28 maio 2013

O SEGREDO DA ALEGRIA DE JOÃO XXIII (1)


1. Para certos frequentadores dos textos do Novo Testamento não lhes basta o simples prazer de os ler. Interessa-lhes o que neles podem encontrar para a orientação da sua vida pessoal, familiar e social. Querem, talvez, descobrir o programa de Jesus de Nazaré e o que dele podem tirar para resolver os problemas do seu dia-a-dia. Não me parece que seja fácil satisfazer este pendor pragmático.
Se quiserem colher, nos Evangelhos, um programa de governo, seja para que país for, ficarão decepcionados. Jesus, no sector da agricultura, manifestou que conhecia bem as condições e técnicas para as boas sementeiras e colheitas. Mas uma reforma agrária não se faz recomendando: olhai os lírios do campo e as aves do céu. Quando aborda a questão dos trabalhadores para a vinha, tem uma política de salários que prima pelo arbitrário e que qualquer central sindical teria de combater. No sector das pescas, provocou iniciativas que multiplicaram o peixe, mas não deixou a receita para garantir futuras experiências de sucesso. Além disso, até retirou barcos e pescadores à sua utilidade normal, fazendo dos pescadores pregadores. Para a montagem de uma indústria próspera, como podia ser a da construção e a dos têxteis, não foi boa ideia recomendar que não se preocupassem com o dia de amanhã. No sector de comércio e negócios, tinha uma teoria que levaria tudo à falência: não encoraja nem exportações nem consumo interno. A atitude perante o dinheiro e a riqueza provocava a troça dos fariseus. A saúde e a assistência foram a sua preocupação permanente. No entanto, não criou uma rede hospitalar, nem lares de terceira idade. Resolvia tudo com milagres. Rejeitou, liminarmente, qualquer programa político, tanto para Si como para os discípulos. Seria de supor que, pelo menos, no plano religioso, se apresentasse como um grande especialista em organizar lugares de culto, peregrinações e cerimoniais que se impusessem como a melhor alternativa para o contacto com o divino. E nada.
2. Creio que Jesus não veio resolver os problemas das áreas da competência humana, nem substituir a nossa responsabilidade histórica. Interessa-Lhe apenas fazer de nós criaturas novas, mediante a graça da conversão permanente. Compete-nos resolver os nossos problemas, por nossa conta e risco, através das ciências, das técnicas, das artes e das sabedorias que formos inventando ou descobrindo.
É certo que não deixou nada escrito, não encarregou ninguém de escrever e os textos cristãos não impõem uma interpretação única. Remetem para a participação na realidade viva de Cristo.
Os cristãos e as suas comunidades, como todos os grupos humanos, nascem e desenvolvem-se numa história marcada por tradições, mas sem estarem condenados a repeti-las. O Espírito de Pentecostes, que celebrámos no Domingo passado, é fonte de inovação segundo a pluralidade de carismas pessoais e de grupo.
 3. O Papa João XXIII é, neste sentido, um caso muito especial. Não basta dizer que nasceu pobre em Sotto il Monte (província de Bérgamo, Itália) a 25 de Novembro de 1881. Que foi padre, bispo e cardeal de Veneza, núncio apostólico na Bulgária, na Turquia e em França, eleito papa a 28 de Outubro de 1958 e que morreu pobre, em Roma, a 3 de Junho de 1963. Nem basta acrescentar que, de forma improvável e imprevisível, convocou o Concílio Vaticano II (1962-65), o maior acontecimento da Igreja no século XX. Infelizmente, não assistiu ao seu desenvolvimento até ao fim.
Os eclesiásticos gostam todos de deixar uma obra na qual se possam rever. Os papas do Renascimento não eram todos uns santos, mas deixaram marcas inapagáveis que justificam todas as formas de turismo.
Angelo Giuseppe Roncalli era o terceiro filho de uma família pobre e numerosa. Nem ele nem a família lucraram com o seu percurso eclesiástico. Várias vezes confessou que estava bem assim. Sem nunca esquecer a sua aldeia, a sua diocese, os países em que trabalhou, do Oriente e do Ocidente, os seus familiares, a sua verdadeira ambição era que o mundo inteiro fosse a sua família. Em 1959, depois de ter sido eleito papa, escreveu no seu Diário íntimo: “desde o dia em que o Senhor me chamou, miserável como sou, para este grande serviço, já não me sinto pertencer a nada de particular na vida: família, pátria terrena, nação, orientações particulares em matéria de estudos, de projectos, por melhores que sejam. Agora, mais do que nunca, apenas me reconheço como indigno servo dos servos de Deus. O mundo inteiro constitui a minha família. Este sentido de pertença universal deve dar vigor e vivacidade ao meu espírito, ao meu coração. (…) Estou, sobretudo, grato ao Senhor pelo temperamento que me deu, que me preserva de incómodas inquietações e de desânimos (…) O bom acolhimento à minha pobre pessoa, imediatamente dispensado e mantido por quantos de mim se aproximam, é sempre motivo de surpresa. (…) Devemos estar, sobretudo, revestidos de uma habitual prontidão às surpresas do Senhor.”
Ontem, o Movimento Nós Somos Igreja promoveu, no Convento de S. Domingos, um colóquio sobre esta figura da Igreja do futuro. A ela voltaremos no próximo Domingo.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público

