24 fevereiro 2013

O PAPA NÃO É A CABEÇA DA IGREJA

1. Quando a anormalidade se torna normal, o reencontro com a mais pura normalidade surge como algo de extraordinário. É certamente essa secular situação que explica o espanto, ora sincero ora fictício, diante da clarividente renúncia de Bento XVI. Além disso, as canonizações rituais dos titulares de certas funções na Igreja e a intensa promoção do culto da personalidade acabam por se exprimir numa beata retórica de finados: “Que iria ocorrer agora? Como continuaria sem ele o Ano da Fé?”
É precisamente porque estamos no chamado Ano da Fé, que importa não a desfigurar com expressões ridículas resvalando para a idolatria. Os católicos sabem que o Papa não é a Igreja, nem a cabeça da Igreja e que a si próprio se designa como “servo dos servos de Deus”. Como diz S. Paulo, seguindo a verdade no amor, cresceremos em tudo em direcção Àquele que é a cabeça, Cristo; Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo, a plenitude daquele que plenifica tudo em todos (Ef. 4, 15; 1, 22-23 e par.).
O apóstolo escolheu e usou estas imagens para que ninguém, na Igreja, pretenda substituir Jesus Cristo, fundamento da unidade eclesial na pluralidade dos seus carismas, por qualquer culto idolátrico. Como os papas não são sucessores de Cristo, é de elementar decência teológica denunciar qualquer expressão de papolatria.
2. S. Tomás de Aquino teve o cuidado de lembrar que o terminal da Fé cristã não é o articulado do Credo, fruto das Igrejas cristãs, mas o próprio Mistério de Deus e, por isso, acrescentou que, em rigor, nem sequer é na Igreja que acreditamos, mas no Espírito Santo, que santifica a Igreja (Cf. ST II-II q. 1 a 1 ad 2; a. 9 ad 5).
Seria, no entanto, abusivo concluir: se o que importa é o Espírito Santo, então não se preocupem nem com a qualidade humana e espiritual da hierarquia eclesiástica, nem com as formulações da fé cristã. Deus providenciará!
Um tal sobrenaturalismo seria uma ofensa à própria teologia de Tomás de Aquino. Bento XVI, no dia 27 do mês passado, véspera da festa deste santo, aludiu a uma das suas mais ousadas buscas de harmonia, embora carregada de tensões, sobretudo em momentos de grandes viragens culturais: a fé cristã não eclipsa a razão; oferece-lhe até, no seu interior, uma nova paisagem e novos campos de investigação. Como diz no seu hino eucarístico, de poética modernidade, quantum potes tantum aude (atreve-te quanto puderes).
A graça não substitui a natureza, nem a natureza dispensa a graça do infinito amor. Importa derrotar as representações que substituem uma tensão existencial por uma persistente rivalidade: se damos muito a Deus, roubamos o ser humano, se concedemos muito ao ser humano, roubamos a Deus. Yves Congar, no diagnóstico da situação religiosa dos anos 30 do século passado, escreveu de forma lapidar: a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião. Jesus Cristo é a radical superação desta rivalidade. Ele incarna a abertura humana ao Mistério de Deus e a abertura divina ao Mistério do Mundo. O encontro da finitude humana, do não divino, com a infinita profundidade divina, faz parte da identidade cristã.
3. Como escreveu E. Schillebeeckx, um dos grandes teólogos do séc. XX: não existe automatismo da graça. Os católicos acreditam que o Espírito de Cristo actua no mundo, na vida da Igreja e na acção ministerial das suas lideranças, mas também sabem que o povo crente e, dentro dele, a hierarquia eclesiástica podem, de diversas formas, acolher ou recusar os dons do Espírito. Quem não está atento à multiforme mediação eclesial da acção do Espírito Santo - porque supõe que goza do monopólio da verdade - acaba por se subtrair à sua influência.
Sempre que o magistério oficial deixa de estar atento às diversas instâncias de mediação que estruturam, o povo cristão corre o perigo de não escutar os reais apelos do Espírito de Deus. Quem ignora estas mediações sucumbe à tentação do facilitismo ou da negligência e torna-se vítima de cegueira e de surdez ideológicas.
Um apelo do Magistério ao Espírito Santo, sem ter em conta as mediações eclesiais, informando-se cuidadosamente antes de assumir as suas próprias responsabilidades, é um apelo em vão. Retirar-se para escutar os murmúrios do Espírito é, sem dúvida necessário, mas não basta nem dispensa o estudo das situações concretas de um mundo em mudança. A omnipresença do mistério da graça não suprime, automaticamente, a presença do mistério da iniquidade na história do mundo, das religiões e das Igrejas cristãs, no passado e na actualidade.
O Estado do Vaticano não é a Igreja Católica. Na opinião pública, até parece que sim. As frequentes narrativas sobre a corrupção e o crime organizado que afectariam algumas das suas instâncias exigem uma informação limpa, acerca de tudo o que vem minando a sua credibilidade e a do papado. As comunidades católicas, espalhadas pelo mundo, têm direito a essa informação. Não se pode esquecer que sem ética, as invocações místicas são mistificações. O Vaticano só se justifica como instrumento de liberdade da missão da Igreja. Atraiçoa-se quando se deixa dominar pelo carreirismo e por endeusados negócios de banqueiros, nas suas vertigens criminosas.
Poderemos esperar uma gestão mais democrática da Igreja?
Frei Bento Domingues, O.P.

