30 dezembro 2012

SERÁ JESUS CRISTO UMA CAUSA PERDIDA? (2)

1. Neste Natal, D. Manuel Martins voltou a mostrar que não está cego, nem surdo, nem mudo. Declarou, a vários órgãos de comunicação social, que os actuais governantes não estão à altura do momento. Constituem um executivo mal alinhavado. O resultado está à vista: grande parte da população foi lançada no escuro do desespero e vive dominada por mil ditaduras. Tem medo de hoje e de amanhã, de perder o trabalho, de não poder resolver os seus problemas e de ter de deixar a sua casa. Sente-se no fundo de um poço e sem dinheiro para a corda que a puxe para cima.
Este bispo não isolou a desorientação caseira do sistema predominante no Ocidente, “uma espécie de religião fundamentalista seguida pelos poderosos que passam a vida ajoelhados diante do lucro e do dinheiro” esperando alargar, cada vez mais, a sua dominação financeira, sem olhar para o que poderia ser o verdadeiro interesse público.
Nessas declarações, a Igreja Católica também não foi poupada: anda atrasada e, em Portugal, está a falhar metade da sua missão.
Nenhum católico está obrigado a concordar nem com o diagnóstico, nem com a terapêutica que D. Manuel Martins propõe para sairmos do buraco que, dia a dia, se apresenta mais fundo. Como poderia ele, no seu retiro de bispo aposentado, virar as costas ao clamor da “miséria imerecida” do povo português?
2. Começam, agora, as dificuldades para responder ao título desta crónica. Hoje, só um ignorante se atreveria a negar a existência histórica de Jesus de Nazaré. Só alguém muito inconsciente pode dizer que sabe não só por que lhe chamaram, e continuam a chamar, Cristo, Messias, Filho de Deus, Filho do Homem, mas, sobretudo, o que é que verdadeiramente isso significa de vital para o nosso dia-a-dia.
São muitos os testemunhos escritos que as primeiras comunidades de discípulas e discípulos de Cristo nos deixaram. Lendo, relendo e estudando-os, a impressão que nunca me abandona é esta: Jesus não cabe nos textos do Novo Testamento, nem nas fórmulas dogmáticas e cristologias elaboradas, ao longo de dois mil anos. Falam sempre de alguém que lhes escapa. Todas as narrativas e todo o jogo de títulos, disponíveis e imagináveis, que lhe são atribuídos, são sempre roupa muito curta para o vestir. Dá-me sempre vontade de rir quando me perguntam: mas ele era Deus? Respondo sempre, da forma mais ortodoxa: verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Fico aflito quando as pessoas sossegam com a resposta. Ninguém conhece o mistério absoluto que Deus é, nem o mistério que o ser humano é para si mesmo. A intervenção de Jesus não desfez o mistério, revelou a sua insondável profundidade.
3. Nos Actos dos Apóstolos, Pedro, chamado a explicar-se porque teimava em actuar em nome de Jesus Cristo Nazareno, teve uma resposta atrevida: “porque não há sob o Céu outro nome, dado aos seres humanos, pelo qual devemos ser salvos” (Act. 4, 12). Isto parece uma apologética barata e de mentalidade exclusivista: a verdade e o bem são propriedade nossa e só nossa. Se assim fosse, estaríamos no mercado da concorrência das religiões.
Nada disto tem a ver com o que, de facto, se passou com Jesus e por que motivo uma estranha coligação – dos chefes das nações pagãs e dos povos de Israel -, o levou à cruz.
Jesus não tinha trazido ao mundo nenhuma ciência, nem nenhuma técnica que pudessem ser reproduzidas para o progresso da humanidade. O seu contributo, nesse campo, é nulo. Então porque será que Pedro o tem por indispensável e insubstituível?
A intervenção e a palavra de Jesus estavam centradas em ajudar a descobrir o essencial: que haverá de mais humano em qualquer ser humano que ninguém tem direito de ofender, quer por razões do Céu, quer da Terra? Ele descobriu e denunciou dois poderes geradores de permanente dominação desumanizadora: a religião e o dinheiro. O seu combate às formas e preceitos mais sagrados da religião em que foi educado valeu-lhe uma desautorização completa. É pelo diabo, por Beelzebu, que ele faz até o bem que faz, pois se fosse um homem de Deus, guardava o Sábado, a instituição mais sagrada do seu povo (Mt. 12, 22-32).
Ninguém pode servir a Deus e ao Dinheiro. Esta sentença é muito repetida e esquecida. Já os fariseus, amigos do dinheiro, zombavam da incompetência financeira de Jesus (Lc. 16, 14).
É, no entanto, muito possível que o Nazareno continue a ter razão. Quem estiver possuído pela vontade de ter cada vez mais dinheiro, mais poder de dominação, quem se deixar possuir pelo lucro a qualquer preço, pelo perverso prazer de ter dinheiro, quem deixar que ele tome conta do seu coração, vive em suprema idolatria. O essencial do ser humano evaporou-se. A gratuidade do dom que Deus é e à imagem do qual o ser humano se realiza como humano, desapareceu do horizonte.
Não me parece nada que Jesus seja uma causa perdida. Penso o contrário. As civilizações humanas são feitas da construção de impérios de dominação e do estrondo da sua ruína. Quando se esquece que todas as ciências, técnicas e formas de desenvolvimento só valem na medida em que servem o que não tem preço, o que não é meio para algo mais valioso, perde-se o essencial.
Que poderemos dar em troca do ser humano?

