01 agosto 2020


P/INFO: NÓS E OS OUTROS, crónica do P. Anselmo Borges, Núncio de França convoca “mulheres apóstolas” para reunião, depois de uma delas receber ameaças de morte, notícia copiada do 7Margens & Comunicado de imprensa  de “Toutes Apôtres”, publicado no Religión Digital

NÓS E OS OUTROS

Aí está um tema e um problema sempre presentes, pois o que há é sempre nós e os outros, vivendo e convivendo, enriquecendo-nos mutuamente ou destruindo-nos uns aos outros. A pergunta essencial é então: porque é que se passa tão fácil e rapidamente do encontro mutuamente constituinte e enriquecedor à suspeita, à luta e ataque destruidores?
Na relação sadia com o outro/outros, há dois pressupostos essenciais. Um diz a dignidade inviolável de toda a pessoa humana, independentemente do sexo, da cor, da etnia, da religião... Outro pressuposto é a tomada de consciência de que o outro é sempre outro, igual e diferente. O outro, sempre cultural, pois o ser humano é resultado de uma herança genética e de uma cultura em história, porque é, simultaneamente, tanto do ponto de vista pessoal como grupal e societal, um outro eu e um eu outro — outros como nós e outros que não nós —, é sentido constantemente como fascínio e ameaça.
Há uma visão dupla do outro, que tanto pode ser idealizado como diabolizado, mitificado positivamente ou negativamente. Atente-se na ligação entre hóspede e hostil. Assim, hospital vem do latim hospite, que significa hóspede, também em conexão com hotel. Como ser-no-mundo, o Homem é, logo na raiz, hóspede: somos hospedados no mundo. Mas a palavra está ligada também a hoste, donde provém hostil — também há o hostel. Não nos pedem à chegada a um hotel a identificação, pois não se sabe quem chega por bem ou por mal? E a fronteira, porta de entrada e de saída — em conexão com fronte: a nossa fronte somos nós voltados para os outros, mas ao mesmo tempo ela é limite, demarcação —, não é ao mesmo tempo o espaço de acolhimento e da independência a defender frente ao invasor? O mesmo se pode ver  na análise da palavra encontro. Também aqui é importante observar como, analisando o étimo, comparece não só a relação constituinte com o outro, mas também a indicação do embate e contraposição, assinalados no contra da palavra encontro, que aparece igualmente no espanhol, encuentro, no francês, rencontre, no alemão, Begegnung, com o gegen, que significa contra. Nesta linha, estão também o anti positivo e irrenunciável, cujo fundamento são os direitos humanos — a tolerância tem a sua barreira no intolerável: pense-se no anti-racismo e no anti-esclavagismo —, e os anti negativos, que têm como base fundamental a ignorância e o medo ou desígnios de poder, levando à construção social do outro como ameaça, bode expiatório, encarnação do mal e o inimigo — pense-se, por exemplo, nos judeus, nos muçulmanos, nos protestantes, nos jesuítas, nas mulheres: anti-semitismo, anti-islamismo, antiprotestantismo, antijesuitismo, antifeminismo —, a menosprezar, marginalizar, humilhar e até abater e eliminar.
Aí está, pois, a tentação constante da redução do diferente ao mesmo, porque isso dá segurança. Mas o mesmo não comunica. A identidade só se dá na e pela alteridade. Só há ser humano com outros seres humanos. Ser e ser-em-relação auto-implicam-se. A alteridade não é adjacente, acrescentada, a pessoa só existe no encontro com o outro/outros. Sem tu não há eu, e nós somos nós na presença e no encontro com os outros.
As duas atitudes contrapostas frente ao outro estão tipificadas em dois passos da Bíblia. No mito de Babel, no livro do Génesis, que representa a arrogância, a dominação e a confusão. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. A arrogância imperial de Babel anula a diferença, o amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar.
