25 janeiro 2016

O pesadelo do teólogo

1. Bertrand Russell, para lá de ser um dos grandes matemáticos do século XX e filósofo, foi um escritor brilhante e irónico, Prémio Nobel da Literatura. No seu livro de Contos, há um, célebre, com "o pesadelo do teólogo". Vou resumir.
"O teólogo eminente Dr. Thaddeus sonhou que tinha morrido e seguido rumo ao Céu. Os estudos haviam-no preparado e não teve dificuldade em encontrar o caminho. Bateu à porta do Céu e foi recebido com um escrutínio maior do que esperava. Disse: - Peço admissão porque fui um homem bom e dediquei a vida à glória de Deus. - Homem? - exclamou o porteiro. - O que é isso? E como podia uma tão estranha criatura como o senhor fazer alguma coisa para promover a glória de Deus?
O Dr. Thaddeus ficou espantado. - O senhor decerto que não ignora o homem. Deve saber que o homem é a obra suprema do Criador. - Quanto a isso - tornou o porteiro - lamento magoá-lo, mas o que está a dizer é novo para mim. Duvido que alguém cá em cima já tivesse ouvido falar dessa coisa chamada "homem". No entanto, uma vez que parece tão desapontado, pode consultar o nosso bibliotecário.
O bibliotecário, um ser esférico com mil olhos e uma boca, pousou alguns dos seus olhos sobre o Dr. Thaddeus. - O que é isto? - perguntou ao porteiro. - Isto diz que é um exemplar de uma espécie chamada "homem" que vive num lugar chamado "Terra". Julga que o Criador tem um interesse especial por esse lugar e por essa espécie. Pensei que talvez pudesse esclarecer".
Depois de o teólogo ter explicado que a Terra é parte do Sistema Solar, que por sua vez é parte da Via Láctea, uma galáxia entre milhares de milhões, foi mandado chamar um dos sub-bibliotecários, especializado em galáxias e que tinha a forma de um dodecaedro. Assim, umas três semanas depois, com o trabalho exaustivo de cinco mil empregados, "o sub-bibliotecário voltou e explicou que o ficheiro extraordinariamente eficiente da secção galáctica da biblioteca lhe havia permitido localizar a galáxia como número XQ 321,762". O Dr. Thaddeus explicou então ao empregado especialmente interessado na galáxia em questão, um octaedro com um olho em cada face e uma boca numa delas, que o que ele desejava saber se referia ao Sistema Solar, uma colecção de corpos celestes que gira à volta de uma das estrelas da galáxia, chamando-se essa estrela "Sol".
"- Safa!" - disse o bibliotecário da Via Láctea. - "É difícil descobrir a galáxia, mas descobrir a estrela dentro da galáxia é ainda muito mais difícil. Sei que há cerca de trezentos mil milhões de estrelas na galáxia, mas não sei distingui-las umas das outras. Creio, todavia, que, uma vez, foi pedida pela Administração uma lista de todos os trezentos mil milhões e isso deve estar ainda guardado na cave. Se achar que vale a pena, arranjarei pessoal especial do Outro Lugar para procurar essa estrela."
Alguns anos mais tarde, foi um tetraedro arrasado de cansaço que compareceu diante do sub-bibliotecário galáctico, dizendo: "Descobri, finalmente, essa estrela especial sobre a qual foram feitas investigações, mas estou absolutamente desorientado quanto ao interesse que ela levantou. Faz lembrar muitas outras estrelas da mesma galáxia. É de tamanho médio, de temperatura média, e está cercada por corpos muito pequenos chamados "planetas". Após minuciosa investigação, descobri que alguns desses planetas, pelo menos, têm parasitas, e creio que essa coisa que tem estado a fazer perguntas deve ser um desses parasitas."
Nessa altura, "o Dr. Thaddeus desatou num indignado e apaixonado lamento: - Porque é que o Criador escondeu de nós, pobres habitantes da Terra, que não fomos nós que o levámos a criar os céus? Servi-O toda a minha vida, servi-O diligentemente, acreditando que Ele havia de reparar no meu serviço e recompensar-me com a Felicidade Eterna. E agora até parece que nem sequer sabe da minha existência. O senhor diz-me que sou um animálculo infinitesimal num minúsculo corpo que gira em volta de um insignificante membro de uma colecção de trezentos mil milhões de estrelas, colecção esta que é apenas uma entre muitos milhares de milhões. Não posso aguentar isto. Não posso mais adorar o meu Criador. - Muito bem - retorquiu o porteiro. Então pode ir para o Outro Lugar.
Aqui, o teólogo acordou. E murmurou: - O poder de Satanás sobre a nossa imaginação adormecida é terrível".
2. Afinal, ocupamos um lugar periférico no Universo. Pascal perguntava: "O que é um homem no infinito? Apavora-me o silêncio dos espaços infinitos." Mas, por outro lado, é no homem que este processo gigantesco toma consciência de si. Somos reflexivos e temos autoconsciência: desdobramo-nos e reconhecemo-nos. Sabemos do bem e do mal. E levamos connosco a pergunta inevitável e triturante do sentido, do sentido último: qual o sentido de tudo?, porque há algo e não nada?, o que vale a minha vida?, existimos porquê e para quê? Transportamos connosco a questão da morte e de Deus, a dupla face do Absoluto.

