27 julho 2014

O PAPA FRANCISCO E UM LIVRO INQUIETANTE

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Deixei, neste espaço, quatro crónicas sobre o estilo provocatório de alguns gestos, atitudes e intervenções do papa Francisco destinados, por um lado, a questionar e a despertar a vida da Igreja, em todas as suas dimensões e, por outro, a denunciar um sistema financeiro e económico que corrompe a própria natureza da política. Esta, em vez de se regenerar no serviço do bem comum, tornou-se um instrumento de decisões que reduzem os seres humanos pobres ou “improdutivos” a lixo social.

Perante este comportamento, não admira que certos grupos classifiquem de populista a via deste argentino. Mesmo sem exigirem o uso majestático da tiara papal, esperam, do bispo de Roma, menos espontaneidade, modos mais cerimoniosos e protocolares.

Mudo de registo. O tempo de férias – para quem as puder disfrutar - é considerado o mais adequado à redescoberta do essencial na cura da alma e do corpo. Existem no mercado espiritual várias técnicas de meditação - vindas do Oriente e adaptadas à clientela ocidental – de sucesso garantido e com modalidades de aplicação durante todo o ano(1).

Neste contexto, também desejo deixar aqui umas sugestões de meditação, menos sofisticadas e de êxito menos automático: um tempo preciso, a calcular por cada um e adaptável, segundo os imprevistos de cada dia. Essa meditação seria auxiliada, este ano, por um pequeno livro publicado nos finais do ano passado, dirigido à Igreja Católica para que saiba, em cada um dos seus membros, viver e agir no mundo contemporâneo. Chama-se “A Alegria do Evangelho” (Evangelii Gaudium). Pode ser encontrado em qualquer livraria. Está disponível na internet. Poderá ser lido em casa, na praia, no campo, no metro, no autocarro, no comboio ou nas maquinetas eletrónicas.

A meditação deve ser feita de olhos interiores e exteriores muito abertos sobre o que está a acontecer em Gaza, na Síria, no Iraque, na Ucrânia, na Guiné Equatorial, nos jogos da Banca, nas periferias de todas as sociedades do mundo e à nossa volta. Objectivo: criar disponibilidade para a nossa conversão.

2. Segundo Franz Kafka, só deveríamos ler livros que nos ferem e abalam, leituras talvez pouco recomendáveis para férias, mas não resisto.

O Papa Francisco apresentou-se como vindo do “fim do mundo”. Hoje, pretendo apresentar um livro, muito especial, que reúne textos sobre o embate, no século XVI, entre os espanhóis e os povos desse fim do mundo(2). É uma obra de três dominicanos, durante muito tempo ocultada, para não ofender o nome de Espanha, hoje a sua grande glória. São textos nunca publicados em português. O primeiro é um grito, o célebre Sermão de António de Montesinos. O segundo apresenta-se como A brevíssima relação da destruição das Índias, de Bartolomeu de las Casas e o último é a Doutrina sobre os Índios, de Francisco de Vitória, o fundador do Direito Internacional(3).

Quando olhamos para a história, ficamos deslumbrados com os séculos XV e XVI por causa das grandes viagens oceânicas que deram a esse tempo o título ambíguo de Era dos Descobrimentos. De facto, já eram terras com muitos habitantes. O que aconteceu foi a revelação da América, feita por Colombo em 1492, o caminho marítimo para a Índia, aberto por Vasco da Gama em 1498, a revelação do Brasil feita por Pedro Álvares Cabral em 1500, a primeira viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães (1519 a 1521).

Acontecimento de uma tal dimensão, com actores tão prodigiosos, que remetem para um plano secundário aquilo que depois se revelou fundamental. O Grito de Montesinos, voz de uma pequena comunidade dominicana pobre – e estes não serão seres humanos? - despoletou um debate que desencadeou o processo da conversão de B. de Las Casas, que se tornou o grande defensor dos Índios, em Espanha e nas Américas, envolvendo a corte e a universidade de Valladolid e Salamanca.

3. A Brevíssima relação da destruição das Índias, deste dominicano, revela tantos requintes de crueldade dos colonos espanhóis, seus compatriotas, que de brevíssima não tem nada. Breve terá de ser a amostra de tanta desumanidade.

