29 julho 2012

PÃO PARA TODOS

Estou a lembrar-me de professores e investigadores como Jeffrey Sachs, Joseph E.Stiglitz, Abhijit V. Baneerjee/ Esther Duflo, Paul Krugman, etc.. Se isto não acontece, seria interessante identificar os interesses que ganham com a crise e a consideram uma grande oportunidade de negócios. As indústrias envolvidas nos incêndios não podem ser as mais preocupadas em convencer os governos e particulares a investir nos cuidados da prevenção ao longo do ano.      
2. Portugal faz parte de uma paisagem humana muito vasta. Aproximemos alguns números disponíveis referidos por Carlos Borrego (Brotéria 5/6 p. 449). Se o mundo tem agora 7 mil milhões de pessoas, em 2050 terá 9 mil milhões. Se a natalidade, mesmo em países como a África está diminuir, este aumento populacional será feito com idosos.
        Neste momento, 1,4 mil milhões vive actualmente com cerca de 1 euro por dia ou menos; 1, 5 mil milhões de pessoas no mundo não tem acesso à electricidade e 2,5 mil milhões não tem tratamento de esgotos. Quase mil milhões passam fome.
     Leonardo Boff, um famoso eco-teólogo, pergunta-se se não estaremos perante a crise terminal do nosso modo de viver. Diz que foram encontradas 25 formas diferentes para destruir a espécie humana. Como a humanidade e a terra estão interligadas de forma indivisível, tudo é afectado pelas mudanças climáticas. Estamos a chegar ao fim da matriz energética baseada em produtos fósseis – petróleo, gás e carvão – o que obriga a procurar fontes alternativas e limpas e, mesmo assim, serão insuficientes para sustentar o nosso tipo de civilização. A tragédia social não é menor. As três pessoas mais ricas do mundo possuem activos superiores a toda a riqueza dos 48 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas; 257 pessoas sozinhas acumulam mais riqueza do que 3 biliões de pessoas, o que equivale a 45 por cento da humanidade. Resultado: 1, 2 biliões de pessoas passam fome e outros tantos vivem na miséria. Leonardo Boff, de quem recebo estes números, sem os ter ido verificar a outras fontes, acrescenta que, no Brasil, cerca de cinco mil famílias possuem 46 por cento da riqueza nacional.
     3. Os números apresentados neste texto são conhecidos. Tornou-se, aliás, um lugar-comum dizer que, também em Portugal, cresce o abismo entre os poucos muito ricos e os muitos muito pobres. A Doutrina Social da Igreja, acerca do destino universal dos bens, é outro belo lugar-comum, do qual nada se espera.
A consciência ética começa quando chegamos à conclusão de que o mundo como está é uma vergonha, mas não é uma fatalidade. Jesus Cristo não deixou nenhuma receita automática para vencer este escândalo. Como se pode ler no Evangelho de S. Lucas, Jesus não alinhou nem com o regime de austeridade de João Baptista, nem com o estilo de vida do rico avarento. Gostava da vida, de comer e de beber, como toda a gente que tenha os sentidos bem apurados. Até lhe chamaram glutão e beberrão (Lc.7 e 16). Não suportava ver uns à mesa e outros à porta. Era a partir dos excluídos que encarava a transformação da sociedade.
Hoje, na Eucaristia, é lida uma narrativa da multiplicação dos pães e dos peixes. Já serviu para boas peças de humor. Tudo o que está escrito no Novo Testamento é para a nossa alegria.
Nos Evangelhos, os milagres não são reportagens. São parábolas. Faz-se uma coisa para dizer outra e para que os discípulos façam coisas ainda maiores. A aclamação e a meditação da leitura da multiplicação dos pães podem ter muitos efeitos: primeiro, não tem efeito nenhum; segundo, pode incomodar-nos, mas não muito; terceiro, pode abalar-nos. Quarto, pode tornar-nos militantes. Quem tem ouvidos para ouvir, oiça.
Até Setembro.

Frei Bento Domingues, O.P.

