30 novembro 2014

Melhor do que a esperança é ser esperado

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Frei Bento Domingues, O. P.

1. Hoje é o primeiro Domingo do Advento. Mudou o cenário exterior das celebrações litúrgicas, quanto a paramentos, velas, textos e músicas. Estas modificações de ornamento só merecem atenção se exprimirem a urgência de um novo impulso na alma profunda da Igreja, isto é, dos cristãos, assim como nas reformas das instituições mais resistentes à mudança.
Tornou-se convencional dizer que o Advento convida à vigilância e à meditação, para entrar no misterioso sentido do tempo. Não apenas o que é medido pelo relógio e desfolhado nos calendários, no fluxo cósmico das estações, no ritmo biológico que vai dizendo o nosso desgaste inexorável. No entanto, como diz S. Paulo, não nos deixemos abater. Pelo contrário, embora o nosso aspecto exterior vá caminhando para a sua ruína, a nossa vida interior renova-se dia a dia (…) pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno (2 Co 4, 16-18).
A pergunta mais importante desta quadra litúrgica não é sobre as nossas experiências de outono da vida, mais chuvoso ou mais ameno. Poderia talvez ser formulada assim: qual é a graça regeneradora, para não aceitarmos - usando as palavras do Papa Francisco – que milhões de seres humanos, nossos irmãos, vegetem e morram com o estatuto de sobrantes e descartáveis

       2. Para a inteligência bem informada de história e antropologia, de profunda compreensão teológica e espiritual dos paradoxos da celebração do ano litúrgico – com analogias noutras culturas e religiões, de quem vai recebendo e rejeitando certas influências, - recomendo uma obra notável, de dimensões razoáveis, bebida nas melhores fontes e inspirada nos mestres mais inovadores, traduzida do espanhol e, inserida na colecção coimbrã “Para Viver”[1].
 Este livro, de José Manuel Bernal, não tem nada a ver com a abundante literatura de lugares comuns do ritualismo e do espiritualismo moralista ou das folhinhas e receitas do agrado da ignorância homilética. Pretende contribuir para que os pastores consigam organizar celebrações de qualidade onde seja possível uma profunda experiência do mistério transformante. Espero regressar a esta obra, sobretudo ao capítulo fundamental sobre os rituais sagrados da “regeneração do tempo”.
Falar do Advento é pensar no Natal. A. Cunha de Oliveira[2], sacerdote católico, dispensado do ministério, casado e notável exegeta da Bíblia, publicou uma obra minuciosa, erudita, volumosa, fundamentada e extremamente clara, cuja leitura é indispensável para quantos se interessam pela verdade, pelas lendas e mitos em torno do Natal. Não conheço nada de comparável, em português.    
O Natal significa que no cristianismo a salvação não se atinge pela fuga ou desprezo do mundo, embora seja essa uma das tentações que, periodicamente, o assaltam.
Foi inscrito, pela pena de S. Lucas, no devir da história universal, colocando a figura mítica de Adão como o primeiro antepassado de Jesus Cristo. No impressionante hino cósmico da Carta aos Colossenses, surge como princípio e sentido de todas as realidades, visíveis e invisíveis. No conhecido poema que abre o Evangelho de S. João, o Verbo eterno fez-se carne, fragilidade humana. Numa dramática poesia de S. Paulo (Fl 2, 6-11), Cristo é reconhecido como divino na suprema humilhação da cruz.
Como escreveu E. Schillebeeckx, O.P.[3], a história dos seres humanos é a narrativa de Deus. Fora do mundo não há salvação, neutralizando o nefasto e abusado aforismo: “fora da Igreja não há salvação”.
Recordo-me, como se fosse hoje, do espanto de muitos quando ele surgiu, no congresso internacional de teólogos dominicanos, em Valência (1966), a defender a obrigatória inclusão do mundo na lista dos clássicos “lugares teológicos”. 

