25 fevereiro 2018

PORQUE SERÁ QUE A ALEGRIA DO AMOR DÁ TANTA TRISTEZA

     
1. A violenta controvérsia sobre os divorciados recasados e o seu acesso à comunhão eucarística continua a agitar as comunidades católicas de todo o mundo. Porque será? Não tenho resposta pronta a servir. O teólogo dominicano, Ignace Berten, escreveu um livro admirável para que ninguém caia nessa tentação[i]. Segue o método de transcrever os textos das posições mais típicas e só no final imite a sua bem informada perspectiva. Não lhe interessa, unicamente, discutir as três realidades acerca da família que foram objecto de questionamento e de controvérsia, sobretudo, as que dizem respeito à contracepção, que põem em causa a doutrina da Humanae Vitae, o acolhimento dos divorciados recasados pela igreja, o acesso à comunhão, os homossexuais e a relação homossexual.
 Os debates mais vivos dizem respeito aos divorciados recasados. Têm sido os mais apaixonados e, por vezes, violentos.
João Paulo II, na sua exortação apostólica Familiaris consortio de 1981, no seguimento do primeiro Sínodo sobre a família (1980), excluía qualquer possibilidade de acesso à comunhão dos divorciados recasados, a não ser que se comprometessem a viver como irmão e irmã. Em certas dioceses existia uma pastoral desse estilo. No entanto, em meados dos anos 70, na Bélgica, já tinha nascido uma outra perspectiva pastoral. Em 1993, na Alemanha, alguns bispos promoveram de forma pública, uma pastoral de abertura. Em 1994, a Congregação para a Doutrina da Fé (GDF) interveio condenando essa prática e não podendo, nesses casos, fazer apelo à consciência.
Mas os factos são o que são e, nos Estados Unidos e na Europa, a proporção de divorciados em relação aos casamentos atinge muitas vezes os 30 a 40%. Dessa situação surgem um recasamento ou, pelo menos, a constituição de um novo casal.
O mal-estar cresce cada vez mais e as tentativas pastorais que impõem uma vida de celibatários a estas pessoas, por vezes muito jovens, torna-se ilógica e, para alguns, escandalosa.
Neste momento, desenham-se três atitudes típicas: uma apoia a abertura pastoral do Papa Francisco; outra regressa à opinião de João Paulo II e, a mais radical, classificou este Papa como herético e já identificou as suas numerosas heresias.
O livro de Ignace Berten documenta, citando sempre as fontes, cada uma destas posições. Mas o que lhe interessa é mostrar o que se joga, em cada uma delas, quanto ao entendimento do que deve ser a pastoral da Igreja. Parte do Vaticano II e da audácia do Papa João XXIII ao convocar um Concílio pastoral sem cedências à oposição fictícia entre doutrinal e pastoral. Pobre doutrina aquela que não serve a caminhada dos cristãos que vivem em tempos, lugares e culturas diferentes, num mundo em mudança.
2. Como tinham sido muitas as tentativas de neutralização do caminho aberto por esse Concílio, o Papa Francisco resolveu escancarar portas e janelas. A Igreja não é para a Igreja, não pode ser auto referente. Introduziu, por isso, a linguagem e a prática de uma Igreja de saída para as periferias. Deseja que os cardeais da cúria, os bispos das dioceses, os párocos e os teólogos das universidades abandonem a sua auto contemplação e passem a ser pastores, a terem o cheiro das ovelhas, porque são estas as importantes. Os cristãos são um reino de sacerdotes. Pertence-lhes a missão de oferecer a sua vida para a alegria do mundo todo.
A desgraça deste Papa é não ser, apenas, palavras e bons conselhos. É o primeiro a viver e fazer aquilo que propõe aos outros.
É acusado de não repetir a doutrina de João Paulo II, do cardeal Ratzinger e de Bento XVI, de não invocar a infabilidade pontifícia e de ter um discurso terra a terra que todos podem entender. De insistir mais na misericórdia de Deus do que no pecado e na cruz e encontrar a alegria do Evangelho junto dos que precisam de consolação e esperança. Para papa tem pouca altura doutrinal e uma teologia mais preocupada com a pastoral do que o rigor metafísico! Abrir ou fechar o futuro, eis a questão.
Como é possível, aliás, que um papa se atreva a adoptar o caminho e o estilo de Jesus de Nazaré que não tem medo de ser contagiado pelos doentes, pelos pobres, pelos casais em situações irregulares, que não permite que os maridos façam gato-sapato das mulheres, que abre caminhos de esperança para o que parece irremediável?
Um papa assim não tem muitas hipóteses imediatas. João XXIII já foi há muito tempo e depois vieram os doutrinadores que tinham sempre algo a condenar. Bergoglio só condena o que estraga a vida às pessoas, sejam doutrinas, sistemas ou atitudes. A sua ética é muito samaritana e o capítulo 25 de Mateus perturba-o demais. Está sempre a passar para a outra margem.
3. O que está verdadeiramente em jogo nas actuais controvérsias sobre a família é o feitio do Papa Francisco não se resignar a repetir fórmulas dogmáticas, doutrinas definidas para sempre sobre as mulheres, sobre o casamento, sobre a Eucaristia sobre seja o que for. Não despreza, de modo nenhum, a tradição da Igreja. Pelo contrário. Quer torná-la viva, sabendo que a letra mata e só o espírito de inovação vivifica. Os dogmas e as doutrinas são marcos na caminhada da Igreja na história humana. Não são eles a pátria celeste. São trilhos para a viagem, não são o cume da montanha. S. Paulo teve a coragem de dizer que todos os carismas são para ajudar e nem a fé, nem a esperança nem as suas formulações são eternas. Para a eternidade só fica a caridade.
A proibição bíblica da fabricação de imagens é a proibição da idolatria, a de parar quando é preciso ir mais longe, mais alto e mais fundo. Existe um comportamento em relação às formulações doutrinais da Igreja que é, muitas vezes, idolátrico. Como dizia St. Exupéry, quando se aponta para o céu, muitos olham só para o dedo.
A perturbação que o Papa Francisco introduziu no discurso, nas atitudes e na prática pastoral foi a do combate às idolatrias instaladas.
Diz-se, por vezes, que o séc. XXI ou será místico ou não será. Creio que é verdade. Mas o místico é aquele que não pode parar no estabelecido, de uma vez para sempre. Mestre Eckhart rezava: Deus livra-me de deus, isto é, livra-me das representações e das fórmulas que te procuram substituir, que impedem a infinita viagem do desejo, da sede do Deus de Jesus Cristo.
É a paixão da idolatria que mata o Evangelho da nossa alegria.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 25.02.2018