26 julho 2012

Olhar de Deus sobre Nós, Simpatia e Amor

1. Levada em pensamento pela tese de Karen Armstrong, retomo o Evangelho de São Mateus “Tudo o que desejais que os outros vos façam, fazei-o também a eles.”(7-12) Eu tinha começado a ler o livro “Doze Passos para uma Vida Solidária”(ed.Temas e Debates), desta autora que foi freira, é historiadora das religiões e defensora da liberdade religiosa, consagrada pelos mais importantes prémios internacionais pela sua obra e personalidade. Karen Armstrong viaja pelo mundo, faz conferências, é protagonista nas televisões. Neste livro, ela evoca as religiões mais importantes para propor a prática da Regra de Ouro: “Fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem,” e assim desenvolve a ética da compaixão em doze passos crescentes, ou outras tantas atitudes nas situações que enfrentamos no dia a dia. Situações muito concretas, em simultâneo profundamente espiritualizadas se as integrarmos num contexto mais amplo. Karen Armstrong recorre a citações, recorda conselhos, relembra conversas. Ensina como cada um se deve amar a si mesmo para poder amar os outros. Leva-nos a experimentar a condição de um outro alguém, das suas perdas, angústias, aflições, para poder praticar a compaixão. Diz que começando pelo mais próximo na casa, se poderá partir para a família, os amigos, o país, o mundo. A sua tese ajuda a humanizar os nossos atos. É um modo de entender, em perspetiva de fé, a palavra do Evangelho. Vale a pena lê-la e sublinhá-la.     

2. Dou por mim em lágrimas, oiço as notícias, os depoimentos, os comentários. E vejo as imagens. A televisão não pede licença para entrar na casa. Passo horas aqui, no silêncio de que preciso para trabalhar o ponto e a vírgula. E descubro-me na balbúrdia do silêncio, que me traz o discurso interior, mais fértil às vezes na solidão. Vejo o empobrecimento, as falências no meu bairro, as queixas, os justos lamentos. Assisto á greve dos médicos e ao protesto dos professores no dia de hoje, há multidões a sair à rua, a gota de água está aí, na nossa gente. Não sei o que mais me emociona e desgosta, no tumultuado espetáculo do mundo. Oiço as notícias de barbaridades contra as comunidades cristãs na Nigéria e no Quénia, vejo os massacres na Síria, as multidões exaltadas no Egito e no Paraguai, pelo desagrado contra os presidentes depostos e o agrado pelos novos eleitos. Vejo os flagelados da fome e da seca no Nordeste brasileiro e os favelados do Rio ainda de luto pela destruidora chuva. Vejo os mineiros espanhóis em manifestação e os cidadãos russos em revolta. Os mortos e os feridos desfilam. Vivo a inquietude dos dias, que nos faz saber de tanta gente muito mal, tão perto, tão à nossa volta. Dou graças a Deus pela fé que me anima. Por ter aprendido que muitos outros períodos de sofrimento e desgraça passaram pela história da Humanidade, vou passando pelos textos, o Antigo Testamento é fértil em narrativas de tempos maus, o Evangelho é palavra de esperança.
 
3. Em casa dos meus pais, fazíamos muito o jogo da associação de ideias, talvez por isso haja em mim este gosto de tecer o que me vai pela cabeça, como um bordado de bastidor. Tomo, assim, e a propósito dos nossos atuais desgostos, a liberdade de ligar uma citação de Frei Bento Domingues ao nome de um Bloco de Carnaval no Rio de Janeiro. Por motivos diferentes. No seu recente artigo sobre o culto popular ao Senhor dos Desamparados e o seu Oratório em Guimarães, diz o Frei Bento: “ Ao longo dos tempos cresceu a convicção de que havia sempre alguém que tinha os olhos postos nos desamparados, o mesmo que conserva este costume, desde há dois mil anos.” E no Rio de Janeiro nasceu nos anos 80 o Simpatia é Quase Amor, em que eu desfilei, cantando um refrão em que estas palavras apareciam. Penso no olhar de Jesus sobre nós, puro amor no conhecimento destas horas más. E em vários momentos dos dias, vou também experimentando um tom de simpatia na fala com os outros. Forma pequena, tentada, de amor. Olhada, acima do mundo e no mundo, pelo Senhor, Senhor dos Desamparados, Nosso Senhor.