Diário de Notícias 23 de janeiro de 2016-01-25


http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/o-pesadelo-do-teologo-4995098.html

O futuro da Igreja (2)

Na obra que acaba de publicar, L'avenir de Dieu, que é o seu "testamento" intelectual, espiritual e religioso, Jean Delumeau, 92 anos, depois de mostrar que a grande falha da Igreja foi ter-se convertido em poder, como vimos no sábado passado, apresenta "pistas e proposições" para o futuro.
1. O governo da Igreja. Não tem o governo da Igreja Católica de "ser profundamente repensado e reconstruído", devendo estar "mais atento do que no passado aos desejos e aspirações dos fiéis"? Não deveriam estes "poder escolher os seus representantes que constituiriam uma espécie de parlamento da catolicidade?"
Antes, isso era irrealizável. Mas actualmente o mundo tornou-se uma pequena aldeia na qual todos podem comunicar instantaneamente entre si no planeta. Então, porque é que não poderei "manifestar o desejo de que os futuros responsáveis da Igreja Católica ao mais alto nível sejam um dia eleitos por um parlamento mundial dos fiéis para um mandato por tempo determinado? Em que é que esta prática atraiçoaria a mensagem de Cristo?"
2. A "Humanae vitae". Com este tipo de governo, as decisões quanto à vida sexual dos fiéis não seriam contrárias ao bom senso, pois não seriam tomadas por "poderes eclesiásticos compostos unicamente por celibatários". "Hoje, parece inconcebível e inadmissível para os nossos contemporâneos que Paulo VI tenha publicado a encíclica "Humanae vitae" depois de ter autoritariamente retirado o dossiê da contracepção das deliberações do concílio Vaticano II. Nestas condições, para quê reunir um concílio ecuménico? Aliás, muitos canonistas pensam que esta encíclica, que esvaziou as igrejas, não é válida, pois não foi "recebida" pelo povo cristão."
3. A lei do celibato. Há uma série de reformas urgentes, que "a civilização em que estamos mergulhados impõe". Por exemplo, "não impor mais o celibato aos padres (o que não impediria em nada a existência de fiéis que livremente escolham o celibato, para se consagrar inteiramente à Igreja e à oração)".
4. A mulher na Igreja. Impõe-se "valorizar o lugar da mulher na Igreja", indo aliás ao encontro de várias práticas das primeiras comunidades cristãs. "Esquece-se demasiado que o cristianismo, historicamente, contribuiu em grande medida para a libertação da mulher." Deseja, pois, "com uma forte convicção, a reabilitação plena e completa da mulher no catolicismo". Estamos ainda muito longe, mas é por isso que os dignitários da Igreja Romana, que actualmente são só homens, devem finalmente tomar consciência de que estamos na civilização da "inovação absoluta, a que devemos fazer face, desembaraçando-nos dos reflexos, desconfianças e interditos herdados de um passado superado. Ora, não encontraremos nos Evangelhos nem razões teológicas nem maldições eternas a sancionar o "sexo fraco". Atendendo à evolução recente e inédita da nossa civilização, o catolicismo deve, portanto, imperativamente, dar finalmente à mulher todo o seu lugar, em igualdade com o do homem, no governo de uma religião que se quer universal e comum aos dois sexos. O êxito de uma nova evangelização passa, na minha opinião, pela reabilitação completa da mulher nas Igrejas cristãs. Por imperativo da minha alma e consciência, e antes do silêncio que em breve a morte me imporá, quero lançar um grito de alarme: na minha opinião, a salvação e o futuro do cristianismo, e nomeadamente do catolicismo, passam por esta completa reabilitação da mulher. E não hesito em colocar a questão, que não é, na minha opinião, de modo nenhum sacrílega: porque é que uma mulher não poderia um dia ser eleita para a sede de Pedro?"
5. O pecado original. Também aqui se impõe reflectir. Para se não cair na aberração daquelas boas mães que não ousavam beijar o bebé enquanto não fosse baptizado.
Hoje, já se percebeu que o Livro do Génesis não é um documento histórico e, por causa da evolução, já não é possível pensar que Adão e Eva foram criados "adultos, belos e perfeitos, num maravilhoso paraíso terrestre": é claro que a humanidade se desprendeu lenta e progressivamente da animalidade e já não podemos "fundar uma culpabilização hereditária do homem e da mulher sobre a narrativa do Génesis". No judaísmo, não há lugar para um pecado original. Jesus nunca falou do pecado original e até recomendou aos discípulos que, para entrarem no reino dos céus, fossem como crianças... que brincavam numa rua vizinha e que "não tinham recebido o baptismo".
6. Mudar a linguagem. Por exemplo, ninguém entenderá hoje o significado de expressões do credo, como "desceu aos infernos", "subiu aos céus", "ressurreição da carne".
7. Impõe-se a unidade das Igrejas cristãs e o diálogo inter-religioso, e não se pode ignorar a ciência. Os cristãos precisam de acolher inovações que, no princípio, parecerão incómodas, mas, depois, "portadoras de um futuro religioso durável e fecundo".
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Diário de Notícias 16 de janeiro de 2016