19 maio 2013

O diácono Justino e suas circunstâncias

       
Sabia que as pessoas não o recebiam bem naquela terra e conhecia os motivos. Mas o pároco insistia em impô-lo aos ingratos fiéis da paróquia com uma celebração mensal da Palavra. Um dia Justino decidiu partir a loiça e pôr as coisas em pratos limpos. Distanciando-se um pouco do tema da liturgia, mas ressalvando a necessária e devida aproximação, disse: eu sei que não gostam de mim e também sei porquê, mas quero esclarecer que há muito exagero naquilo que se conta. Dizem que eu às vezes, quando ando a lavrar, desço do tractor arreliado e começo a dar pontapés nas rodas e isso não é um comportamento adequado ao lugar que ocupo. E que nesses momentos, e também quando ando com a mula, digo muitas asneiras. Não digo muitas e quanto ao tractor não seria preciso dizê-las, mas a mula parece que só percebe essa linguagem. Que hei-de fazer, deve ter sido educada assim. Também se diz que eu em casa berro com a minha mulher e às vezes lhe dou uns empurrões. O tractor e a mula não podem ser testemunhas, mas a minha mulher está aqui e pode dizer se eu faço isso. Eu faço isso, mulher, diz lá? Diz lá agora aqui! A senhora acenou com a cabeça em horizontal no gesto de dizer que não. Quase toda a gente aceitou que ela estava a dizer a verdade e a verdade era não. Mas houve alguém que interpretou de outra maneira. Que ela quereria dizer: és muito parvo, isso são conversas que se apresentem? Parece que o Justino também percebeu isso, porque no tempo de uma respiração e num golpe de rins literário virou a homilia para os sofrimentos de Job. Fiquei espantado com tal inflexão, mas era verdade. Depois de umas referências gerais, disse mais ou menos isto: Job, meus caros amigos e irmãos, foi um homem que sofreu como ninguém. Quem somos nós para nos compararmos a Job? Tinha tudo e todos contra ele. Até os amigos, até a família. Isso é o pior que pode acontecer a um homem. Pelo que lhe diziam até Deus o teria abandonado, mas nisso ele não queria acreditar. Não tinha ninguém, estava completamente sozinho, quase nem se tinha a si mesmo, por isso parecia-lhe impossível que Deus o abandonasse. Iria acreditar até ao fim apesar de não ver um fim para tantos males e sofrimentos. Job, meus irmãos, é um grande exemplo para nós. Não para aceitarmos o sofrimento, mas para que o sofrimento não nos leve a retirar Deus das nossas vidas. Se tiramos Deus das nossas vidas, as nossas vidas deixam de ter vida. Andamos por aqui, talvez sem tristezas nem sofrimentos, mas também sem grandes alegrias. Ou andamos por aqui a sofrer, tristes da vida, mais prontos para morrer que para viver. E assim foi andando, o Justino, com a sua reflexão acerca de Job e a nossa vida presente. Por momentos veio-me ao pensamento por que razão os filhos do casal nunca eram mencionados, motivo suficiente para não me aperceber de como o diácono agricultor rematou a sua sentida pregação. Mas no final da celebração, no pequeno adro da capela, as vozes que falavam eram todas de elogio: o homem afinal sabe o que diz. Que é que importa se às vezes se arrelia com a mula! As mulas são lindas de aturar, são! E da mulher também não deve ser bem como se conta! E assim por diante. Alguns dias mais tarde soube que depois disso o senhor padre terá dito: até aqui não queriam o Justino e agora não fazem outra coisa que é falar bem dele. Não se esqueçam de que, por enquanto, aqui o padre sou eu. E que nesse momento uma senhora terá exclamado: oh valha-me Deus!
         Frei Matias, O.P.
         Blogue NSI Maio 2013

