30 janeiro 2015

Contributo do Movimento NSI Portugal para o Sínodo Diocesano

Contributo do Movimento Nós Somos Igreja – Portugal para a reflexão sobre o Sínodo Diocesano de Lisboa, preparatório do próximo Sínodo da Família

O Movimento reuniu e elaborou a seguinte carta que enviou em 2 de Jan 2015 ao Patriarca de Lisboa.

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Lisboa, 2 de Janeiro de 2015

Senhor Patriarca de Lisboa
D. Manuel Clemente
Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

O Movimento Internacional Nós Somos Igreja-Portugal tem vindo a envolver-se em todos os temas de actualidade que exijam um sinal da nossa presença como Povo de Deus. Queremos ser uma presença de proximidade, em férteis horas de bons procedimentos, ou em complexas circunstâncias próprias deste tempo em que vivemos. Desejamos agora também contribuir com estas reflexões para o Sínodo diocesano que, em boa hora foi convocado pelo Senhor Patriarca, tendo em vista preparar o Sínodo de 2015 sobre a família.

Neste momento em que pela Santa Sé acabam de ser anunciados os Lineamenta para o referido Sínodo, permitimo-nos evocar as palavras do Papa Francisco no final da Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo, em Outubro passado: “Deus é o Deus da lei. É também o Deus das surpresas. Deixem-se surpreender por Deus. Deus não tem medo da novidade.” Inspirador, o seu pensamento permite-nos com maior entusiasmo, escrever esta carta, a propósito dos trabalhos que ao longo do ano ocuparão a toda a Igreja diocesana, quer os nossos bispos, assim como as comunidades de fiéis, para que, seja verdadeiramente um sinal de esperança e de misericórdia, entre nós, como nas restantes zonas do mundo, acompanhando “Evangelium Gaudium” e considerando as transformações sociais positivas que marcam o tempo presente. Não impondo regras radicais, cuja justificação teológica e/ou evangélica ou não têm qualquer fundamento ou tem fundamentos demasiadamente frágeis.

28 janeiro 2015

Uma excelente oportunidade para o Papa Francisco e para a Igreja

Ana Vicente*

Quantas vezes a Igreja, na sua história, se viu obrigada a rever posições e a pedir desculpas pelos seus pecados?

Lemos com alegria que o Papa Francisco, mais uma vez, foi a uma zona do mundo que, em boa hora, está a deixar de ser uma franja para passar a ocupar o lugar que lhe é devido. Aí constatou a gritante situação de pobreza de milhões de pessoas – sobretudo das mulheres. A forma obsoleta e iníqua com que nos organizamos a nível internacional em termos económicos e políticos, tantas vezes sublinhada pelo próprio Francisco – metade da riqueza mundial nas mãos de 1% da população!

Francisco sabe, porque já demonstrou, que é uma pessoa intelectualmente honesta, uma qualidade demasiadamente rara nas elites religiosas, que está mais que analisado, estudado e avaliado que a maioria dos pobres tem cara de mulher e que essa pobreza ocorre maioritariamente entre as mulheres não por mero acaso. Estão excluídas do poder, e o que é mais grave, também do poder religioso, pois este deveria ser o primeiro a dar o exemplo de justiça e igualdade, tão ansiado pelo divino. São objecto de discriminação no acesso à saúde, à educação, à formação, aos direitos humanos, em suma. São as principais vítimas de violência sexual, de violência psicológica, de violência bruta, como aliás é reconhecido na exortação papal A Alegria do Evangelho: “Duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos.” (para 212). O PÚBLICO de 19 de Janeiro fala das Filipinas como uma ilha de catolicismo no continente asiático; descreve como o povo clamou contra a corrupção e contra a injustiça – que os assola há décadas. Mas será adequado referir as Filipinas como um país católico? Tendo em conta que  está organizado de uma forma profundamente não-cristã, tudo ao arrepio da mensagem evangélica?