http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/o-futuro-da-igreja-2-4982779.html 


O futuro da Igreja (1)

Anselmo Borges
Estive com ele uma vez, em Paris, e impressionou-me muito a sua imensa cultura e simplicidade. Intelectual de enorme prestígio, ocupou a cátedra de História das Mentalidades Religiosas no Ocidente Moderno, no Collège de France. Autor de numerosas obras mundialmente conhecidas, Jean Delumeau acaba de publicar L"Avenir de Dieu (O Futuro de Deus), com o seu percurso de vida intelectual e espiritual ao longo de 60 anos. Católico de fé assumida, diz-se "humanista cristão" e interroga-se sobre as inquietações do presente e o futuro do cristianismo. Do alto da sabedoria e da autoridade dos seus 92 anos, propõe, já na conclusão, uma série de reformas urgentes para a Igreja, que, dada a sua importância, apresento hoje e no próximo Sábado.
Antes dessa conclusão, Jean Delumeau atravessa, em síntese, os grandes temas das suas investigações científicas, no quadro da história das mentalidades, como: o medo, o pecado e a culpabilização, a confissão, o perdão, o sentimento de segurança, o paraíso e as suas imagens, a Europa de hoje. E deixa pensamentos sábios, que obrigam a reflectir. Assim, no contexto da imagem terrífica de Deus, que tem de ser revista, escreve: "Hoje, os cristãos podem mais seguramente afirmar: ou os homens perdoam uns aos outros ou criaram e, ai!, criam já muitas vezes o inferno na terra." Hoje, quando já vivemos numa aldeia planetária, "descobrimos que somos forçosamente solidários uns com os outros e, para não perecermos, estamos condenados a unir-nos e a erguer uma governança mundial que deveria ter os meios de ser obedecida". "Constatou-se que o sentimento de insegurança - o "complexo de Dâmocles" - é causa de agressividade." No espaço dedicado ao paraíso terrestre reencontrado, refere que sobre Portugal se pôde escrever que "a persistência do messianismo animando a mentalidade de um povo durante tanto tempo e conservando a mesma expressão é um fenómeno que, exceptuando a raça judaica, não tem equivalente na história".
Apenas dei exemplos. Agora, algumas propostas de reforma da Igreja.
1. Um apontamento prévio quanto a "inventar o futuro": a partir do seu caminho pessoal, à luz da história e seguindo e exprimindo as inquietações do nosso tempo, Delumeau foi levado a colocar a pergunta: "Qual é o futuro de Deus?" Ora, quando se ergue o debate à volta da crise actual do cristianismo e da Igreja, na difícil dialéctica cristianização-descristianização, há o perigo de esquecer que, contra o que frequentemente se pensa, antes do século XIV, a Europa, segundo, G. Duby, não apresentava senão "as aparências de uma cristandade. O cristianismo não era plenamente vivido senão por raras elites." Lutero também escreveu: "Temo que haja mais idolatria agora do que em qualquer outra época." Daí que Delumeau acentue a importância da actualização, também para se não cair em idealizações e dogmatismos. Por vezes, é preciso "desaprender", não idealizar o passado.
2. Qual é o grande mal do cristianismo? A sua ligação ao poder. "Pelas suas consequências, uma das mais trágicas falsas vias para as Igrejas cristãs foi, depois do fim das perseguições, a ligação entre o poder imperial romano e a hierarquia eclesiástica, simbolizada e fortificada pela coroação de Carlos Magno pelo Papa."
Não se deve esquecer que desde sempre tinha havido, no Império Romano e fora dele, ligação e amálgama entre os poderes religioso e político. Foram, por isso, necessários muitos séculos e conflitos incessantes para que "o religioso e o político aceitem por fim distanciar-se um do outro, num equilíbrio aliás instável e que é necessário reajustar continuamente". De qualquer modo, "desde o início do século IV, a Igreja tornou-se um poder". Ora, "esta deriva perigosa", que durante muito tempo só a poucos causou choque, ainda não terminou.
A Igreja Católica "tem atrás de si um grande e belo passado de escritos religiosos sublimes, inumeráveis iniciativas caritativas e múltiplas obras de arte. Realizou uma obra civilizadora grandiosa e mundial. Deu à humanidade legiões de santos e santas, canonizados ou não, incansavelmente dedicados ao serviço do próximo. Mas a sua grande fraqueza foi ter-se constituído em poder... Ora, é preciso que de ora em diante abandone o poder, pratique a humildade para poder de novo convencer e dar-se a si mesma estruturas mais flexíveis do que no passado e, portanto, capazes de evoluir. Porque é necessário hoje aceitar e dominar evoluções inevitáveis".
Dever-se-á perguntar: como foi possível o movimento iniciado por Jesus ter hoje um Vaticano?! Seja como for, digo eu, a história é o que é e o que se impõe é uma revolução, para modos democráticos de governo eclesial, para a simplicidade, a transparência, o serviço. Cardeais e bispos não são "príncipes" nem podem viver como "faraós", diz Francisco. E as nunciaturas só poderão justificar-se enquanto serviços humildes de pontes para o diálogo e a paz mundiais.