Frei Bento Domingues, O.P.

Publicado no Público que, mais uma vez, deturpou esta crónica não incluindo a última frase    

23 dezembro 2012

SERÁ JESUS CRISTO UMA CAUSA PERDIDA? (1)

1. Em 1834, Gaia e Vila Nova juntaram-se. Em 1984 esta união passou a cidade. Porque tinha sido fronteira entre o estado árabe e o cristão, a partir do séc. VII D.C., agora diz-se, no humor da Ribeira portuense, que um “mouro” resolveu finalmente ultrapassar o rio, pois não se resigna a ficar para sempre apenas como ex-presidente do terceiro município mais populoso do país.
Antes ainda de ser vila e cidade, Gaia já estava coroada por um grande centro religioso, o Mosteiro agostinho da Serra do Pilar. Ir ao Porto e ignorar esta bendita serra, é como ir ao Rio de Janeiro e esquecer o que se vê do alto do Corcovado. Entretanto, em Portugal, a partir do séc. XIX, desenvolveu-se o fascínio militar pelo sagrado. Também este célebre mosteiro é agora uma caserna. Ainda assim, o belo edifício da antiga Igreja, de planta circular, reúne uma criativa, fervorosa e lúcida comunidade católica, não paroquial, que me acolheu num debate muito participado sobre o Concílio Vaticano II e numa admirável celebração litúrgica. É pena que esta comunidade disponha de espaços tão reduzidos para as iniciativas sociais que desenvolve, consequência de uma fé cristã empenhada na alegria dos mais carenciados.
Hoje, Vila Nova de Gaia já não é só o esplendor da vista sobre a foz do Douro, sobre as torres e telhados do Porto, ou a presença restaurada do Mosteiro de São Domingos das Donas, Corpus Christi, junto ao Cais e às memórias das caves do vinho mundialmente conhecido, assim como o novo passeio à beira rio e à beira mar que se prolonga até Espinho; é também a maior concentração de grandiosos supermercados e a nova capital da religião da prosperidade, o Cenáculo do Espírito Santo, da IURD, em construção avaliada no módico custo de doze milhões de euros (PUBLICO 17.12.12). Espero que o infigurável Espírito Santo não se esqueça das exigências da expressão humana da divina beleza.
2. Observam-me que se está apenas a retomar a velha e nova crença das religiões do Oriente e do Ocidente: se Deus é Deus, todos os gastos são poucos para afirmar a sua infinita grandeza. Quando a grandeza e a beleza dos templos é confrontada com a miséria das populações, aparece sempre alguém a dizer: os pobres morrem, a arte, mistério do tempo, fica para o futuro. Serão, muitas vezes, o único refúgio da vida alienada.
Parece evidente que a estética se consuma na beleza das formas, sem se importar com a vida concreta das pessoas. O equilíbrio entre a vida da arte e a arte da vida não parece inquietar ninguém, porque custa interrogar os poderes – económicos, políticos e religiosos - sobre a raíz dessas aparentes, e talvez falsas, incompatibilidades. Se a arte não tem, nem tem de ter, porquê nem para quê, a economia, a política e as religiões não se podem dissociar do bem comum das pessoas. Nenhuma mão invisível do egoísmo o pode guiar para o bem geral da sociedade.
Seja como for, grande parte do um património artístico é também um riquíssimo património religioso. É inevitável a pergunta: serão esses jogos simbólicos os mais adequados a exprimir a fé cristã e, sobretudo, a de quantos fizeram voto de pobreza voluntária, tornando-se disponíveis para lutarem contra a miséria e a humilhação impostas aos “sem vez nem voz”? Qual será a preferida morada de Deus, os templos da sua eleição? A conversa de Jesus com a maravilhada samaritana é incontornável (Jo 4, 21-24). Vejamos porquê.   
3. Jesus nasceu, segundo S. Lucas, numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na sala estalagem (Lc 2, 7). Nunca prometeu grandes luxos aos seus seguidores, com a desculpa de que, de seu, não tinha nem uma pedra onde reclinar a cabeça. Uma igreja “serva e pobre” será sempre um caminho pouco apetecível.
Jesus viveu em Nazaré onde trabalhou e passou a discípulo de João Baptista, por quem foi baptizado, como lembrei no passado domingo. O percurso do seu mestre desenvolveu-se à margem da religião do templo de Jerusalém. Embora tivesse grande admiração por ele, Jesus teve uma experiência espiritual que O levou a afastar-se de João e a seguir outro rumo. Jesus deu-se conta de que Deus não era uma ameaça, um deus da ira. Era, literalmente, uma bênção, uma declaração de amor incondicional, não só para ele próprio, mas para todas as pessoas do mundo, sem sair da sua terra. Só foi duas vezes ao estrangeiro.
Fazia parte de uma sociedade organizada com grupos e partidos política, religiosa e moralmente classificados.
O estatuto de subordinação total da mulher era imposto pelos homens. Tornaram-no tão detestável e arbitrário, que se compreende bem que agradecessem a Deus não terem nascido mulheres. A religião oficial era, aliás, um sistema de exclusão. Ao multiplicar as prescrições do que se devia fazer e evitar, em nome de Deus, a grande maioria não podia deixar de estar sempre em falta. Salvava-se a casta dos puros para apontar o dedo aos que eles classificavam como pecadores. A contínua acusação contra Jesus residia, precisamente, nisso: estar à mesa com pecadores e publicanos, isto é, estar em comunhão com os que, supostamente, Ele deveria excomungar.
Jesus não morreu de doença, de acidente ou de velho. Porque terá sido morto e continua vivo?
Bom Natal.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 23.12.2012

