27 janeiro 2012

Inteireza de Mulher


A escritora brasileira Adélia Prado inspirou-me neste meu pequeno texto, a propósito das mais comuns circunstâncias da nossa humana condição. Mulher casada, mãe de cinco filhos, morando numa pequena cidade de Minas Gerais, Adélia Prado foi de repente, aos cinquenta anos, a grande revelação na literatura brasileira do século XX, quando Carlos Drummond de Andrade a nomeou, para não mais ser esquecida. Eu vivi esse momento e, como muita gente, acrescentei a leitura de Adélia Prado à de Clarice Lispector. Em verso e prosa, Adélia descobriu a mistura entre as pequenas tarefas de casa, as pessoas que a rodeiam, as coisas e os bichos, o sentir e o pensar, a presença de Deus imediata e consciente, na inteireza da sua história de mulher. No meu caderno de anotações reencontro-a agora, a dizer que os nossos gestos e rituais de cada dia se podem transfigurar, para um sentido maior da nossa razão de ser.
No romance Cacos para um Vitral, há esse olhar de Adélia Prado sobre o mundo de dentro e de fora, o sentido religioso da vida, em estado puro de sensualidade. Vamos, assim, seguindo o percurso de Glória, a personagem principal: “Muitos anos mais tarde, muitos anos mesmo, num instante de graça, surpreendeu-se tão absolutamente em si mesma que não tinha mais a consciência de si, um momento em que escrevia. Sentiu-se visitada de Deus! Então é assim que se é! Eu também sou, possuo um ser perceptível aos outros e não há perigo de que me desintegre em fragmentos de areia. Que belo dia foi aquele de sua epifania. Glória lembrava-se e agradecia de novo, tinha um ser. Era ela mesma um ser (...) Quando dois se amam ninguém é devedor, porque o amor cobre a multidão dos pecados e eleva os humildes e abate os poderosos de seus tronos. Glória viu que recitava o Magnificat, por puro gosto literário, o que nela era também uma forma de rezar, sua melhor forma, talvez (...) Ao abraço da paz o homem virou-se e pegou na mão de Glória e bem explicitamente: “A paz de Cristo esteja com a senhora”. Um homem belo, piedoso, feliz, pegava sua mão com força e lhe desejava a paz. Há pessoas cujos corpos nos apelam. No futuro se poderá fazer sem escândalo o que desejei fazer agora, pensou ela, tocar o homem, reter sua mão, à toa, só porque é bom, porque o sangue gosta. Dentro da igreja ou não.”

Leonor Xavier
26.01.2012

22 janeiro 2012

O mal maior e o maior bem

Entre o mal maior e o maior bem está o extenso mundo onde a existência humana se tece. Humanas ou desumanas vidas, como se vê, por um encadeado de causas. É a distância sem medida entre aquele que mata alguém por lhe ter pisado os calos e o que perguntou ao soldado romano por que razão lhe deu uma bofetada. A distância entre a malvadez e o perdão, ajuizados pela verdade das coisas. No meio desse grande campo entre estes dois marcos está uma espécie de justiça: aquela que tira um olho ou um dente a quem antes os tirou a outrem. Não sei se o dente e o olho tirados para vingarem os anteriores seriam arrancados da mesma maneira. Seria mais justo. Diz-se que já não é mau o mal menor. Enfim, alguma coisa ou alguém é poupado. Apesar de ser muito frequente a indignação às portas dos tribunais, são infinitamente preferíveis 25 anos de cadeia para quem matou do que mais uma morte. Ainda assim, é grande a distância entre o mal menor e o bem menor. Faz lembrar o comentário de Jesus sobre João, o Baptista: ele é o maior do antigo, mas o mais pequeno do novo é maior que ele. Para medir a distância entre a malvadez e o perdão não há medida humana. Malvadez é o mal sem medida. Houve uma espécie de rei chamado Herodes, de quem se diz ter mandado matar todas as crianças com menos de dois anos por constar que entre elas havia uma que lhe poderia tirar o poder. Coitado, morreu muito mal. Há uma espécie de gente que mantém outros povos submetidos, subalimentados e enganados para lhes roubar os bens que têm nas suas terras. Coitados desses que nunca se sentem satisfeitos. Temos uma espécie de escritor que na TV contou só metade da história da mulher sirofenícia (Marcos 7, 24-39) para afirmar que Jesus afinal descriminava as pessoas, e desse modo promover a venda de um livro seu. Coitado, só ganha mais dinheiro. O perdão é o oposto da malvadez, é o bem sem limites. Um homem devolveu em multiplicado tudo quanto tinha adquirido ilegitimamente (o que é o legítimo!) ao sentir a alegria de ser perdoado. Chamava-se Zaqueu. Uma mulher mudou de vida ao ter a surpresa do perdão quando aguardava o fatalismo da condenação. Os que a acusavam de ser adúltera tiveram assim, por meio dela, oportunidade de mudarem também de vida. Perdoar é, antes de mais, não entrar no jogo de responder ao mal com outro mal, mas promover o esclarecimento, a consciência das coisas, as razões das acções ou das palavras. “Se respondi bem, porque me bateste? Se respondi mal, diz-me em quê”. Foi esta a resposta de Jesus ao soldado romano. É também assim que se dá a outra face. A outra face pessoal e a outra face da vida.