Diário de Notícias 02 de janeiro de 2016

http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/a-sabedoria-em-tres-palavras-4961033.html


Aristóteles também fala de Deus - Curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )
Plano do curso
Autores abordados, oradores e calendário:
Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio
O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.
Desenvolvimento das sessões:
Apresentação teórica, seguida de debate
Outras informações
As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

OS ANTIBIÓTICOS DO PAPA

                 
                Frei Bento Domingues, O.P.

1. Dizem-me que a Igreja Católica, em Portugal, está a cair de sono. Alguns acrescentam: pode dormir à vontade porque só quando Fátima entrar em crise é que será preciso algum cuidado. Ainda não chegamos aí.
Bocas são bocas e má-língua é má-língua. Para o confronto com a realidade, talvez fosse preferível promover algumas sondagens e iniciativas de jornalismo de investigação para responder às seguintes questões:
Como reagem, que dizem e fazem os católicos portugueses – sejam eles leigos, religiosos, padres e/ou bispos - perante as actitudes, as intervenções, os gestos e as declarações do Papa Francisco?
Qual a influência das suas orientações no modo de viver a fé cristã nas paróquias, nas dioceses, nos movimentos, nas congregações religiosas, nos colégios e na universidade católica?
Como é recebida na vida pessoal, familiar, profissional, na intervenção social e política o seu exemplo e as suas propostas?
Será verdade que, na Igreja em Portugal, se desenvolvem várias formas de resistência activa e passiva à linha pastoral de Bergoglio?
Ter-se-á passado da papolatria para a Bergoglio-alergia?
Disseram-me que era muito duvidoso que alguém se pudesse interessar por um projecto desses. De qualquer forma, aqui fica a sugestão.
Estas interrogações vieram-me de muitos lados, mas foi sobretudo aquilo que o próprio Papa Francisco disse na audiência à Cúria Romana, nos votos de Natal e Ano Novo, que as tornou inevitáveis[1].  
Lembrou que no primeiro encontro, em 2013, tinha salientado dois aspectos do trabalho curial: o profissionalismo e o serviço; em 2014, abordou algumas tentações e doenças, o “catálogo das doenças curiais”; hoje, porém, diz o Papa, devo falar dos antibióticos curiais”- que poderiam afectar cada cristão, a cúria, a comunidade, a congregação, a paróquia e o movimento eclesial; doenças que requerem prevenção, vigilância, cuidado e, infelizmente, em certos casos, intervenções dolorosas e prolongadas.
 Algumas dessas doenças manifestaram-se no decurso deste ano, causando não pouco sofrimento a todo o corpo e ferindo muitas almas, mesmo com o escândalo.
Forçoso é dizer que isto foi - e sê-lo-á sempre – objecto de sincera reflexão e de medidas decisivas. A reforma prosseguirá com determinação, lucidez  e ardor, porque: Ecclesia semper reformanda. 
(…) Além disso, as próprias resistências, fadigas e quedas das pessoas e dos ministros constituem lições e oportunidades de crescimento, e nunca de desânimo. São oportunidade para “voltar ao essencial”, que significa avaliar a consciência que temos de nós mesmos, de Deus, do próximo, do “ sensus Ecclesiae” e do “sensus fidei”[2].
2. Bergoglio, depois de falar do sentido do profissionalismo e do serviço no trabalho curial, do catálogo das doenças e dos antibióticos curiais – aparentemente sem os nomear - concretiza-os num ”catálogo das virtudes necessárias” para quem presta serviço na Cúria e para todos aqueles que querem tornar fecunda a sua consagração ou o seu serviço à Igreja.
Este catálogo, que não pretende ser exaustivo, resulta de cada uma das letras da palavra misericórdia dispostas em acróstico.
Depois da sua engenhosa explanação - e que não podemos reproduzir aqui – conclui: seja a misericórdia a guiar os nossos passos, a inspirar as nossas reformas, a iluminar as nossas decisões; seja ela a coluna sustentáculo do nosso agir; seja ela a ensinar-nos quando devemos avançar e quando devemos recuar um passo; seja ela a fazer-nos ler a pequenez das nossas acções no grande projecto de salvação de Deus e na majestade misteriosa da sua obra[3].
3. Porque será que o Papa se preocupa tanto em elaborar catálogos de doenças, de antibióticos-virtudes curativas?
Para ele, a Igreja é um hospital de campanha. Quando surgem acidentes, importa saber rapidamente o que é preciso fazer.
 “A Igreja não está no mundo para condenar, mas para permitir o encontro com aquele amor visceral que é a misericórdia de Deus. Para que isso aconteça, repito-o muitas vezes, é necessário sair. Sair das igrejas e das paróquias, sair e ir procurar as pessoas onde elas vivem, sofrem, esperam. O hospital de campanha, a imagem com a qual gosto de descrever esta situação “Igreja em saída”, tem a característica de estar onde se combate: não é a estrutura sólida, dotada de tudo, onde se vai curar as pequenas e grandes doenças. É uma estrutura móvel, de primeiros socorros, de intervenção imediata, para evitar que os combatentes morram. Pratica-se a medicina de urgência, não se fazem check-ups especializados. Espero que o Jubileu Extraordinário faça emergir cada vez mais o rosto de uma Igreja que redescobre as entranhas maternas da misericórdia e que vai ao encontro de muitos “feridos” necessitados de compreensão, perdão, amor e de serem ouvidos”[4].
Para certas gripes não bastam aspirinas e chá de tília. 