21 dezembro 2012

Elle défend les droits des femmes

Sœur Clare Nolan Sœur du Bon Pasteur Lobbyiste à l'ONU, Sœur Clare Nolan est emblématique de l'action, parfois ambiguë, des religieuses américaines dans la société.

La chemise ouverte sur un tee-shirt et un pantalon souple, Clare Nolan se glisse dans les couloirs des Nations unies avec aisance. « Les gens me reconnaissent même sans habit religieux », assure cette Sœur du Bon-Pasteur, âgée d'une soixantaine d'années, l'une des premières religieuses américaines lobbyiste à l'ONU (1).
Après un quart de siècle passé sur le terrain à s'occuper de femmes en grande difficulté, celle qui, un temps, avait envisagé d'entrer au carmel prit à cœur « l'appel de l'Église à promouvoir la justice sociale » et s'est formée pour défendre les droits des femmes à l'échelle internationale. « Moi qui venais du monde des adolescentes, j'ai dû apprendre la diplomatie ! », sourit-elle.
Aux Nations unies, comme dans son bureau exigu du centre de New York, sa priorité est de maintenir les droits des fillettes à l'agenda des gouvernements. « Une fois seulement, un ministre a tourné les talons lorsque je l'ai abordé. En général, nous sommes écoutées, mais il nous a fallu du temps pour faire comprendre que la prostitution est une exploitation de la personne. »
Clare Nolan forme aussi les équipes sur le terrain à la dimension spirituelle de la justice. La religieuse ne cache pas que sa mission a transformé en profondeur sa relation à Dieu. Ainsi pour le désigner, a-t-elle banni de son vocabulaire toute forme masculine afin de « manifester spirituellement » son refus de cautionner « le système patriarcal qui oppresse tant de femmes dans le monde et dans l'Église ». La lobbyiste évite même de mener des campagnes de promotion de la femme avec les représentants du Saint-Siège à l'ONU « tant qu'ils n'appliquent pas ces principes au sein de l'Église ». « Ma vocation n'est pas de traiter en priorité avec les évêques, mais avec les juges, les services sociaux, le système civique », justifie-t-elle.
Le soir, Sœur Clare retrouve les deux religieuses avec lesquelles elle partage un appartement à Brooklyn, mais reconnaît que leurs emplois respectifs rendent difficile une prière commune. Elle médite souvent seule les psaumes, lit Teilhard de Chardin et Thomas Merton, mais aussi des ouvrages de théologie cosmique ou féministe.
A la retraite, cette femme indépendante, qui a souffert de voir si peu de novices américaines prendre le relais, aimerait continuer à être proche des jeunes religieuses de sa congrégation, dans les pays du Sud.

