que não suportam as iniciativas do Papa Francisco. Um Ano de Jubileu da Misericórdia não me parece demais para limpar o sarro de séculos de um perverso deus do terror. Interrompeu-me: estou completamente de acordo com o Papa, mas já não aguento a ladainha da “misericórdia”, para tudo e para nada. Dentro de pouco tempo, vai ser integrada no beatério bracarense. Diz-se que a misericórdia não é para abolir a justiça, mas para a superar. Falam das “obras de misericórdia”, sete corporais e sete espirituais, como tínhamos aprendido na doutrina. Serviu de alguma coisa? Era a tabuada de catecismo.
Bergoglio, desde o começo do seu pontificado, mostrou que o seu adversário era a economia que mata, a idolatria do dinheiro, a globalização da indiferença perante um mundo onde se cava, dia-a-dia, um abismo entre os poucos muito ricos e os muitos muito pobres.
Não era conversa ideológica, como a direita gosta de sublinhar. O último número da revista Além-Mar[1] destaca que, no mês passado, a ONG Oxfam divulgou os últimos dados sobre a desigualdade. Nos últimos cinco anos, o património dos 62 multibilionários do planeta aumentou 44%. Simultaneamente, os rendimentos das camadas mais pobres da população caiu 41%. No ano passado, a riqueza acumulada por 1% da população mundial superou a dos restantes 99%.
«O Sumo Pontífice, na Mensagem aos participantes na 46ª edição do Fórum Económico Mundial, pediu aos responsáveis internacionais: «deem vida a novos modelos empresariais que, ao promoverem o desenvolvimento de tecnologias avançadas, sejam também capazes de as utilizar para criar um trabalho digno para todos, apoiar e consolidar os direitos sociais e proteger o meio ambiente».
3. A reforma da Cúria não é uma operação estética. Destina-se a dar um sinal concreto que só uma Igreja em reforma permanente poderá estar livre para ver o mundo a partir dos excluídos. As periferias existenciais deviam ser o centro das igrejas. Nesta opção, o Papa estava, apenas, a seguir a direcção que Jesus Cristo tomou há dois mil anos: descobrir a presença do Reino de Deus entre os excluídos, colocar o centro na periferia. Agora, porém, reconduzem-se as pessoas para dentro das igrejas. Não é uma Igreja de saída, mas de reentrada para a adoração da Reserva Eucarística, minando a simbólica da partilha de uma refeição. Jesus Cristo exposto nas vidas abandonadas na solidão, na doença, na miséria é substituído por algumas horas de adoração do Santíssimo exposto.
Observei-lhe que, na Igreja, há muitos carismas, muitas espiritualidades e nem tudo pode ser reduzido ao social. A mística não é abandono. Vê mais fundo e mais longe. Resposta: é com essas e outras semelhantes que se troca o Evangelho por uma colecção de devoções que Cristo não tinha nem recomendou.
 Frei Bento Domingues, O.P.
         Público 14FEV2016