CELEBRAR A SUBVERSÃO


1. Não há palavras inocentes. A sua significação depende do seu uso. Subversão evoca uma turbulência que, aparentemente, não ficaria bem numa missa. O culto obedece a um ritual pré-estabelecido e intocável. Não suporta o imprevisível. Em certas concepções da sagrada liturgia, o próprio Deus deve deixar-se de fantasias e seguir à risca o que está mandado e aprovado pela competente autoridade religiosa.
No campo católico, a reforma litúrgica do Vaticano II, sem perder o sentido plural da ritualidade, tentou vencer a doença da obsessão ritualista. O fundamentalismo de uns, a incultura de outros, a preguiça e a mediocridade geral têm dificultado os caminhos de uma genuína criatividade. Em nome da ortodoxia e da piedade, está a ressurgir, em alguns grupos e paróquias, a mentalidade restauracionista.
Este é um caminho de ignorância. A linguagem e os gestos litúrgicos pertencem ao mundo simbólico, metafórico, poético em ruptura com a relação curta e congelada entre significante e significado. A linguagem sacramental é subversiva, alterante, transformadora. Por energia divina, faz acontecer o que diz no acto de dizer o indizível, se não lhe pusermos obstáculos.
2. O ritualismo, no espaço cristão, esquece a prática histórica de Jesus Cristo. Segundo as narrativas do Novo Testamento, Ele, como bom judeu, frequentava, ao Sábado, a Sinagoga. Aproveitava sempre esses momentos especiais para subverter a desumanidade em que tinham caído as instituições e os tabus do sagrado, do inviolável.[i] Para os adeptos da estrita observância, essas atitudes eram provocações tão graves que evidenciavam que Ele não podia ser um homem de Deus. Os prodígios que realizava manifestavam, claramente, que era um diabo disfarçado ao serviço de Beelzebu, o príncipe dos demónios.[ii]
Para o Nazareno, o dia consagrado a Deus deve ser o que celebra o acontecer actual da libertação e que fora transformado numa nova prisão. A tentação católica é sempre a de esquecer que o Domingo é para celebrar, de forma eficaz, a subversão de tudo o que mata a vida e a alegria. Liberta, em nós, o Espírito da ressurreição, fonte de insurreição.
Jesus levou muito tempo a encontrar o seu caminho. Frequentou o grupo liderado por João Baptista, um judeu indisposto com a religião do Templo, o centro de tudo. Depois de baptizado nessa opção teve uma experiência mística que lhe mostrou que a alternativa de João, uma figura extraordinária, não superava as asperezas do moralismo, ao querer mudar o ser humano sem subverter as representações de um Deus ameaçador.
  Essa experiência mística continha uma revolução teológica que alterava o percurso que Jesus tinha vivido até esse momento. Do Céu, de Deus, não poderiam vir ameaças. Não interpretou, porém, as “declarações de amor”, como algo de pessoal e intransmissível. Descobriu, nelas uma vocação: mostrar que o mapa da salvação e da condenação estava mal desenhado. Excluídos – e a precisar de conversão - eram aqueles que excluíam, que classificavam os outros como pecadores, e a si próprios como justos. Jesus dirá que sabiam ver, muito bem, um argueiro no olho do vizinho e não enxergavam a trave que tinham nos próprios olhos.  
Jesus, ao ser acusado de comer com os pecadores, expunha-se a ser considerado um deles e a desclassificar a sua pregação da proximidade do reino de Deus. Subvertia, assim, toda a ordem religiosa, moral e antropológica. Era o próprio Deus que fazia suas, as más companhias de seu Filho.
3. Os discípulos nunca perceberam o que o Mestre pretendia, porque nunca captaram o Espírito que O animava, nem mesmo depois da Sua morte e ressurreição. Continuaram a perguntar-se quando é que chegaria a sua vez.[iii] O próprio Jesus acabou por desistir pois nenhuma explicação poderia alterar a ambição do poder. Teriam de passar pela experiência espiritual que Ele próprio teve depois do baptismo, o dom do mesmo Espírito, a nova lei. Sem a subversão da festa judaica do Pentecostes, da Lei do Sinai, não haveria a festa de todos os povos de todas as línguas e culturas. É o anúncio da única globalização desejável, a do Espírito que tudo fecunda, sem nada apagar.
 Para não renegar o Pentecostes cristão foi preciso convocar um Concílio que abrisse Jerusalém às novas e imprevisíveis experiências do Espirito Santo, que nunca pede licença às autoridades da Igreja para as suas surpreendentes iniciativas.[iv]
No século XX, João XXIII percebeu que sem um concílio ecuménico não haveria aggiornamento possível. Uma igreja, mesmo numerosa, pode tornar-se um ghetto. Fala, mas não vê nem ouve. Exclui.
O mundo não parou em 1965. Para se tornar católica, a Igreja no seu devir na história humana, tem de rever, continuamente, as suas posições. Não pode dizer que não há alternativas. As configurações actuais dos ministérios ordenados, já não correspondem ao que deles se deve exigir, para estarem abertos às surpresas do Espírito de Cristo, que não é exclusivo dos homens. A exigência desta mudança e da reforma da Cúria estão interligadas.
Frei Bento Domingues, O.P.

[i] Lc 13, 10-16
[ii] Mt 12,22-32
[iii]  Act. 1, 6
[iv]  Act. 15
19.05.2013
in Público

18 maio 2013

¿Es el papa Francisco una paradoja?