(1) Une trentaine de congrégations sont représentées aujourd'hui.
HOYEAU Céline
in La Croix 18.12.2012

20 dezembro 2012

Pastores da alegria

Chove suavemente. Sendo a chuva assim, lá vão com as ovelhas dois amigos pastores, cada um com o seu rebanho. Um bebia muito desde muito novo e o médico disse-lhe um dia que “ou beber ou viver”. Ele contrapôs que se não bebesse morria mais depressa, mas na companhia das ovelhas juntou os vês com os bês e conseguiu um nível alcoólico razoável. O outro bebeu tudo o que tinha a beber de modo concentrado na rápida juventude. Depois, crente de que não chegaria aos 50 anos porque o mundo iria acabar antes, passou a beber água e pouco mais. Lá vão eles agora debaixo de uma chuva miudinha, cada um para seu lado. Lembrei-me deles por causa dos pastores do presépio, muito falados nesta época e com uma grande visibilidade no cenário do nascimento de Jesus. A luz resplandecente de um céu rasgado para os anjos descerem à terra deixa os pastores assombrados, porém a sua presença como primeiras testemunhas da salvação, parecendo tão romântica está carregada de ironia. O que geralmente se diz é que os pastores eram um dos grupos mais desconsiderados e condenados naquele povo portador da salvação para toda a gente. A razão principal seria o facto de levarem um tipo de vida afastado do convívio social e, portanto, distante das obrigações religiosas e do cumprimento da Lei. Para além do cenário que envolve os pastores do presépio e do seu significado, cabe perguntar: de quem seriam as ovelhas que apascentavam? Deles não podiam ser. Os pobres tinham poucas ovelhas e guardavam-nas junto da casa, os grandes rebanhos que ficavam nos campos eram propriedade dos grandes senhores da terra. E quem seriam esses senhores de grandes rebanhos? Eram os senhores de tudo: da economia, das finanças, da religião, da teologia, das leis, até mesmo da imagem de Deus. O Templo era o centro religioso e político para onde tudo isto confluía e a partir do qual tudo era determinado. As ovelhas eram uma parte da questão mas não desprezível. Todos os anos pela Páscoa eram sacrificados milhares de cordeiros vindos dos rebanhos a preços que nem todos podiam pagar. Os que não podiam pagar ofereciam a Deus um par de rolas ou pombas, envergonhados e cheios de temor. Depois as peles dos cordeiros eram objecto de manufacturação que trazia grandes lucros, como por exemplo os odres que rebentavam com o vinho novo quando já eram velhos. E havia a lã, o leite, os próprios chifres dos carneiros. Onde está a ironia? Um dia falei aqui de uma jovem que não podia ler a leitura na missa porque não comungava. E que não comungava porque não a deixavam, por motivos ridículos. Neste caso passa-se algo semelhante: os pastores eram condenados pelos senhores do Templo e os seus sócios da Lei, por não cumprirem nem viverem o que estava estabelecido. Mas não cumpriam essas coisas porque eram pastores e tinham que andar nos campos a cuidar dos rebanhos dos senhores do Templo. Trabalhavam para aqueles que os condenavam. Era esse Templo que Jesus queria destruir e ainda quer, eternamente. A imagem dos pastores no presépio tem, por isso, uma grande densidade. Eles são o riso de Deus diante daqueles que se apresentam como deuses para o povo. São eles que anunciam a salvação àqueles que em vez de terem Deus como Senhor, são subtilmente os senhores de Deus. Mas o último a rir é sempre Deus, e os pastores são os portadores da alegria dos céus diante daqueles que proibiam ou tornavam impossível a alegria na terra. Penso neles ao ver o Armindo e o Laurindo, e o contrário também. Lá vão os dois agora debaixo de uma chuva miudinha, um contente porque o mundo ainda não acabou e pôde chegar aos 50 anos, o outro porque pode beber um dia de cada vez e viver todos os dias. Não vão muitas vezes à missa por razões de algum modo razoáveis, mas sei que rezam e não rezam orações egoístas. Creio que se numa noite de lua cheia começassem a gritar que o céu se tinha rasgado nas suas cabeças e tinham visto anjos a voar, um seria levado ao hospital para desintoxicação alcoólica e o outro para a esquadra por alucinações acerca do fim do mundo. Mas não vai acontecer porque o Natal, na sua mensagem de paz, esclarece tudo isso com a mesma serenidade da chuva miudinha caindo nos abrigos destes dois amigos.

Frei Matias, O.P.