[i] Ignace Berten, Les divorcés remariés peuvent-ils communier? Enjeux ecclésiaux des débats autour du Synode sur la famille et d’ Amoris laetitia, Lessius, Éditions jésuites, 2017

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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vitor Gonçalves
DOMINGO II QUARESMA Ano B
“Este é o meu Filho muito amado:
escutai-O.” Mc 9, 7

Subir para descer

Quem não gosta de ver a paisagem num miradoiro ou do alto de um monte? Tanto os olhos como a alma se extasiam quando se espraiam por um horizonte imenso, por um além que faz sonhar, pela descoberta do que era desconhecido. Os lugares altos foram sempre os preferidos para sinalizar as experiências religiosas, pois não é neles que quase se toca o céu? Ver de cima ou ver mais longe é tão necessário que até um amigo meu diz de um modo gracioso: “quando tenho a ‘casa’ cheia de problemas, subo um bocadinho ao sótão”!

Um lugar alto não só alarga o campo de visão, mas também desperta os ouvidos para a escuta, e liberta do bulício que enche de ruídos o quotidiano. E não é possível também a altura interior do pensamento e do espírito, concretizada pelo desejo de ver e escutar melhor? Altura de espírito que se alcança como o alpinista, que contava assim a sua conquista das montanhas mais altas: “primeiro lanço o coração para o pico da montanha, e depois é só o trabalho de levar o corpo ao seu encontro!” A intimidade e o recolhimento propiciam as grandes comunicações, os segredos revelados ao coração. Recordamos onde e quando recebemos uma declaração de amor, ou palavras que abriram futuros quando tudo parecia ruir, ou revelações que fizeram crescer amizades e compromissos.

Na Bíblia, do monte do dilúvio onde a arca de Noé repousou, ao monte do calvário onde o amor de Deus pela humanidade se manifestou plenamente, são numerosos os “montes” de revelação. Depois de Jesus passar pelo deserto, a quaresma conduz-nos ao monte da glória antecipada. Também Moisés e Elias tinham “visto Deus” no alto de outros montes. Tem sabor a Páscoa este “presente” de Jesus a Pedro, Tiago e João. Sem saber o que dizer, Pedro traduz o desejo de ficarem já ali, e nem precisavam de tendas! A palavra do Pai revela o amor pelo Filho e convida a escutá-l’O. Descendo do monte, descobrem que a fé não se vive “nas alturas”, nem com vestes luminosas, em “condomínios” aprazíveis, mas nas planícies das lutas quotidianas.