Perante os catastróficos cenários filipinos com que se confrontou e que aliás referiu por diversas vezes, tenhamos esperança que o Papa Francisco tenha o bom senso e a coragem de rever a muito infeliz e, aos olhos de muitas teólogas e teólogos, frágil, porque muito mal fundamentada, encíclica de 1968, subscrita por  Paulo VI, Humanae Vitae. Aí se faz uma distinção entre métodos contraceptivos "naturais" e outros "artificiais", impondo o uso dos "naturais". É sabido que uma forte maioria do grupo de trabalho nomeado primeiro pelo Papa João XXIII e depois alargado por Paulo VI, concluiu que todos os métodos ‘iludem a natureza’, incluindo os chamados naturais – porque estes usam o estratagema de identificar os tempos inférteis da mulher para só nesses períodos poder haver relações sexuais; e o sensus fidelium rejeitou de tal modo as prescrições da encíclica que hoje em dia, no mundo ocidental, cerca de 95% dos católicos praticantes consideram-nas inaceitáveis e ignoram-nas, usando qualquer método em boa consciência, porque entenderam que o que de facto importa é ser responsável na parentalidade, quer da parte materna quer paterna. São seguidos nessa opinião pela grande maioria do clero, das religiosas e até de muito episcopado que, repetidamente, tem solicitado ao Vaticano a revisão desta encíclica, que tanto tem minado a autoridade eclesiástica. É mais do que sabido que apenas alguns membros de organizações ultratradicionalistas seguem estas orientações. Estão no direito de o fazer – não estão no direito de as impor aos outros.

25 janeiro 2015

Acredite no que quiser, mas não seja idiota

Frei Bento Domingues, O. P.
                                       
1. Deparei com este título num artigo de R. F. Machado, O desencantamento da experiência de Deus em House, dedicado a estudar as relações entre fé e ciência, a partir de uma conhecida série norte-americana. O autor já tinha consagrado uma tese de doutoramento ao mesmo tema [1]. Numa das conversas entre House e uma freira doente – que disfarçava uma complicada história pessoal com a vontade de Deus - o médico acabou por explodir: acredite no que quiser, mas não seja idiota. Mesmo sob a protecção divina, ao atravessar a rua, se não quiser ser atropelada, olhe bem para os dois lados.        

O Papa, ao regressar das Filipinas, tem uma observação ainda mais rústica: pensam alguns que para serem bons católicos - desculpem o termo - devem ser como coelhos. Contou, a propósito, a pergunta feita a uma mãe de sete filhos, todos nascidos de cesariana: como se atreve a pensar em ter ainda outro? Eu acredito em Deus! Bergoglio lembra-lhe que Ele nos deu meios para sermos responsáveis.       

Sempre me irritou a beata invocação da vontade de Deus, a propósito de tudo e de nada. De forma consciente ou inconsciente é a arma psicológica sempre disponível. Contaram-me que um superior autoritário invocou a vontade de Deus para exigir a obediência de um membro da comunidade, acerca de uma decisão algo arbitrária. Resposta pronta e firme: devo-lhe obediência e cumprirei, mas não julgue que a santíssima e misteriosíssima vontade de Deus passa pela sua realíssima gana!        

Fazer chantagem com a vontade de Deus, é um pecado contra o Céu.

2. Quando ouço falar de Deus levianamente, lembro-me de uma carta de S. Paulo a Timóteo [2]: “Deus mora numa luz inacessível, que nenhum ser humano viu, nem pode ver”.      
Santo Agostinho advertiu: “Por mais altos que sejam os voos do pensamento, Ele está ainda mais além. Se compreendeste, não é Deus. Se pudestes compreender, não foi Deus que compreendeste, mas apenas uma representação de Deus. Se quase pudeste compreender, então foste enganado pela tua reflexão”.       