14 dezembro 2012

Abusos sexuais na Igreja

Nesta época em que celebramos a chegada ao mundo de uma criança que iria
transformar esse mundo e que tanto recomendou que deveríamos ter o maior cuidado com as crianças e até procurar imitá-las, é triste ter que abordar um tema que tão profundamente   encarna o MAL. 
O episódio agora vindo a público,em que um padre, vice-reitor do Seminário do Fundão,  é acusado de abusos   sexuais por seminaristas a ele confiados tem que ser enfrentado por nós todas e todos que somos Igreja. Tal como o Movimento Internacional Nós Somos Igreja - Portugal afirma na sua Tomada de Posição sobre o assunto, «no passado dia 18 Maio, 2012, em carta a D. José Policarpo, Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, afirmávamos o nosso apoio e aplauso ao documento “Directrizes Referentes ao Tratamento de Casos de Abuso Sexual de Menores por Parte de Membros do Clero ou Praticados no Âmbito da Actividade de Pessoas Jurídicas Canónicas,” então divulgado. Afirmávamos nós que as “Directrizes” poderiam ser utilizadas como sinal de esperança para que as vozes de vítimas silenciosas se fizessem ouvir. As “Directrizes” apareciam como útil instrumento para a prevenção e dissuasão de tais crimes e sinal de certeza para a punição dos culpados.  O tema explode agora com destaque nos meios de comunicação social e é motivo de pasmo, tristeza, desagrado para o Povo Português, católico ou não. É desconforto e grave problema para a hierarquia, que pela voz do bispo da Guarda declara colaboração com a investigação penal. Esperemos o desenrolar dos acontecimentos.»
Dado o facto de que em muitos países, estes crimes terem sido praticados e seus actores finalmentepunidos, leva-nos afazer a seguinte reflexão: Como é que pessoas que supostamente dedicaram e dedicam a sua vida a Cristo, como todas/os somos chamados a fazê-lo, puderam assim violentar e agredir física e psicologicamente pessoas vulneráveis, com a cumplicidade e ignorância voluntária dos seus superiores, inclusive dos bispos? Ficamos aterradas e envergonhadas. Sou obrigada a sugerir que a atitude temerosa e excluidora da instituição-Igreja face às mulheres, a incompreensível insistência do Vaticano em impôr o celibato obrigatório ao clero secular, propondo que o sacramento do matrimónio é incompatível com o sacramento das ordens (excepto, por razões demasidamente evidentes, para o clero anglicano), a persistente atitude negativa face à sexualidade, em muito contribuiram e contribuem para estas situações vergonhosas.
Ou seja, como conclui a nossa tomada de posição « Que este gravíssimo episódio encoraje uma séria reflexão sobre as reformas que urge implementar no funcionamento da Igreja instituição e que o nosso Movimento tem vindo a propor.»
Ana Vicente - Dezembro 2012 

09 dezembro 2012

Tomada de posição do Movimento Nós Somos Igreja - Portugal acerca da investigação sobre abusos sexuais no Seminário do Fundão

No passado dia 18 Maio, 2012, em carta a D. José Policarpo, Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, afirmávamos o nosso apoio e aplauso ao documento “Directrizes Referentes ao Tratamento de Casos de Abuso Sexual de Menores por Parte de Membros do Clero ou Praticados no Âmbito da Actividade de Pessoas Jurídicas Canónicas,” então divulgado. O Movimento Nós Somos Igreja Portugal congratulou-se pela iniciativa da Conferência Episcopal Portuguesa, que assim tomava uma posição em face do tema mais polémico e fracturante na história recente da Igreja - instituição. Afirmávamos nós que as “Directrizes” poderiam ser utilizadas como sinal de esperança para que as vozes de vítimas silenciosas se fizessem ouvir. As “Directrizes” apareciam como útil instrumento para a prevenção e dissuasão de tais crimes e sinal de certeza para a punição dos culpados. Logo que divulgado o documento, o Movimento Nós Somos Igreja Portugal acreditou na contribuição da Igreja para a eficácia da Justiça, concretizada em penas efectivas para os abusadores. O tema explode agora com destaque nos meios de comunicação social e é motivo  de pasmo, tristeza, desagrado para o Povo Português, católico ou não. É desconforto e grave problema para a hierarquia, que pela voz do bispo da Guarda declara colaboração com a investigação penal. Esperemos o desenrolar dos acontecimentos.

Que este gravíssimo episódio encoraje uma séria reflexão sobre as reformas que urge implementar no funcionamento da Igreja instituição e que o nosso Movimento tem vindo a propor.