Se é preciso “subir” para ver e escutar melhor, também é fundamental “descer” para viver “novo”. Nenhuma revelação acontece para que tudo fique na mesma. Abre caminhos onde abismos ou muros pareciam intransponíveis, oferece meios para novos passos, sacia e desperta novas sedes. Não desistamos de subir aos montes onde se vê, respira e ouve melhor. Mas não esqueçamos que a vida acontece na renovação dos caminhos da planície, na conversão das escolhas e nas batalhas quotidianas. Não vemos como Deus faz resplandecer tudo quando descemos ao encontro dos outros?
in Voz da Verdade 25.02.2018

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Sessão de Estudos Alteração Climáticas. Metanoia, Porto, 3 março 2018
Caros amigos

Junto remetemos as informações relativas à Sessão de Estudos de 2018 sobre Alterações Climáticas e sobre a assembleia geral do Metanoia. Ambas as iniciativas terão lugar no Porto na Casa Diocesana de Vilar a 3 e 4 de Março.

Os detalhes e inscrições estão disponíveis no desdobrável em anexo, assim como no site do Metanoia em www.metanoia-mcp.org

Agradecemos a inscrição até 25 de Fev e a maior divulgação possível.

Até breve.
METANOIA Movimento Católico de Profissionais
Equipa Coordenadora

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Young people sign up on Facebook to participate in young adult Pre-synod meeting

Involvement of young people is urgently needed:
The time is now for all young people who want to see change in the Church take action. If you are between the ages of 16 and 29, you can sign up on Facebook to join in this all-important meeting and make your voices heard online. Pope Francis is inviting all youth - whether Christian or non-Christian, whether practicing Catholic or those who've dropped out. If you are someone who has children and grandchildren, nieces and nephews, call on them to take action. Even if they have given up on the Church and moved on with their lives, they are the very people who could influence change for the good. The future of the Church rests in the hands of youth. It is evident that the vast majority of church goers are the geriatric generation. When this groups passes away, unless young people are listened to and find relevance in the church's teaching, the Church will dwindle into oblivion. 

Vatican: No Youth to be left out of  Pre-Synod Meeting 
An estimated 300 young people from around the world will come to the Vatican March 19 - 24 for a week-long conference to prepare for the October meeting of Catholic bishops on issues facing youth today. But other young people can participate in this meeting via Facebook. The October Synod of bishops will be held Oct. 3-28 on the theme: "Young People, the Faith and Vocational Discernment." Cardinal Baldisseri, who heads the Vatican's synod office, said the March pre-synod event will help the bishops direct their preparations for the later meeting. "We are not speaking only 'about' them but 'with' them: They will speak to us with their own language, their own enthusiasm, their sensibility....In short, even through the new technologies of communication, the pre-synod meeting wants to broaden as much as possible the audience of young people involved so that no one should feel excluded," Cardinal Baldisseri said.

"This is a step the Church is making to listen to all youth," said Stella Marilene Nishimwe, a participant in the pre-synod gathering. "It will give us an opportunity to say everything that we think. This is an opportunity that we must really take."
A young Burundi woman living in Italy, Nishimwe told journalists that she believes the March gathering is "something that God wants from the Church, to do something new for all the youth of the world."
"Because youth from all over the world, whether they are Catholics or from other religions, we have the same questions," she said, adding that she thinks it is important that the Church wants to walk with youth "in this world with so much pain, with so many questions that don't have answers."

The pre-synod meeting will give young people - those present in Rome and those online via Facebook - an opportunity to interact with Pope Francis and ask him some questions. The participants will then be split into groups based on the languages they speak and will be asked to discuss specific topics in view of creating a final document from their meeting.    