3. A virtude do Advento é a esperança. Não pode ser a esperança de que haverá Natal, mas que este produza o renascimento da Igreja e do Mundo. Precisamos de voltar sempre às narrativas de S. Mateus e de S. Lucas chamadas, impropriamente, Evangelhos da Infância. Para o seu estudo remeto para o citado livro de Cunha de Oliveira. Se forem entendidas como lições de pura história ou de biologia, como tantas vezes acontece, fazem-nos perder a esperança de acreditar na verdade mais profunda do Novo Testamento: Jesus Cristo era em tudo igual a nós, excepto no pecado.
Quem melhor escreveu acerca desta virtude do Advento foi o poeta- teólogo, Charles Péguy[4]: O que me espanta, diz Deus, é a esperança./ E disso não me canso./ Essa pequena esperança que parece não ser nada./ (…) Que veio ao mundo no dia de Natal do ano passado./ (…) Ama o que será./ No tempo e na eternidade.
A esperança merece todos os elogios. Sem ela é impossível viver. Mas melhor do que esperar é ter a certeza de que somos desejados e esperados. Afinal é este o evangelho dentro do Evangelho, a célebre parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-31). Deus tem eternas saudades de nós.

Público, 30.11.2014


[1] José Manuel Bernal, O Ano Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001
[2] Natal: Verdade, Lenda, Mito, Instituto Açoriano de Cultura, 2012
[3] L´histoire des hommes, récit de Dieu, Cerf, 1992
[4] Os portais do mistério da segunda virtude, Paulinas, 2013

23 novembro 2014

Que rei é este?


Frei Bento Domingues, O.P.

1. A celebração litúrgica de Cristo Rei foi instituída por Pio XI, em 1925, com as monarquias em crise e as repúblicas em conflito com a Igreja Católica. Tornou-se, depois, a coroa do ano litúrgico que recomeça com o Advento, ritmando o infindável acontecer da graça divina – simbolizado na Liturgia - que atinge todos os tempos e lugares, como fonte de libertação das nossas servidões mentais e afectivas, antigas ou novas, materiais, culturais ou religiosas. Sem um programa libertário, o ciclo litúrgico anual dará a ideia do eterno retorno do mesmo.
Quem, por outro lado, desejar conhecer a história do Santuário Nacional de Cristo Rei, elevado, em Almada, a 113 metros acima do Tejo, pode recorrer às informações do Google. Mas com ou sem esse facilitador, abandone os preconceitos e suba ao miradouro mais abrangente sobre a deslumbrante e inesgotável beleza de Lisboa. Regale os olhos e medite no que o tempo faz às cidades e à nossa vida, entre a ruina e o contínuo renascer. Com passaportes dourados ou não, não deixemos privatizar as cidades de milenares gerações de povos e culturas. Que as mil formas de criatividade as tornem cada vez mais acolhedoras.
A simbólica bíblica de “Cristo Rei” implica a luta contra miragens de grandeza efêmera das dominações imperiais e a redescoberta de uma cidadania de acolhimento e serviço de todos, a começar pelos mais pobres, os sobrantes e descartáveis, na linguagem do Papa Francisco.

2. A escolha dos textos da liturgia deste Domingo é particularmente sugestiva [1] ao centrar-se no final do cap. 25 do Evangelho de S. Mateus, composto por três parábolas, que podem ser lidas em separado. Eu prefiro juntá-las num quadro de oposições paradoxais.
A primeira, muito vizinha da fábula da cigarra e da formiga – a das virgens loucas e das prudentes – retrata um mundo no qual ninguém dá nada a ninguém e a ocasião perdida é irrecuperável. A solidariedade favorece a imprevidência.
A segunda, a parábola dos talentos, parece consagrar a roda da sorte e das desigualdades na distribuição das oportunidades sociais. Quem muito tem, e esperteza, terá cada vez mais; quem tem pouco e calcula com medo de perder, até o pouco que lhe saiu, na arbitrária roleta da sorte, lhe será tirado.  
Moral da história: este mundo é das grandes empresas e dos bons gestores. Com os pequenos não adianta perder tempo; falta-lhes habilidade para sair da cepa torta.
Estas duas parábolas deixam os actores sociais à sua inteira liberdade e premeiam os mais aptos, como manda a lei da selecção natural. Não se entende como é que S. Mateus as deixou entrar no seu Evangelho. Não rimam nada com a mensagem de Cristo. Ao reagir assim, esquecemos a terceira parábola. Parece uma carta fora do baralho e, no entanto, é a que leva a tribunal as duas anteriores. Nessas combate-se a imprevidência e o desaproveitamento dos recursos e das capacidades de os fazer render. Parecem mais perto do capitalismo selvagem do que do Estado Social. De facto, falam de outra coisa, daquilo que o Papa Francisco não se cansa de lembrar: os sobrantes, os descartáveis. Estes não serão seres humanos? Não serão nossos irmãos?
É precisamente destes que trata a terceira e a mais solene das parábolas: o Senhor da História universal chama a contas o mundo inteiro. O que divide ou separa as pessoas e as julga é a atitude concreta que tiveram ou têm em relação àqueles que nada podem fazer por si mesmos.
A radicalidade religiosa da parábola e o último teste do sentido da vida, presente no desenrolar do mundo, espanta tanto os que procedem bem como os que procedem mal. Na hora da sentença, o juíz desta parábola identifica-se com aqueles que foram socorridos ou esquecidos: tive fome e deste-me de comer (ou não), estive doente e foste visitar-me (ou não) …
Ninguém se apercebeu que, no dia-a-dia, no serviço que prestou ou não, estava a tocar no que há de mais Absoluto, estava a servir ou a trair o próprio Deus. A causa de Deus e a causa do ser humano é a mesma. O segundo mandamento não se distingue do primeiro, um nunca anda sem o outro, haja ou não consciência disso.
Que rei é este que esvazia a solenidade divina e exalta a condição humana?