CORTAR NAS GORDURAS DO PRESÉPIO

1. Terão sido as “modernices” de um livro que provocaram conversas, ora bravas ora jocosas, com um desfecho pouco natalício: “esse Joseph Ratzinger nem vestido de cor-de-rosa será bem recebido no presépio” deste ano.  
 Convém esclarecer que este Joseph Ratzinger nasceu em 1927, na Alemanha, ensinou teologia em prestigiosas universidades, o Cardeal Frings, arcebispo de Colónia, escolheu-o para conselheiro e foi designado como perito no Concílio Vaticano II. Não tendo ele nenhuma simpatia pela teologia romana, colaborou com gosto na sua despromoção. Em 1977, Paulo VI nomeou-o arcebispo de Munique e em 1981, João Paulo II designou-o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. A 19 de Abril de 2005, foi eleito Papa e adoptou o nome de Bento XVI.
Sucedeu a João Paulo II que nunca revelou “tentações progressistas”, mas teve alguns gestos que ficaram como referências cristãs para o futuro: multiplicou os pedidos de perdão, opôs-se frontalmente à política belicista de Bush e realizou o belo e inesperado encontro inter-religioso de Assis. Durante o seu pontificado, além das muitas viagens, como peregrino e pastor, publicou longos documentos oficiais que continuam a descansar nas bibliotecas religiosas.
O itinerário e o estilo de Joseph Ratzinger são diferentes. Durante o Vaticano II, não era um desconhecido, não esteve inativo, mas também não era das estrelas mais brilhantes do céu teológico. Tornou-se pouco simpático na Europa, na América Latina, na Ásia e em África, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Assustado com os rumos da teologia pós-conciliar, perdeu o gosto pela liberdade de investigação e expressão dos autores mais ousados. No conhecido estilo alemão, quem tem autoridade, exerce-a. Ficou-se a saber muito rapidamente quem mandava e qual era a doutrina segura.
2. Eleito Papa, serenou o ritmo de documentos pontifícios. Preferiu retomar o seu curso de obras teológicas, da sua inteira responsabilidade, discutíveis, portanto. Quem gostasse, gostava; quem não gostasse, poderia avaliá-las segundo os critérios habituais da crítica livre. Publicou uma trilogia cristológica. Recebeu elogios, reparos e rejeições. Nada de mais saudável.
Os editores sabiam, no entanto, que este autor não é papa dia sim, dia não. Toda a sua produção teológica, de qualquer das suas fases, seria sempre apresentada e recebida como escrita do Papa. Este facto daria a tudo o que escreveu, desde sempre, um valor acrescentado de que mais nenhum autor pode gozar: obra de Joseph Ratzinger é de Bento XVI.
A trilogia cristológica sobre Jesus de Nazaré chegou ao fim, a falar dos começos: o 1º volume foi sobre a Vida de Jesus, desde o baptismo até à transfiguração; o 2º, desde a entrada em Jerusalém até à ressurreição e o 3º, que acaba de ser editado em nove idiomas e com um milhão de exemplares, é dedicado à Infância de Jesus. Ninguém pode ser classificado como não católico por não ter as opiniões exegéticas, históricas e cristológicas de Bento XVI.
Enquanto o debate sobre o “Jesus da história e o Cristo da fé” se ocupar de questões acerca das quais o comum dos fiéis não dispõe de instrumentos para se pronunciar, com conhecimento adequado, o debate - se debate existir - ficará sempre entre especialistas. Embora com a ambiguidade editorial apontada, nada de grave poderá acontecer.
 3. Os grandes meios de comunicação precisam do insólito, não de uma licenciatura, para se ocuparem de religião. Com todas as cidades iluminadas, com a publicidade desencadeada em tudo quanto é sítio, poder-se-ia supor que os natais são todos iguais. De repente, tocam os sinos a rebate: com a autoria de Joseph Ratzinger e Bento XVI, o livro sobre a Infância de Jesus, tinha expulso o burro e a vaca do presépio, deixando Jesus ao frio. A preocupação com a limpeza do presépio criou uma questão ecológica e teológica: a vaca e o burro, apesar de séculos e séculos de ocupação, tinham perdido o direito à casa, à personalidade jurídica e deixavam de figurar na recriação do mundo, com o mais belo nome de Jesus, Emmanuel, Deus connosco.
Há limites para cortar nas gorduras do Presépio. Por este caminho, ainda vão despedir os pastores, cortar os presentes dos Reis Magos e racionar as horas de iluminação do presépio. Perigo maior: teremos a família da crise, pai, mãe e um filho, cortando as narrativas sobre os “irmãos e irmãs” de Jesus.
Afinal, tanto alarido para nada. Joseph Ratzinger/ Bento XVI diz explicitamente que nenhuma representação do presépio prescindirá do boi e do jumento. Não acredito que venha a haver um desmentido oficial da notícia infundada, nem um pedido de desculpas à vaca e ao burro.
Não sejamos demasiado severos. Neste natal, não vinha muito a propósito a repetida conversa sobre os exageros consumistas; os subsídios foram retidos na fonte e como tinha de haver despedimentos no presépio, os animais foram os primeiros. Veremos o que acontece aos Reis Magos no próximo ano, já que o galo só serve para a missa.
S. Marcos começou o seu Evangelho pela vida adulta de Jesus. Nada contra, mas as crianças também têm direitos. É bom que se saiba que Jesus não nasceu adulto. Só peço que não façam dogmas dos frutos da imaginação da fé.
Frei Bento Domingues, o.p.