Sign up on Facebook
So, Millennials, don't miss this opportunity of a lifetime. Go now to sign up on Facebook and make your voices heard online at this important meeting. Don't let the Vatican operatives do an end- run around your parents. Take this opportunity to let Church leaders know what you want and need from the Church. Our fear, well founded based on research, is that the deck is being stacked with obedient "yes, father" youth to be the attendees sent by Bishops Conferences worldwide to the Pre-Synod meeting in March and the Synod on Youth scheduled for October 2018. If there is to be any change in the Church, if we are to return to the spirit of Vatican II and the message of Jesus Christ that love is the fulfilling of the law [Romans13: 8 - 10], we need many more young people to speak up and respond to Francis's outreach. It is crucial that the voices of youth reach the special meeting called by the Holy Father this March in preparation for the Synod on youth in October. Learn more about this meeting and 
 

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Young People Worldwide standing in solidarity for Social Justice Issues Relevant to our Times
Pope Francis invites young people to participate in this  meeting through Facebook groups assuring you that your voices will be heard in Rome. Follow the hashtag #Synod2018 on Facebook and Twitter and give your feedback especially on this month's question:''What could Politics and society do for young people?''

In response to this question, consider reversing it: What could young people do for politics and society? Young people in the United States are speaking up more loudly than ever and marching on Washington after the 17th school shooting in just the first two months of 2018 and after 290 school shootings since the Sandy Hook shooting of first graders in 2013.. They are demanding that politicians take clear and definitive action on gun control and school safety. What if young people from around the world stood in solidarity with these courageous students? Should not the pro-life Catholic Church - so outspoken in support of protecting prenatal human life - be leading the way for churches of all faiths everywhere to be proactive speaking out in support of protecting human life throughout all of life.This is an opportunity for young people to stand together worldwide on one of the most significant issues of our time.

Where are the young people today?

In an NCR article, it is reported that a study asks: Why are young Catholics going, going, gone? It  is a well-known fact that vast numbers of young people have turned away from the Church. Why? Because they are more open to a rapidly changing world, having grown up in it without the prejudices of prior generations.  From this vantage point, they see the grace of God in fresher and more vibrant terms than a Church governed by older generations. Whether it's feelings of being judged by religious leaders who don't know or understand them, or being forced by their parents to attend church, or witnessing the sexual abuse scandal and the hypocrisy of church hierarchy, young people are expressing a desire both to break free from organized religion and to be part of a community. If, instead of sitting in judgment of young people for not keeping the man-made rules set forth by Church hierarchy, they led the way to involving young people in standing in solidarity with others suffering from social injustices, the Church might see young adults flocking back to be part of such a progressive and caring community. 

From the perspective of those of us interested in bringing about needed reform in the Church, there are certain topics that Church  hierarchy noticeably avoids, particularly those directly related to: 
1. right of the members to participate in the decision-making of the Church
2. welcoming of all to the Eucharist recognizing it as a sacrament of healing not reward.
3. treatment of the LGBT community
4. equality of women in the Church
5. sexual abuse issue by Catholic priests
6. responsible parenthood vs. the prohibition of artificial contraception
7. couples living together prior to marriage
8. couples entering into inter-faith relationships
This is a time for bringing up these and other issues and injustices that represent the concerns of youth today.

As always, we thank you for your contributions and continued support. Your donations make it possible for us to continue our work to bring needed reform to the Roman Catholic Church.

Gratefully,
Rene Reid
CCRI Director
in Catholic Church Reform 22.02.2018
www.catholicchurchreform.org/216/index.php/get-involved/synod-on-youth-2018/260-vatican-no-youth-to-be-left-out-of-pre-synod-meeting