(…) Para finalizar a sua crueldade procuraram todos os índios que se tinham escondido na mata, tendo ordenado que lhes dessem estocadas, matando-os e lançando-os penhasco abaixo. Não se contentando com as coisas tão cruéis que já dissemos, mas querendo engrandecer-se mais e aumentar o horror dos seus pecados, mandou que todos os índios e índias que os particulares tinham aprisionado vivos (porque naqueles malefícios podiam escolher alguns índios e índias para o seu serviço) e lhes pegassem fogo, tendo queimado vivos uns quarenta ou cinquenta. A outros deu ordens para os lançarem aos cães que os despedaçaram e comeram (…) mandou ainda cortar o nariz a muitas mulheres e crianças(4)  (…).

Se for verdade que só vale a pena ler os livros que nos abalam, muito ajudam os que acendem a esperança, os que não aceitam nenhuma fatalidade.

Boas férias e até Setembro.

in Público, 27.07.2014

(1)  Cf. Aux Origines de la méditation, in Le Point, Juillet-Août
(2)  Vários, E Estes Não Serão Homens?, Colecção Biblioteca Dominicana, Tenacitas, Coimbra, 2014
(3)  Bartolomé de las Casas, Brevissima historia da destruição de África, Antígona, Lisboa, 1996
(4)  Nota 2 pg 147

25 julho 2014

Apelo do Movimento NSI-PT

No dia 2 de Março de 2014 foi publicado no jornal Público uma notícia elaborada pela jornalista Ana Dias Cordeiro, cujo título é: Moçambique: Padres Investigados por suspeitas de abusos dirigem orfanato e escola que teve apoio de Portugal.

Como católicas/os e cidadãs/aõs ficamos preocupadas/os e no dia 11 de Junho enviámos um email a solicitar informações acerca do caso às seguintes entidades: Embaixador de Moçambique em Lisboa; Embaixador de Portugal no Maputo; Presidente do Instituto Camões; Conferência Episcopal Portuguesa; Conferência Episcopal Moçambicana; Núnico Apostólico no Maputo; Núncio Apostólico em Lisboa; Superior da Ordem dos Dehonianos em Roma; Superior da Ordem dos Dehonianos em Portugal.

O texto do e-mail segue abaixo.

Até à data de hoje, dia 24 de Julho, não recebemos qualquer resposta. Recordamos que recentemente o Papa Francisco voltou a lamentar a terrível tragédia dos abusos sexuais perpetrados por autoridades religiosas. Vimos agora alertar a rede NSI, solicitando a vossa intervenção e interesse pelo esclarecimento deste caso.

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Texto da mensagem de email:

No dia 2 de Março de 2014 foi publicado no jornal português 'Público' uma notícia (ver acima) elaborada pela jornalista Ana Dias Cordeiro, que muito nos preocupou como católicas/os e cidadãs/aos.

As informações dadas são da maior gravidade, pois descrevem atentados chocantes aos direitos humanos de crianças  completamente desprotegidas e sós.

Acresce que quem chamou a atenção para  estes factos, o português Dr João Gomes de Oliveira, lá colocado pela cooperação portuguesa, já foi alvo de um atentado que quase lhe roubou a vida.

Segundo nos informam, até ao presente, nada aconteceu tendo em vista investigar o que se está a passar em Gurúè.

Nem as autoridades civis moçambiquanas e portuguesas, nem as autoridades eclesiásticas de Moçambique ou em Roma tomaram a iniciativa de esclarecer uma situação tão dramática.

Pela nossa parte, as nossas consciências obrigam-nos a pedir com insistência que nos informem, com a maior urgência, o que se passa no orfanato de Gurúé. Nomeadamente solicitamos a intervenção urgente das autoridades da Igreja, em Moçambique, Portugal e Vaticano, tendo em vista a averiguação deste caso. Não pode ser esta mais uma situação  em que daqui a uns anos nos interroguemos  'como foi possível?'

Aguardando as vossas notícias com um grande interesse,
agradecemos a vossa melhor atenção,

Ana Vicente (em nome do Movimento ‘Nós somos Igreja’ – Portugal)
Lisboa, 11 de Junho 2014

20 julho 2014

QUE TROUXE DE NOVO O PAPA FRANCISCO (4)

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Um velho amigo, com uma ponta de censura, telefonou-me para me dizer: o Papa argentino não precisa nem de defesa nem de apologética. Precisa de colaboradores. Ele não despertou apenas a esperança em muitos cépticos e desiludidos. Fez uma convocatória para participarmos todos numa reforma da Igreja ao serviço da transformação das sociedades dominadas pelo império do dinheiro. Cerca de 85% dos recursos são consumidos pelos 20% mais ricos da população mundial. Isto significa, para o físico ambientalista, Mohan Munasinghe, que os ricos do mundo estão a consumir mais do que um planeta Terra(1). Afinal, quem vive acima das suas possibilidades? Perguntas destas suscitam apenas o sorriso dispensado aos ingénuos inveterados.