          in Público

23 fevereiro 2013

A FREIRA QUE PARTIA PRATOS

Alguma gente diz que na Bíblia há de tudo e que, por isso, ela serve para tudo. Feitas as contas e estando as contas bem feitas, com tanta gente que por lá anda e durante tantos séculos, é normal haver nela muitas coisas. Não devem é ser usadas fora do seu contexto. Na Bíblia até de pratos se fala: de ouro, de prata, muitos, raros, para usos sagrados ou profanos, para bem e para mal. Por exemplo: um dia nasceram dois rapazes gémeos e o que vinha em segundo lugar agarrou-se à perna do primeiro inconformado com a sua posição. Uma mãe extraordinária, Rebeca, ajudou a configurar essa atitude na vida de adultos. Num fugaz momento de muita fome, um prato de lentilhas pareceu ao primeiro um manjar que valia bem o lugar destacado que ocupava. Foi, pois, com todo o prazer que Esaú cedeu o seu lugar de primogénito a Jacob em troca de uma comidinha fumegante (Génesis, 25). A fome é lixada! Foi também a um prato que foi parar a cabeça de João Baptista quando a perdeu por causa de um comportamento escandaloso que ele achava intolerável (Mateus 14). E em Marcos 14, Jesus identifica aquele que o vai trair como ”um dos Doze, que se serve comigo do mesmo prato”. Pela descrição da cena parece que todos desconfiavam que havia outros capazes de fazer o mesmo. Talvez todos, como nós.  
A freira que partia pratos também tinha as suas razões bíblicas. Alegre, amável, frontal, procurava em cada dia ter uma convivência humana pautada pela verdade e por atitudes solidárias. Uma razão razoável para se irritar visceralmente com alguns pecados capitais como a inveja, a soberba, a avareza. Depois de muitos esforços num combate inglório contra esses sentimentos próximos de si, decidiu atacar naquilo que dói a quem é pertinaz nesses modos que envenenam o relacionamento humano. Disse: de hoje em diante, sempre que vir atitudes dessa natureza parto um prato. Assim aconteceu: um dia ouvi a música de uma tigela, deixada cair como que por descuido, com todas as notas da escala musical, incluídos sustenidos e bemóis. O silêncio, tal como os impostos, era enorme. Cheguei a convencer-me que talvez o método resultasse, mas a natureza humana é ainda mais lixada que a fome. É por isso, aliás, que esta existe. A um dado momento apercebi-me de que a atitude daquela freira produzia um novo pecado: a acídia. Esta, trocada um dia pela preguiça, que me parece mais um pecado capitalista que capital, revela-se no azedume, no ressentimento, numa profunda compressão da alma. 
Já passou algum tempo depois desses acontecimentos e ainda não perguntei pelo êxito daquela irmã que, pedagogicamente, às vezes partia um prato. Mas para quem é tacanho, invejoso ou arrogante talvez o som de um prato a partir-se não seja uma melodia muito agradável. A vida humana deveria ser um banquete com pratos para todos os gostos, servidos numa convivência amável e fraterna. Não sendo assim, é preferível partir a loiça e pôr as coisas em pratos limpos. E quando se confunde a grandeza com o ser grande, cabe dizer com F. Pessoa: “Raios partam a vida e quem lá ande!...”.
Frei Matias, O. P.
         Fevereiro 2013