Jorge Bergoglio ha despertado la esperanza de que otra Iglesia católica es posible. Su estilo al asumir el pontificado, su lenguaje y su decisión de hacerse llamar Francisco remiten a la pobreza, humildad y sencillez que predicaba Francisco de Asís.
¿Quién lo iba a pensar? Cuando tomé la pronta decisión de renunciar a mis cargos honoríficos en mi 85º cumpleaños, supuse que el sueño que llevaba albergando durante décadas de volver a presenciar un cambio profundo en nuestra Iglesia como con Juan XXIII nunca llegaría a cumplirse en lo que me quedaba de vida.
Y, mira por dónde, he visto cómo mi antiguo compañero teológico Joseph Ratzinger —ambos tenemos ahora 85 años— dimitía de pronto de su cargo papal, y precisamente el 19 de marzo de 2013, el día de su santo y mi cumpleaños, pasó a ocupar su puesto un nuevo Papa con el sorprendente nombre de Francisco.
¿Habrá reflexionado Jorge Mario Bergoglio acerca de por qué ningún papa se había atrevido hasta ahora a elegir el nombre de Francisco? En cualquier caso, el argentino era consciente de que con el nombre de Francisco se estaba vinculando con Francisco de Asís, el universalmente conocido disidente del siglo XIII, el otrora vivaracho y mundano vástago de un rico comerciante textil de Asís que, a la edad de 24 años, renunció a su familia, a la riqueza y a su carrera e incluso devolvió a su padre sus lujosos ropajes.
Resulta sorprendente que el papa Francisco haya optado por un nuevo estilo desde el momento en el que asumió el cargo: a diferencia de su predecesor, no quiso ni la mitra con oro y piedras preciosas, ni la muceta púrpura orlada con armiño, ni los zapatos y el sombrero rojos a medida ni el pomposo trono con la tiara. Igual de sorprendente resulta que el nuevo Papa rehúya conscientemente los gestos patéticos y la retórica pretenciosa y que hable en la lengua del pueblo, tal y como pueden practicar su profesión los predicadores laicos, prohibidos por los papas tanto por aquel entonces como actualmente. Y, por último, resulta sorprendente que el nuevo Papa haga hincapié en su humanidad: solicita el ruego del pueblo antes de que él mismo lo bendiga; paga la cuenta de su hotel como cualquier persona; confraterniza con los cardenales en el autobús, en la residencia común, en su despedida oficial; y lava los pies a jóvenes reclusos (también a mujeres, e incluso a una musulmana). Es un Papa que demuestra que, como ser humano, tiene los pies en la tierra.
El pontífice no quiso ni la mitra con oro, ni los zapatos, ni el pomposo trono con la tiara
Todo eso habría alegrado a Francisco de Asís y es lo contrario de lo que representaba en su época el papa Inocencio III (1198-1216). En 1209, Francisco fue a visitar al papa a Roma junto con 11 hermanos menores (fratres minores) para presentarle sus escuetas normas compuestas únicamente de citas de la Biblia y recibir la aprobación papal de su modo de vida “de acuerdo con el sagrado Evangelio”, basado en la pobreza real y en la predicación laica. Inocencio III, conde de Segni, nombrado papa a la edad de 37 años, era un soberano nato: teólogo educado en París, sagaz jurista, diestro orador, inteligente administrador y refinado diplomático. Nunca antes ni después tuvo un papa tanto poder como él. La revolución desde arriba (Reforma gregoriana) iniciada por Gregorio VII en el siglo XI alcanzó su objetivo con él. En lugar del título de “vicario de Pedro”, él prefería para cada obispo o sacerdote el título utilizado hasta el siglo XII de “vicario de Cristo” (Inocencio IV lo convirtió incluso en “vicario de Dios”). A diferencia del siglo I y sin lograr nunca el reconocimiento de la Iglesia apostólica oriental, el papa se comportó desde ese momento como un monarca, legislador y juez absoluto de la cristiandad... hasta ahora.
Pero el triunfal pontificado de Inocencio III no solo terminó siendo una culminación, sino también un punto de inflexión. Ya en su época se manifestaron los primeros síntomas de decadencia que, en parte, han llegado hasta nuestros días como las señas de identidad del sistema de la curia romana: el nepotismo, la avidez extrema, la corrupción y los negocios financieros dudosos. Pero ya en los años setenta y ochenta del siglo XII surgieron poderosos movimientos inconformistas de penitencia y pobreza (los cátaros o los valdenses). Pero los papas y obispos cargaron libremente contra estas amenazadoras corrientes prohibiendo la predicación laica y condenando a los “herejes” mediante la Inquisición e incluso con cruzadas contra ellos.
Pero fue precisamente Inocencio III el que, a pesar de toda su política centrada en exterminar a los obstinados “herejes” (los cátaros), trató de integrar en la Iglesia a los movimientos evangélico-apostólicos de pobreza. Incluso Inocencio era consciente de la urgente necesidad de reformar la Iglesia, para la cual terminó convocando el fastuoso IV Concilio de Letrán. De esta forma, tras muchas exhortaciones, acabó concediéndole a Francisco de Asís la autorización de realizar sermones penitenciales. Por encima del ideal de la absoluta pobreza que se solía exigir, podía por fin explorar la voluntad de Dios en la oración. A causa de una aparición en la que un religioso bajito y modesto evitaba el derrumbamiento de la Basílica Papal de San Juan de Letrán —o eso es lo que cuentan—, el Papa decidió finalmente aprobar la norma de Francisco de Asís. La promulgó ante los cardenales en el consistorio, pero no permitió que se pusiera por escrito.
Francisco de Asís representaba y representa de facto la alternativa al sistema romano. ¿Qué habría pasado si Inocencio y los suyos hubieran vuelto a ser fieles al Evangelio? Entendidas desde un punto de vista espiritual, si bien no literal, sus exigencias evangélicas implicaban e implican un cuestionamiento enorme del sistema romano, esa estructura de poder centralizada, juridificada, politizada y clericalizada que se había apoderado de Cristo en Roma desde el siglo XI.
Con Inocencio III se manifestaron los primeros síntomas de nepotismo y corrupción del Vaticano
Puede que Inocencio III haya sido el único papa que, a causa de las extraordinarias cualidades y poderes que tenía la Iglesia, podría haber determinado otro camino totalmente distinto; eso habría podido ahorrarle el cisma y el exilio al papado de los siglos XIV y XV y la Reforma protestante a la Iglesia del siglo XVI. No cabe duda de que, ya en el siglo XII, eso habría tenido como consecuencia un cambio de paradigma dentro de la Iglesia católica que no habría escindido la Iglesia, sino que más bien la habría renovado y, al mismo tiempo, habría reconciliado a las Iglesias occidental y oriental.
De esta manera, las preocupaciones centrales de Francisco de Asís, propias del cristianismo primitivo, han seguido siendo hasta hoy cuestiones planteadas a la Iglesia católica y, ahora, a un papa que, en el aspecto programático, se denomina Francisco: paupertas (pobreza), humilitas (humildad) y simplicitas (sencillez).
Puede que eso explique por qué hasta ahora ningún papa se había atrevido a adoptar el nombre de Francisco: porque las pretensiones parecen demasiado elevadas.
Pero eso nos lleva a la segunda pregunta: ¿qué significa hoy día para un papa que haya aceptado valientemente el nombre de Francisco? Es evidente que tampoco se debe idealizar la figura de Francisco de Asís, que también tenía sus prejuicios, sus exaltaciones y sus flaquezas. No es ninguna norma absoluta. Pero sus preocupaciones, propias del cristianismo primitivo, se deben tomar en serio, aunque no se puedan poner en práctica literalmente, sino que deberían ser adaptadas por el Papa y la Iglesia a la época actual.
[SUMVACIO]Las enseñanzas de Francisco de Asís de altruismo y fraternidad deberían ser actualizadas