[1] Além-Mar, Fevereiro 2016, p. 5


https://www.publico.pt/sociedade/noticia/tanta-misericordia-ja-aborrece-1723232

08 fevereiro 2016

TIRAR O EVANGELHO DA CADEIA


1. Com intenções diversas, dizem-se que já é tempo de me convencer de que faço parte de uma minoria religiosa em extinção. Alguns afirmam-no como um lamento: depois do desprezo laicista pelas raízes cristãs da cultura europeia, passando pelo esquecimento ecuménico do Vaticano II, podemos estar a caminhar, a passos largos, para uma Europa muçulmana de cariz revanchista. Portugal, depois de um longo interregno, estaria incluído numa explícita vingança.
Não sou nada bom em sociologia religiosa e já não tenho idade para chegar a ver o que será esse futuro. Espero que as novas gerações católicas consigam libertar a Igreja de certas formas religiosas e movimentos que a asfixiam, mas não para os trocar por algo que se pareça com a vida da maioria dos países dominados pela lei islâmica.
Importa não esquecer que o movimento cristão nasceu de um processo libertário e só conseguirá tornar-se indispensável enquanto tal: É para a liberdade que Cristo vos libertou. Não vos deixeis prender, de novo, ao jugo da escravidão[1]. Seja ele qual for.
Nos últimos Domingos fui intimado a confrontar-me com essa questão, juntamente com os outros participantes na Eucaristia. É fundamental repensar tudo em confronto com a narrativa de S. Lucas[2]. A missão e a responsabilidade actual das Igrejas exigem que se perceba o que está em jogo nos acontecimentos, gestos, decisões e palavras do pontificado reformador do Papa Francisco.
Comecemos pelo texto evangélico. Jesus foi a Nazaré onde tinha sido criado e, segundo o seu costume, entrou, em dia de sábado, na sinagoga. Levantou-se para ler. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías[3]. Abrindo-o, encontrou a passagem onde está escrito:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar o ano da graça do Senhor.
Diz S. Lucas que, chegado a esse ponto, enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou-se. Todos, na sinagoga, tinham os olhos fixos nele que fez, então, uma declaração insólita: Hoje realizou-se a Escritura que acabais de ouvir.
De repente, manifestou-se uma reviravolta no auditório que desencadeou uma polémica tão azeda que os seus conterrâneos resolveram acabar com esse improvisado e atrevido profeta. Estava a desonrar a sua terra e a sua parentela. Expulsaram-no para fora da cidade com intenção de o matar. Ele não se deixou intimidar.
2. Que terá, então, acontecido para provocar aquela reviravolta, dado que Jesus tinha chegado à sua terra depois de ter suscitado grande entusiasmo nas cidades por onde tinha passado?
O texto pode parecer algo confuso, mas no fundo os seus conterrâneos estão indignados com o que aconteceu: pode andar por aí a enganar as multidões, mas a nós não nos engana. Conhecemo-lo bem a ele e aos seus familiares.
         Jesus, de facto, tinha reservado para Nazaré atitudes e declarações muito graves: primeiro, atreveu-se a fechar o livro imediatamente depois de uma leitura propositadamente incompleta do texto de Isaías sobre o ano jubilar, suprimindo a passagem sobre o dia da vingança, da ira de Deus; abandonou a sua qualidade de leitor e de intérprete da Escritura, para ser ele próprio a inaugurar esse tempo absolutamente novo, o tempo da pura graça do amor.
        Isto significava que tinha acabado o estilo da conversa religiosa, repetitiva, da qual não se espera nada, pois com ela também nada acontece: é só falar!
        Com Jesus, o cenário mudou: o dizer do amor faz acontecer! Do lirismo literário do texto de Isaías, saltou-se para as transformações da realidade. Nos capítulos a seguir à controvérsia, Jesus não se mostrou nada deprimido. Saiu na direcção de todas as periferias, a intervir, a suscitar e a organizar os colaboradores.
         A estes pede-lhes que “sejam misericordiosos como o Pai é misericordioso” e não se transformem em juízes de qualquer tribunal eclesiástico. Não quer cegos a fazer de lúcidos. Deseja pessoas de bom coração, não beatas com a boca cheia de invocações divinas. Sem a prática transformadora da realidade, a conversa é só areia movediça[4].  
3. O entusiasmo que Jesus voltou a desencadear também estava semeado de obstáculos e confusões, tanto entre os mais ortodoxos como entre os próprios reformistas, os discípulos de João Baptista.
Para complicar o panorama, o Mestre altera o estatuto religioso das mulheres que passam a fazer parte do grupo dos discípulos. A nova ordem de coisas inclui judeus e gentios, homens e mulheres, a família dos que se deixaram seduzir pela boa nova do reino de Deus[5].
Não podemos deixar de ir ao encontro dessas narrativas de há dois mil anos. Inauguraram um tempo de vinho novo em odres novos. Os Evangelhos não podem ser o arquivo morto das Igrejas. Estas não podem viver sem a circulação permanente entre essa fonte e a complexidade do nosso tempo. Para escutar essa música dissonante é preciso querer nascer de novo e abandonar os mundos fechados para ver a luz.