S. Tomás de Aquino sustentava que de Deus tanto mais saberemos quanto mais nos dermos conta de que não sabemos. Da sua experiência mística, no final da vida, brotou a confissão: tudo o que escrevi parece-me palha! No entanto, cantou numa belíssima poesia iluminista: atreve-te quanto puderes! Em suma: ousar e saber os limites da nossa ousadia.

O sentido agudo da transcendência divina, não é fruto de uma fuga do mundo ou uma alienação e a chamada teologia negativa não resulta de um cansaço especulativo. São tudo expressões do esforço para não ceder às tentações idolátricas, sejam de que natureza forem.

S. Paulo, no célebre discurso no Areópago de Atenas recorreu à sua experiência judaica para falar da transcendência divina e ao poeta Arato, da Cilícia (séc. III a.C.) para falar da sua inteira imanência: a divindade não está longe de nós; é nela que vivemos, nos movemos e existimos. Somos da sua raça [3].

No cristianismo, confessa-se que Deus se esvazia da omnipotência dominadora para se revelar como puro dom do amor que nos amou primeiro, pura e simplesmente porque é amor de absoluta generosidade, ágape [4].

3. Para não invocar o nome de Deus em vão, ou contra o ser humano, importa ter cuidados com a linguagem teológica. Como princípio geral, deveremos considerar como falsa toda a afirmação acerca de Deus que despreze a liberdade humana, a sua responsabilidade e a sua alegria. Não é o ser humano para a religião, mas a religião para o ser humano. Esta sentença é atribuída ao próprio Cristo, mas esquecida ao longo dos séculos [5].

É pelos frutos que se conhece a árvore. Os frutos da orientação económica mundial não são todos apetecíveis. Se a tão louvada globalização da economia faz com que metade da riqueza do mundo esteja, brevemente, nas mãos de apenas 1% da população mundial, podemos acreditar à vontade nas teorias e práticas económicas que quisermos, mas não sejamos idiotas. Se o comércio internacional das armas faz com que cheguem à República Centro Africana armas de todos os géneros e proveniências, se as granadas de mão custam menos do que uma coca-cola, meio dólar, o resultado será a continuação da guerra.

No momento em que escrevo, ainda não se sabe os resultados da Conferência de Davos, onde mais de 2.500 participantes de 140 países, incluindo mais de quarenta chefes de Estado e de governo e um enorme grupo de empresários, terão a oportunidade de analisar a actual crise económica, política e tecnológica, expandir a sua rede de contactos e explorar possíveis contratos e acordos.

Não sei se terão alguns momentos para pensar com lucidez que as suas opções não podem estar colonizadas apenas por 1% da humanidade que goza de metade da riqueza mundial.

Ao deixarem 99% da população fora dos seus cuidados, estão a criar boas condições para a miséria e para o terrorismo. Depois, só se podem queixar de si próprios. Com tantos chefes de Estado e de governo, com tantos empresários e peritos em todas as áreas da governação alguém terá de perguntar: como conseguimos ser tão idiotas?

Público, 25.01.2015


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[1] Cadernos de Teologia Pública, n.84, 2014
[2] 1 Tim. 6,16
[3] Act 17, 24-29
[4] Fl 2, 5-11; 1Jo 4
[5] Mc 2. 23-28 e paralelos; Mt 9. 13

                                                      

18 janeiro 2015

Suster e prevenir a barbárie

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Repetiu-se, muitas vezes, que tanto a religião como a irreligião dos portugueses eram bastante analfabetas. Basta, porém, um acontecimento relevante para que os meios de comunicação social mostrem a nossa abundância em peritos do vasto e complexo mundo das religiões. Uns espantam-se, outros duvidam, mas o nosso génio repentino tem destas coisas. Seria, porém, injusto não reconhecer que o panorama da nossa iliteracia religiosa não se tenha vindo a alterar.