1. ¿Paupertas, pobreza? En el espíritu de Inocencio III, la Iglesia es una Iglesia de la riqueza, del advenedizo y de la pompa, de la avidez extrema y de los escándalos financieros. En cambio, en el espíritu de Francisco, la Iglesia es una Iglesia de la política financiera transparente y de la vida sencilla, una Iglesia que se preocupa principalmente por los pobres, los débiles y los desfavorecidos, que no acumula riquezas ni capital, sino que lucha activamente contra la pobreza y ofrece condiciones laborales ejemplares para sus trabajadores.
2. ¿Humilitas, humildad? En el espíritu de Inocencio, la Iglesia es una Iglesia del dominio, de la burocracia y de la discriminación, de la represión y de la Inquisición. En cambio, en el espíritu de Francisco, la Iglesia es una Iglesia del altruismo, del diálogo, de la fraternidad, de la hospitalidad incluso para los inconformistas, del servicio nada pretencioso a los superiores y de la comunidad social solidaria que no excluye de la Iglesia nuevas fuerzas e ideas religiosas, sino que les otorga un carácter fructífero.
3. ¿Simplicitas, sencillez? En el espíritu de Inocencio, la Iglesia es una Iglesia de la inmutabilidad dogmática, de la censura moral y del régimen jurídico, una Iglesia del miedo, del derecho canónico que todo lo regula y de la escolástica que todo lo sabe. En cambio, en el espíritu de Francisco, la Iglesia es una Iglesia del mensaje alegre y del regocijo, de una teología basada en el mero Evangelio, que escucha a las personas en lugar de adoctrinarlas desde arriba, que no solo enseña, sino que también está constantemente aprendiendo.
De esta forma, se pueden formular asimismo hoy día, en vista de las preocupaciones y las apreciaciones de Francisco de Asís, las opciones generales de una Iglesia católica cuya fachada brilla a base de magnificentes manifestaciones romanas, pero cuya estructura interna en el día a día de las comunidades en muchos países se revela podrida y quebradiza, por lo que muchas personas se han despedido de ella tanto interna como externamente.
Es poco probable que los soberanos vaticanos permitan que se les quite el poder acumulado
No obstante, ningún ser racional esperará que una única persona lleve a cabo todas las reformas de la noche a la mañana. Aun así, en cinco años sería posible un cambio de paradigma: eso lo demostró en el siglo XI el papa León IX de Lorena (1049-1054), que allanó el terreno para la reforma de Gregorio VII. Y también quedó demostrado en el siglo XX por el italiano Juan XXIII (1958-1963), que convocó el Concilio Vaticano II. Hoy debería volver a estar clara la senda que se ha de tomar: no una involución restaurativa hacia épocas preconciliares como en el caso de los papas polaco y alemán, sino pasos reformistas bien pensados, planificados y correctamente transmitidos en consonancia con el Concilio Vaticano II.
Hay una tercera pregunta que se planteaba por aquel entonces al igual que ahora: ¿no se topará una reforma de la Iglesia con una resistencia considerable? No cabe duda de que, de este modo, se provocarían unas potentes fuerzas de reacción, sobre todo en la fábrica de poder de la curia romana, a las que habría que plantar cara. Es poco probable que los soberanos vaticanos permitan de buen grado que se les arrebate el poder que han ido acumulando desde la Edad Media.
El poder de la presión de la curia es algo que también tuvo que experimentar Francisco de Asís. Él, que pretendía desprenderse de todo a través de la pobreza, fue buscando cada vez más el amparo de la “santa madre Iglesia”. Él no quería vivir enfrentado a la jerarquía, sino de conformidad con Jesús obedeciendo al papa y a la curia: en pobreza real y con predicación laica. De hecho, dejó que los subieran de rango a él y a sus acólitos por medio de la tonsura dentro del estatus de los clérigos. Eso facilitaba la actividad de predicar, pero fomentaba la clericalización de la comunidad joven, que cada vez englobaba a más sacerdotes. Por eso no resulta sorprendente que la comunidad franciscana se fuera integrando cada vez más dentro del sistema romano. Los últimos años de Francisco quedaron ensombrecidos por la tensión entre el ideal original de imitar a Jesucristo y la acomodación de su comunidad al tipo de vida monacal seguido hasta la fecha.
En honor a Francisco, cabe mencionar que falleció el 3 de octubre de 1226 tan pobre como vivió, con tan solo 44 años. Diez años antes, un año después del IV Concilio de Letrán, había fallecido de forma totalmente inesperada el papa Inocencio III a la edad de 56 años. El 16 de junio de 1216 se encontraron en la catedral de Perugia el cadáver de la persona cuyo poder, patrimonio y riqueza en el trono sagrado nadie había sabido incrementar como él, abandonado por todo el mundo y totalmente desnudo, saqueado por sus propios criados. Un fanal para la transformación del dominio en desfallecimiento papal: al principio del siglo XIII, el glorioso mandatario Inocencio III; a finales de siglo, el megalómano Bonifacio VIII (1294-1303), que fue apresado de forma deplorable; seguido de los cerca de 70 años que duró el exilio de Aviñón y el cisma de Occidente con dos y, finalmente, tres papas.
Menos de dos décadas después de la muerte de Francisco, el movimiento franciscano que tan rápidamente se había extendido pareció quedar prácticamente domesticado por la Iglesia católica, de forma que empezó a servir a la política papal como una orden más e incluso se dejó involucrar en la Inquisición.
Al igual que fue posible domesticar finalmente a Francisco de Asís y a sus acólitos dentro del sistema romano, está claro que no se puede excluir que el papa Francisco termine quedando atrapado en el sistema romano que debería reformar. ¿Es el papa Francisco una paradoja? ¿Se podrán reconciliar alguna vez la figura del papa y Francisco, que son claros antónimos? Solo será posible con un papa que apueste por las reformas en el sentido evangélico. No deberíamos renunciar demasiado pronto a nuestra esperanza en un pastor angelicus como él.
Por último, una cuarta pregunta: ¿qué se puede hacer si nos arrebatan desde arriba la esperanza en la reforma? Sea como sea, ya se ha acabado la época en la que el papa y los obispos podían contar con la obediencia incondicional de los fieles. Así, a través de la Reforma gregoriana del siglo XI se introdujo una determinada mística de la obediencia en la Iglesia católica: obedecer a Dios implica obedecer a la Iglesia y eso, a su vez, implica obedecer al papa, y viceversa. Desde esa época, la obediencia de todos los cristianos al papa se impuso como una virtud clave; obligar a seguir órdenes y a obedecer (con los métodos que fueran necesarios) era el estilo romano. Pero la ecuación medieval de “obediencia a Dios = obediencia a la Iglesia = obediencia al papa” encierra ya en sí misma una contradicción con las palabras de los apóstoles ante el Gran Sanedrín de Jerusalén: “Hay que obedecer a Dios más que a las personas”.
Por tanto, no hay que caer en la resignación, sino que, a falta de impulsos reformistas “desde arriba”, desde la jerarquía, se han de acometer con decisión reformas “desde abajo”, desde el pueblo. Si el papa Francisco adopta el enfoque de las reformas, contará con el amplio apoyo del pueblo más allá de la Iglesia católica. Pero si al final optase por continuar como hasta ahora y no solucionar la necesidad de reformas, el grito de “¡indignaos! indignez-vous!” resonará cada vez más incluso dentro de la Iglesia católica y provocará reformas desde abajo que se materializarán incluso sin la aprobación de la jerarquía y, en muchas ocasiones, a pesar de sus intentos de dar al traste con ellas. En el peor de los casos —y esto es algo que escribí antes de que saliera elegido el actual Papa—, la Iglesia católica vivirá una nueva era glacial en lugar de una primavera y correrá el riesgo de quedarse reducida a una secta grande de poca monta.
10 de Maio 2013
in El País