Leonor Xavier
12 de Julho de 2012   

22 julho 2012

O ESTADO DA IGREJA

        1. Este título é excessivamente pretensioso para um assunto tão vasto num espaço tão reduzido. Foi-me sugerido por uns amigos sobre um texto magnífico do blogue do padre António Teixeira, que transpõe o nome do debate, ”Estado da Nação”, para outro cenário e outro objectivo: “Por que razão não poderia a Igreja ter oportunidade de se congregar em torno do Pastor Diocesano, à volta de cada Pároco, para a partilha de ideias, de sonhos, preocupações, desafios, a ponto de todos e cada um dos cristãos se saberem e sentirem responsáveis e cúmplices, protagonistas e conscientes da missão comum de edificar a Igreja e construir o Reino de Deus - afinal a tarefa que o Mestre confiou aos Seus discípulos de todos os tempos (…). Nada teria a perder – bem pelo contrário - se usufruísse de tempos e espaços de maior diálogo, de alargada troca de experiências, dificuldades, êxitos e projectos. Para isso, importa distinguir categoricamente realidade da “unidade”, daquela outra, sempre pejorativa, de “conformismo”.
        Tanto no plano político como no religioso, é difícil a analise do presente fugidio, sem cair no estilo de jornalista ou de oráculo. Por outro lado, gastar o tempo todo a fazer autópsias do passado e a prometer ressurreições gloriosas para o futuro é, por vezes, uma fuga para não ver e questionar o que está diante dos olhos.
        2. A Igreja Católica é um mundo com modos de presença muito diversificados nas sociedades dos cinco continentes e na grande variedade cultural e social das comunidades de cada país.
        O centro do seu crescimento já não se encontra na Europa, embora o papa seja o Bispo de Roma e o chefe político de um pequeno Estado, o Vaticano, com um território de 40 hectares. Para uns, esta realidade é um instrumento precioso de independência da Igreja; para outros, embora sem o peso dos anteriores Estados Pontifícios - que duraram desde 756 até 1870 – acaba por situá-lo nos jogos da política internacional.
        Como Estado, é um sistema fechado, com grande dificuldade de auto-reforma. O que é transmitido pelos meios de comunicação acerca do que nele acontece - na banca, no tráfico de influências e no funcionamento da Cúria - afecta, a nível local e global, a imagem pública da Igreja e a credibilidade da sua transcendência divina.
        Os bispos do mundo inteiro são reformados aos 75 anos. O bispo de Roma, que além de chefe de Estado é o papa, o dirigente de toda a Igreja, em regime de parca colegialidade, não tem limite de idade para as suas funções. Valeria a pena meditar e conversar sobre essa estranha situação.
        Os bispos surgem à frente das dioceses, sem que os diocesanos tenham uma palavra a dizer. Os párocos são nomeados sem que os paroquianos possam interferir no processo da sua designação. O que a todos diz respeito deve ser tratado por todos, da forma mais responsabilizante. Quanto às modalidades e dificuldades nessa participação, nunca será um assunto resolvido de forma definitiva, mas também não pode continuar adiado.
       Sem o enfrentamento de algumas questões básicas, que se arrastam há demasiados anos, os programas da nova evangelização, das reformas da catequese, da pastoral da juventude e da família, do incitamento à participação nas celebrações dos sacramentos e especialmente da Eucaristia, são esforços louváveis para o relançamento espiritual, mas servem sobretudo para esconder e tentar esquecer problemas urgentes. Muitos católicos resolvem-nos abandonando a prática religiosa ou até a própria Igreja.
        Dito de forma mais explícita: sem o aprofundamento da ética social e sexual, sem a possibilidade de chamar mulheres e homens casados para os ministérios ordenados, sem a possibilidade de celebrar o casamento de divorciados recasados e de os incitar à participação plena na vida das comunidades cristãs, as instituições da Igreja perdem o presente e o futuro, enquanto sacramento, sinal e instrumento, da cura do mundo, isto é, o rosto visível da graça, da bondade e da misericórdia de Deus. Este caminho não tem nada a ver com “facilitismo pastoral”, cobertura da irresponsabilidade ou do vale tudo, pois sem conversão permanente não há Igreja que valha a pena.
       3. Para responder à pergunta sobre o “Estado da Igreja” no mundo actual temos de sair da sacristia e olhar para o que está a acontecer. Como observa Jean-Claude Guillebaud (Cf. La Vie – Le Monde 2012), desde o começo dos anos 80, vivemos quatro revoluções ao mesmo tempo: uma revolução económica, com a mundialização; uma revolução numérica e cibernética que deu à luz um quase-planeta, um sexto continente; uma revolução genética, que transforma os fundamentos da humanidade, as nossas relações com a vida, com a procriação e com a genealogia; uma revolução ecológica, com a tomada de consciência de que não nos podemos desenvolver como se fazia, desde há milénios. Por estas quatro razões, vivemos uma mudança, talvez tão importante como a revolução neolítica, há 12 mil anos (…), na qual o ser humano passou "de parasita a sócio activo da natureza", por vezes, também a seu agressor.
Perante estas esperançosas e assustadoras revoluções, o estado da Igreja terá de ser o de escuta e intervenção, para oferecer a todas as pessoas de boa vontade a sua gramática da transcendência da vida humana.
Frei Bento Domingues, O.P.