18 fevereiro 2018

A FAMÍLIA NASCE DE UMA BENÇÃO DIVINA

       
1. Da religião da tristeza resvalou-se para a tristeza da religião. Os primeiros gestos, palavras e atitudes do Papa Francisco mostraram que era possível virar essa página: a da Igreja e a da sociedade. Não queria fazer nada sem Deus e sem os irmãos. Mas o Deus de que fala e vive não é o da tristeza e da ameaça. Os irmãos convocados não são, apenas, os praticantes dos rituais católicos.
É bem conhecido que, em muito pouco tempo, enviou ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos uma convocatória para levarem o Evangelho da Alegria ao mundo actual. Inscreveu-se, deste modo, no caminho aberto por Jesus de Nazaré, assumido por João XXIII e esboçado no Vaticano II. Entretanto, o mundo mudou e está a mudar com uma velocidade estonteante.
Para Klaus Schwab, entre os muitos e diversificados desafios fascinantes que enfrentamos, o mais intenso e importante é como compreender e definir a nova revolução tecnológica, que implica nada menos do que a transformação de toda a humanidade. Estamos no início de uma revolução que alterará radicalmente a maneira como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Na sua escala, amplitude e complexidade, o que considera ser a Quarta Revolução Industrial é diferente de tudo o que a humanidade viveu antes[i].
Se não estamos no paraíso – o mundo é de muito poucos e o sofrimento é de muitos – os impactos positivos desta revolução não podem fazer esquecer os negativos e os desconhecidos. É, no entanto, uma alegria contar com um Papa que, em vez de paralisar as energias dos católicos, lança uma esperança de que, todos juntos, poderemos fazer face aos desafios das loucuras da dominação económica, política, social e religiosa. O poder do Papa é o de acordar o que há de melhor nas pessoas, sejam elas quais forem, e de convocar, crentes e não crentes, para uma mudança radical que, na linguagem da caminhada da Igreja, se chama Quaresma e Ressurreição[ii].
2. Está a difundir-se a ideia de que Bergoglio anda a minar as bases da própria sociedade e da história humana, isto é, a destruir a Família. O currículo deste argentino, quando foi eleito Papa, era o de um pastor que conhecia os percursos mais aceites e os mais mal vistos, segundo os critérios de um Direito Canónico pouco especializado no primado do amor e da alegria das pessoas. Por vezes, não se percebia se a instituição matrimonial era para a felicidade das pessoas ou para manter inalterável uma instituição especializada em normas de exclusão. Estava longe da palavra libertadora de Cristo: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado.
Francisco, consciente das transformações que atingem todas as sociedades e culturas, não se fixou, apenas, na sua longa experiência. Depois de consultar muitos casais, padres, bispos e cardeais, publicou um documento aberto para que todos procurem, a partir do concreto, - e mesmo sabendo a fragilidade de tudo o que é humano - os caminhos que fazem do encontro do homem e da mulher, com toda a família, a experiência da Alegria do Amor[iii].
Chamar-lhe um texto da destruição é, simplesmente, ridículo. É, pelo contrário, uma luz à procura de mais luz. Importa encontrar os caminhos que erradiquem as tristezas e as opressões que transformaram a sexualidade – uma bênção divina do amor humano e das suas expressões sexuais – numa solicitação ao pecado. O próprio sacramento do matrimónio foi entendido como um modo de tornar lícita uma união de natureza impura: a união sexual do homem e da mulher[iv].
 As dificuldades em concretizar e prosseguir a pastoral aberta pelo Papa Francisco, sobre o acesso dos divorciados recasados aos sacramentos, radica, precisamente, na recusa de aceitar a união sexual como bênção. É evidente que toda a actividade humana, enquanto exercício da liberdade, pode desviar-se e atraiçoar-se. A sexualidade pode ser um exercício de opressão, de violência, de exploração, pecado gravíssimo. Mas propor a um casal a abstinência sexual não é a forma de reconhecer a sexualidade como bênção. No mundo católico, o pecado dos pecados era o que estava ligado ao sexo. O pecado económico, ecológico, racial – veja-se o tráfico humano, a destruição do planeta, a privação de casa, de trabalho, de saúde primária, etc. – nem pecado era!
Por causa de se entender mal um grande sacramento, acabou-se por esquecer a primordial bênção divina da família.
3. É como tal que aparece no Génesis. Nascer numa família é normal desde há muito tempo. Através de uma análise de ADN, pesquisadores coordenados por Wolfgang Haak, da Universidade de Adelaide (Austrália), identificaram quatro corpos como sendo uma mãe, um pai e os seus dois filhos, um de 8 ou 9 anos e outro de 4 ou 5 anos. É uma família com uma idade de 4.600 anos que não casou pela Igreja. Segundo o registro genético molecular já identificado, esta é considerada a família mais antiga no mundo. Seria puro milagre que uma realidade humana com vários modelos, segundo a história dos povos e culturas, fosse uma instituição sem problemas, um casamento de anjos.
A história do cristianismo é marcada por lutas periódicas contra as tentações dualistas: a dos gnósticos, dos maniqueus, dos cátaros. É difícil acreditar num Deus humanado. Que o corpo de Jesus de Nazaré seja corpo de Deus. O corpo é um dom, não uma maldição[v].
Dizem que na Pastoral da Família o tempo de namoro é fundamental. Mas não se pode concluir que os problemas ficam todos resolvidos, de uma vez para sempre, com a celebração do sacramento. Como fazer do casamento um processo de toda a vida?
Creio que nenhum padre, bispo, cardeal ou papa dispõe de uma solução pronta a servir. O melhor é escutar e escutar sempre. Mas sobretudo dar-se conta de que os sacerdotes do casamento são os casais e são eles os mais responsáveis pela Pastoral da Família, presente e futura. Vai ser longo o caminho para vencer o clericalismo.
O humor não faz mal ao amor à família. Em Granada, encontrei um pequeno azulejo com estes dizeres: família só a Sagrada e, mesmo esta, na parede pendurada.
Frei Bento Domingues, O.P.
      in Público 18. 02. 2018