Celebrando a revolução de João XXIII no 50º ano da sua morte


CONVITE
O Movimento Internacional Nós Somos Igreja – Portugal
tem o prazer de anunciar o

ENCONTRO/DEBATE

Celebrando a Revolução de João XXIII

1º Painel: 15.30-16.30

O mundo inteiro é a minha família: O percurso de João XXIII nos seus Testamentos
Frei Bento Domingues, O.P.

Contexto histórico da eleição de João XXIII
Irene Flunser Pimentel

Debate

Pausa café

2º Painel: 17-18.00

Quem foi João XXIII?
Frei Mateus Cardoso Peres, O.P.

A importância de João XXIII para a entrada da Igreja na modernidade
Fernanda Henriques


       Moderadora dos 2 Painéis
       Alfreda Ferreira da Fonseca
 
Debate

18.15: Celebração Eucarística

Data: 25 de Maio 2013 – Sábado, 15.30 horas
Local: Convento de S. Domingos
Rua João Freitas Branco Nº 12,
1500-359 Lisboa
Metro: Altos dos Moínhos
Estacionamento nas imediações e no Pátio do Convento
Entrada Livre






12 maio 2013

Hermenêutica

            
         Nesta reflexão sobre mulheres como Igreja e na Igreja, observe-se o terceiro pilar da minha proposta sobre a igual dignidade das mulheres e homens. Hermenêutica. Entenda-se a arte de interpretar as Escrituras, de as ler, compreender, absorver. Parece-nos que o Novo Testamento é muito claro. Ambos os sexos são chamados para escutar a Boa Nova. Ambos são chamados à salvação.  Jesus Cristo, o Messias, o Profeta, o Cordeiro, não neutralizou a humanidade e também não atribuiu diferenças ontológicas às mulheres e aos homens. Com todas e todos deseja viver o seu amor até ao infinito e a todos e todas quer integrar na sua mensagem. Ambos os sexos são desafiados a segui-Lo. Todas e todos são interpelados pelo Sermão na Montanha e pelo maior dos mandamentos, sem distinção de sexos. Jesus não estabeleceu hierarquias, não enunciou tarefas para uns e para outras. Antes pelo contrário. O que significa que as diferenças atribuídas ao estatuto das mulheres e dos homens na Igreja-instituição (e não na Igreja-Povo de Deus – mais uma contradição, e a teologia exige coerência) são uma construção artificial de alguns homens da Igreja-instituição, que cometeram o tradicional pecado de não quererem partilhar o poder, o serviço, com a outra metade do Povo de Deus.
         A leitura do Evangelho segundo São Mateus é esclarecedora. Não para conhecer o que Jesus disse das mulheres ou a forma como Ele as tratava. Essa análise já foi realizada por muitas pessoas. Vejamos antes alguns breves exemplos do discurso de Jesus, a fim de compreender com quem ele procurava comunicar. São numerosas as passagens que sublinham a plena igualdade e dignidade dos seres humanos. Se Jesus tivesse tido a intenção de distinguir entre homens e mulheres tê-lo-ia dito. A leitura de São Mateus também nos ensina que Jesus estava bem ciente da psicologia humana.
         Ao longo dos Evangelhos o leitor é desafiado, instruído, interpelado e chamado à salvação. O outro, o ‘semelhante’,  o ‘próximo’, é muitas vezes referido, mas nunca se fala de um ou outro sexo. O outro é a totalidade do outro, seja qual for o seu género. Nada nos Evangelhos nos permite excluir alguém do poder da graça ou do serviço ao próximo. O espírito do texto é o de inclusão e é aí que reside a sua novidade absoluta, naquele tempo como agora. No próximo mês indicaremos alguns trechos do Evangelho de São Mateus que ilustram o que aqui se diz.
         Ana Vicente
         Maio 2013
 