Público 24.01.2016




[1] Cf.  Discurso à Cúria Romana por ocasião das felicitações de Natal (21.12.2015)
[2] As citações são do texto referido na nota 1.
[3] Continuo a citar o texto referido
[4] Cf. Andrea Tornielli, Francisco, O nome de Deus é Misericórdia. Ed Planeta, Lisboa, 2015, pp. 63-64.



COM QUEM COMEÇAR O NOVO ANO? (III)

            Frei Bento Domingues, O.P.

1. As renovadas investigações que, na observância do método histórico, procuram resgatar a memória de Jesus de Nazaré deixam muitos cristãos bastante desapontados: mas é só isto? Tanto barulho, tantos livros para tão pouco?
Esses estudos valem por si próprios, mas também ajudam, pelo menos indirectamente, a dar força à evocação que abre sempre, na Missa, a proclamação do Evangelho: naquele tempo!
É verdade que a grande maioria dos participantes na Eucaristia, se retiver apenas essa indeterminada evocação, continuará de memória vazia. De qualquer modo, essas investigações não fecham os cristãos no Ano I assistindo à autópsia do cadáver errado, como por vezes se diz.
O que está em causa é, sobretudo, a fidelidade à condição temporal do cristianismo. Teria algum sentido dizer naquela eternidade? Os participantes nas celebrações de fé cristã atraiçoam a sua genuína significação quando não as entendem e vivem em confronto com os problemas pessoais, familiares, sociais e eclesiais, do nosso tempo.
Os rituais cristãos mais estruturantes são poucos, belos e simples. Inscrevem-se nos momentos chave de transformação da vida espiritual, nas suas diversas etapas e dimensões. É por ignorância, rubricismo e inépcia pastoral que as suas configurações litúrgicas se podem tornar uma tristeza.
É indispensável fazer sempre a ponte entre o tempo das quatro narrativas evangélicas, dos Actos dos Apóstolos, das cartas de Paulo, de João, etc. e o nosso tempo. É fundamental saber mostrar que aquilo que aconteceu na intervenção histórica de Jesus tinha e tem energia e significação para todos os tempos e lugares. Esta é uma convicção de fé, de clarividência cristã. A fé dá que pensar e desejos de entender.
Note-se que os escritos do Novo Testamento são, em si mesmos, uma ponte entre o percurso histórico de Jesus e o tempo de revisão do seu sentido, segundo os novos e diferentes contextos de vida e celebração das comunidades cristãs do primeiro século.
2. Por causa de várias interpelações que recebi no tempo de Natal, quero destacar o sentido do contraste entre duas genealogias de Jesus. São aborrecidas para os leitores de hoje e fonte de equívocos.
Não pretendem fazer história. Com as referências bíblicas selecionadas para o efeito, tentam elaborar cristologias simbólicas.
O Evangelho segundo S. Mateus, com o intuito de mostrar que Jesus realizava as esperanças messiânicas judaicas, constrói-lhe uma ascendência essencialmente israelita: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de David, (…), Jacob gerou José, esposo de Maria da qual nasceu Jesus, chamado Cristo”.[1] O salvador de Israel só pode nascer de Israel e assumir a sua história!
O Evangelho de S. Lucas, escrito a partir da prática da Igreja aberta aos gentios – na convicção de que o horizonte de Jesus Cristo é toda a humanidade - segue outro processo. Coloca o próprio Adão - o antepassado mítico de toda a humanidade - como o próprio antepassado de Jesus: “filho de José (…), filho de Adão, filho de Deus”. Isto é, o enviado a toda a humanidade assume todo o seu passado[2].