O mais sensato talvez seja resignar-se e ter a humildade de Kant: “a razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões impostas pela natureza, que não pode evitar, mas às quis também não pode dar resposta, por ultrapassarem as suas possibilidades(2).

A humildade deste filósofo não era a da resignação, mas a da crítica, à qual nada deve, honestamente, escapar. Advertiu: se a religião pela sua santidade e a lei pela sua majestade, quiserem subtrair-se a essa instância, suscitam, contra elas, justificadas suspeitas. Não poderão aspirar ao sincero respeito que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame.

A consciência dos limites não o paralisou. Levou-o a formular as questões fundamentais: 1. Que posso eu saber? 2. Que devo eu fazer? 3. Que me é permitido esperar? 4. O que é o Homem? As três primeiras estão incluídas na última.

Martin Buber (1878-1965) descreveu o percurso desta interrogação fundamental, antes e depois de Kant, sensível à queixa de Malebranche, datada de 1674: “entre todas as ciências humanas, a do homem é a mais digna dele. No entanto, entre todas as ciências que possuímos, não é nem a mais cultivada nem a mais desenvolvida”(3).

Seguindo a posteridade da interrogação kantiana, desde Hegel a Marx, de Feuerbach a Nietzsche e a Freud, de Kierkegaard a Heidegger e a Scheler, mostra que o ser humano, ao abrir uma janela, costuma fechar duas. Depois, vem a lamentação: por que razão somos tão ininteligíveis?
Seja como for, a herança de Kant é grandiosa, embora sem muitos pretendentes: o ser humano não tem preço, tem dignidade, não é uma mercadoria, não pode ser um instrumento.

2. Na última página do seu ensaio, Martin Buber enriquece essa herança. Sustenta que unicamente na relação viva será possível reconhecer a essência peculiar do ser humano. O eu só existe na relação com o tu. Poderemos aproximar-nos da resposta à pergunta - “O que é o homem?”- se compreendermos que é na dialógica - no “estar-dois-em-recíproca-presença”-, e só nela, que ele se reconhece e realiza. Acontece em cada encontro de um com o outro.

Como as religiões não se quiseram expor à crítica, como recomendava I. Kant, deixaram de constituir uma esperança fiável e foram acusadas de tudo: de serem fontes de conflito pelo seu dogmatismo e vontade de dominação, de serem alienantes, um protesto social inconsequente, de falsificarem a realidade, de serem uma ilusão dispensável.
Da crise das religiões, à crise da religião, da crise da religião à morte cultural de Deus, a procissão não foi longa. O vazio que se seguiu não foi o do místico. Teve muito de niilista e de indiferença. Do fim da religião ao regresso do Sagrado houve, e continua a haver, notícias para todos os gostos.
   
3. O Papa Francisco quase fez um milagre. A organização e a vida da Igreja não têm de ser uma fonte de más notícias. Ao enfrentar alguns aspectos da hipocrisia que dominou o comportamento de certos padres, bispos e cardeais reconduziu a Igreja à sua missão: tornar possível a esperança, fazer do anúncio do Evangelho uma alegria e não confundir o confessionário com uma câmara de tortura.
Não diz isto de forma abstracta. Convocou todos os seres humanos de boa vontade para que as calamidades ambientais, financeiras e económicas, frutos de vários tipos de corrupção, não sejam uma fatalidade, perante a qual não há nada a fazer.

No momento em que a política, em todo o mundo, está desacreditada pelos mais diversos motivos, o Papa Francisco resolve lembrar que a vocação de todos os políticos é tutelar o bem comum e não os interesses pessoais ou de grupo, os cúmplices da corrupção. Lembra que Paulo VI costumava dizer que a missão da política é uma das formas mais elevadas da caridade. Hoje, e o problema é mundial, desvalorizou-se, foi arruinada pela corrupção, pelo fenómeno das comissões ilegais. Recorda um documento que os bispos franceses publicaram há quinze anos: uma carta pastoral que se intitulava Reabilitar a política.