AINDA HÁ MUITO QUE FAZER

         
        1. São sobretudo os portugueses que, actualmente, vivem bem e muito bem que acusam os outros de terem andado a viver acima das suas possibilidades. Encontrei, por acaso, um conhecido que já não via há muito tempo, que me exibiu uma estratégia para acabar com as aldrabices dessa conversa inconsequente e para me convencer a desistir das minhas homilias dominicais. O importante não é saber quantos habitantes estão a mais em Portugal, mas como os eliminar sem dor.
       Para ele, a política ou falta de política tornou-se um falatório de ilusionistas. Portugal, sem batota, nunca terá recursos nem habilidades para manter mais de três milhões de pessoas. O governo, aliás, sabe que é assim. Segue o caminho certo e tomou medidas que já começam a dar frutos: os jovens que não emigrarem e que não tiverem emprego não podem ter filhos. A população, a prazo, será controlada. Os idosos, privados dos modernos cuidados de saúde, morrem mais depressa e “o ambiente agradece”.
       Para um pragmático puro e duro, esse caminho é excessivamente demorado para resolver problemas e pagar dívidas que estão sempre a aumentar. A solução tem de ser mais rápida e radical.
       Hoje, já é possível controlar os nascimentos e determinar quantos são os desejáveis do sexo masculino e feminino. Para evitar gastos com a saúde de bebés, só devem nascer aqueles que mostrarem estar isentos de qualquer doença, real ou potencial. Aos setenta e cinco anos deve ser imposta a reforma da vida para todos. Os funerais serão baratos. Esta medida libertará recursos económicos e financeiros para fins mais produtivos.
       Poderíamos, desta maneira, ser pioneiros na resolução de problemas postos a nível mundial. Se os sete mil milhões de seres humanos na terra tivessem o nível de vida dos EUA seriam necessários, pelo menos, mais seis planetas, para satisfazer as suas necessidades. No período em que a população cresceu 100%, a área cultivável só aumentou 10%. Assim não dá.
       A solução do referido pragmático não é um atentado à vida humana pois, agora por agora, a morte é certa. O método proposto apressa o céu aos crentes. Os não crentes na vida depois da morte são poupados às doenças, aos hospitais e aos lares que tornam a vida um inferno laico. Os que acreditam na reencarnação só começam mais depressa a nova experiência de vida. Quem insiste em convicções humanistas e religiosas, sobretudo as que destacam o valor absoluto da pessoa humana, criada à imagem de Deus, não se podem queixar, pois a divindade só pode ver com bons olhos uma solução que evita sofrimentos desnecessários.
       Esta pragmática tão despachada é uma divindade despótica, própria de uma era que não acredita em milagres de bondade e solidariedade mas, sobretudo, por já ter o futuro todo previsto e desenhado. Depois de ter transformado o ser humano numa coisa, sem sentimentos, sem liberdade e sem interrogações, é fácil determinar o que convém e não convém a essa estranha criatura.
        2. Não nos devemos admirar muito por ainda não termos encontrado boas saídas para os enigmas da aventura humana. Os casos individuais, apesar da medicina, não levam muito tempo a resolver. Para a humanidade enquanto tal surgem repetidos anúncios do fim do mundo.
       A mais antiga narrativa cristã acerca deste tema vem na primeira carta aos Tessalonicenses. Com a vitória de Cristo sobre a morte, o último inimigo a vencer, as primeiras gerações cristãs encontraram a boa solução: juntarem-se a Cristo Ressuscitado o mais depressa possível e entrar no Reino da Alegria. S. Paulo até organizou o programa dessa viagem definitiva: “Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou assim também, os que morreram em Jesus, Deus há-de levá-los em sua companhia. Por isso vos declaramos, segundo a palavra do Senhor: que os vivos, os que ainda estivermos lá para a Vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que morreram. Quando o Senhor, ao sinal dado, à voz do Arcanjo e ao som da trombeta divina, descer do céu, então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida, nós os vivos que estivermos lá, seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor, nos ares. Assim, estaremos para sempre com o Senhor. Consolai-vos, pois, uns aos outros, com estas palavras” (1Ts 4, 13-18).
       Paulo, imprudente, esqueceu-se de marcar a data do arrebatamento. Se o fim estivesse mesmo a chegar, para quê trabalhar? Na segunda carta, Paulo está a colher os frutos da sua sementeira, pois há muitos que levam a vida à toa, muito atarefados a não fazer nada. Não dispõe de argumentos teológicos para os mover. Torna-se, então, muito pragmático: quem não quer trabalhar, que também não coma (2 Ts 3, 6-12).
       3. Na celebração deste Domingo, Jesus ressuscitado, antes de se despedir, deixa-nos algumas recomendações: abandonar a inveterada vontade de poder e mantermo-nos disponíveis para as aventuras do Espírito de Deus. Há muito que fazer e não basta estar sempre a olhar para o céu (Lc 24, 46-53; Act 1, 6-11). A história da Igreja no mundo está aberta, é nosso encargo. Não nos deixou um manual de instruções do tudo previsto. Os que depois nos arranjaram, não satisfazem.
       Frei Bento Domingues, O. P.
       12.05.2013
       in Público