Importa, no entanto, não esquecer de onde vimos, se quisermos compreender a alergia do Papa Francisco ao clericalismo e ao proselitismo, assim como as resistências ao espírito das suas reformas. A espantosa entrevista à jornalista argentina, Elisabeta Piqué, merecia uma demorada visita que terei de adiar [1]. Mas acima de tudo, se não quisermos confundir o combate aos movimentos terroristas do “Estado islâmico” com o Islão, importa compreender a calda de cultura religiosa de que ele se reclama. Uma viagem ao nosso passado católico pode ajudar-nos a compreender o outro e a ser exigentes no diálogo inter-religioso.

Um prestigioso investigador do Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica, Afonso Rocha, mostrou como no século XIX, mais precisamente, de 1850 a 1910, se processou, em Portugal, uma grande mudança na filosofia da religião. Numa obra notável – coroa de várias outras – apresentou e caracterizou as figuras que mais se destacaram nesse significativo período: Pedro Amorim Viana, José Maria da Cunha Seixas, Teófilo Braga, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Sampaio (Bruno) e Basílio Teles. Manifestaram-se em ruptura com o catolicismo da Igreja de Roma, de então, enquanto adversária da razão, da consciência e do progresso, mas não eram ateus [2].

2. Por um lado, era o próprio catolicismo português que demonstrava continuar completamente preso àquilo que representava a tradição católica no seu pior, designadamente no respeitante à desconfiança para com tudo o que fosse afirmação da liberdade de consciência e de religião, da razão e do progresso, intransigentemente dogmático e tradicionalista na sua prática teológica e pastoral, não indo além de um posicionamento de “reacção”, de “apologética” e de “polémica” em relação a tudo que tivesse sabor a “moderno”.

Segundo este autor, o catolicismo português, ao aproximar e identificar as concepções e as posições destes filósofos e pensadores com o racionalismo, o materialismo, a irreligiosidade e o ateísmo estava a ser guiado por um espírito claramente inquisitorial, intolerante e retrógrado. Com o inquestionável apoio do magistério oficial do Papa da altura, o comportamento teológico-pastoral mais corrente era o de suspeitar e condenar tudo o que fosse concepções e posições de sabor moderno, designadamente as que pudessem minar a doutrina e os dogmas do catolicismo.

Por outro lado, o novo pensamento português, identificado com a consciência, a razão e o progresso, propunha uma sociedade baseada na racionalidade positivo-científica, servida por uma religião de liberdade de consciência e de tolerância. Seria uma religião mística e da razão, sem hierarquia e sem normas, tão alheia à revelação positiva e ao carácter institucional, organizado, como às pretensões do dogma de uma “religião verdadeira”, única e universal, presente na “Igreja de Roma”.

3. Para Afonso Rocha, os pensadores e filósofos que estudou – em comunhão com outros companheiros estrangeiros – longe de poderem ser interpretados e apodados de irreligiosos e ateus, tendo em conta as suas concepções e posições sobre o religioso, deverão ser considerados como profetas e agentes de uma concepção religiosa assente em valores perenes e imprescritíveis.

Quais são esses valores? Uma religião essencialmente mística, de âmbito universal, cujos “dogmas sacratíssimos” não poderão deixar de ser os da liberdade de consciência, da tolerância, da razão e do progresso. Conforme os tempos e lugares, os povos e as culturas poderão traduzi-los em diversas e grandes religiões.

Para mostrar a incapacidade do pensamento católico em compreender o repto do pensamento moderno, a ruptura com o catolicismo de Trento, a liberdade de consciência e de religião, o autor observa que só na década de sessenta do séc. XX, com a “Declaração sobre a Liberdade Religiosa”, no concílio Vaticano II, é que a Igreja conseguiu dar esse salto. Acrescentaria: sem esse salto, estaríamos na situação cultural e religiosa do Islão.

Foi muito importante ver aqueles Chefes de Estado de vários continentes, unidos contra a barbárie e pela liberdade de todos. Mas, diante das suas responsabilidades históricas e actuais, que estão a fazer para evitar tragédias semelhantes?

Desfilar não pode ser o único objectivo daquela grande convocatória. O que importa é tocar a reunir para encontrarem, nas zonas de conflito, onde reina e se desenvolve a barbárie, os meios adequados para a suster e prevenir.