21 julho 2012

Se não comungas, não lês


De atitude decidida, caminhava com passos seguros em direcção ao altar. Inclinou-se, dirigiu-se para o ambão e passou o olhar pelas duas páginas do livro para se assegurar onde começava a segunda leitura. Mas a primeira palavra que iria pronunciar ficou-lhe suspensa na abóbada do céu-da-boca. A voz do padre sobrepôs-se: Francisca, tu não lês porque não comungas. Ela abriu um pouco mais os olhos grandes que Deus lhe ofereceu e sorriu com uma certa doçura na direcção da assembleia. Saiu da estante, fez novamente inclinação diante do altar e do celebrante e regressou ao seu lugar com a mesma passada firme e sem qualquer sombra de perturbação. Talvez um leve sinal de quem se interroga interiormente: mas o que é isto? Não sei o que pensaram as outras pessoas, se isso é normal acontecer, se já dão um desconto às atitudes do senhor abade, ou se ficaram a pensar no que se passará com aquela rapariga. Eu não pensei nela, estive toda a missa atento a ver se a outra leitora iria comungar. Foi. Por isso pus-me a pensar nas causas de tal proibição e vieram-me à mente as proibições que actualmente andam em voga na Igreja. Era isso. Depois da missa alguém me explicou a situação familiar da jovem que não leu. Casou pela Igreja com um não crente. Ela crescera num contexto eclesial católico, ele distante de tudo isso. Mas aceitou muito bem o casamento pela Igreja, o casamento é que não teve um desenvolvimento feliz. Entretanto ela tem agora um companheiro de vida a quem aconteceu qualquer coisa de semelhante. Não tendo possibilidade de que este seu amor seja abençoado pela Igreja, vivem placidamente na graça de Deus e dos amigos. Deve ser por isto que ela não pode comungar, pois já ouvi muitas histórias semelhantes. Não percebi se isso a preocupa, espero que não. Trata-se de uma espécie de lei da Igreja que deixa muita gente perplexa, tipo uma rua com o sinal de trânsito que indica: sem saída. A rua não tem continuação, mas pode-se lá entrar. O mesmo acontece com algumas pessoas na missa: podem entrar, participar, sabendo porém que não têm saída para os lados do altar. Esta jovem não pôde ler porque não vai à comunhão, mas não vai à comunhão porque a proíbem de ir. Ou seja, proíbem-na de fazer uma coisa, por não fazer outra que também lhe é proibida. Extraordinário! Que dirá o JP de tudo isto quando crescer mais um pouco? Baptizado aos seis anos, a meio da cerimónia levantou os dois dedos polegares virado para a assembleia e disse com segurança: está a ser fixe! Não sei o que terá querido dizer com isto, mas a verdade é que estava a ser feliz com o baptismo e, para a sua idade, já tinha suficiente consciência do que estava a fazer. Agora com doze anos fez a comunhão solene e parece continuar convencido de que é fixe. Que virá um dia a pensar o JP destas leis tão absurdas que em vez de incluírem excluem, em oposição ao que Jesus disse e fez? E não se pode evocar a autoridade da Igreja porque o ridículo e a parvoíce não têm qualquer autoridade. Nem Igreja. Diante disso só se pode dizer: valha-nos Deus! Estes dois acontecimentos passaram-se bastante longe um do outro, mas por casualidade estive relativamente perto de ambos. No primeiro caso fiquei perplexo porque fui completamente surpreendido. No segundo identifico-me bastante com o avô do JP: à cautela fica-se na ponta do banco para basar quando a fartação já é muita. Confesso que já o fiz. Quando saía reparei que o Jesus da tela da Ascensão mantinha o seu semblante glorioso.
frei matias, op  