Do ponto de vista estritamente histórico, isto pouco vale. Nos dois casos, porém, a astúcia simbólica, cristológica, messiânica é fantástica!
3. Vamos à questão decisiva. Jesus levou muito tempo a encontrar o seu caminho. Foi discípulo de João Baptista de quem recebeu o baptismo no rio Jordão. Existem boas razões para ver aí reminiscências históricas. No entanto, o importante não vai ser o encontro dos dois profetas, mas o seu irremediável desencontro.
João Baptista é o profeta apocalíptico da “cólera de Deus”. Conta-se que Jesus depois do baptismo no Jordão, encontrando-se em oração, teve uma experiência divina que o convenceu de que João, no qual reconhecia um homem extraordinário, estava completamente errado acerca de Deus e do ser humano. É o Espírito de Deus que lhe abre o céu numa declaração de puro amor: Tu és o meu Filho bem-amado; eu hoje te gerei![3]
Começa, aqui, a alteração radical do próprio messianismo. Esta revolução ficou clara na cena simbólica das tentações de Jesus. Ele considera diabólica, idolátrica a procura da dominação económica, política e religiosa[4].
O seu programa de libertação dos oprimidos resulta do jubileu da pura graça de Deus. Rompe e fecha para sempre o dia da sua ira e vê o mundo a partir das periferias sociais e religiosas[5].
Qual o maior obstáculo dos discípulos em entenderem o Mestre? Desejavam o mundo que Jesus recusou nas tentações messiânicas. Vem tudo no Evangelho de S. Marcos.[6] Cristo teve de convocar uma reunião de emergência para resolver o mal-estar no grupo que o seguia. Primeiro de forma surda e depois de modo explícito verificou que só lhes interessava o poder. Jesus apenas os queria preparar para servir e eles preparavam-se para mandar.
Sem a conversão do desejo não há reforma possível. O Papa Francisco que o diga.

Público 17.01.2016




[1] Mt 1,1-17
[2] Lc 3, 12-18
[3] Lc 3,21-22 par.
[4] Lc 4, 1-13 par.
[5] Lc 4, 16-30
[6] Mc 4-10 par.

10 janeiro 2016

Com quem começar o ano novo? (II)

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Para mim, Jesus Cristo foi desde sempre, é e será o ser sublime, supremo e ideal que a humanidade produziu. Enquanto Judeu, é o único orgulho que sinto de ser da sua raça. A sua existência, as suas palavras, o seu sacrifício e a sua fé deram ao mundo o mais nobre presente jamais recebido: o do amor, do amor do próximo, do amor do pobre, a compaixão, a humildade, enfim todos os sentimentos que enobrecem o ser humano… é o Homem supremo. Estas são palavras do famoso músico Arthur Rubinstein (1887-1982).

Santa Teresa de Avila [1] (1515-1582), com ascendência judaica, escreveu um dos mais belos sonetos da literatura espanhola, nascidos da sua paixão por Jesus: (…) Muéveme, enfin, tu amor de tal manera/ que aunque no hubiera cielo, yo te amara,/ y aunque no hubiera infierno, te temiera (…).

O Papa Francisco, no prefácio a uma Bíblia para jovens de língua alemã, escreveu: “Gostaria de vos dizer uma coisa: hoje - ainda mais do que no início da Igreja - os cristãos são perseguidos; qual é a razão? São perseguidos porque carregam uma cruz e dão testemunho de Cristo; são condenados porque possuem uma Bíblia. Com toda a evidência, a Bíblia é um livro extremamente perigoso, tanto que nalguns países quem possui uma Bíblia é tratado como se escondesse bombas no armário!”