3. Conhecidos jornalistas alemães [2] do âmbito económico, não encontraram nenhuma alegria na Exortação Apostólica, Evangellii Gaudium, do Papa Francisco. Submeteram-na a fortes críticas e atribuem-lhe uma grande animosidade contra a economia de mercado e o capitalismo. Se Bergoglio quer diálogo é preciso contradizê-lo. O conjunto desses textos tenta arrasar as observações que o Papa faz sobre economia que mata e os remédios que aponta para combater a pobreza.
Pode ser que tenham razão, mas lembrei-me do Evangelho que inspira o novo Papa, mas que não beneficia muito os que o atacam: Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará outro ou se apegará a um e desprezará a outro. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro. Os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e zombavam dele. (Lc 16, 13-14)

Público, 23.11.2014



[1] Ez 34, 11-17; Sal 22; 1Cor.15 20-27; Mt.25,31-46
[2] Cf. Friedhelm Hengsbach, El Papa se equivoca- El Papa tiene razón, Selecciones de Teología, 212, 2014, pg 253-260

16 novembro 2014

Regresso à Barbárie?

Frei Bento Domingues, O. P.                                     

1. Voltaram, há dias, a interrogar-me, em tom de exame e desafio: se existe um só Deus – segundo o credo monoteísta – porque não se unem numa mesma religião judeus, cristãos e muçulmanos? Presume-se que Deus não possa estar em concorrência consigo mesmo.  

Como qualquer cristão, tenho de estar pronto a dar razão da minha esperança, com mansidão e sem arrogância, como recomendou S. Pedro (1Pr 3,15), mas não estou obrigado a ser ingénuo. A pergunta não abriga apenas pouca informação acerca da longa história dos chamados monoteísmos. Recomendo, no entanto, La bibliotheque de Dieu: Coran Evangile, Torah [1]. É uma biblioteca escrita e comentada por humanos durante muitos séculos. Nem sempre tem ajudado a pensar e a viver a aventura humana com esperança. A sua leitura fundamentalista foi e continua a ser usada, com demasiada frequência, para matar em nome de Deus. A teologia do diabo exige o recurso permanente ao poder económico, político e religioso (Lc.4,1-13). Os seres humanos sabem que sem poder bélico e o seu comércio, as guerras perderiam o encanto das conquistas. 

Dito isto, parece-me um abuso responsabilizar a divindade pelas configurações sociais das religiões, mesmo quando algumas gostem de exibir essa pretensão. Deus não é hindu, judeu, budista, cristão, maometano, baha’i, etc.. Se fosse Ele a ditar os escritos fundadores dessas religiões estaria, de facto, em concorrência consigo mesmo.

As explicações sobre a origem da religião estão confrontadas com um facto evidente: tanto o sentimento religioso como as suas múltiplas expressões têm um passado e um presente nos diversos povos e culturas. Podemos estudar as suas metamorfoses, recomposições e migrações, com ritmos diferentes de continente para continente, de país para país e mesmo dentro da mesma área cultural. Apesar de todos os fluxos de ateísmo, agnosticismo e indiferença religiosa, as previsões do seu apagamento definitivo estão cansadas.