20 fevereiro 2013

LIMPEZAS DE FUNDO NA IGREJA


Em obras de reestruturação, em grandes limpezas de Primavera, é assim este tempo quaresmal em que a Igreja Católica se encontra. De cima a baixo, está tudo em mudança, desde o Papa aos simples leigos; os 40 dias de preparação para a Páscoa, neste ano, têm um sabor muito especial. O Santo Padre renunciou ao cargo de Sumo Pontífice, num gesto corajoso e lúcido, dada a sua frágil condição de saúde devido à idade.
Cada cristão tem também de avaliar as suas renúncias pessoais bem como os motivos que as sustentam. Renunciar por exemplo aos nossos poderes pequeninos que nos enchem o dia-a-dia e nos tiram espaço para seremos pessoas livres e plenamente humanas.
Renunciar, sem mais, como jejuar, orar, ou partilhar os bens materiais, só tem sentido se for uma espécie de ascese para ganhar espaço interior para viver melhor o mandamento novo. Esse é o objetivo, para chegar lá são precisas mediações, os instrumentos que a tradição e o magistério eclesial nos dão são apenas meios de chegar mais facilmente a esse fim.
Temos por vezes tendência para tomar os meios como fins e assim perdemos facilmente o norte, sacralizando de tal modo a Igreja que quase esquecemos que ela existe por causa de Jesus e da dureza dos nossos corações, como diz o texto bíblico.
O culto da personalidade que rodeou os dois últimos Papas, numa mediatização enorme, fez muitas vezes ofuscar a mensagem que eles anunciavam. Perdido o apelo a uma vida outra, na voragem dos grandes acontecimentos de massas onde a emoção do momento supera a dureza de uma racionalidade exigente, informada pela fé cristã. A forma destes encontros deforma muitas vezes a lenta semente que germina no coração de cada crente e que não se compadece de mediatismos histriónicos. A aparente normalização do catolicismo no formato romano promovido por este tipo de exercício do múnus petrino corre o risco de cilindrar as saudáveis diferenças e divergências que tornam a comunidade eclesial saudavelmente plural e dinâmica.
A ideia falaciosa de que há unicidade na unidade da confissão da fé faz uma lamentável confusão entre planos; entre o fundamento dogmático, veiculado pela unidade de um mesmo Credo, e o plano dos modelos eclesiológicos e pastorais que longe de uma unicidade de figurino único se revelam numa plural amplitude que visa abarcar as sociedades e as vidas concretas dos crentes.
Conduzir a barca de Pedro implica ter consciência e forças para ser um ponto de referência para todos, na singularidade dos percursos pessoais e eclesiais, respeitando que o sopro do Espírito não sopra só em Roma mas insufla dinamismos vários em todo o Povo de Deus.
Desta vez somos confrontados com a situação de que a Igreja precisa de reequacionar a função de Pedro como sinal da unidade da fé em Jesus Cristo que os católicos professam e de modo mais geral e ecuménico, de interpelação aos cristãos de todas as confissões.
A metáfora da casa em obras, em limpezas de fundo, mostra bem que é preciso deitar fora o lixo acumulado, arranjar os telhados que metem água, varrer o pó que enche os cantos e se esconde debaixo dos tapetes. Arejar, enfim, e alterar a ordem habitual das coisas…
Um bom começo será dar uma boa varredela nos poderes mais ou menos ocultos da Cúria Romana e das estruturas do Estado da Santa Sé, que tendem a monopolizar a estrutura eclesial tornando-a apenas eclesiástica e burocrática. Um poder, eufemisticamente chamado serviço, exclusivamente masculino, constituído por idosos celibatários que vivem, quais peixinhos no aquário de águas cálidas, bem longe dos problemas quotidianos das famílias e que têm a ousadia de dizer de cátedra como se deve viver, que Bispos se devem nomear, que Papa se pode escolher entre o restrito número de Cardeais, sendo que que o mais das vezes são oriundos do tal aquário mesmo se a pele for de outra cor menos predominante…
Precisamos de uma novo processo de escolha do Santo Padre, de um sistema muito mais Sinodal que faça emergir os diferentes carismas que se escondem no seio da pluralidade da vida eclesial, para, a partir desta multiplicidade, se escolher quem melhor pode desempenhar o encargo de liderar a barca de Pedro, sinal de comunhão e referência interna e externa num mundo em que os profetas são raros e preciosos.
Numa sociedade globalizada, de comunicação e informação rápida, não é difícil conseguir uma outra forma ágil e leve de rede que sustente a eclesialidade. Poderemos então arrumar as estruturas herdadas do Império Romanos e da Idade Média!
Na fase actual, em que a Igreja procura um sucessor para Bento XVI, a esperança de que surja a surpresa de alguém que saiba pegar numa vassoura e varrer o que a História deixou acumular e não é mais necessário, é essencial para retomar a dinâmica do “aggiornamento” que o Concílio Vaticano II começou e falta actualizar meio século depois. Esse é um dos desafios que o novo Papa terá que enfrentar.
Como exercer o serviço à comunidade dos crentes que é a cátedra de Pedro? Como deve ser escolhida a pessoa que desempenha este ministério? Que se pode dizer da primazia do Bispo de Roma? Enfim, um conjunto relevante de questões que de momento concentra a atenção não só o mundo católico, mas de muita gente atenta aos desenvolvimentos do que se passa no Vaticano.
Questões que não são novas, ambos os últimos Papas as referiram nos respetivos pontificados bem como vários teólogos o fizeram. São problemas inevitáveis que urge resolver e estão para lá da gestão corrente dos escândalos seja os “Vatileaks”, a pedofilia no clero ou a banca vaticana IOR; questões que têm que ser resolvidas também evidentemente.
Ora o desejo de mudança, de metanoia ou conversão, é um caminho pré-pascal que cada cristão trilha individualmente, ao longo da Quaresma, mas é também um percurso que a comunidade cristã se propõe viver conjuntamente e neste caso com os olhos postos no fumo branco da Capela Sistina, assim Deus nos ajude!
AFF
20/02/2013