Público, 18.01.2015

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[1] Coragem de falar e humildade para ouvir, L’Osservatore Romano, nº 51-52, 12.2014
[2] Afonso Rocha, A filosofia da religião em Portugal (1850-1910), Universidade Católica Editora, Porto, 2013  

12 janeiro 2015

Debate

Debate "Identidades, comportamentos e modos de vida"

António Guerreiro
Maria Benedicta Monteiro
José Machado Pais

15 de janeiro das 19h00 às 21h00
Fórum Lisboa, Av. de Roma n.º 14L
(antigo cinema Roma).

entrada livre

Escutar a Cidade é um convite a que os católicos da diocese de Lisboa se deixem interrogar por pessoas que, vivendo no mesmo tecido social, mas não partilhando a condição de pertença eclesial, enunciem uma reflexão pertinente sobre aspetos decisivos da sociedade, da economia, da cultura e dos modos de vida que marcam o território da diocese.

Escutar a Cidade propõe que desta vez seja a sociedade a tomar a palavra para exprimir as suas inquietações e a sugerir o que espera das comunidades crentes que habitam a diocese.

Escutar a Cidade
é uma iniciativa pública de comunidades, movimentos, organizações e grupos católicos envolvidos no Sínodo da Diocese de Lisboa, aberta à participação de todos.

Acção Católica Rural * Associação dos Farmacêuticos Católicos *Associação Fraternitas * Centro de Reflexão Cristã * Comunidade Emanuel * Comunidade de Santo Egídio Portugal * Comunidade Shalom * Comunidades de Vida Cristã – CVX sul * Comunidade Vida e Paz * Comissão Nacional Justiça e Paz * Família Missionária Verbum Dei de Lisboa * Fraternidade Missionárias Verbum Dei - missionárias- de Lisboa * Fundação João XXIII - Casa do Oeste * Graal * Instituição Teresiana * Ir. Lúcia Soares – Provincial das Irmãs Doroteias * Jovens sem Fronteiras * Leigos para o Desenvolvimento * Maria da Conceição Araújo Maia — Movimento Famílias Novas (Focolares) * Metanoia – Movimento Católico de Profissionais * Missionários Espiritanos * Movimento Católico de Estudantes * Movimento de Encontros de Jovens Shalom * Nós Somos Igreja * Paróquia de Santo António de Campolide * Paróquias da unidade interparoquial de Óbidos * Pax Christi Portugal

11 janeiro 2015

Desadaptar a igreja

Frei Bento Domingues O. P.

1. Este Papa anda a desadaptar a Igreja. Pode parecer estranho, mas já deu muitos sinais de que é isso mesmo que pretende. Importa saber em que sentido. Parece-me algo diferente da “revolução” temida pelos conservadores e desejada pelos progressistas. É algo de mais radical.
Quando se falava de adaptação da Igreja ao mundo moderno pensava-se sobretudo na sua descolagem do “antigo regime”, do seu imaginário e privilégios. Daí o repetido toque a finados do chamado “constantinismo” e da cristandade medieval, às vezes, de forma anacrónica. Saber adaptar-se aos novos regimes políticos era uma questão de sobrevivência, procurando salvar o que era possível proteger, em contextos turbulentos. Mas o mundo moderno da criatividade cultural, do pensamento crítico, das descobertas científicas, dos novos movimentos sociais e políticos era coisa bem diferente e implicava discernimentos mais subtis.

Importa salientar que, mesmo no interior do mundo católico, nunca faltaram pessoas, movimentos e grupos que, no meio de grandes obstáculos e condenações vergonhosas, prepararam a grande viragem do Vaticano II. Sem ele e o reconhecimento oficial da liberdade religiosa, os católicos estariam hoje sem espaço para viver, de forma responsável, a crescente complexidade cultural.