15 julho 2012

Chamo a atenção para a publicação de um excelente livro que não é fácil de encontrar nas livrarias mas pode ser encomendado – primeiro: o autor, um teólogo de grande qualidade, com uma idade muito respeitável mas com uma cabeça excelente e uma bonomia encantadora. Trata-se de Artur Cunha de Oliveira que publicou Jesus de Nazaré e as Mulheres, a propósito de Maria Madalena (Angra do Heroísmo, 2011, edição do Instituto Açoriano de Cultura.) É um tomo respeitável de 583 páginas – ou seja, não é necessariamente para ler todo de uma só vez mas é uma fonte de alto nível que recomendo a quem se interesse por estas temáticas, chamando também a atenção de todos e todas aqueles e aquelas que se encontram em formação em seminários ou ordens religiosas.  O autor refere que o seu objectivo foi «fundamentar cientificamente a minha convicção a respeito das relações entre Jesus da Nazaré e Maria Madalena e (…) proporcionar ao leitor o mais largo e por vezes profundo contacto e familiaridade com as fontes primigénias e mais credíveis do Cristianismo que são as Sagradas Escrituras e os Padres e Escritores Eclesiásticos dos primeiros séculos da Igreja. (…) Quanto a Maria de Madalena a mesma investigação o que nos oferece é alguém do círculo íntimo de Jesus de Nazaré, senhora de bens e casada não se sabe com quem, que a primitiva tradição cristã aponta como alguém a quem primeiro foi revelada a Ressurreição. Tal qual sucedeu a tantas outras mulheres e quem o itinerante profeta galileu dispensou humana atenção, carinho e até ternura, foi curada de grandes males, pelo que Lhe ficou eternamente grata, acompanhando-O e socorrendo-O (e aos discípulos) com os seus bens. Nada mais. Foi o papa Gregório Magno que, numa homília no dia 21 de Setembro de 591, na Basílica de S. Clemente, em Roma, a confundiu com a ‘pecadora arrependida’ do evangelista Lucas (7, 36-50). A partir de então terminou a História e prinicpiou a Lenda.»
Ana Vicente