Frei Matias, O.P.

16 janeiro 2012

PÃO PARA A BOCA!

Em forma de comentário dialogado à porta da Capela do Rato, alguém dizia “Agora até parece que somos uma Igreja normal, já temos pedintes à saída da Missa!”. Resposta: “São os efeitos da crise!” Ao que o autor da constatação referiu: “Diria antes que é o efeito da abertura do supermercado aqui em frente!”
Perante os factos; pedintes à porta da capela esperando o fim de missa e o supermercado onde parte dos fiéis se reencontram depois da celebração, verifica-se que o cruzamento do “alimento espiritual” e do “alimento material” torna o local lisboeta particularmente atrativo ao domingo para quem se encontra na situação de pobreza extrema.
“Dar de comer a quem tem fome” parece ser uma obra de misericórdia evidente. Mas não é assim tão simples.
A Igreja e os cristãos de modo geral têm a clara noção de que é impossível virar a cara a uma pessoa que partilha connosco a mesma humanidade e por isso é um/a irmão/ã. As múltiplas ações de solidariedade e de partilha, de forma institucional mais ou menos permanente, nomeadamente pelas inúmeras IPSS que se dedicam à erradicação da pobreza ou a minorá-la, ou as várias iniciativas pontuais, são exemplos da concretização deste cuidado pelo outro.
O Banco Alimentar Contra a Fome (
www.bancoalimentar.pt/) é um caso de especial sucesso porque consegue mobilizar recursos humanos, materiais e institucionais a todos os níveis, de forma coerente e organizada, o que lhe permite fazer todos os dias “o milagre da multiplicação e da divisão do pão”.
Nos grupos das conferências vicentinas existentes ainda em algumas paróquias faz-se apoio direto para minorar o sofrimento dos que a sociedade marginalizou. Os centros sociais paroquiais fazem-no igualmente.
No entanto nunca é suficiente. Há que melhorar os métodos, inovar nos gestos e responder ao grito mudo de quem pede ajuda, ou está de tal modo à margem que nem o pode fazer.
No meio de uma crise económica que se agrava, não basta “dar o peixe” a quem tem fome, é preciso também “ensinar a pescar”, como afirma a sabedoria oriental.
A questão teórica do modelo económico em que vivemos neste mundo globalizado, deixou de ser um tema exclusivamente para especialistas em economia, ou para decisores políticos, para passar a ter uma relevância imediata em termos sociais para o comum dos cidadãos sejam estes cristãos ou não.
As “receitas” económicas e financeiras para resolver a crise não são neutras e são elas próprias geradoras
de maiores desigualdades ou pelo contrário capazes de fomentar uma menor injustiça na repartição dos recursos.
Há várias pessoas e grupos, particularmente a Comissão Nacional Justiça e Paz, (
www.cnjp.ecclesia.pt) que, não tendo ilusões sobre as implicações ideológicas dos modelos de solução possível para a crise, procuram analisar e compreender estes “sinais dos tempos” de forma a propor novas formas de lidar com os problemas económicos e sociais geradores e perpetuadores da pobreza.

Não compete à Igreja “meter-se na política” a este nível concreto e imediato, embora o património da doutrina social da Igreja seja abundante para iluminar a questão da justa repartição dos bens materiais. Vale a pena revisitar este legado que toca fundo na responsabilidade dos cristãos na sua relação com a Terra e com a humanidade que a habita.
Os cristãos têm pois que procurar encontrar os meios de, com gente de outras referências, de outros “pátios mais ou menos gentios” (praias, lojas, ou o que seja) serem o fermento da massa que devidamente levedada dará de comer a quem tem fome!
E isso passa por refletir sobre modelos económicos alternativos, tanto quanto por atos concretos portadores de respostas eficazes e imediatas às necessidades dos mais pobres.
É por isso que precisamos destas reflexões e gestos solidários, com propriedade e literalmente, “como de pão para a boca”!