Frei Bento Domingues, O.P.
Público 07.02. 2016

https://www.publico.pt/sociedade/noticia/tirar-o-evangelho-da-cadeia-1722560 




[1] Gl, 5, 1
[2] 4, 14-36
[3] 61,1-2
[4] Lc 5- 6
[5] Lc  7-8

02 fevereiro 2016

O amor e os limites

DOMINGO IV COMUM Ano C
" Jesus, passando pelo meio deles,
seguiu o seu caminho.”
Lc 4, 30

       “Não há limites para o amor” poderia ser o início de uma bela canção e, certamente, nos lembraria como Jesus “amou até ao fim”. Mas não pretendo pôr em causa o belíssimo “Hino da caridade” que S. Paulo apresenta aos Coríntios e, simplesmente, partilhar a leitura de um texto da revista “Magazine Notícias” da semana passada. Carolina Viana, Joana Horta e Sandra Pinho, do CADin (Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil), uma IPSS dedicada ao tratamento e estudo das perturbações do neurodesenvolvimento, sintetizam um conjunto de resoluções para “educar com amor e com limites”. “Apetecia entregar a todos os pais estes conselhos”, dizia uma professora que também tinha lido o texto, depois de mais uma conversa sobre escola e família. Partilho apenas duas das resoluções : “Valorize e elogie as qualidades do seu filho, aquilo que ele tem de melhor”; “Seja consistente nas regras que estabelece. Não as faça depender do seu humor.” Um conjunto de conselhos simples e do conhecimento de todos os educadores, mas que é tão importante relembrar, e ganhar coragem para os pôr em prática!  
       Os profetas não dizem coisas estranhas nem se põem a adivinhar futuros. Irritam-nos precisamente porque nos lembram o essencial, e desafiam a pensar. Pensar é esse dom tão pouco exercitado e pouco estimulado (o que agrada bastante a quem deseja manipular ou se aproveita da passividade de muitos!), e constitui a grande tarefa dos profetas. De Jeremias a Jesus, de todos os homens e mulheres que se atrevem a denunciar as injustiças e a propor caminhos de conversão, que abanam a indiferença e desmascaram o endeusamento do “eu” e das “coisas”, o que é comum é serem perseguidos e rejeitados. Em todos os campos da existência e na vida da Igreja também, onde a tradição e o medo teimam em fazer esquecer a novidade de Deus.
       Da admiração por Jesus, os seus conterrâneos passam rapidamente à rejeição. É verdade que Jesus foi exigente com eles. Não fez ali os milagres que tinha feito em Cafarnaum e interpelou-os com a universalidade do amor de Deus que ultrapassa as fronteiras de Israel. Recusou a “facilidade” de uma fé “milagreira”, que só funciona com o extraordinário, em vez de se maravilhar com a vida transformada. Propôs-lhes a adesão a um amor mas limitou-lhes a sede de milagres. Quando descobriremos que o seu amor é o maior dos milagres, a vida plena sem limites?  Em dia de sábado, na terra que o viu crescer, nada fez, senão apresentar-se como Salvador; como nada fará na cruz nem no sábado do sepulcro. Por isso em Nazaré, como no calvário, é levado ao cimo da colina, num ambiente que respira ódio e morte. Mas, em tom de ressurreição, passa pelo meio deles e segue o seu caminho.
       Não é fácil um amor com os “limites” necessários para que cresçamos. Um “amor firme” que valoriza o mais importante e ensina a grandeza, tão diferente de um “deixa andar” ou de uma “indiferença mascarada de amor”. Assim na educação, como no trabalho, e também na fé e na vida! 
 