Aquelas religiões que pretendem fundar-se em revelações divinas - e procuram justificá-las a partir dos seus textos fundadores - não têm a vida mais facilitada do que aquelas que as reduzem a fenómenos humanos de relação com o Transcendente. Os dois caminhos não se excluem.

2. Os seres humanos vivem no labirinto dos desejos, conscientes ou inconscientes, confrontados com enigmas e mistérios quer da natureza quer da sociedade. Como não se resignam à simplicidade de animais domesticados, têm de procurar o sentido e as formas culturais de viver como humanos, isto é, com dignidade e em instituições justas. A atitude religiosa desenvolve-se numa atmosfera de atenção “à importância misteriosa de existir” (F. Pessoa) e à necessidade de ter um eixo no qual tudo se religa.

       O pluralismo religioso é irredutível, mas se uma religião tiver a pretensão de ser a única verdadeira, divinamente garantida e que fora dela não há salvação, ficam todas sob ameaça ideológica de perseguição religiosa. Consentir na liberdade religiosa seria dar espaço ao erro e à sua nefasta difusão. O raciocínio é simples: apenas a verdade tem direitos; a nossa religião é a única verdadeira; as outras vivem e fazem viver no erro, logo não têm direito a existir.

Na Igreja Católica também se alimentou essa posição assassina ao ignorar que só as pessoas são sujeito de direitos. A Declaração “Dignitatis Humanae” sobre a liberdade religiosa só foi assinada, depois de várias formulações, no dia 7 de Dezembro de 1965, isto é, na conclusão do Concílio Vaticano II! Hoje, é a nossa glória e uma responsabilidade: fora do diálogo inter-religioso não há salvação.
 
Diálogo não pode ser um faz de conta. É um processo no qual os parceiros vão mudando, passando da hostilidade e da indiferença à mútua hospitalidade. Para derrubar as muralhas construídas ao longo dos séculos e construir pontes entre as religiões é preciso destruir os muros edificados nas mentalidades e nos afectos dos crentes. 

3. Paulo VI, na mensagem de Paz para 1971, não podia ser mais incisivo – repete, com uma voz nova que sai da nossa consciência civil, a declaração dos direitos humanos: “todos os homens nascem livres e iguais na dignidade e nos direitos, são todos dotados de razão e de consciência e devem comportar-se, uns com os outros, como irmãos”. A doutrina da civilização chegou até aqui. Não voltemos para trás.  

Esta declaração generosa dos Estados, depois de duas guerras estúpidas e monstruosas, ainda não era a voz de todos os povos, mas era o eco do Evangelho: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8) e com o método de aplicação da regra de oiro: “faz aos outros o que gostarias que os outros te fizessem” (Mt 7, 12). 

Se a doutrina da civilização chegou até aqui, como afirma Paulo VI, voltar atrás não seria regressar à barbárie?  

Público, 16.11.2014


[1] Cf. ver. “Lumière & Vie”, nº 255, 2002

09 novembro 2014

Este Papa é incorrigível

 Frei Bento Domingues, O. P.

1. Eu deveria observar algum tempo de jejum em relação ao estilo, aos temas e aos conteúdos das intervenções pastorais de Mario Bergoglio, mas não me apetece nada precipitar a Quaresma.

Não é, todavia, para o defender ou ceder à desnecessária apologia de alguém que precisa mais de seguidores do que de admiradores. Conheço a oração, “Senhor, ilumina-o ou elimina-o”, as acusações de ser “comunista” e de usar os métodos do “prec” na reforma da cúria, de abusar da noção de hierarquia das verdades e de estar a perder, por palavras, gestos e atitudes, a tradicional dignidade de um “verdadeiro” Santo Padre. Há quem discuta a legitimidade da sua eleição e não só.