17 fevereiro 2013

DE GUIONISTA DE JUAN PABLO II A PROTAGONISTA


Cuando el teólogo Joseph Ratzinger fue nombrado arzobispo de Munich en 1977 tuvo que abandonar el ejercicio de la teología. Él mismo lo confesaba: Me estaba enfrentando a dos grandes proyectos (teológicos), ninguno de los cuales sería después realizado a causa de mi nombramiento episcopal… No estaba llamado a terminar esta obra. En efecto, apenas estaba empezándola, fui llamado a otra misión”.
A comienzos de la década de los 80 se hacía cargo de la Congregación para la Doctrina de la Fe y, durante casi un cuarto de siglo, fue el guionista de la obra teatral que representó Juan Pablo II durante su largo pontificado con notable éxito en todos los escenarios: nacionales e internacionales, políticos y religiosos, sociales y culturales. El guión está escrito en el Informe sobre la fe, que recoge la entrevista del periodista Vittorio Messori al cardenal cuando era presidente del ex Santo Oficio, que se abre con dos citas periodísticas de perfiles contrapuestos del mismo personaje: Una: “Un típico bávaro, de aspecto cordial, que vive modestamente en un pisito junto al Vaticano”. Otra: “Un Panzer-Kardinal que no ha dejado jamás los atuendos fastuosos ni el pectoral de oro de Príncipe de la Santa Iglesia de Roma”. ¿Cuál de las dos ha prevalecido durante su pontificado? Yo creo que la segunda.
En el libro-entrevista mostraba su desencanto ante “las exageraciones (posconciliares) de una apertura indiscriminada al mundo” y “las interpretaciones demasiado positivas de un mundo agnóstico y ateo”, y proponía como alternativa un programa de restauración que recuperara el equilibrio de los valores en el interior del catolicismo y excluyera la reforma: “La Iglesia  de hoy –afirmaba citando a Juan Pablo II- no tiene necesidad de nuevos reformadores. La Iglesia tiene necesidad de santos”. Y entre tales colocó a su predecesor el 1 de mayo de 2001 elevándolo a los altares como beato. Era un mensaje contrario al Concilio, que había defendido la reforma de la Iglesia. Ratzinger expresaba su confianza en los nuevos movimientos eclesiales de tendencia conservadora, y, algunos, integrista: “Movimiento carismático, Comunidades Neocatecumenales, Cursillos, Movimientos de los Focolaris, Comunión y Liberación”. Durante su pontificado ratificó dicha confianza. Se olvidaba de las comunidades eclesiales de base, los movimientos apostólicos de la Acción Católica, las Congregaciones religiosas fieles al Vaticano II y comprometidas con los empobrecidos, etc.
Tras la muerte de Juan Pablo II, los cardenales, interpretando la voluntad de Juan Pablo II, eligieron papa al cardenal Ratzinger, quien pasó de guionista a actor e intérprete de su propio texto. En la misa de apertura del Cónclave reescribió su programa en un memorable discurso contra la dictadura del relativismo, que hizo perder las esperanzas de cambio y apertura en el nuevo pontificado.
Durante los casi 8 años de gobierno, Benedicto XVI ha sido fiel al guión que escribiera años atrás, sin desviarse un ápice, y si lo ha hecho ha sido para virar hacia el integrismo. Efectivamente, todo lo que no se atenía a su programa restaurador era considerado relativismo y condenado: la teología de la liberación, la teología del pluralismo religioso, la teología feminista, la teología moral renovada, incluso la teología del concilio Vaticano II, numerosas Congregaciones religiosas, sobre todo femeninas, defensoras del sacerdocio de la mujer, etc. Ha seguido excluyendo a las mujeres de los ámbitos de responsabilidad. Ha roto los puentes de diálogo con las religiones, con el islam en el discurso de Ratisbona y con las comunidades indígenas en sus viajes a América Latina y África. Cuando le estallaron en las manos los grandes escándalos, como la pederastia, las intrigas vaticanas, la corrupción instalada en la cúpula de san Pedro, no fue capaz de darles la respuesta adecuada. Lejos de estar abierto a los desafíos de nuestro tiempo, dio respuestas del pasado a preguntas del presente. Lejos de caminar por la senda del diálogo, optó por anatema. Se equivocó de siglo.