[i] Klaus SChwab, A Quarta Revolução Industrial, LEVOIR em parceria com o PÚBLICO, 2017.
[ii] Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2018.
[iii] Amoris laetitia, Paulus,2016
[iv] VV.AA., O enigma da sexualidade, Cadernos ISTA, nº 16, 2003; Francolino Gonçalves, As Mulheres na Bíblia, in Cadernos ISTA, nº 21, 2008, pp.109-159; VV.AA., A Família tem Futuro?, Cadernos ISTA, nº 31, 2015; Matrimónio, in Enciclopedia del Cristianesimo, pp. 455-457.
[v] Cf. Timothy Radcliffe, Na margem do mistério, Paulinas, 2016, pp 81 ss


11 fevereiro 2018

VICIADO EM BOAS NOTÍCIAS

     
1. Leio, todos os dias, textos dos Evangelhos. A palavra evangelho é a tradução do grego evangelion. Significa boa notícia. Não é o culto daquela atitude preguiçosa que espera que tudo há-de acabar por dar certo, sem mexer uma palha. Jesus interpretou a sua missão como resposta aos desafios que ia encontrando na sua intervenção pública: eram pedidos de socorro de pessoas afectadas por todo o género de doenças físicas, psíquicas, de exclusão religiosa e social. As mais insólitas e as mais correntes.
Quando se proclama o Evangelho na Celebração da Eucaristia, não é para lembrar o que Jesus fez há mais de dois mil anos. É para dizer à comunidade cristã o que é preciso fazer hoje. Quando usamos as palavras de Jesus na chamada Última Ceia: fazei isto em memória de Mim, não é para cumprir um ritual, mas para intimar os cristãos a continuarem hoje o Evangelho. Uma missa que não dá notícias das transformações que a comunidade realizou na semana anterior e das que se compromete a realizar na semana seguinte, não celebra o Evangelho. As notícias cristãs de há dois mil anos, se não provocarem hoje transformações nas Igrejas ao serviço das alterações que a sociedade precisa, comem e bebem a sua própria condenação, segundo a expressão S. Paulo[1].
A repetição dos textos, só por si, mata a novidade do movimento cristão. Quando não se entra no espírito que animava a vida de Cristo, a repetição não é caminho. Sem a ciência da interpretação estamos sempre resvalar para o fundamentalismo ou para a banalidade. A letra mata, o espírito vivifica.
2. Em Portugal, nas últimas semanas, quanto a notícias boas e más, vivemos situações não totalmente inéditas, mas de intensa confusão. Vicente Jorge Silva para classificar certo tipo de jornalismo, cada vez mais em voga – amplificado pelas redes sociais – e em conexão com os meios judiciários, intitulou a sua coluna Justiça e jornalismo no esgoto[2]. Quanto a conivências de jornalismo, redes sociais e acusações que deixam os cidadãos sem defesa contra a irresponsabilidade instalada por lei, Miguel Sousa Tavares[3] foi ainda muito mais explícito.
Seja como for, a velha ideia de que um cidadão deve ser considerado inocente até prova em contrário, desapareceu. Agora, em certos meios de comunicação social, todos podem ser suspeitos e mesmo culpados, até prova em contrário. Ninguém acima da lei, mas abaixo da lei também não está bem.
Por tudo isso, não posso deixar de louvar a campanha do Centro de Internet Segura (CIS)[4], que divulga dicas para distinguir notícias falsas e promover uma leitura crítica dos conteúdos online. Estratégias como estas ajudam qualquer utilizador. Esta campanha é especialmente dirigida aos jovens.