Na relação com o outro, há um terceiro elemento fundamental. A identidade do ser humano não é fixa, mas histórica, processual, a fazer-se. Neste domínio, mesmo se discutível, há um texto célebre do filósofo E. Levinas, que chama a atenção para duas figuras paradigmáticas, na relação com o outro: Ulisses e Abraão. Ulisses, depois da Guerra de Troia, de volta a casa, vive a aventura de encontros múltiplos, experiências variadas, travou combates, enfrentou obstáculos sem fim, conheceu o diferente. Coberto de vitórias e glória, regressa. Mas chegado a casa, mesmo disfarçado, “diferente” do Ulisses que partira, é ainda o “mesmo”, que até o seu cão, pelo faro, reconhece. Ulisses representa o herói do regresso, que contactou com o diferente apenas para, num mundo domesticado e assimilado, reduzi-lo ao mesmo. Abraão ouviu uma voz que o chamava, e partiu da sua terra, para nunca mais voltar. A sua viagem vai na direcção do novo, do não familiar, do diferente, do Outro. Ninguém o espera num regresso ao ponto de partida. Há só uma Palavra de promessa que o chama para um futuro sempre mais adiante. Abraão ouve, caminha, transcende. A sua identidade transfigura-se a cada passo, é processual, histórica, em transcendimento. Não rompe com o passado, mas o seu êxodo vai no sentido de um futuro imprevisível e sempre novo.
Na actual situação do mundo globalizado, como salvaguardar, no contexto de identidades inevitavelmente compósitas, o equilíbrio tensional entre a universalidade e a singularidade, sem rupturas nem esquizofrenias, sem rigidez nem fixismo, sem trair as origens nem enregelar nelas? A cultura da paz supõe e implica a sinfonia das nações, grupos e povos em contraponto, aberta à transcendência, em que Deus é o Outro de todos os outros, garante da dignidade de todos, incluindo as vítimas, e da unidade dos diferentes, a caminho da plenitude.
in DN 1 de Agosto de 2020
Núncio de França convoca “mulheres apóstolas” para reunião, depois de uma delas receber ameaças de morte
Clara Raimundo
O núncio apostólico (embaixador da Santa Sé) em França convocou esta semana para uma reunião as sete “mulheres apóstolas” que no passado dia 22 de julho entregaram as suas candidaturas a cargos reservados aos homens na Igreja Católica. A primeira a ser contactada pelo representante do Papa, Celestino Migliore, foi a teóloga francesa Sylvaine Landrivon, que horas antes tinha recebido uma carta anónima com ameaças de morte.
O gesto do núncio foi acolhido com alegria pelo grupo. “É um passo que não esperávamos. Realmente, é uma boa notícia”, afirmaram, em declarações citadas pelo Religión Digital. O bispo Migliore pretende reunir individualmente com cada uma das candidatas já no próximo mês de setembro.
Mas aquilo que estas sete mulheres também não esperavam era receber cartas anónimas em casa, muito menos ameaçando-as de morte. “Aguardamos impacientes as vossas próximas reformas, o vosso próximo concílio. A Igreja conta convosco. Mas despachem-se, porque é provável que a morte te surpreenda”, pode ler-se na missiva que foi deixada na caixa de correio de Sylvaine Landrivon, uma das sete mulheres pertencentes ao coletivo “Toutes Apôtres” (“Todas Apóstolas!”, em português), que se candidatou ao cargo de bispa.
A carta deixou todas as candidatas em choque, incluindo a teóloga e biblista Anne Soupa, que pertence também ao coletivo, e que no passado mês de maio havia apresentado a sua candidatura para suceder ao cardeal Philippe Barbarin como arcebispo de Lyon.
O facto de que “a nossa simples reivindicação de uma verdadeira igualdade provoque uma tal violência significa que alguns se sentem ameaçados na sua identidade. As mulheres são hoje as reféns desse mal-estar”, denunciou o coletivo num comunicado. Por isso, defendem, é necessário “abrir um debate mais sereno entre todos e todas juntos. Devemos poder construir relações de género que escapem aos jogos de violência, de poder e de hierarquia”.
Desde a entrega das suas candidaturas, o grupo recebeu já “centenas de mensagens de apoio vindas do mundo inteiro”, sublinham, incluindo “apoios surpreendentes”. Também Anne Soupa conta já com mais de 17 mil apoiantes, que deixaram a sua assinatura no site onde foi divulgada a sua candidatura.  A lista de signatários será enviada ao Papa Francisco.
in 7Margens 31.07.2020





P / Info: Crónica & O elogio do tempo livre
Cardeal Tolentino: O  tomista gentil

NOTA: Como é hábito vamos de férias e interrompemos os envios de mails. Claro que, se houvesse alguma notícia mesmo importante, enviá-la-íamos. Muito boas férias para tod@s e até Setembro.

QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

O tomista gentil
A TRAJETÓRIA DE FREI MATEUS PERES PESA PARA O LADO DA SINGULARIDADE. ELE FOI TODA A VIDA UM SERENO TECEDOR DE MEDIAÇÕES; UM CONSTRUTOR DE SÍNTESE

Penso que é uma pena se, para lá do círculo da família dominicana, ficar por assinalar a partida dessa notável figura que foi, no Portugal contemporâneo, frei Mateus Peres, O.P. Ele começou por integrar uma geração de intelectuais que, nos anos 50 e 60, viveu o catolicismo de uma forma apaixonada e que, com a exaltação e as amolgadelas próprias dos estados de paixão, trabalhou sobretudo para dotar de cidadania cultural uma fé que tradicionalmente parecia não ter expressão pública fora das manifestações de piedade. Nomes como os de António Alçada Baptista, João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Nuno Portas, M. S. Lourenço e do próprio frei Mateus Peres, entre outros, desenharam em torno ao Concílio Vaticano II um inédito e vital espaço de pensamento teológico, debate e aggiornamento que sintonizou Portugal com a novidade e a viragem que se respiravam internacionalmente. À galáxia da editora Morais e das revistas “Concilium” e “O Tempo e o Modo” deve-se não só a introdução de nomes fundamentais da teologia contemporânea (Edward Schillebeeckx, Congar, Balthasar...), mas de textos clássicos da espiritualidade como “Imitação de Cristo”, de Tomás de Kempis, ou os “Fioretti”, de São Francisco de Assis, em traduções exemplares que atestam um desejo de dotar de credibilidade também literária a linguagem da experiência religiosa.
Os mais pessimistas dirão que todo esse movimento redundou num fiasco do ponto de vista eclesial, pois essa geração da Ação Católica Universitária (JUC) se dispersou depois em percursos de dissidência e solidão. Mas, a verdade, é que não podemos não ver que o rótulo de “vencidos do catolicismo”, que lhe ficou colado, alberga, no fundo, trajetórias muito diferenciadas e que obrigam a complexificar o olhar de conjunto a essa geração. Por exemplo, a trajetória de Mateus Peres pesa certamente para o lado da singularidade. Ele foi toda a vida um sereno tecedor de mediações; um construtor de sínteses. E disso fala o seu percurso na vida religiosa, onde foi um instigador teólogo moral, mas também, por mais de uma década, provincial dos padres dominicanos portugueses, e depois assistente do mestre-geral, com a responsabilidade de cuidar da vida intelectual, numa ordem que, há oitocentos anos, vive como sua missão específica associar a pregação a um aturado estudo.
Ouvi-o pregar muitas vezes em contexto litúrgico e fascinava-me o modo como ele avizinhava a comunidade do texto evangélico
Muitos recordarão a figura de frei Mateus Peres por outras razões. A mim, confesso, o seu legado foi a gentileza. Ele mostrou-me o que significa ser sempre gentil; como se pode e deve defender um quinhão de alegria no meio das turbulências; o valor dessa pureza de coração que se traduz em hospitalidade incondicional à vida e em prática fraterna efetiva; o efeito imprevisivelmente seminal que tem a finesse d’esprit ou a delicadeza sem nenhum cálculo. “Desliza, liso/ pé, lisa palma/ sobre a ruga da pedra” — é o conselho sapiencial de um poema de Pedro Tamen que o reflete tanto.
Ouvi-o pregar muitas vezes em contexto litúrgico e fascinava-me o modo como ele avizinhava a comunidade do texto evangélico: nunca entrava às pressas pelo texto dentro, nunca verdadeiramente se apoderava dele, jamais se sobrepunha. Dir-se-ia que contemplava e fazia contemplar a palavra. Falava frequentemente das suas dificuldades de compreensão de um episódio bíblico, partilhava as perguntas que se tinha feito e, não raro, aceitava que só conseguia avistar uma parte do seu sentido. Mas a parte que ele via ganhava, na sua pregação, uma evidência iluminante, onde razão e fé travavam um fértil diálogo. Frei Mateus Peres O.P. permaneceu até ao fim um tomista gentil como, aliás, se diz que São Tomás de Aquino foi.
in Semanário Expresso, 01.08.20210, p 160

P / Info: Crónica & O elogio do tempo livre
Cardeal Tolentino: O  tomista gentil

NOTA: Como é hábito vamos de férias e interrompemos os envios de mails. Claro que, se houvesse alguma notícia mesmo importante., enviá-la-íamos. Muito boas férias para tod@s e até Setembro.

QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

O tomista gentil
A TRAJETÓRIA DE FREI MATEUS PERES PESA PARA O LADO DA SINGULARIDADE. ELE FOI TODA A VIDA UM SERENO TECEDOR DE MEDIAÇÕES; UM CONSTRUTOR DE SÍNTESE

Penso que é uma pena se, para lá do círculo da família dominicana, ficar por assinalar a partida dessa notável figura que foi, no Portugal contemporâneo, frei Mateus Peres, O.P. Ele começou por integrar uma geração de intelectuais que, nos anos 50 e 60, viveu o catolicismo de uma forma apaixonada e que, com a exaltação e as amolgadelas próprias dos estados de paixão, trabalhou sobretudo para dotar de cidadania cultural uma fé que tradicionalmente parecia não ter expressão pública fora das manifestações de piedade. Nomes como os de António Alçada Baptista, João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Nuno Portas, M. S. Lourenço e do próprio frei Mateus Peres, entre outros, desenharam em torno ao Concílio Vaticano II um inédito e vital espaço de pensamento teológico, debate e aggiornamento que sintonizou Portugal com a novidade e a viragem que se respiravam internacionalmente. À galáxia da editora Morais e das revistas “Concilium” e “O Tempo e o Modo” deve-se não só a introdução de nomes fundamentais da teologia contemporânea (Edward Schillebeeckx, Congar, Balthasar...), mas de textos clássicos da espiritualidade como “Imitação de Cristo”, de Tomás de Kempis, ou os “Fioretti”, de São Francisco de Assis, em traduções exemplares que atestam um desejo de dotar de credibilidade também literária a linguagem da experiência religiosa.
Os mais pessimistas dirão que todo esse movimento redundou num fiasco do ponto de vista eclesial, pois essa geração da Ação Católica Universitária (JUC) se dispersou depois em percursos de dissidência e solidão. Mas, a verdade, é que não podemos não ver que o rótulo de “vencidos do catolicismo”, que lhe ficou colado, alberga, no fundo, trajetórias muito diferenciadas e que obrigam a complexificar o olhar de conjunto a essa geração. Por exemplo, a trajetória de Mateus Peres pesa certamente para o lado da singularidade. Ele foi toda a vida um sereno tecedor de mediações; um construtor de sínteses. E disso fala o seu percurso na vida religiosa, onde foi um instigador teólogo moral, mas também, por mais de uma década, provincial dos padres dominicanos portugueses, e depois assistente do mestre-geral, com a responsabilidade de cuidar da vida intelectual, numa ordem que, há oitocentos anos, vive como sua missão específica associar a pregação a um aturado estudo.
Ouvi-o pregar muitas vezes em contexto litúrgico e fascinava-me o modo como ele avizinhava a comunidade do texto evangélico
Muitos recordarão a figura de frei Mateus Peres por outras razões. A mim, confesso, o seu legado foi a gentileza. Ele mostrou-me o que significa ser sempre gentil; como se pode e deve defender um quinhão de alegria no meio das turbulências; o valor dessa pureza de coração que se traduz em hospitalidade incondicional à vida e em prática fraterna efetiva; o efeito imprevisivelmente seminal que tem a finesse d’esprit ou a delicadeza sem nenhum cálculo. “Desliza, liso/ pé, lisa palma/ sobre a ruga da pedra” — é o conselho sapiencial de um poema de Pedro Tamen que o reflete tanto.
Ouvi-o pregar muitas vezes em contexto litúrgico e fascinava-me o modo como ele avizinhava a comunidade do texto evangélico: nunca entrava às pressas pelo texto dentro, nunca verdadeiramente se apoderava dele, jamais se sobrepunha. Dir-se-ia que contemplava e fazia contemplar a palavra. Falava frequentemente das suas dificuldades de compreensão de um episódio bíblico, partilhava as perguntas que se tinha feito e, não raro, aceitava que só conseguia avistar uma parte do seu sentido. Mas a parte que ele via ganhava, na sua pregação, uma evidência iluminante, onde razão e fé travavam um fértil diálogo. Frei Mateus Peres O.P. permaneceu até ao fim um tomista gentil como, aliás, se diz que São Tomás de Aquino foi.
in Semanário Expresso, 01.08.20210, p 160


O elogio do tempo livre
Alfredo Teixeira
Para quê elogiar tamanho consenso? Talvez seja mais fácil encontrar um discurso cristão acerca da dignidade do trabalho do que uma espiritualidade do tempo livre.