Juan José Tamayo*

*Juan José Tamayo é professor da Universidad Carlos III de Madrid

VENHA O NOVO PAPA

1. O Código de Direito Canónico (Cân.401) reza assim: roga-se ao Bispo diocesano, que tiver completado 75 anos de idade, que apresente a renúncia do ofício ao Sumo Pontífice. O Cardeal Ratzinger, quando foi eleito Papa, isto é, Bispo da diocese de Roma, testemunha da fé apostólica de Pedro e Paulo, em comunhão e ao serviço dos Bispos das outras dioceses da Igreja Católica, já tinha 78 anos. Quanto à idade, um Bispo diocesano merece mais cuidados do que um Papa, que tem uma responsabilidade muito mais ampla e pesada.
O alarido em torno da renúncia de Bento XVI, deve-se à estranha ideia de que ele desempenhava um cargo vitalício. A possibilidade de um Papa renunciar está prevista no Direito Canónico (Cân. 332 § 2). O próprio Bento XVI, em 2010, mostrou que poderia vir a ser confrontado com essa situação: “Quando um Papa tem clara consciência de que já não está em grau de cumprir os deveres do seu ofício, física, psicológica e espiritualmente, tem o direito, e em algumas circunstâncias, também o dever, de se demitir”.
Muitos de nós fomos testemunhas das dificuldades físicas que João Paulo II enfrentou, durante anos, ao não atender a esse critério. É certo que foi encontrada, para uso interno, uma “mística da imolação” pelo bem da Igreja, que convenceu apenas os já convencidos. Era demasiado evidente que ele já não se encontrava em condições de responder às enormes carências e responsabilidades da Igreja no século XXI. A falta de atenção aos sintomas de uma certa degradação, em determinados ambientes eclesiásticos e na Cúria Romana, assim como a persistência do sistema de abafar as vozes discordantes, acabaram por adiar uma reforma que se mostra cada vez mais urgente.
2. Em 1999, durante o Sínodo Internacional dos Bispos, convocado por Wojtyla, para analisar a Europa, após a queda do Muro de Berlim, o então Arcebispo de Milão, Cardeal Martini, surpreendeu os outros padres sinodais, ao evocar o "sonho" de um novo Concílio que tivesse a coragem de discutir os problemas mais espinhosos: "A eclesiologia de comunhão do Vaticano II", a carência já dramática de padres, a posição da mulher na Sociedade e na Igreja, a participação dos leigos em algumas responsabilidades ministeriais, o tema da sexualidade, a disciplina católica do matrimônio, o ecumenismo e as relações com as Igrejas irmãs da Ortodoxia.
Era essa uma agenda crucial, que os Papas Wojtyla e Ratzinger nunca tiveram coragem de enfrentar, mas à medida que o tempo passa, tudo se vai complicando de forma dramática.
Bento XVI espelhou a situação, subjectiva e objectiva em que se encontra: “Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado.”
3. Até à eleição do novo Papa, vão surgir muitas projecções, dentro e fora da Igreja, segundo os grupos e as tendências, acerca das possíveis figuras, desejadas ou não, para ocupar a cátedra de Pedro. Muito em breve, a lista dos papabili, ao ritmo do sobe e desce, irá circular e cada um poderá ir construindo também a sua. Bento XVI já balizou o espaço no qual os eleitores se devem mover: “procurar alguém que perceba o ritmo deste tempo de rápidas mudanças e seja capaz de identificar quais são as questões, de grande relevância para a vida da fé, no governo da barca de S. Pedro e no anúncio do Evangelho”. Para esta tarefa, a assistência do Espírito Santo está divinamente garantida, mas Ele não costuma agir sozinho, nem substituir o discernimento dos eleitores.
A graça não substitui a natureza e sendo assim, o importante é garantir um método de eleição, humanamente fiável, no interior da vida da Igreja, cujas preocupações têm de ser as de Cristo. Para governar a barca de Pedro, além de comprovada capacidade de liderança espiritual, cultural e pastoral, o Papa deve mostrar, sobretudo, um grande gosto de escutar e de consultar, não só os seus irmãos no episcopado, mas sobretudo a vida concreta das pessoas, dentro e fora das comunidades cristãs, em diálogo com todas as correntes que atravessam as sociedades. Em todo o caso, o Papa, Bispo de Roma, não deveria poder ser escolhido por tempo indeterminado, nem ultrapassar a idade de 75 anos, aquela que está marcada para todos os Bispos. A Igreja não pode ser uma monarquia absolutista e vitalícia.

Frei Bento Domingues, O.P.
in Público

16 fevereiro 2013

Mulheres e não Mulher

Retomo o tema das mulheres como Igreja e na Igreja, servindo-me de um texto meu incluído no livro de homenagem ao Frei Bento Domingues O.P. (Frei Bento Domingues e o Incómodo da Coerência, coord. Maria Julieta Mendes Dias, Paulo Mendes Pinto, Prior Velho, Paulinas, 2012).  Mulheres e não Mulher, pois essa parte da humanidade desdobra-se numa multidão de pessoas do sexo feminino, de diferentes idades, cultura, experiências, heranças, histórias. Cada uma de nós um ser individual, criado por Deus, como nos ensinam as Escrituras, mulheres e homens com igual dignidade.

Igreja, Povo de Deus, mulheres e homens, Corpo Místico de Cristo, ou seja nós, a trabalhar nas tarefas da fé, procurando ser fiéis ao Caminho, à Verdade e à Vida. Mulheres e homens, em busca, amando e pecando. Igreja também com outro significado – instituição com hierarquia e estruturas organizativas.