AFF
15-01-2012

13 janeiro 2012

É raro podermos manifestar satisfação face a um documento saído do Vaticano, neste caso do Conselho Pontifício Justiça e Paz. Trata-se de uma Nota, emitida em 24 de Outubro de 2011, intitulada "Para uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional na perspectiva de uma autoridade pública de competência universal",cujo texto completo pode ser encontrado no respectivo sítio na internet. Aponta para a ausência de príncipios morais que estaria na base da actual crise económica mundial e procura horizontes viáveis. Indica, sobretudo, a ganância colectiva e estrutural que está presente nos actuais sistemas e instituições. Mais especificamente aponta o dedo ao "liberalismo económico sem regras e sem controle", à idolatria do mercado, que se mostra avesso às intervenções públicas nesses mesmos mercados. Este discurso não é novo no Vaticano, pois desde o século XIX, com o início da construção da Doutrina Social da Igreja, que tem havido pronunciamentos acerca de como as forças desreguladas dos mercados podem ameaçar o bem comum, e sobretudo o bem dos mais frágeis. Mas em anos recentes as preocupações do Vaticano têm-se concentrado excessivamente num discurso pobre sobre questões sexuais e muito menos sobre as matérias abordadas nesta Nota. O documento recorda, por exemplo, que mais de mil milhões de pessoas vivem com cerca de um dólar por dia. Ou seja, a crise não é apenas económica e financeira mas sobretudo moral, o que significa que não pode nem deve haver economia sem ética e que a ética deve sobrepor-se sempre à economia. O sentido da dignidade da pessoa e a solidariedade para com o conjunto da comunidade humana deverá ser integrado na vida pública para orientar e regulamentar o dinamismo dos mercados económicos, tendo em vista a plenitude da visão cristã do bem comum. O Conselho advoga que seja adoptado um conjunto de leis supra-nacionais e criada uma instituição internacional (uma espécie de Banco central mundial) capazes de regularizar os mercados globalizados, dado que considera que o FMI perdeu "a sua capacidade de garantir a estabilidade das finanças mundiais." Propõe mesmo o que tantos políticos, entre os quais o primeiro-ministro do Reino Unido, rejeitam: "taxas sobre transações financeiras" que possam "contribuir para a constituição de uma reserva mundial, destinada a apoiar as economias dos países atingidos pela crise, bem como o saneamento dos seus sistemas finaneiros e monetários."
A reacção por parte dos católicos conservadores norte-americanos foi de rejeição imediata - e no momento actual da
vida política norte-americana, em que muitos bispos, aberta ou veladamente, apoiam as ideias mais extremistas dos
Republicanos, poder-se-à sugerir que estes não acolheram com bom grado a Nota.

Ana Vicente, Jan 2012

07 janeiro 2012

Dizia-me aqui há tempos uma jovem minha conhecida que a mãe dela não permitia que se falasse da crise em casa: “enquanto tivermos de comer e ninguém na família estiver desempregado, não se fala de crise cá em casa!” Compreendo a afirmação e respeito-a: sei que é uma família que luta com dificuldades, na qual a filha tem de trabalhar para conseguir estudar. E, no entanto, consideram falta de respeito pelos desempregados chorar-se por causa da crise. O que eu tenho muita dificuldade em aceitar é o discurso de desvalorização da crise por parte de pessoas que, provavelmente, não serão atingidas por ela. Ultimamente, tem havido até cristãos católicos a fazerem discursos de elogio do valor espiritual das crises. É sabido que, bíblica e filosoficamente, “crise” significa encruzilhada, momento de viragem, possibilidade de conversão. Mas, no país que temos atualmente, no qual há tanta gente no limiar da sobrevivência, fazer o discurso de elogio cristão da crise a partir de lugares bem instalados poderá contribuir para dar razão a Marx, quando ele dizia que “a religião é o ópio do povo”. Pior ainda poderá ser aliar este discurso de “elogio da crise” a um silêncio ingénuo ou calculado face às múltiplas razões da mesma. É que não me parece que estejamos apenas perante uma crise de valores individuais, embora me pareça bastante que estamos perante uma crise de valores estruturais, sociais, em suma, perante uma crise que clama por justiça. Também não me parece que possamos dizer apenas alegremente que “a Igreja está sempre em tempo de austeridade”. Há causas estruturais, repito, e não só responsabilidades individuais que levam à situação em que nos encontramos. E nem sempre será fácil convencer o comum dos mortais de que a Igreja está sempre em tempo de austeridade... Sobretudo, este tipo de afirmações um tanto light pode constituir uma bofetada na cara de quem, realmente, não fez na vida senão uma experiência de austeridade forçada ou de quem se encontra, agora, por motivos para os quais não contribuiu, numa situação de inesperada precariedade. Louvo, obviamente, todas as iniciativas de solidariedade social por parte dos cristãos (e não só). Mas a pergunta de D. Hélder da Câmara continua a ser um desafio para todos nós: “porque será que, quando ajudo um pobre, me dizem que sou um santo, mas, quando pergunto por que há pobres, me dizem que sou comunista?” O elogio da “pobreza evangélica” sem um clamor contra a injustiça não reduzirá a religião a mais um instrumento nas mãos das estruturas geradoras de pobreza?