Um liberal espanhol, Miguel Angel Belloso, publicou, no DN (31/10/14), um artigo intitulado “O diabo também mora no Vaticano”. Transcrevo alguns parágrafos significativos para não atraiçoar o pensamento do autor: “Depois dos felizes papados de João Paulo II e de Bento XVI, reencontrados com a economia de mercado e sensíveis ao efeito terapêutico do capitalismo sobre a pobreza, o Vaticano viu-se sacudido pelo vendaval Francisco”. (…) “Infelizmente o novo Papa não aprendeu nada [com a experiência Argentina], vem completamente contaminado de populismo e embebido da retórica infeliz da doutrina social da Igreja, para a qual os excessos e fracassos do socialismo são a consequência de erros bem-intencionados enquanto a fé no mercado é a expressão de algo parecido com um cataclismo moral”. (…) “Desde a sua primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium, até às suas reiteradas filípicas nas viagens apostólicas - a mais recente foi à Coreia do Sul -, Francisco não perdeu a oportunidade de fustigar os liberais, caricaturando o mercado como uma tirania em que vigora a lei do mais forte, na qual o ser humano é considerado como um bem de consumo e em que a ganância de poucos se satisfaz reduzindo o bem-estar dos demais. Estas premissas são claramente erros de vulto, demonstram uma ignorância elementar sobre o funcionamento da economia e um desprezo tremendo pelos resultados originados pelo sistema de mercado no progresso material dos povos”.

2. Se o autor já conhecesse o discurso do Papa aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares, reunido no Vaticano (27-29/10/14), ficaria arrepiado com as suas ousadias: “Este encontro de Movimentos Populares é um sinal, é um grande sinal: viestes colocar na presença de Deus, da Igreja, dos povos, uma realidade muitas vezes silenciada. Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela! Não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou pretextos. Também não estão à espera, de braços cruzados, da ajuda de ONG, de planos assistenciais ou de soluções que nunca chegam ou, se chegam, destinam-se a anestesiar ou domesticar. (…) Os pobres já não estão à espera, querem ser protagonistas: organizam-se, estudam, trabalham, reivindicam e, sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido ou, pelo menos, tem muita vontade de esquecer. 

“Solidariedade (…) é pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. Também é lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, de terra e de moradia, a negação dos direitos sociais e laborais. É enfrentar os efeitos destrutivos do Império do dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de vós sofreis e que todos somos chamados a transformar. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história e é isso que os movimentos populares fazem. Este nosso encontro não responde a uma ideologia. Vós não trabalhais com ideias. Trabalhais com realidades como as que eu mencionei e muitas outras que me contaram… têm os pés no barro e as mãos na carne. Têm cheiro de bairro, de povo, de luta! Queremos que se ouça a sua voz, que, em geral, se escuta pouco. Talvez porque desagrada, talvez porque o seu grito incomoda, talvez porque se tem medo da mudança que reivindicam, mas, sem a sua presença, sem ir realmente às periferias, as boas propostas e projetos que frequentemente ouvimos nas conferências internacionais ficam no reino da ideia”.

3. Pelo que se pode observar, nesse longo discurso, os ataques e as farpas que lhe chegam do mundo dos poderes económicos, políticos e religiosos, longe de o intimidar só lhe mostram o que ainda falta fazer por todo o género de excluídos.

Nesse discurso, ao deparar com a expressão, “Digamos juntos”, pensei que estava a iniciar uma prece comunitária. E estava. Só não era a mais habitual na boca de um Papa: “Digamos juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”.

Ao ritmar “terra, teto e trabalho”, no primeiro Encontro Mundial de Movimentos Populares, a ladainha do Papa, de facto, não é a de um ideólogo do capitalismo.

Público, 9. Novembro. 2014

02 novembro 2014

Eu já não acredito no Papa Francisco (2)

Frei Bento Domingues, O.P.

1. O título da crónica do Domingo passado – Eu já não acredito no Papa Francisco - foi censurado por uma razão óbvia: o título tem de exprimir o conteúdo do texto. Ora, o meu artigo era um elogio do pontificado do papa Bergoglio e uma convocatória para não o deixarmos só, no momento em que é acusado de instalar o “PREC”, na Cúria Romana. Texto e título estão em mútua oposição. Aceito e agradeço o reparo.

Além disso, o emprego corrente da expressão - “eu já não acredito” – revela um desapontamento, uma decepção com o Pontífice romano, observável em diferentes quadrantes: para uns, ele já foi longe demais; para outros, ao ser demorado na reforma da cúria, será ela a tornar impossível continuar a obra começada. Ao espelhar esta situação, visava algo muito diferente que insinuei, na última linha, sem mais explicações.

Vamos, então, à substância. Não sou católico por causa do Papa Francisco, cujo projecto e práticas me dão muita alegria, não podendo dizer o mesmo de todos os que conheci, mas nunca poderei esquecer a minha dívida a João XXIII.