        P. Vitor Gonçalves  
        in Voz da Verdade 2016.01.31     

01 fevereiro 2016

A MEMÓRIA AFECTUOSA DE DEUS

1. A nós, os velhos, roubam-nos tudo: roubam-nos o passado e o futuro, a memória e a possibilidade de renovar o cartão de cidadão.
 É breve e para poucos a sobrevivência na memória afectuosa dos familiares e amigos. Chegamos tarde em relação ao passado e demasiado cedo em relação às maravilhosas promessas da ciência e da técnica.
Por outro lado, a louca persistência das guerras e os absurdos que as provocam, impondo a lei de matar, ser morto ou fugir, geram cepticismo acerca da possibilidade global de humanização da história[1].
A verdadeira vida e a morte dependem dos afectos. Fora deles, há apenas estatística.
Os mais idosos vão sofrendo a desertificação das relações de familiares e amigos. Mário Brochado Coelho, a propósito da morte de Nuno Teotónio Pereira e do desaparecimento de outros companheiros, manifestou aos amigos, de modo comovente, que embora tudo seja natural, ficamos com o sentimento de uma grande orfandade.
Há outras pessoas que alimentam o desejo de um Deus de memória afectuosa, transfiguradora e universal, para si e para os outros, um coração que as acolha.        
2. Em relação ao Nuno Teotónio Pereira, muitas coisas foram ditas e escritas, quer sobre a sua sólida e premiada obra arquitectónica, quer sobre a sua evolução política e religiosa: de uma família monárquica e salazarista para militante da transformação da Igreja na linha de João XXIII e do Vaticano II, da luta contra guerra colonial, das metamorfoses políticas radicais até à entrada no PS.
Cada uma dessas fases e faces deixou imagens diferentes naqueles que com ele conviveram. No entanto, o próprio se explicou longamente sobre os tempos e acontecimentos que viveu. Quem voltar a ler as suas crónicas no Público[2], a última entrevista a José Pedro Castanheira, publicada no Expresso[3] e o testemunho ditado para o Encontro do ISTA e do NAM[4], pode formar uma opinião mais abrangente, não apenas acerca dele, como da sua primeira mulher, a extraordinária Maria Natália Duarte Silva.
É conhecido que ambos, nos anos 60, me associaram à criação do Direito à Informação, à Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, à Iniciativa dos Terceiros Sábados e ao trabalho de encontrar esconderijos para clandestinos.
O Nuno ajudou-me também a encontrar, em Portugal, a pista das pessoas percursoras do Vaticano II, algumas das quais marcaram a sua mudança de rumo e as expressões militantes do seu profundo catolicismo.
Tentei, quando ainda não havia quase nada estudado a esse respeito, apresentar um esboço nas Artes de ser católico português[5]. Desde a Voz de Santo António (1895-1910) até D. António Ferreira Gomes, passando pelos irmãos Alves Correia (Manuel e Joaquim), pelo Movimento e edições Metanoia, dos anos 40-50, pelo Padre Abel Varzim e pela aceleração dos anos 50, em vários ramos da Acção Católica, podem-se encontrar tentativas, obras e correntes que foram reconhecidas no Vaticano II e abafadas pela hierarquia portuguesa, com raras excepções.
3. Ao reler o seu itinerário espiritual, deparei com uma crónica do Público, de 1995, onde reflecte sobre a Igreja Católica e o Partido Comunista, seus problemas actuais e seu futuro[6]. (…) «O Bem da Igreja», que tantas vezes ouvi invocar contra a liberdade das pessoas e contra os preceitos evangélicos e o «Bem do Partido», que espezinhou direitos humanos, têm de ser banidos numa e noutra instituição.
 « (…) Pode ser que seja necessário passarem uma ou duas gerações para que isto aconteça: são acontecimentos para o próximo século. Mas talvez suceda que a mensagem evangélica, por um lado, e a crença numa sociedade mais justa e solidária, por outro, sejam dois fachos que não se apaguem na marcha da Humanidade e que poderão até ser convergentes, com surpresa para muitos. (…) É preciso que qualquer coisa renasça ou nasça de novo para nos devolver a esperança».
O texto do Papa Francisco, sobre a «Igreja de saída», que transcrevi no passado domingo e apresentei no funeral de Nuno Teotónio Pereira, parece-me o começo de realização desta esperança.
José Pedro Castanheira, na última entrevista, perguntou-lhe:  deixou de ser crente? «A certa altura, sim, muito por causa do episódio da morte da minha mulher. Não foi imediato, mas ficou sempre uma ferida. Depois meti-me na política e acabei por chegar à conclusão que o sobrenatural não me dizia nada. Mas, olhando para toda a minha vida e para a minha formação, acho que sou católico, ainda que não praticante. Sou crente».
Santa coerência.
        Frei Bento Domingues, O.P.
Público, 31.01.2016
https://www.publico.pt/sociedade/noticia/a-memoria-afectuosa-de-deus-1721809




[1] Cf. António Lobo Antunes, Para a semana estou cá, in Visão, 21. Janeiro. 2016, p. 8-9.
[2] Nuno Teotónio Pereira, Tempos, Lugares, Pessoas, Público, 1996. As crónicas vão de 20.6.1993 a 21.11.1995.
[3] Fevereiro de 2015 e republicada a 20 de Janeiro 2016 em on-line.
[4] ISTA (Instituto S. Tomás de Aquino) e NAM (Movimento “Não Apaguem a Memória”), Cadernos ISTA, nº 28 – 2014, p. 59-60.
[5] Frei Bento Domingues, O.P., Artes de ser católico português, in A Religião dos Portugueses, Figueirinhas, Porto/Lisboa 1988, pp. 81-122.
[6] Nuno Teotónio Pereira, Tempos, Lugares, Pessoas, Público, 1996, pp.80-82