Renovação que não é de hoje. Começou com Jesus Cristo há dois mil anos, porque o Povo de Deus está sempre à procura do caminho, numa atitude de expectativa e de inquietude, olhando para Aquele que introduziu paradigmas completamente dispares em relação ao status quo. Busca da renovação colectiva e pessoal daquelas e daqueles que querem seguir Jesus. Renovação, que também implica humildade e atitudes não simplistas. A minha proposta é a seguinte: nós que somos Igreja necessitamos de tirar todas as consequências da igualdade fundamental das mulheres e dos homens, se quisermos ser fiéis a Deus e a Jesus Cristo.
É sobre três pilares que assenta essa igualdade de base: na teologia, na tradição, e na hermenêutica. No próximo mês olharei para a teologia.

Ana Vicente
Fevereiro 2013

10 fevereiro 2013

AS RELIGIÕES NÃO SÃO TODAS IGUAIS

1. Na polémica com os liberais, o católico ultramontano, Louis Veuillot (1813–1883), assumiu uma posição que ficou célebre: “quando estou em situação desfavorável, em nome dos vossos princípios, exijo a liberdade; quando estou em posição forte, em nome do meu antiliberalismo, nego-vos a liberdade”.
 Lembrei-me desta estranha ética, a propósito do modo como os cristãos são maltratados em muitos países muçulmanos - na China é pior - e das exigências dos seus imigrantes, nomeadamente na Europa, em nome da liberdade religiosa e da afirmação da sua identidade cultural, no espaço público.
A grande imigração islâmica, quando é acompanhada ou infiltrada por líderes fundamentalistas, não se contenta com a liberdade reconhecida a todas as religiões. Ameaça todos aqueles que, usando a liberdade de expressão nos países democráticos, se atrevem a questionar o Corão, os símbolos e as personagens do Islão.
 A Noruega não parece disposta a aceitar a chantagem terrorista. O governo norueguês aceita a construção de mesquitas no seu território. Não admite, porém, que a Arábia Saudita e os seus homens de negócios entrem com milhares de milhões para financiar esplendorosas mesquitas e continuem a impedir a construção de igrejas cristãs, no seu país. Exige reciprocidade.
 O ministro dos negócios estrangeiros da Noruega, Jonas Gahr Stor, levará esta exigência ao Conselho da Europa. Para ele, seria um paradoxo e anti-natural aceitar essas fontes de financiamento de um país onde não existe liberdade religiosa. A aceitação deste dinheiro seria um contra-senso, pois nesse país árabe é proibida a construção de igrejas de outras religiões. As comunidades religiosas têm direito a receber ajuda financeira, mas o governo Norueguês, excepcionalmente e por razões óbvias, não aceitará o financiamento islâmico de milhões de Euros.
Dir-se-á que esta posição ainda não saiu do Antigo Testamento, “olho por olho, dente por dente”, mas o ministro Stor não joga no campo religioso. A sua intervenção situa-se no plano político, com meios políticos, a favor de um mínimo de justiça.
Confundir, porém, as correntes fundamentalistas com a totalidade das práticas islâmicas, é um erro com consequências graves para a paz mundial e não ajuda a encontrar o caminho para a defesa da liberdade religiosa, em todos os países e no comportamento interno de todas as religiões. O Concílio Vaticano II, ao realizar uma dolorosa revolução na Igreja católica, exige dos seus membros humildade histórica e persistência nas atitudes de tolerância e nas iniciativas de diálogo inter-religioso.
2. A caridade nunca é demais, mas não é bem servida pela ingenuidade. O advogado Gilbert Collard, que não parece ser um grande simpatizante do mundo islâmico, descreveu a sua dificuldade em entender o que significa, ser ”infiel”, para um muçulmano.
Ao participar no estágio anual de actualização, necessária à renovação da sua habilitação de segurança nas prisões, foi confrontado com uma apresentação feita por quatro intervenientes representando, respectivamente, as religiões Católica, Protestante, Judaica e Muçulmana, explicando os fundamentos das suas respectivas doutrinas. Este advogado estava interessado, sobretudo, na exposição do Imã que classificou de notável.
Terminadas as intervenções, começou o tempo das perguntas e respostas e, quando chegou a sua vez, perguntou: “Agradeço que me corrija se estiver enganado, mas creio ter compreendido que a maioria dos Imãs e autoridades religiosas decretaram a “Jihad” (guerra santa) contra os infiéis do mundo inteiro e que, matando um infiel (o que é uma obrigação feita a todos os muçulmanos), estes teriam assegurado o seu lugar no Paraíso. Neste caso poderá dar-me a definição do que é um infiel?”
Sem nada objectar à minha interpretação e sem a menor hesitação, o Imã respondeu: “um não muçulmano”.