10 julho 2012

De acordo com notícias do jornal on-line “Página 1”[1], pertencente ao grupo da Rádio Renascença, o Cardeal Kurt Koch, responsável da Igreja Católica pelo diálogo ecuménico, considera que o aniversário dos 500 anos da Reforma “não é uma razão para festejar” e “apela antes por um memorial”. Embora as comemorações sejam de iniciativa da Igreja Luterana, haverá representantes católicos convidados, ao que parece. Acrescenta o jornal mencionado: “por uma questão de ecumenismo”. Mas o Cardeal Koch considera que, em vez de se festejar, o evento deveria ser “uma oportunidade para reconhecer erros de parte a parte”. Embora reconhecendo que as suas afirmações “poderiam ser vistas como anti-ecuménicas”, o Cardeal Koch considera que “não podemos festejar um pecado”, referindo-se, segundo o jornal Página 1, ao “pecado da separação”. O Cardeal considera que “deveria haver um evento durante o qual os representantes de ambas as partes pudessem reconhecer e perdoar mutuamente os erros cometidos”. A notícia termina com o seguinte parágrafo: “No dia 31 de Outubro de 1517, Martinho Lutero pregou as suas 95 teses à porta de uma Igreja, um evento que é considerado como tendo dado origem à reforma protestante na Europa Central.” Palavras mais do que escassas para explicar em que consistiu a intuição de Lutero!…
Esta notícia apareceu no preciso momento em que me dispunha a escrever este texto, pelo que ser-me-ia artificial não me referir a ela. Sobretudo, porque acredito que, sendo a separação entre os cristãos um escândalo e uma dor, uma concepção ecuménica da Igreja, centrada no facto de todos sermos irmãs e irmãos em Jesus Cristo, poderá constituir uma forma de olhar para todas as Igrejas (e insisto em dizer “Igrejas”) como cores de um único arco-íris. A maior dor, neste momento, para muitos cristãos, será o não avanço do diálogo ecuménico: disso, sim, teremos todos de nos arrepender. Mas, enquanto católica, sinto-me enriquecida pelas irmãs e pelos irmãos protestantes, herdeiros do rasgo teológico e espiritual de um Martinho Lutero que considerava necessário, em tempo de comércio de indulgências, acentuar que só a fé nos salva, e não as obras, isto é, que não são actos exteriores (inclusivamente os de eventual piedade puramente ritual), mas sem um coração entregue a Deus, que nos salvarão. E que a fé haverá de ser o fundamento para um agir cristão renovador do mundo. Assim como lhe devemos – todos, protestantes e católicos – a sua afirmação de que só a Escritura constitui o fundamento da tradição, pois toda a tradição constitui um serviço prestado à transmissão do essencial da nossa história de fé. Por isso, acredito que também temos todos matéria para festejar.
Teresa Toldy


[1] Jornal “Página 1”, edição do dia 25 de Junho de 2012, in: http://mediaserver.rr.pt/rr/others/428874089ac3c5.pdf