in Público 9.12.2012

02 dezembro 2012

COMBATE À RECESSÃO LITÚRGICA (II)

1. Consta que existe um movimento de retorno à missa em latim, com o padre de costas para o povo ajoelhado.
Tive aulas de teologia em latim, activas e passivas. Continuo a gostar de ler o meu querido confrade, Tomás de Aquino, na limpidez dos seus textos que falam das mil formas da misteriosa presença de Deus na evolução do mundo, sem interferir nas leis da sua inviolável autonomia, investigadas pelas diversas ciências.
A missa em latim e de costas para o povo conheço-a desde criança, como sacrifício que ia aguentando como todos, até ao fim, acompanhada da monotonia do terço, à espera do “ sed libera nos a malo” - do padre “à procura da mala” - sinal de que aquilo estava prestes a acabar.
Nunca esquecerei um colega de escola que dela só reteve e fixou o encantamento de falange, falanginha e falangeta. Com esse recurso, conseguiu ser o melhor nas respostas ao senhor abade, bastante mouco, no exame de catequese. Passou a ajudar à missa e quando o celebrante se virava para dizer “dominus vobiscum”, respondia com o seu melhor latim: falange, falanginha e falangeta.
Dir-se-á que coisas destas só eram possíveis num povo muito atrasado, da serra do Gerês. Tenho, diante dos olhos – reproduzo com a grafia da época - o Compendio de Orações e Práticas Piedosas Dedicado á Juventude Catholica, pela empresa editora do Bem Público (Lisboa 1909), com aprovação eclesiástica de António, Patriarcha de Lisboa, que, para tanto, pediu parecer a “pessoa competente”.
O assunto é litúrgico, nada menos do que a Explicação dos mysterios da missa. Não posso transcrever, na íntegra, essa peça exemplar e citadina. O começo diz o estilo de todas as outras instruções: Quando o sacerdote sae da sacristia revestido, representa Christo quando saiu do ventre virginal de Nossa Senhora ao mundo, e quando subiu ao monte Calvario a obrar os mysterios da nossa redempção. O que a seguir diz da corôa, do amícto, da alva, do cordão, do manípulo, da estola, da casula, do sebasto da casula, do templo, do altar e da pedra d’ara, da cruz, dos corporaes, pala e toalha, do cálix, da patena, da hostia e vinho, é ainda mais hilariante. Nada tem a ver com nada.
2. Textos destes situam-se no grau zero da inteligência da pré-história do soluçante movimento litúrgico em Portugal, embora já estejam registados alguns momentos do seu despertar[i].
Não espanta, no entanto, que a constituição litúrgica, Sacrosanctum concillium (4.12.1963), tenha sido o primeiro documento votado e aprovado no Concílio Vaticano II, marcando uma tal viragem nos seus debates que influenciou, de forma positiva, tudo o que veio a seguir.
Tinha sido preparada pelas grandes intuições, iniciativas e pesquisas que desaguaram no movimento de pastoral litúrgica da Áustria, Alemanha, Bélgica, França, etc., em simbiose com a renovação da arte sacra - arquitectura, pintura e música – e com as reformas do Tríduo Pascal dos anos cinquenta do século passado.
A constituição aprovada ia de encontro ao que se desejava para um concílio de renovação da Igreja que compreendesse o mundo contemporâneo e que este, nas suas contradições, alegrias e tristezas, pudesse entender o sentido da mensagem evangélica. Chegava ao fim o tempo de uma Igreja que só falava latim e de costas para o povo.
3. Sem uma língua oficial e universal, temia-se que a Igreja se tornasse uma Torre de Babel. Esta analogia não era muito feliz. Segundo o mito bíblico, foi Deus que não gostou de um mundo reduzido à ditadura de uma só cultura e de uma só língua. A Divindade pode ser escutada e louvada em todas as línguas da Terra. O Pentecostes, que abriu a Igreja ao mundo na sua diversidade e o mundo à pluralidade dos carismas do Espírito Santo, mostra que cada povo pode ouvir a mensagem da ressurreição, nas expressões da sua própria cultura.
A viragem litúrgica do Vaticano II meteu a Igreja em trabalhos e para sempre. Não há decretos, rituais, traduções de textos que possam substituir a criatividade literária, musical e artística da cultura própria das comunidades. Pensar que basta formatar um pronto a servir, com todas as indicações do que está permitido e proibido fazer, é regressar ao império do direito canónico e do rubricismo, nova edição de uma liturgia de costas para a criatividade do povo cristão. Este não está situado fora ou acima do tempo e da cultura em que vive. Os cristãos não existem para dizer ámen a tudo. Uma celebração litúrgica que não seja percorrida por uma mística e uma ética, que não seja uma energia de mudança de vida, será sempre um ritual vazio.
A ritualidade é inerente à condição humana, religiosa ou não. A liturgia é uma antropologia para Deus e uma teologia para os seres humanos. Para os cristãos, o conjunto das acções rituais é a mediação da graça de Deus a nível cognitivo, emocional e estético.
Uma missa que só investe na homilia é apenas instrução, a escorregar para o moralismo; se apenas procura emoções, assim como aquece, arrefece; se é só estética, torna-se arte pela arte.
A liturgia é convocatória de todas as artes para que a vida seja bela.