Este título parece bastante inútil. Para quê elogiar tamanho consenso? De facto, à centralidade do homo faber – na versão do capitalismo da produção e do consumo – corresponde uma hiperestimulação do desejo do tempo livre. Talvez seja mais fácil encontrar um discurso cristão acerca da dignidade do trabalho do que uma espiritualidade do tempo livre, mesmo quanto se reconhece que a noção de santidade do tempo é inseparável da experiência bíblica do «sétimo dia» – o «entretanto» da festa de Deus, a irrupção do definitivo na fragilidade dos dias.

O tempo livre é vivido com uma particular intensidade na modalidade moderna das férias. É um tempo plural. Nuns casos, exprime-se a nostalgia do contacto com a nudez do mundo, resistindo a uma cultura de imobilidade e de fechamento face à diversidade do meio. Noutros casos, valoriza-se a experiência de liberdade, procurando paisagens ainda não frequentadas. As férias dão corpo a uma rutura com o tempo metrificado pelo trabalho, alargando o campo da experiência da gratuidade e facilitando novas experiências sensoriais, nas quais o cosmo se descobre como lugar de comunhão e não apenas de exploração. Assim, as férias podem ser lidas como uma dilatação do tempo dominical, o tempo da alegria da criação – a dança de Deus com as criaturas.

Assim, as férias podem ser lidas como uma dilatação do tempo dominical, o tempo da alegria da criação – a dança de Deus com as criaturas.

O tempo livre pode ser um ensaio de reencantamento do mundo, favorecendo a relativização da ordem normalizada do quotidiano tecnológico, produtivo e funcionalizado. Os itinerários de férias permitem, tantas vezes, o corpo a corpo com a natureza – o sol, o vento, o mar, o solo… Esta experiência deveria permitir o aprofundamento de uma ética do cuidado cósmico, uma vez que a nossa fruição do mundo exige a responsabilidade pela manutenção dos seus equilíbrios. Sem ingenuidades, admitamos, as férias industrializadas pressionam significativamente o meio. Mas talvez a experiência da ecologia do tempo livre nos possa tornar mais atentos a outras ecologias, nas quais descobrimos que a preservação das diversidades é, no sentido bíblico, uma responsabilidade partilhada com o Deus criador.

Dizemos que as férias passam depressa. É uma forma de exercitarmos o desejo do tempo livre e exorcizarmos o jugo do tempo da produtividade. Mas as férias podem ser o tempo da lentidão. Ou seja, o tempo em que demoramos sobre as coisas – há coisas que só na lentidão se tornam visíveis. A disseminação de dispositivos portáteis que, entre outras coisas, fotografam o tempo livre, facilitou o cultivo desta suspensão do tempo – o horizonte, o pôr-do-sol, a luz refletida no rio, o mistério do nevoeiro, a surpresa de uma flor, a potência do mar, tudo se imobiliza na fotografia, para ser tatuado como memória e biografia.

Mas as férias podem ser o tempo da lentidão. Ou seja, o tempo em que demoramos sobre as coisas – há coisas que só na lentidão se tornam visíveis.

A experiência das férias, enquanto tempo livre, veicula uma criativa relação entre passado e futuro. Tantas vezes as férias são um regresso aos lugares onde somos felizes. Não se trata de um regresso ao mesmo. Esse solo arável da nossa memória alarga o nosso futuro, uma vez que nesses lugares de felicidade encontramos o que verdadeiramente importa, ao redor de uma mesa, no reconhecimento dos rostos, na troca de afetos, na partilha intergeracional, no tecido das histórias recontadas. Talvez a hospitalidade seja um dos valores mais celebrados na experiência das férias. Ser bem-vindo é aquilo que mais apreciamos no trânsito destes dias. Na generosidade da festa, na alegria da hospitalidade, no bom-humor confiante, na santidade do repouso, dizemos ámen à bondade da vida. Esse é o elogio cristão do tempo livre.
in 29.07.2020
https://pontosj.pt/opiniao/o-elogio-do-tempo-livre/
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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