01 julho 2012

NÃO SABEMOS ONDE ESTAMOS NEM PARA ONDE VAMOS

1. Não sabemos onde estamos nem para onde vamos. Durante algum tempo, o entretenimento cultural eram as divagações, as conversas sobre modernidade e pós-modernidade. Deixemos, por enquanto, essa questão de lado.
Que não sabemos nem onde estamos nem para onde vamos, basta olhar para o que se passa com a “desunião europeia”. A Comissão e os chefes de Estado especializaram-se em reuniões sobre nada para chegarem a coisa nenhuma. Alimentam os especialistas do nada em questões europeias, preocupados apenas com a revelação e os ocultamentos de uma senhora alemã que parece não descansar enquanto não vir tudo a arder.
Não devemos, porém, ser demasiado severos com essa gente, pois o que vivemos, desde há vinte anos, é uma mutação prodigiosa. Talvez que só se produza uma semelhante de dois em dois ou de quatro em quatro mil anos.
 2. De forma mais precisa. Desde o começo dos anos 80, vivemos quatro revoluções ao mesmo tempo: uma revolução económica, com a mundialização; uma revolução numérica e cibernética que deu à luz um quase-planeta, um sexto continente; uma revolução genética, que transforma os fundamentos da humanidade, as nossas relações com a vida, com a procriação e com a genealogia; uma revolução ecológica, com a tomada de consciência de que não nos podemos desenvolver como se fazia desde há milénios. Por estas quatro razões, vivemos uma mudança, talvez tão importante como a revolução neolítica, há 12 mil anos, que fez passar a humanidade da caça à domesticação dos animais, da recolha à agricultura, do nomadismo à sedentarização ou, como se costuma dizer, o ser humano passou "de parasita a sócio activo da natureza", por vezes, também seu agressor.
3. Até há pouco tempo, a nossa ilusória representação do mundo colocava, no centro, o Ocidente que irradiava sobre o resto, sobre a periferia. O Ocidente incarnava a modernidade; a periferia era a tradição, o atraso. O centro irradiava quer de maneira violenta, pela conquista ou pela colonização, quer pela influência cultural, quer pela dominação tecnológica. No começo do século XVII, a cultura europeia recuperou do seu atraso em relação a outras grandes culturas mais antigas, como a da Índia e a da China. Ultrapassou-as, tornando-se hegemónica. Esta representação, que já leva quatro séculos, tornou-se caduca.
4. Com a intervenção americana no Iraque, os neoconservadores pensaram que podiam manter a superioridade ocidental sobre o resto do mundo. Hoje, sabemos que já não é possível. Os Estados Unidos já não têm meios para vencer quer no Iraque quer no Afeganistão. Já não conseguem governar o mundo. Alguns acreditaram que o Ocidente continuava a manter, no entanto, a superioridade na alta tecnologia. Dizia-se: os chineses fabricam meias baratas, mas nós fabricamos aviões caros e mantemos o segredo da sua tecnologia. É uma ilusão. Alguns países, como por exemplo a Índia, tornaram-se tão competitivos como os ocidentais. Alguns dias depois da falência do banco Lehman Brothers, a 15 de Setembro de 2008 – que levou a crise financeira ao seu paroxismo no Ocidente – deu-se a primeira saída de um astronauta chinês para o espaço. É um “piscar de olhos” da História. No mês seguinte, a Índia lançou a sua primeira missão espacial para a Lua. Como diz Jean-Claude Guillebaud, numa entrevista que, aqui, seguimos de forma livre, passamos a uma configuração, na qual já não existe um centro, mas vários, sem se poder dizer, hoje, qual será o hegemónico. Ocidente e modernidade já não sinónimos como se pensou durante algum tempo (Cf. La Vie – Le Monde 2012).
5. Os períodos de modernidade são sempre acompanhados de recusas. É, actualmente, o caso do Irão. O mundo muçulmano é atravessado, hoje, por um fundamentalismo que gostaria de parar o processo de modernização. Haverá violência. Não podemos, porém, dar razão a Samuel Huntington e à sua concepção de sete grandes civilizações, como se de entidades eternas se tratasse. Já há muito que não é assim. A China actual está atravessada por remodelações e por contradições como acontece no Ocidente. O mesmo se pode dizer da Índia, onde a literatura faz destas contradições dolorosas o seu tema principal.
6. Importa acabar com a ideia de que todos os países caminham para a democracia e que, tarde ou cedo, lá vão chegar. Basta que nós lha ensinemos. Para já, isso não funcionou no Iraque e não vemos como acontecerá em alguns outros países. Isto não significa que a liberdade não lhes interesse, pois, diz-se, pertencem a outra cultura. Ainda que muito confusas e problemáticas, as revoltas, conduzidas pela juventude, que surgiram na Tunísia, no Egipto, na Líbia, no Iémen, na Síria ou em Marrocos, mostram que o ponto de vista cultural não é pertinente. Ainda não sabemos onde irão dar as diversas “primaveras árabes”. Pode acontecer que sejam confiscadas pelos islamitas. Seria, no entanto, ridículo exigir que o mundo árabe realize em alguns meses uma “libertação” democrática que os ocidentais levaram tanto tempo a esboçar e com a qual nem sempre estão satisfeitos. E não ficaremos por aqui noutras partes do mundo. A sociedade chinesa, muito interessada pelas liberdades, parece que também está a reinventar mecanismos democráticos nas barbas do regime, usando a sua própria retórica. O Irão continua governado por uma teocracia obscurantista, mas a sociedade civil é dinâmica. Dito de outra maneira: outras formas democráticas germinam e elaboram-se, próximas e diferentes das que nós conhecemos.
Caminhamos para um choque de civilizações ou para uma mestiçagem cultural? É cedo para o dizer. De qualquer modo, o horizonte dos cristãos deve ser o de Jesus Cristo: reunir numa só família toda a humanidade, todos os filhos de Deus dispersos (Jo 11, 52).

Frei Bento Domingues O.P.