Respondi-lhe: “Então, permita-me assegurar se compreendi bem: o conjunto de adoradores de Alá devem obedecer às ordens de matar qualquer pessoa que não pertença à vossa religião, a fim de ganhar o seu lugar no Paraíso. É ou não verdade?
A sua cara, que até esse momento conservava uma expressão cheia de segurança e autoridade, alterou-se e, de repente, parecia a de um miúdo apanhado em flagrante.
É verdade, respondeu ele, num murmúrio.
Observei-lhe : “Tenho bastante dificuldade em imaginar o Papa Bento XVI a dizer, a todos os católicos, para massacrarem todos os vossos correligionários, ou um Pastor, a dizer o mesmo, para garantir a todos os protestantes, um lugar no Paraíso.”
O Imã ficou sem voz !
Continuei: “Também tenho a maior dificuldade em me considerar seu amigo, pois o senhor e os seus confrades incitam os vossos fiéis a me cortarem o pescoço!”
Só mais uma pergunta: “O senhor escolheria seguir Alá, que o manda matar-me, para ganhar o Paraíso, ou seguir Cristo, que manda amar a todos e irmos juntos para o Paraíso?”
Podia-se ouvir uma mosca voar, enquanto o Imã continuava calado.
Não é preciso dizer que os organizadores e promotores do Seminário de Formação não apreciaram nada esta minha maneira de tratar o Ministro do culto Islâmico e de expor algumas verdades a propósito dos dogmas desta religião.
No decurso dos próximos trinta anos, haverá suficientes eleitores muçulmanos para, em França, instalarem um governo da sua escolha, com a aplicação da “Sharia”, a lei islâmica.
Ao fim e ao cabo, este advogado gostaria de levar o muçulmano fundamentalista a ser infiel à sua loucura. Não sei se a receita foi eficaz.
3. A fixação no mundo muçulmano pode levar a esquecer a questão de fundo: as religiões são muitas, não são todas iguais, dentro de cada uma há muitas diferenças, ninguém pode ter um conhecimento experimental de todas para descobrir os seus traços espirituais e místicos.
Por outro lado, não são realidades estáticas. Têm história e as diferenças, no interior de cada uma, também. Quem se der ao trabalho de recorrer às investigações dos historiadores, sentir-se-á confrontado com um universo inabarcável. Basta, aliás, uma viagem pelo Google para se ter a imediata sensação de entrar numa imensa floresta.
As religiões são manifestações humanas. Suponho que Deus não tem religião. Em tudo o que é humano, também pode surgir o desumano. A religião exprime o que, em nós, há de melhor: a procura da fonte de sentido, o que podemos esperar da vida e o que podemos fazer uns pelos outros. Em suma, os percursos sinuosos da fé, da esperança e da eternidade do verdadeiro amor.
O místico é aquele que nunca pode parar em nenhuma das suas realizações e expressões. As nossas ideias de divindade não são divinas. O idólatra é aquele que não interroga as crenças, os ritos, os preceitos e os interditos, a organização, a autoridade e tudo aquilo a que chama a sua religião. Ao tratar imagens e instituições muito relativas como absolutas e expressões da vontade de Deus, não procura, não investiga e afirma cada vez mais o mesmo, receando que as dúvidas façam ruir todo o seu edifício. Como a afirmação de Deus e dos seus atributos estão ao serviço desse universo idolátrico, não podem deixar de ser a idolatria das idolatrias.
Quando se persegue e mata outros seres humanos, em nome de Deus, que só pode ser amor, é porque a invocação de Deus se tornou um instrumento do ódio e da ira mais desumana.
4. Na liturgia católica dos últimos Domingos, muitos cristãos foram confrontados com um comportamento religioso de Jesus tão estranho, que os seus conterrâneos lhe quiseram dar a morte. Era intolerável a sua falta de respeito pela integridade da Sagrada Escritura. Ao ler uma bela passagem do profeta Isaías, na Sinagoga de Nazaré, sua terra, permitiu-se fechar o livro, antes de tempo, suprimindo o que Ele não podia aceitar nem proclamar: o “dia da ira de Javé”. Pagou caro a falta de respeito por aquilo que chamavam “palavra de Deus”. Teve de fugir para não ser linchado. S. Paulo dirá que a letra mata, o espírito vivifica. S. Tomás de Aquino acrescentou que os próprios textos do Novo Testamento, lidos de forma puramente material, idolátrica, matam o entendimento da sua significação.
Nem tudo é santo nas religiões. Jesus alterou aquela em que tinha sido educado e mesmo a que tinha escolhido, como discípulo de João Baptista. Não por capricho nem de forma arbitrária. Teve a experiência mística que o libertou de imagens de Deus escravizantes, inaceitáveis. Do Céu só podem vir declarações de amor, como as que ele próprio recebeu, estando em oração, depois do baptismo celebrado no Jordão, antes da irrupção do espírito, a nova lei (Lc 3, 21-23).
Frei Bento Domingues, o.p.