Bergoglio recordou que Mahatma Gandhi, que não era cristão, tinha afirmado: “Aos cristãos foi confiado um texto com a quantidade de dinamite suficiente para fazer explodir em mil pedaços a civilização inteira, para virar o mundo de cabeça para baixo e trazer a paz a um planeta devastado pela guerra, mas tratam-no como se fosse uma simples obra literária, nada mais”.

O Papa acrescenta aos jovens. Tendes nas mãos algo divino: um livro de fogo, um livro no qual Deus fala. Por isso recordai-vos: a Bíblia não é feita para ser posta na estante.

Seria uma estupidez fundamentalista pensar que basta abrir a Bíblia, para entrar naquele universo cultural, que não é um ditado divino. É a biblioteca de um povo, de épocas diferentes, muito diferentes, com grande diversidade de géneros literários. É indissociável do estudo e dos métodos de interpretação [2].

Conta-se nos Actos dos Apóstolos [3] que um etíope, funcionário real, regressando de Jerusalém, sentado no seu coche, lia o profeta Isaías. Filipe, discípulo de Cristo, perguntou-lhe: “compreendes o que lês?” Como poderia, se não há quem mo explique?

2. O Novo Testamento exprime-se em 27 livros, reconhecidos como canónicos. A grande maioria foi escrita em grego, entre os anos 50 e 90 d.C. Cobre vários espaços geográficos e culturais, estilos de vida e de pensamento espantosamente ricos e diversos. As diferenças entre eles reflectem um impressionante pluralismo teológico nas primeiras comunidades cristãs, a ponto de se ter dito que, nos escritos da época apostólica, se pode reconhecer um “catolicismo primitivo”, “um protestantismo primitivo” e uma “ortodoxia (oriental) primitiva”.

Esta lista canónica, ao reconhecer a validade da diversidade de expressão teológica, demarca, ao mesmo tempo, os limites da diversidade aceitável dentro da Igreja [4].

3. O assunto de todos os escritos do Novo Testamento é, no entanto, Jesus de Nazaré, reconhecido como Cristo pelas comunidades que, em seu nome, se foram formando, não sem muitos conflitos de interpretação.

Ponto assente: Ele não escreveu nada, nada mandou escrever nem deu o seu imprimatur a nenhum dos livros ou cartas que, sobre ele, foram escritos. Não existe nenhuma biografia encomendada por ele ou por ele autorizada. O cristianismo nasce no reino da liberdade criadora!

Daqui nasceu a convicção de que acerca de Jesus de Nazaré nada ou quase nada se pode saber de historicamente documentado. Apesar disso, surgiram, sobretudo a partir do séc. XIX, crentes e agnósticos interessados na descoberta do “Jesus histórico”.

Xavier Pikaza [5] tentou apresentar o percurso sinuoso das diversas tentativas que, desde Albert Schweitzer até Senén Vidal - passando por J.D. Crossan, Sanders , G. Theissen e J. P. Meier – procuraram desenhar um perfil histórico de Jesus de Nazaré. Foi um esforço que ocupou muitos especialistas do séc. XX e começos deste século. No meu entender, o pouco que foi conseguido já é muito.

A cristologia, sem fundamento histórico, é vazia. Apesar do enraizamento de Jesus na cultura judaica, muito plural, isso não impediu um itinerário independente e original. Para os próprios judeus que o seguiram, Jesus era algo de muito novo.

Foi morto, de forma planeada, pelos Sumos Sacerdotes do Templo e pelas autoridades locais do império Romano, sob Pôncio Pilatos. Que terá havido no comportamento de Jesus para que um derrotado seja a base e o impulso de uma esperança invencível?

Público, 10.01.2016
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[1] Soneto a Jesús Crucificado
[2] Comissão Pontifícia Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja, 1993
[3] Act. 8,26-46
[4] Julio Trebolle Barrera- A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Vozes, Petropolis, 1999, 2ª ed. p 299
[5] Quem foi Quem é Jesus Ctisto? Coor. por Anselmo Borges, Gradiva, 2012, p 11-82

03 janeiro 2016

Com quem começar o novo ano? (I)

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Um católico fervoroso tentou convencer-me de que a preocupação com a Bíblia e mesmo com os textos do Novo Testamento era prejudicial à sua fé, pois suscitavam-lhe muitas dúvidas e, para viver, as certezas é que são precisas. Tinha ficado muito satisfeito, no entanto, ao ouvir dizer que, “ao contrário do Judaísmo e do Islão, o Cristianismo não era uma religião do Livro. Era uma ligação espiritual a Jesus Cristo que, aliás, não tinha deixado nada escrito. Nenhuma doutrina ou prática moral se poderia reclamar dele”.