A “desorientação” atribuída ao Concílio (1962-65) revelou apenas a falta de liberdade com que se tinha vivido, em diversas épocas e âmbitos, no interior da Igreja Católica. Para “sentir com a Igreja” era recomendada uma estranha e irracional atitude: se vires que uma coisa é preta, mas a hierarquia disser que é branca, conforma-te com a voz da hierarquia!

Lembro esse universo apenas para avivar a memória, mas sem insistir. Quem desejar conhecer o que foram as relações da hierarquia da Igreja com o mundo moderno dispõe hoje de testemunhos e investigações históricas alérgicas às habituais e cómodas explicações piedosas.

2. Por outro lado, em nome do combate à “teologia da libertação” e com o enfraquecimento dos movimentos operários católicos desenvolveu-se um catolicismo ora aburguesado, ora mistificador, servido por movimentos bem adaptados a essa mentalidade, sem qualquer estratégia operativa de combate à pobreza degradada em miséria, esquecendo que “não é de esmola que as pessoas precisam, mas de dignidade” como agora repete M. Bergoglio.

Com o aumento dos chamados católicos não praticantes, a sedução exercida, em vários países, sobre as camadas populares pelas igrejas e seitas pentecostais e uma moral familiar sufocada pelo irrealismo, com os meios de comunicação social cheios de narrativas de eclesiásticos pedófilos e de escândalos financeiros do Banco do Vaticano, tornara-se evidente que as lideranças de João Paulo II e de Bento XVI, por acção e omissão, desbarataram o crédito do Vaticano II, mesmo quando o invocavam. O papa Ratzinger teve o bom senso eclesial de se demitir.

3. Surge M. Bergoglio, com nítida vontade de não se adaptar ao império idolátrico do dinheiro, aos seus interesses e ambientes – dentro e fora da Igreja –, nem às seduções do fausto e do carreirismo eclesiásticos, dentro e fora do Vaticano. Escolhe, por isso, o nome e o paradigma de um clássico desadaptado ao mundo dos negócios, preocupado apenas em seguir Cristo pobre no meio dos pobres, sem ressentimento, respirando uma incansável poética da realidade de Deus e da natureza. Chama-se Francisco de Assis.

Os gestos, as atitudes e o programa deste Papa (Alegria do Evangelho) revelaram-se completamente dissonantes com os costumes inveterados da Cúria vaticana, das cúrias diocesanas, das burocracias paroquiais e com os tiques do catolicismo convencional. Esse não era o mundo de Cristo, manso e humilde de coração para com todos os aflitos e oprimidos, mas implacável perante os responsáveis pelas periferias sociais, culturais e religiosas do seu tempo. Bergoglio vê o mundo económico, social, político e religioso com o olhar do Evangelho e quer que a Igreja não se adapte a uma religião e a uma economia que matam.

Entretanto, as várias tentativas para desacreditar a denúncia da idolatria imperial do Dinheiro, invocando a sua incompetência na matéria, têm agora de engolir obras como as de Thomas Piketty(1) e de Chrystia Freeland(2), que põem a nu os mecanismos que produzem o fosso crescente entre ricos, super-ricos e o imenso mundo dos pobres, cujas consequências serão cada vez mais dramáticas, caso não se mude de rumo.

A concluir a sua investigação, T. Piketty, recorda que todos os cidadãos se deviam interessar pelo destino do dinheiro. Aqueles que o detêm em grande quantidade nunca se esquecem de defender os seus próprios interesses. C. Freeland observa que os super-ricos globais não vão sabotar, de propósito, “o sistema económico que os criou”.

Uma Igreja que consentisse em se adaptar a esse mundo só poderia merecer o desprezo das suas vítimas e de Cristo. O Papa Francisco apostou em contrariar esse destino, votando duas vezes no número 15: nas 15 doenças da Cúria e nos 15 cardeais de comunidades católicas sem poder na Igreja e no mundo.