Reabilitar a imagem da Igreja e reabilitar a missão dos políticos não é pedir pouco a um só papa, mesmo ao Papa Francisco.

in Público, 20.07.2014

(1) Cf  Entrevista no Público,14/07/ 2014
(2) Cf I. Kant no Prefácio da primeira da edição de 1781, da Crítica da Razão Pura
(3) M. Buber Qué es el Hombre, Fondo de Cultura Económica, Madrid, 1986

19 julho 2014

Ouvi uma cega ver e vi uma surda ouvir

Ó rapariga, então já viste o teu novo sobrinho? Não, tu já o viste? Já, passou aqui há um bocado. Passou, passou, diz a outra. Também o viste? Não o vi mas ouvi-o falar. Uma conversa a três que me deixou perplexo: desta vez ouvi uma cega ver e vi uma surda ouvir, e não sei que dizer ou sentir.

Sorri sozinho abertamente durante algum tempo e, enquanto sorria, juntei as pontas soltas de há dois mil anos com estas de há dois minutos, duas horas, dois dias. Por momentos também eu vi e ouvi com outros olhos e outros ouvidos que cegos e surdos me emprestaram. Imaginei ao vivo o entusiasmo que a pessoa de Jesus deverá ter provocado em toda a gente que era descriminada, marginalizada, afastada do convívio social e com Deus, por mãos humanas com mentes desumanas. Estas duas senhoras não são desprezadas, mas as suas insuficiências físicas dão sempre azo a uma atitude levemente discriminatória.

Todavia, há pessoas e acontecimentos, ou mesmo lugares, que de repente nos levam além da nossa cegueira e surdez. Diz S. Marcos: “Depois, foram para Jericó. E, saindo ele de Jericó com seus discípulos e uma grande multidão, Bartimeu, o cego filho de Timeu, estava sentado junto do caminho, mendigando. E, ouvindo que era Jesus de Nazaré, começou a clamar, e a dizer: Jesus, filho de Davi, tem misericórdia de mim! E muitos o repreendiam, para que se calasse; mas ele clamava cada vez mais: Filho de Davi tem misericórdia de mim! E Jesus, parando, disse que o chamassem; e chamaram o cego, dizendo-lhe: Tem coragem e levanta-te que ele chama-te. E ele, lançando fora a sua capa, levantou-se e foi ter com Jesus. E Jesus, falando, disse-lhe: Que queres que te faça? E o cego disse-lhe: Mestre, que eu tenha vista. E Jesus disse-lhe: Vai, a tua fé te salvou. E logo viu, e seguiu Jesus pelo caminho.” (Marcos 10:46-52).

O cego de Jericó via melhor Jesus do que aqueles que o seguiam. Estes mandaram-no calar porque ele era cego, não prestava para fazer parte do que de importante se estava a passar. Não lhe ligaram e até o mandaram calar quando chamava por Jesus. Mas quando Jesus disse que o chamassem, dirigiram-se amavelmente a ele dizendo-lhe que Jesus estava a chamá-lo. Ai vida! A verdade é que o Bar-Timeu, cego, via mais do que aqueles que andavam atrás de Jesus, via Jesus com os olhos da fé, com a alegria e a esperança de que ele vinha também para curar cegueiras, sendo que a maior parte delas não era dos olhos mas das mentes. Foi esse estado de espírito santo que permitiu a Jesus dizer-lhe que a sua fé fazia com que visse. Quem precisava de abrir os olhos eram os que viam Jesus apenas por fora, com interesses que os cegos, coxos ou surdos-mudos não tinham possibilidade de acompanhar. Jesus inverte as posições: mais do que ao cego cura-os a eles, ensinando-os a saber para quem e para onde devem olhar.

A dona Glória não ouve e a dona Graça não vê. Mas aguardavam com tal espectativa o sobrinho da vizinha que uma venceu a cegueira e a outra a surdez. A verdade é que foi a cega que disse que viu e a surda que disse que ouviu. Bem sei que não há um paralelo muito ajustado com os cegos e surdos que viam e ouviam Jesus, mas num lugar onde nada acontece e ninguém aparece, a surpresa de uma visita não é menos que um milagre. Mais ainda se é de alguém anunciado por outros já conhecidos. Num lugar onde há muita gente o espanto é encontrar alguém conhecido, num lugar onde há pouca o que espanta é aparecer alguém que não se conhece. O novo sobrinho da vizinha, em relação a quem havia uma certa expectativa, sabe-se lá porquê, foi ocasião para se verificar que o milagre está a dois passos de nós, a dois minutos de poder acontecer. A possibilidade de o reconhecermos e vivermos depende de um encontro feliz entre a esperança e a promessa, entre aquilo em que acreditamos e alguém que acredita em nós.