3. No meio de tudo isto, como redescobrir o valor do jornalismo? Em primeiro lugar, importa que as empresas e os jornalistas não se esqueçam da sua missão, mas os consumidores devem encontrar formas de intervir e de os chamarem à responsabilidade. Parece que as cartas ao director têm mais importância do que se julga. Obrigar os jornais a confessarem o seu erro é uma ajuda global. O Papa Francisco, na mensagem para o LII Dia Mundial das Comunicações Sociais[5], faz uma pergunta curiosa: Que há de falso nas notícias falsas?
A expressão fake news é objecto de discussão e debate. Geralmente diz respeito à desinformação transmitida online ou nos mass-media tradicionais. A referida expressão alude a informações infundadas, baseadas em dados inexistentes ou distorcidos, tendentes a enganar e a manipular o destinatário.
A sua divulgação pode visar objectivos pré-fixados, influenciar opções políticas e favorecer lucros económicos. A eficácia das fake news deve-se, em primeiro lugar, à sua capacidade de se apresentarem como plausíveis. São falsas, mas verosímeis. Tais notícias são capciosas, no sentido em que se mostram hábeis a capturar a atenção dos destinatários. Estão apoiadas sobre estereótipos e preconceitos generalizados, explorando emoções imediatas e fáceis de suscitar, como a ansiedade, o desprezo, a ira e a frustração.
A grande dificuldade consiste em descobrir as diferentes lógicas subjacentes à sua manipulada difusão. Os conteúdos, embora desprovidos de fundamento, ganham tal visibilidade que os próprios desmentidos dificilmente conseguem limitar os seus estragos. Esta lógica da desinformação tem êxito porque em vez de haver um confronto sadio com outras fontes de informação, é sempre mais do mesmo. Não há espaço para colocar em discussão os preconceitos e abrir o diálogo. Resultado: reproduzem a deformação em que vivem.
O drama da desinformação leva a desacreditar o outro, apresentando-o como inimigo, chegando-se mesmo à sua demonização. É o caminho dos conflitos. As notícias falsas revelam a presença de atitudes intolerantes e hipersensíveis. Dilatam a arrogância e o ódio. É o resultado da falsidade.
O Papa Francisco recuou até ao Livro do Genesis[6] para mostrar como se fabricam falsidades e também como é possível desmascará-las. Mas o que lhe interessa é a verdade, porque só ela nos tornará livres e só ela é caminho da Paz. Citou, longamente, Dostoiévski: “quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras, chega ao ponto de já não conseguir distinguir a verdade dentro de si mesmo, nem à sua volta. Deixa de gostar de si mesmo e dos outros. Depois, sem o amor de ninguém, deixa também de amar. Na falta de amor, para se sentir ocupado e distrair, abandona-se às paixões e aos prazeres triviais. Por culpa dos seus vícios torna-se uma besta. Tudo deriva de mentir continuamente a si mesmo e aos outros.”
O remédio mais radical para o vírus da falsidade é deixar-se purificar, continuamente, pela verdade.
Ninguém é dono da verdade, nem a sua única voz. A verdade é um horizonte de investigação continua e apaixonada.
in Público 11.02.2018