03 fevereiro 2013

SANTAS, SUBMISSAS E REBELDES

1. A preocupação com o futuro do cristianismo, e nomeadamente com a sua versão católica, ditou, no âmbito da nova evangelização, o Ano da Fé. Multiplicam-se as iniciativas para que o Evangelho não se torne insignificante, mesmo nos países cuja matriz cultural e religiosa é, precisamente, o cristianismo. É normal a preocupação pelo seu futuro. A Igreja não existe para passar certidões de óbito ao cristianismo europeu. O modo mais adequado para evitar o seu apagamento no futuro não é desenhar cenários, óptimistas ou pessimistas, mas fazer com que as experiências do presente, pela sua criatividade de vida transfigurada, sejam uma fonte de beleza e de alegria, que ninguém queira perder. É do presente plural, aberto ao futuro, que importa experimentar e falar. O que não se pode é persistir em opções que desconvocam, logo à partida, a maioria dos cristãos, as mulheres.
Esta persistência da hierarquia católica em não contar com elas para conceber, projectar, orientar e realizar a missão da Igreja no mundo contemporâneo, é considerada altamente negativa, em alguns ambientes eclesiais, embora noutros, essa situação ainda se possa apresentar como absolutamente normal, pois “sempre foi assim”.
Este último argumento só pode ser usado por quem não vê o papel activo das mulheres em todos os sectores das sociedades ocidentais. Portugal não é excepção. Não procurar alterar o funcionamento da Igreja, tendo em conta esta tendência irreversível, parece cegueira, fuga aos sinais dos tempos, tantas vezes evocados em vão.
2. Como as fontes do Espírito nunca secam, todas as viragens são possíveis e ainda é tempo de perguntar: qual o papel original que as mulheres estão a ter, no desenho dos projectos da chamada “nova evangelização”? Não recorrer à sua intuição, experiência e saber é esquecer a própria simbólica da Anunciação do Anjo, ao colocar o futuro na graça de uma mulher.
Maria de Nazaré não acolhe a proposta divina sem a questionar frontalmente. A sua fé não é cega. Aliás, acredita-se sem evidências, mas não sem sentir que é por ali que corre a vida e o amor. 
Neste sentido, será importante meditar nas narrativas da Paixão e da Ressurreição, consideradas as mais decisivas para entender a significação do atribulado percurso histórico de Jesus com os seus apóstolos.
Ora, o que há a destacar de mais extraordinário e paradoxal, nesses relatos, é a enorme falta de fé de Jesus nos seus discípulos. Tão grande que recorreu às discípulas, às mulheres, individualmente e em grupo, para que fossem elas a comunicar-lhes que nada estava acabado com a crucifixão: o projecto, o sonho e Ele próprio estavam vivos e para sempre.
As mulheres, tidas por mentirosas, não podiam testemunhar em tribunal. Jesus viu que foram elas que, sem arredar pé, O seguiram até ao fim. Eram elas as suas testemunhas e encarregou-as de evangelizar os apóstolos, que o medo e a falta de fé tinham feito dispersar. Os próprios textos insistem, no entanto, que os homens, os discípulos, não lhes deram crédito. Continuavam com a ideia velha e derrotada de que o testemunho das mulheres não valia nos processos jurídicos. Elas serviam, quando muito, para levantar boatos. Como Tomé, tinham de ser eles a verificar. Cristo repreende-os: homens de pouca fé, continuais incapazes de vos render à palavra das discípulas.
Paulo cunhou a fórmula cristã mais curta e mais exacta da igualdade e da liberdade de todos na Igreja: Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus (Gal. 3, 28). Não ficou por aqui. São-lhe atribuídas outras, muito infelizes, acompanhadas de razões teológicas, cristológicas e antropológicas demasiado rabínicas: As mulheres estejam em tudo sujeitas aos seus maridos (Ef. 5, 21) e para preservar as tradições, pede às mulheres que mantenham a cabeça coberta e em silêncio nas assembleias (1 Co. 11, 2; 14, 34)[i].
Na história da Igreja, nem todas as mulheres se sentiram obrigadas a essas tradições que Cristo já tinha sacudido. Contudo, pelo que se ouve dizer, as santas rebeldes não conseguiram ser tantas como as submissas.
3. Multiplicam-se as notícias de violência sobre as mulheres. Não veem só do Paquistão e do Afeganistão, dos Estados Unidos ou da India, do Brasil ou de Portugal. Cobrem o planeta. As mulheres já não são, apenas, as mais descriminadas no trabalho, usadas nos negócios de publicidade para vender carros e outros produtos, na pornografia e na prostituição. A violência doméstica, as violações em série, o tráfico de mulheres e órgãos são tão frequentes que o modo de abordar estas questões - espectáculos de momentos televisivos -, tende a banalizar o crime.
É de espantar que nas paróquias, nas dioceses, nas organizações católicas, não se desenvolvam movimentos, de homens e mulheres, que incarnem estas questões, como centrais para a Nova Evangelização.
Aliás, uma “evangelização” que não faça destas situações, e do que elas revelam, o seu tema incontornável, fica longe do comportamento de Jesus Cristo, narrado nos Evangelhos.
Não é uma questão reservada a algumas mulheres rebeldes.
Frei Bento Domingues, O.P.



[i] Cf. Pe. Carreira das Neves, Paulo e as Mulheres, in São Paulo, Presença, 2011, pp 198-221.
in Público