Fr. Matias

13 julho 2014

QUE TROUXE DE NOVO O PAPA FRANCISCO (3)

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Segundo parece, a ladainha continua: as máfias de dentro e de fora das instituições religiosas não vão aceitar as contínuas provocações de Jorge Bergoglio. Agora, a propósito de uma entrevista bem-humorada, acusam-no de querer canonizar K. Marx e baptizar o comunismo(1). O aviso está dado: ou ele muda ou não lhe invejem a sorte!

Creio que é mais interessante procurar entender porque continua a seduzir tanta gente tão diferente e a irritar os mesmos grupos por toda a parte.

Um livro de entrevistas ao bispo de Buenos Aires, publicado anos antes da sua eleição papal, merece atenção(2). Não revela nem um herói nem um santo prefabricado. Foi aprendendo a ser “simples como as pombas e prudente como as serpentes”. Desarmante.

Ele não vem do mundo dos pobres. Foi vendo as consequências e as causas dos escandalosos contrastes sociais, num país cheio de riquezas. Levou tempo a descobrir as monstruosidades da repressão, os requintes das torturas aos presos, as mães dos milhares e milhares de desaparecidos, despejados no mar, etc.

Não se coloca fora daqueles – padres e bispos – que ainda demoraram mais a dar-se conta da urgência em participar na defesa dos direitos humanos e a desmascarar a colaboração de outros com governos criminosos e os seus métodos. Confessa: Eu tive dificuldade em ver, insisto, até que começaram a trazer-me pessoas e tive de esconder o primeiro. Não foi de repente que descobriu as razões pelas quais a Argentina “passou dos 4% de pobres, no princípio dos anos setenta, para mais de 50% durante a crise de 2001”.

Eu próprio estava, nessa data, a trabalhar na Argentina. Testemunhei as dimensões e as consequências da loucura e da irresponsabilidade política, financeira e económica por aquela situação.

Este Papa acabou por ir ver o sofrimento das diversas periferias de Buenos Aires e, por isso, só entende a Igreja em movimento de saída, para o meio dos explorados, seja onde for.

2. A Exortação Apostólica, A Alegria do Evangelho, da qual comecei a falar no passado Domingo, é um dos frutos maduros da progressiva conversão que lhe foi libertando o olhar e desinibindo a voz perante as questões chocantes da Igreja e da sociedade, a nível local e global.

Como Bispo de Roma – o serviço donde derivam todas as outras responsabilidades - não olha para a realidade de maneira neutra e asséptica como um sociólogo. Procura o discernimento evangélico que ajude as comunidades cristãs a desenvolver uma capacidade de cuidadosa atenção aos sinais dos tempos, consciente de que vivemos não apenas numa época de mudanças, mas numa mudança de época.

O texto mais citado do documento referido e que mais polémica tem gerado, é mesmo chocante: ”Assim como o mandamento não matar põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida para o lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social.

Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspetivas, num beco sem saída.

O ser humano é considerado como um bem de consumo que se pode usar e deitar fora. É a promoção da cultura do descartável. Já não se trata de exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na raíz, a pertença à sociedade: quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder, já está fora. Os excluídos nem explorados são, mas resíduos, sobras(3). Esse é o facto. Quais são as causas?

3. O argentino tenta responder. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos, pacificamente, o seu domínio sobre nós e sobre as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano.

Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro(4) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que afecta as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e, sobretudo, a grave carência de uma orientação antropológica, que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo(5).

Para desviar a atenção destas e de outras denúncias concretas, diz-se que já está tudo nos princípios da Doutrina Social da Igreja, que não deve descer muito ao concreto, porque a realidade está sempre a mudar. Quanto mais abstracta fôr, mais eterna se mantém. Também mais inútil.

in Público, 13.07.2014

1. Il Messaggero, 29.06.2014 
2. Francesca Ambrogetti | Sergio Rubin, Papa Francisco, Paulinas 2013 (original 2010). Cf. Nello Scavo, A Lista de Bergoglio, ib., 2013; Arnaud Bédat, Francisco O Argentino, Guerra e Paz, 2014
3. Cf. E.G. 53
4. Cf. Ex 32,1-35
5. Cf. E.G. 55

07 julho 2014

QUE TROUXE DE NOVO O PAPA FRANCISCO (2)

Frei Bento Domingues, O. P.

1. A sacralização da dimensão humana da Igreja e das respectivas estruturas acaba por impedir a sua reforma permanente e encobrir situações recentes de triste memória.

A Alegria do Evangelho* mostra que o Papa Francisco não tem acções nas indústrias de conserva: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual do que à auto-preservação”.