Causam-me sempre bastante tristeza os desabafos das pessoas que deixam de “ser católicas” devido a certas posições da hierarquia eclesiástica. Nessas alturas, lembro-me da reacção do Padre Chenu, quando, em meados do século passado, louvaram a sua “obediência”, em vez de revolta contra as condenações romanas a que fora submetido. Escreveu um texto para dizer que não se tratava de obediência: foi e é a fé sobrenatural em Jesus Cristo, que recebi na Igreja, mas que não é propriedade de nenhuma instituição humana ou religiosa, que me sustenta.

Chenu, grande medievalista e renovador do conhecimento histórico de Tomás de Aquino, lembrava que, para este teólogo, o terminal do acto de fé não são os enunciados do Credo, mas a misteriosa realidade divina. Estes são apenas mediações para o encontro com a Verdade (II-II, q.1.a.2 ad 2). Para S. Tomás, a fé teologal refere-se à própria realidade de Deus e não a uma criatura, como por exemplo a Igreja. Por isso, no Credo, quando se diz creio na Santa Igreja Católica, esta expressão deve ser entendida como referida ao Espírito Santo. Daí que seria preferível dizer simplesmente: creio no Espírito Santo que santifica a Igreja (II-II, q.1.a.9).

Trazer para aqui estas subtilezas parece uma tentativa para ignorar os debates actuais em torno da fé cristã e dos seus problemas, num contexto que oscila entre o ateísmo, o fideísmo e as espiritualidades à la carte, mais ou menos bem adocicadas.

2. A seguir à 2ª Guerra Mundial, certas correntes teológicas tentaram responder à seguinte questão: que sentido tem, para a construção do Reino de Deus, o trabalho e o lazer em que gastamos a maior parte do nosso tempo? Desenvolvia-se, então, a teologia das realidades terrestres e do sentido da construção da História Humana. Desejava-se viver o Cristo todo na vida toda. Os próprios padres deixavam a sacristia e iam para as fábricas aprender o que custava a vida dos trabalhadores. Dizia-se que estava mal, porque mãos consagradas e dedicadas a levantar a Hóstia na missa não se podiam manchar no óleo e na ferrugem. Nenhum trabalho, porém, era incompatível com as mãos daqueles e daquelas que o Baptismo consagrou. A “teologia do laicado” foi superando os limites da teologia da Acção Católica. O Vaticano II, na Gaudium et Spes, assumiu as dimensões incarnacionistas da fé cristã: um futuro de justiça e de paz para todos não é uma loucura. É uma tarefa! A fé é uma esperança que revela uma dimensão que a razão esquece e reprime: o horizonte dos seres humanos não se limita à sua condição mortal. O futuro não é apenas o resultado das nossas acções e do sacrifício de gerações inteiras, para que aconteça um mundo em que se possa viver. Este futuro seria um engano para todas aquelas e aqueles que foram escravos da construção daquilo que nunca poderão ver nem gozar. Só a memória infinita do Amor por cada ser humano pode vencer a vala comum.

3. No dia consagrado a não esquecer aqueles que já encontraram a Casa da Alegria, lembro o poema de Frei J. Augusto Mourão, escrito para uma música muito bela que se canta no Convento de S. Domingos:

  Não pode a morte reter-me na cruz. Não pode o mundo arrancar-me à raíz. Ao pé de Deus hei-de sempre viver. Com Deus cheguei e com Ele vou partir.
  Não poderá corromper-se a alegria. Não pode o fogo extinguir-se no céu. Meu ser demanda a morada do Deus que guarda os nomes no livro da vida.
  Não pode a morte apagar o desejo de ver a Deus face a face e viver. A Deus busquei toda a vida e vivi de acreditar no infinito da vida. Não nos reduz o escuro da noite.
  Não pode o amor esquecer o que o altera. Já ouço a voz do Senhor, Deus dos vivos. Já ouço a voz do amigo que vem.
  Não pode o mar esquecer o que o salga. Não pode a areia esquecer-se do mar.
  Meu Deus, meu Deus, vem buscar-me ao deserto. Que em tuas mãos entreguei a minha sede. A Tua vida me toma e transporta. Teu sangue inunda meu corpo de paz. Eu vejo as mãos do Senhor glorioso. Nas minhas mãos a memória de Deus.
  A Ti, Senhor, meus desejos regressam. Findo o andar, disponíveis as mãos. Abre meu corpo ao devir que não sei. Eu chamo a esperança pelo nome de Deus.

Público, 02.11.2014