Perante semelhante desistência intelectual, não entrei na conversa. Por outro lado, também não disponho de respostas rápidas para questões complexas, como tantas vezes me foi pedido nesta quadra natalícia. Uma, repetida por vários leitores, regressou como se fosse a primeira vez: afinal, quem é o fundador do Cristianismo?

Um famoso historiador das origens cristãs, Antonio Piñero, em várias das suas obras e intervenções, sustenta que nenhuma das ideias do Novo Testamento, isoladamente consideradas, é original. A teologia deste conjunto de escritos não é um meteorito descido do céu. É um produto da história teológica, social e literária anterior que importa conhecer para compreender o nosso passado religioso e de certo modo, o próprio Ocidente.

Para ele, o Ano I [1], aquele em que Jesus nasceu, não pode ser passado nem por alto nem ao lado. Nesse momento, o judaísmo - e o cristianismo que dele nasceu - encontram-se a cavalo entre dois mundos: o greco-romano e a herança judaica muito plural. Esse é o ano preparado para o nascimento do cristianismo e para a sua ideia messiânica de salvação, que brota tanto de Israel como do mundo greco-romano que o rodeia.

A prova contundente dessa afirmação encontra-a A. Piñero, na IV Égloga de Virgílio. Este poeta tão profundamente romano e, aparentemente, tão afastado do mundo judaico, compôs um famoso canto a um misterioso divino infante, cujo nascimento inaugura uma nova idade de oiro do mundo. Um poema, aqui adaptado, que até parece um apocalipse messiânico judaico: Aí vem a idade última anunciada nos oráculos de Sibila. Com um menino que vai nascer será finalmente concluída a idade de ferro e por todo o mundo irá surgir uma idade doirada… Olha como se agitam o mundo sobre o seu pesado eixo, a terra e o espaçoso mar com o profundo céu. Olha como tudo se regozija com o novo século que há-de chegar.

Esperava-se, nesse momento, tanto entre judeus como entre gentios, que o universo mudasse de signo para uma nova salvação.

Ao dar à luz Jesus de Nazaré, personagem transcendental no desenvolvimento do Ocidente, o Ano I é para Piñero, um dos mais importantes para a História universal.

2. Não se trata de uma afirmação gratuita. O autor explica, ao longo da sua obra, de forma rigorosa e pedagógica, a situação política, económica, social e, sobretudo, religiosa do Império Romano e a repercussão que tinha no âmbito de Israel. Trabalha à base das perguntas que faz para compreender em que mundo nasceu e se desenvolveu o cristianismo, vencendo os lugares comuns da ignorância.

Como afectava a dominação romana a vida quotidiana de Israel? Que impacto teve o principado de Augusto e o fim da República? Como estava organizado o judaísmo? Que influências tiveram as religiões que o rodeavam? Qual era a situação da mulher, dos diversos grupos religiosos judaicos, as ânsias de salvação que se viviam em todo o Mediterrâneo oriental, as relações entre judeus e pagãos? Etc…

Sem ter isto em conta, os textos do Novo Testamento são ilegíveis. Nenhum tem a assinatura de Jesus de Nazaré. Não é como escritor que Jesus se tornou conhecido e imprescindível. Não é o único caso entre as grandes personalidades da História. Também não foi o único caso de reformadores fracassados.

3. Jesus de Nazaré viveu e trabalhou na Palestina do primeiro século. Acerca disto não há dúvidas. Mas ficar só com aquilo que, pelo método histórico, se pode saber é ficar com quase nada. Sabemos que viveu no quadro de um judaísmo plural e, dentro dele, fez o seu caminho. Teve discípulos, foi seguido por multidões, suscitou muitas controvérsias e acabou crucificado. Mas porque não desapareceu a sua memória, como a de muitos rebeldes e muitos milhares de crucificados?

Sob o ponto de vista religioso um crucificado, um blasfemo, um possesso do demónio não era propriamente um protegido de Deus. Contra todas as evidências passa a correr a ideia que Deus o ressuscitou. Por outro lado, não se estava no fim do mundo, na ressurreição universal.

Havia o sinal de uma nova convocatória. O estranho é que os discípulos acabaram por dar crédito às mulheres, cuja opinião não contava.

Os seus discípulos, como bons judeus, até podiam saber a Bíblia de cor. Entregaram-se apaixonadamente a reler, a reinterpretar, a reescrever tudo o que a Jesus dizia respeito, para mostrarem que ele era verdadeiramente o Messias, o Cristo esperado. Leem e reinterpretam tudo, mas da frente para trás. Ao ficar tudo tão bem acertado, até parece que estava tudo mais que previsto.
Veremos qual era o método prodigioso fixado por Mateus, Marcos, Lucas e João, sem falar de Paulo.

Público, 03.01.2016 
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[1] Antonio Piñero, Año I, Israel Y su mundo cuando nació Jesús, Laberinto, 2008