Público, 11.01.2015

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(1) Thomas Piketty, O Capital no séc. XXI, Temas e Debates, 2014
(2) Chrystia Freeland, Plutocratas, Temas e Debates, 2014

04 janeiro 2015

Velhas e novas escravaturas

Frei Bento Domingues, O.P.

1. A escravatura não tem data de começo. Com a descoberta das Américas começaram a ser usadas como escravas as populações ameríndias. Depois, recorreu-se ao comércio transatlântico. Calculando que por cada escravo que chegava vivo, quatro morriam pelo caminho, o resultado são sessenta milhões de africanos, a que é preciso acrescentar ainda os destinados às colónias asiáticas de Inglaterra e de França. Somando tudo, temos, aproximadamente, noventa milhões. Como perguntava Antón de Montesinos: E estes não serão seres humanos?[1]

Fr. Bartolomé de las Casas tinha razão para denunciar a destruição tanto das Índias e como a de África.[2]

Marcello Caetano[3] verifica que até ao século XIX, todas as nações coloniais praticaram a escravatura. As chamadas colónias de plantação careciam de mão-de-obra adaptada às condições do meio e que só podia ser obtida mediante a compra de escravos, no continente africano. Os navios empregados no tráfico dirigiam-se aos portos de embarque, onde se encontravam estabelecidos os intermediários – os negreiros -, que geralmente obtinham as suas peças por meio de permuta feita com os régulos indígenas, visto estes disporem despoticamente da liberdade e da vida dos súbditos, além de possuírem também escravos e de poderem sempre obter mais através da rapina e da guerra com outras tribos.

Morrem umas escravaturas, nascem outras.

2. O Papa, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, nota que hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência humana, a escravatura foi formalmente abolida. No próprio Direito Internacional consta como norma irrevogável.

Mas, apesar da comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para acabar com a escravatura, em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para a combater, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, mulheres e homens, de todas as idades – são privadas de liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.

Bergoglio não esquece a teologia do Antigo (AT) e do Novo Testamento (NT) que fundamenta a defesa da pessoa, que tem valor, mas não tem preço. Mas não repousa nessa memória. Pensa nos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico aos trabalhos agrícolas e industriais, tanto nos países em que não há legislação segundo os padrões internacionais, como naqueles em que há e não é cumprida.

Não esquece as condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático, passam fome, são privados de liberdade, despojados dos seus bens e abusados física e sexualmente. Lembra aqueles que, chegados ao seu destino, depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas.

Recorda os que em diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas são obrigados a passar à clandestinidade, e aqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho... Sim! O Papa pensa no «trabalho escravo».

Como esquecer as pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, as escravas e escravos sexuais; as mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem poderem recusar?

Bergoglio não pode deixar de pensar nos menores e adultos, objecto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional.
Finalmente, todos aqueles e aquelas que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objectivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos desaparecem - alguns são vendidos várias vezes – outros torturados, mutilados, mortos.

3. No cristianismo não pode haver senhores e escravos. Só irmãos. Jesus nem servos quer, quer amigos. Talvez não fosse má ideia acabar, de uma vez por todas, com as piedosas evocações de servas e escravas. Que se perderia com isso?

Quando se reza: eis a escrava do Senhor, talvez não se pense, que este Senhor não quer nem escravos nem escravas, mas amigos e amigas. Porque não lhe fazer a vontade?

Bom Ano

Público, 04.01.2015
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[1] Cf. E estes não serão Homens? Os dominicanos e a evangelização das Américas, Tenacitas, Coimbra, 2014
[2] Brevíssima relação da destruição das Índias, Ed. Antígona, Lisboa 1990; Brevissima Relacion de la Destruccion de Africa, San Esteban, Salamanca, 1989; Brevíssima relação da destruição das Índias, Ed. Antígona, Lisboa 1990; Brevissima Relacion de la Destruccion de Africa, San Esteban, Salamanca, 1989
[3] Portugal e o Direito Colonial Internacional, Lisboa, 1948, p 46