Este sonho deve concretizar-se em processos de mudança nas paróquias, nos movimentos e nas dioceses. O Bispo deve estimular organismos de diálogo e participação nos quais todos sejam ouvidos e não apenas àqueles que estão sempre prontos a lisonjeá-lo.

Jorge Bergoglio comprometeu-se a praticar aquilo que pede aos outros, isto é, a trabalhar na conversão do Papado e das estruturas centrais da Igreja universal. Importa dar conteúdo à colegialidade e tornar as Conferências Episcopais sujeitos de atribuições concretas, mesmo doutrinais. A centralização excessiva não responde às necessidades actuais da evangelização a partir de situações sociais e culturais tão diversificadas.

Este argentino recusa a consagrada receita da rotina: fez-se sempre assim! É preciso ser ousados e criativos na tarefa de repensar objectivos, estruturas, estilos e métodos evangelizadores das respectivas comunidades. Sem identificação comunitária dos fins e dos meios, o sonho não passa de uma fantasia (nº 27-33).

2. Donde poderá vir a energia para tanta desenvoltura reformadora? Do encontro com o núcleo essencial do Evangelho. É este que dá sentido, beleza e fascínio ao novo estilo missionário, que faz a triagem entre o principal e o secundário e vence essa obsessão de amontoar doutrinas desconexas impostas à força de insistir no ridículo. 

Bergoglio retoma, do Concílio Vaticano II, uma perspectiva entretanto esquecida: “existe uma ordem ou hierarquia das verdades da doutrina católica, pois o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente”.

Uma das tarefas teológicas mais urgentes consiste em passar, a pente fino, certas posições do magistério eclesiástico declaradas irreformáveis, certamente para evitar questões incómodas. Quem poderá fechar o futuro ao Espírito de Deus?

O Papa retoma o ensino de S. Tomás de Aquino para destacar que também na mensagem moral da Igreja existe hierarquia de virtudes e acções que delas decorrem. ”O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, manifestada através da fé que opera pelo amor”. Relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes, pois compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta na realidade - remediar as misérias alheias. Tudo o resto só existe para secundar e exprimir o Evangelho da graça, do amor e da liberdade que exige e supera a justiça (S. Th. I-II, 66; 106-108).

Bergoglio conhece bem as consequências nefastas nas orientações pastorais, quando esta hierarquia não é respeitada e as virtudes que deveriam ser as mais presentes na pregação e na catequese – a caridade e a justiça - são as mais ausentes! Acontece a mesma coisa quando se fala mais da lei do que da graça, mais da Igreja do que de Jesus Cristo, mais do Papa do que da palavra de Deus (nº 36-38).

A moral cristã não é uma ética estoica, uma ascese, uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. É a resposta de amor ao amor que nos amou primeiro.

3. Este Papa resolveu descongelar a liberdade e o pluralismo na interpretação da Palavra revelada, honrando o trabalho dos exegetas e dos teólogos, assim como o pensamento filosófico e as ciências humanas. Serve-se de Tomás de Aquino para rejeitar o sonho de uma doutrina monolítica defendida por todos. O Evangelho é multiforme. 

O empenhamento dessacralizador do novo hóspede da Casa de Santa Marta põe em causa costumes, alguns muito radicados no decurso da história da Igreja, mas que não têm ligação directa ao núcleo de Evangelho. Diz a mesma coisa de normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não são canais de vida. Não tenhamos medo de os rever!

 Recorre a Tomás de Aquino para sublinhar que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus “são pouquíssimos”. A Igreja não deve transformar a nossa religião numa escravatura, quando a misericórdia de Deus quis que ela fosse livre e libertadora. A Igreja de portas abertas e enlameada pelos caminhos de todas as periferias o mundo, encontra os passos de Cristo (nº 37-49)

O guia do Papa, no seu programa reformador, é S. Tomás de Aquino, cuja novidade o espanta. Umberto Eco lembrou que, desde os finais do séc. XIX até aos nossos dias, uma corrente conservadora tentou transformar um incendiário, o condenado do séc. XIII, num bombeiro.

Esperemos que o irrequieto Bergoglio continue a desassossegar as Igrejas, as religiões, a banca, as sociedades, os governos para que se coloquem ao serviço da justiça.

P.S. A Sophia não precisa nada do Panteão. O Panteão Nacional precisa muito da Sophia.

Público, 06.07.2014

* Nesta crónica limitámo-nos a tocar em alguns números do 1º cap. do E.G.