05 maio 2013

A DITADURA DO MEDO

1.Estamos na era do medo irremediável ou nas vésperas de "novos céus e nova terra", como canta o Apocalipse e que a liturgia continua a proclamar (Ap. 21,1-5)?
O medo, fruto da apreensão de um mal como ameaça eminente e à qual não se vê como resistir, pode ter várias causas e muitos rostos. Enquanto tal, é paralisante. O próprio Jesus, ao sentir-se ameaçado de morte pelo Sinédrio, deixou de andar em público entre os judeus (Jo 11,54).
Só quando venceu o medo dentro dele próprio, enfrentou o perigo, embora, em plena oração no Jardim das Oliveiras, tenha sido assaltado por extrema angústia. As mulheres foram as únicas que, depois do desastre, venceram o medo. Os discípulos viveram trancados, enquanto o Espírito Santo não os modificou até à raiz e abriu o seu judaísmo ao mundo pagão, ao mundo dos gentios. Isto não aconteceu sem um grande debate no Concílio de Jerusalém. É o tema da Missa de hoje.
Os Evangelhos, ao colocarem na boca de Jesus um repetido "não temais", dizem que não era a audácia que os animava.
O medo paralisa, o amor é criativo. É ele o mandamento novo, o mandamento da inovação. Onde abunda o amor desaparece o temor, diz S. João.
2. D. Manuel Martins tinha falado da ditadura do medo na sociedade portuguesa actual, devido ao desemprego crescente num modo avassalador: medo de perder o emprego, medo de não conseguir emprego, medo da miséria. A rendição a todas as condições de trabalho de empregadores sem escrúpulos, que nem sequer pagam a quem trabalha, foi denunciada pela Caritas, no primeiro de Maio. No mesmo dia, o Movimento Mundial dos Trabalhadores Cristãos lembrou algo de mais universal: a riqueza do mundo pertence, apenas, a 1% de privilegiados. Nos cinco continentes, há duzentos milhões de desempregados. O Papa Francisco alerta: "Quantas pessoas, em todo o mundo, são vítimas deste tipo de escravidão, na qual é a pessoa que serve ao trabalho, enquanto deveria ser o trabalho a oferecer um serviço à pessoa para que ela tenha dignidade. Peço aos irmãos e irmãs na fé e a todos os homens e mulheres de boa vontade uma decidida tomada de posição contra o tráfico de pessoas, no âmbito do qual está o "trabalho escravo".
Na Quaresma de 2010, ao pedir um gesto fraterno, Jorge Mario Bergoglio escreveu: estamos em risco! Como sociedade, acostumamo-nos, pouco a pouco, a ouvir e a ver a crónica negra de cada dia; habituamo-nos, também, a tocá-la e a senti-la à nossa volta sem que isso mexa connosco; produz, quando muito, um comentário superficial e descomprometido. A chaga está na rua, no bairro, em nossa casa; no entanto, como cegos e surdos convivemos com a violência que mata, destrói famílias e bairros; aviva guerras e conflitos em muitos lugares e olhamos para isso como mais uma imagem. O sofrimento de tantos inocentes deixou de nos incomodar, o desprezo dos direitos das pessoas e dos povos, a pobreza e a miséria, o império da corrupção, da droga assassina, da prostituição imposta e infantil passaram a ser moeda corrente sem realizarmos que, mais cedo ou mais tarde, teremos de pagar a factura (cf. Vida Nueva n.º 2.844 pg. 50).
Isto não é uma fatalidade. É assim, porque nós consentimos.
3. Segundo as narrativas da criação, de carácter poético, teológico e ético, o ser humano é uma criatura criadora, prodigiosa, mas também capaz da maior destruição. Não vale a pena recuar para qualquer mito de paraíso perdido. De facto, somos nós que, hoje, herdamos frutos da criação humana de milhares e milhares de anos e, também, da sua desfiguração. Somos responsáveis pelo nosso presente e pelo futuro. Compreender o que está a acontecer é a nossa tarefa de cristãos. No século XIX, Pio IX não compreendeu o sentido do mundo moderno. Fixou o olhar, apenas, no que julgava inaceitável e escreveu os anátemas do Syllabus.
Leão XIII (1810-1903) inaugurou a Doutrina Social da Igreja (DSI). Com João XXIII (1881-1963) e o Vaticano II, dá-se uma grande mudança nessa doutrina: passa-se do anátema ao diálogo. João Paulo II, que viajava pelo mundo deixando a Cúria à solta, preocupado com o comunismo marxista que tinha sofrido na Polónia e com os trágicos mal-entendidos acerca da Teologia da Libertação, vai dar outra viragem à DSI, afinal a doutrina social dos Papas. Situou-a no campo da teologia moral (A Solicitude Social da Igreja, n.º 41).
Qual pode ser o perigo deste modo de a interpretar? A DSI não pode cingir-se ao protesto, ao desejo, ao discernimento moral. Não pode deixar de ter em conta as mudanças provocadas pelas novas ciências e pelas tecnologias inteligentes, que alteram os próprios dados da questão social. É para essa nova realidade que Jeremy Rifkin, na sua obra A Terceira Revolução Industrial, chama a atenção.
Importa que a DSI passe a ser reelaborada com o contributo de especialistas das ciências sociais. Qual é o papel da Doutrina Social dos Papas nas Universidades Católicas e das investigações das Universidades Católicas na elaboração da DSI? Mas, para se poder chamar, com verdade, DSI tem de seguir a eclesiologia do Vaticano II (Lumen Gentium, 36 e a Gaudium et Spes). A Igreja é constituída pelas mulheres e homens que se reconhecem em Jesus Cristo. Todos juntos, não teremos medo.
Frei Bento Domingues, O.P.
5 de Maio de 2013