Teresa Toldy


6.1.2012

01 janeiro 2012

OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER

1. Os jovens têm a vida toda pela frente. Não a aproveitando, vão ter cada vez menos hipóteses de êxito. Diante de tantas dificuldades, muitos serão tentados a desistir, ainda antes de lutar. Uns abandonam os estudos porque não vêm em quem os concluiu uma recompensa adequada a tanto esforço e privação. Embora seja uma reacção compreensível, talvez não seja uma boa solução.
O mundo muda e as circunstâncias presentes não são definitivas. O que nunca será dispensável é a capacidade de adaptação a novas situações, que aumenta com o desenvolvimento adquirido. Da ignorância e da incompetência é que não há nada a esperar.
2. O desenvolvimento científico e técnico não é tudo. Sem afectos nada tem gosto. O primeiro de todos é o reconhecimento. Somos vida recebida. Os pais merecem-nos sempre tudo. Por outro lado, sem amigos os dias não têm cor. A realidade mais profunda dos afectos é sentir que contamos para os olhos de alguém, que somos amados. O amor tem muitas expressões e tonalidades, mas nada pode substituir a verdadeira amizade.
3. É fundamental ter projectos na vida. Não se pode escolher tudo. Importa saber optar e encontrar um sentido capaz de hierarquizar valores que nos realizem como pessoas, a nível individual, social e cultural.
4. Nada no percurso de uma existência humana está garantido à partida. Como se costuma dizer, é preciso fazer pela vida: não se deixar inebriar pelos êxitos, nem abater pelos fracassos. A sabedoria consiste em aprender com tudo o que nos vai acontecendo. O coração da sabedoria é a humildade. O diálogo com todos é o seu exercício.
5. A vida não corre sempre como desejávamos e nem sequer como a planeámos. Não é bom olhar só para o que corre mal. Se estivermos atentos teremos, normalmente, mais razões de contentamento do que de tristeza. Não nos esqueçamos de alimentar a alegria. Não nascemos para sermos derrotados. Para os altos e baixos do nosso percurso tem de haver um suplemento de alma que ajude um equilíbrio dinâmico.
6. Nada disto se alimenta só pela razão e pelo voluntarismo. A vida acontece no tecido dos dias. Uns vêm cheios de sol e outros obrigam-nos a pedir socorro.
7. O Natal não depende dos presentes, embora saibam bem. Sabe melhor quando se está mais presente aos outros e quando sentimos a sua presença, quando estreitamos laços e conseguimos profundas reconciliações.
Porque será que nos lembrámos de todas estas boas atitudes, sobretudo, no Natal? Para os cristãos, o nosso verdadeiro sol é Jesus Cristo. Poderá perguntar-se: mas quem é Ele e que fez Ele para se ter tornado insubstituível? Direi algo de muito simples: Ele encarna o Amor de Deus por todas as pessoas do mundo e oferece-lhes a energia para romper com o egoísmo. O seu nome é Emanuel, Deus connosco e nós uns com os outros. Disse-nos algo essencial e para sempre: temos casa e mesa posta no coração de Deus; nada nem ninguém poderá roubar-nos esse Amor, aconteça o que acontecer na nossa vida. Digo, por isso, que Jesus Cristo é o sentido, a beleza, a responsabilidade e o impulso vital da graça. Com ele podemos ousar lutar, ousar vencer.

Frei Bento Domingues O.P.Lisboa,
15 de Dezembro de 2011