[1] 1Cor 11,17-34
[2] Público 04.02.2018
[3] Expresso, 1º Caderno, 03.02.2018
[4] Público 06.02.2018
[5] Voz Portucalense, 31.01.2018
[6] Gn 2-4



04 fevereiro 2018

BABEL, BENÇÃO OU MALDIÇÃO?

        
       1. Para os meios de comunicação, a moda mais recente é a preocupação com as divisões na Igreja católica que me parecem coisa de pouca monta. Vencer a separação entre as igrejas do oriente e do ocidente e entre católicos e protestantes tem sido a beleza do horizonte do movimento ecuménico, nas suas diversas expressões. Quem conhecer o movimento cristão sabe que, desde o começo, esteve sempre exposto a divisões. Os apelos a que todos sejam um, significam a dificuldade em conseguir uma unidade plural. O cristianismo continua a ser uma Sinfonia Adiada[1].
        O que custa não é a comunhão, não é a diversidade, nem  a liberdade. O que custa é manter estas três atitudes em simultâneo. Quem insiste apenas na comunhão, tem problemas com a diversidade e com a liberdade. Quem, pelo contrário, exalta a diversidade e a liberdade é porque, em nome da comunhão, sente a ameaça da unicidade.
       O mito da Torre de Babel[2] não é de fácil interpretação. Supõe-se que Deus se sentiu ameaçado por uma Torre que chegava aos céus, obra da unicidade linguística: “ em toda a Terra, havia somente uma língua e empregavam-se as mesmas palavras (…) Vamos, pois descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros. E o Senhor dispersou-os dali por toda a Terra”.
       É bom ler o texto na íntegra. Vem a seguir à lista dos povos, as famílias de Noé, segundo as suas genealogias e as respectivas nações. Delas, segundo o mito, descendem os povos que se espalharam, após o dilúvio sobre a Terra.
Uma só língua ajudava muito. É preciso uma maldade muito grande para destruir algo que facilitaria tanto a vida a todos. É com esta astúcia que está construído o texto. Ainda hoje, existe essa nostalgia, assustadora. A linguagem é a marca primordial do ser humano. A unicidade linguística só seria possível por clonagem.
       Quem imagina os seres humanos e os povos cópias uns dos outros, isto é, quem conhece um, viu-os a todos, tem de sentir a humanidade como um campo de concentração do qual não pode sair. É o mesmo do mesmo, sempre o mesmo, o sufoco universal. A originalidade irrepetível de cada um, seria substituída pela infinita repetição.
       2. Costuma-se contrapor a referida confusão das línguas de Babel com a narrativa do Pentecostes, um dom linguístico muito especial. Os Actos dos Apóstolos[3] contam tudo: de repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de uma forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde os discípulos se encontravam. Viram aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo e pousou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem. Residiam em Jerusalém judeus piedosos vindos de todas as nações que há debaixo do céu. Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados diziam: mas esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar nas nossas línguas as maravilhas de Deus! (…)
       Estavam todos assombrados e, sem saber o que pensar, diziam uns aos outros: que significa isto? Outros, por sua vez, diziam, troçando: estão cheios de vinho doce.
       Esta passagem dos Actos não desmerece, em colorido, da narrativa da Torre de Babel. Aqui há uma convocatória para a dispersão. Uma convocatória de todos os povos e línguas, a máxima diversidade na máxima unidade. O Espírito de Cristo é para todos, respeitando e promovendo a originalidade de cada um.
      Era precisa a solenidade insólita desta narrativa para significar que o movimento cristão era um começo completamente novo. Não é o sufoco do mesmo, a repetição da repetição. É o apelo do próprio Deus para a criatividade. A Igreja, fora da criatividade, morre. Os Actos dos Apóstolos ficavam bem como uma banda desenhada das aventuras do Espírito Santo. As circunstâncias mais imprevistas não eram um empecilho, mas uma provocação!
      3. No âmbito dos carismas, S. Paulo viu-se muito atrapalhado com os que falavam muito para não dizerem nada. Tinham o carisma de falarem línguas que ninguém percebia[4]. Quis resolver a questão de uma penada no célebre cântico do amor: ainda que eu fale todas as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine.
      Nas normas para o uso dos carismas, aconselha a procurar o amor e a aspirar aos dons do Espírito, mas sobretudo ao da profecia. Pois, aquele que fala em línguas, não fala aos homens, mas a Deus: ninguém, de facto, o entende, pois o Espírito diz coisas misteriosas (…) Quem profetisa está acima daquele que fala em línguas, a não ser que também as interprete, para que a assembleia possa tirar proveito. Imaginai, agora, irmãos, que eu ia ter convosco e vos falava em línguas: de que utilidade vos seria, se nada vos comunicasse nem por revelação, nem por ciência, nem por profecia, nem por ensinamento? (…) Se a vossa língua não proferir um discurso inteligível, como se há-de saber o que dizeis? Sereis como quem fala ao vento. Há no mundo não sei quantas espécies de línguas e todas têm o seu significado. Ora, se eu não conheço o significado de uma língua, serei como um bárbaro para aquele que fala e, aquele que fala, também o será para mim. 
      Paulo, mesmo na oração, não suporta não entender. Se tu elevas um cântico de louvor só com o espírito, como pode o que participa como simples ouvinte responder Amén à tua acção de graças, visto que não sabe o que dizes? A tua acção de graças poderá ser, certamente, muito bela, mas o outro não tira nenhum proveito.
       O obscurantismo não era o carisma de S. Paulo.
       As missas em latim, e de costas para o povo, que os ignorantes publicitam, se não tiverem quem as interprete, não servem para nada. De costas para o povo não há interpretação que as salve.
       Frei Bento Domingues, O.P.
       in Público 04.02.2018 


[1] Christian Duquoc, Paulinas, S. Paulo, 2008; L. Michael White, De Jesús al cristianismo, Verbo Divino, Estela, 2007
[2] Gn 11, 1-9
[3] Act 2, 1-13
[4] 1Co 12-14; importa ler estes dois capítulos na íntegra