[1] Bernardino Ferreira da Costa, osb Movimento Litúrgico em Portugal, Ora & Labora, Singeverga 2009

Frei Bento Domingues, o. p.
     in Público

01 dezembro 2012

DEVOCIONARIO


COMPENDIO DE ORAÇÕES
-- E --
PRATICAS PIEDOSAS
Dedicado á Juventude Catholica
Pela empresa editora do Bem Publico
Typographia de Germano da Silva
Rua da Padaria, 48 – Lisboa


Approvação Ecclesiastica
Conformando-Nos com o parecer de pessoa competente, a quem cometemos o exame do opusculo que tem por titulo «Devocionario»; e considerando que a recitação de orações n’elle collegidas muito póde concorrer para alimentar e afervorar a piedade nos fieis: Havemos por bem conceder a Nossa aprovação ao referido «Devocionario».
Paço de S. Vicente de Fóra, 4 de Abril de 1909

António, Patriarcha de Lisboa

Explicação dos mysterios da missa
Quando o sacerdote sae da sacristia revestido, representa Christo quando saiu do ventre virginal de Nossa Senhora ao mundo, e quando subiu ao monte Calvario a obrar os mysterios da nossa redempção.
A corôa na cabeça representa a de espinhos, que por escarnio puzeram ao Senhor.
O amícto significa o véo com que os soldados lhe vendaram os olhos.
A alva significa a vestidura branca, que por escarneo mandou pôr Herodes ao Senhor.
O cordão significa a corda com que ataram o Senhor, quando O prenderam e levaram preso a Jerusalem, com que o amarraram á columna, e os açoutes que lhe deram.
O manipulo significa o cordel xom que ataram as mãos ao Senhor.
A estola significa a corda que lançaram ao seu santo pescoço quando lhe puzeram a cruz ás costas.
A casula significa a túnica de que despiram o Senhor para o crucificarem, e a purpura que por escarneo lhe puzeram os soldados.
O sebasto da casula (que em França, com muita propriedade, forma uma cruz) significa a cruz que o salvador levou ás costas
O templo significa a Igreja catholica, e a congregação dos fieis em Jesus Christo.
O altar e a pedro d’ara quadrada significam a cruz em que o Senhor morreu.
A cruz que se põe sobre o ltar significa a Christo crucificado.
Os corporaes, pala e toalha do altar significam o sudário em que o Senhor foi amortalhado.
O cálix significa o sepulcro .
A patena significa a lousa com que se encerrou o sepulcro .
Infelizmente, o opúsculo estava ratado e daí que A hostia e o a o vinho significam não sabemos o quê.

Esta é uma proposta que aconselho a quem desejar uma introdução ao futuro da restauração do passado litúrgico que tantas saudades desperta em quem a não conheceu, por indução de quem não sabia nada e nada aprendeu.
Eu fiquei passado com tanta sabedoria

Frei Bento Domingues, O.P.
1 de Dezembro
Nota: Conservei a grafia de 1909