30 julho 2017

JESUS NÃO GOSTAVA DE BROA? (2)

1. Vivemos, hoje, um momento de extraordinárias possibilidades na Igreja Católica e o Papa Francisco é, a muitos títulos, uma bênção mundial.
Os participantes no G20, em Hamburgo, nos dias 7 e 8 de Julho, tinham um tema: “Dar forma a um mundo interligado”. Na sua mensagem, o Bispo de Roma lembrou quatro princípios de acção, recolhidos da sabedoria multissecular, para a construção de sociedades fraternas, justas e pacíficas: o tempo é superior ao espaço; a unidade prevalece sobre o conflito; a realidade é mais importante do que a ideia; o todo é superior às partes.
Já tinha assumido essa sabedoria no seu programa pastoral Evangelii gaudium, pois a Igreja não deve aprender apenas na escola da Bíblia e das suas tradições, mas na de todos os povos e culturas, do passado e do presente. Para poder ser “mãe e mestra”, tem de ser filha e aluna atenta a todos os mundos. Antes de falar é necessário ouvir, como indica o ritual do Baptismo.
Na sua mensagem aos mais ricos e poderosos, Bergoglio abordou cada um desses temas de forma extremamente rigorosa e concreta, mas sempre com um objectivo muito preciso: Dar prioridade absoluta aos pobres, aos refugiados, aos sofredores, aos deslocados e aos excluídos, sem distinção de nação, raça, religião ou cultura e rejeitar os conflitos armados.
Possibilidades semelhantes tinham sido abertas pelo Papa João XXIII, ao convocar o concílio Vaticano II (1962-1965), uma espantosa primavera traída, por algo que ainda hoje é inquietante: o adiamento da reforma das mediações concretas e a sua substituição por remendos de pano velho e irrecuperável.
A decepção criou gerações de católicos decepcionados, “não praticantes”, periféricos e um catolicismo do abandono da Eucaristia, cuja gravidade está ainda longe de ser reconhecida. Pela longa cegueira e medo de se tocar na Cúria, foi impedida a reforma radical dos ministérios ordenados que continua a ser uma urgência adiada.
Foi-se pronto a impedir a ordenação das mulheres, invocando razões teológicas ininteligíveis. Para os homens casados, dizem que não há nenhum obstáculo teológico, mas o resultado é o mesmo. Como o actual modelo de acesso a esses serviços está falido, os dons ministeriais de serviço sacramental da Igreja não têm quem os possa receber.
Em várias dioceses, o clero das Congregações religiosas vai procurando tapar o sol com a peneira, traindo a sua vocação específica. Certas Congregações femininas, multiplicando retiros e cursos de formação, ao rejeitarem as transformações das suas estruturas, estão em progressiva e inútil agonia.
2. A Igreja católica não pode prescindir das mediações sacramentais e litúrgicas. Fazem parte das celebrações existenciais da Fé. O modo como celebra não é indiferente. Celebrar mal é pior do que não celebrar: fomenta alergias inúteis. O domingo, na linguagem cristã, não pertence ao “fim de semana”, mas à grande festa do seu primeiro dia. Nasceu como possibilidade, muito bela, de rejuvenescer e transformar a vida, resistindo às tendências negativistas e niilistas.
A religião ética é uma forma de resistência à alienação e ao pessimismo. É um protesto para abrir caminhos na floresta dos enganos. Por isso, a experiência da finitude é caminho de abertura à transcendência, que se exprime, sobretudo, na linguagem simbólica de gestos e palavras.
3. Tomás de Aquino, na primeira fase do seu ensino, estava marcado por uma concepção dos Sacramentos como causas da graça. Na Suma Teológica abandonou essa perspectiva e situou os Sacramentos no mundo da simbologia. São essencialmente signos, sensíveis, terrestres da graça actuante de Cristo. É uma mudança radical que ainda hoje está longe de ser assumida em todas as consequências. O primeiro cuidado com a sua celebração não é a fidelidade às rúbricas de um ritual, mas a realização de uma festa significativa da Fé pelo envolvimento de todos os participantes, mulheres e homens, grandes e pequenos.
É tríplice a sua significação: remetem para todo o percurso de Jesus Cristo até ao dom do Espírito Santo à Igreja, mas não são uma romagem de saudade, não fixam a comunidade naquele tempo. Cristo ressuscitado não pode ser amputado da sua vida terrestre, mas é celebrado como presença actual e transformante da comunidade, abrindo-lhe um futuro de esperança.
Seria engano ver nesta estrutura simbólica – causam o que significam – apenas actos de Cristo, como um automatismo ritual. Não se pode esquecer a correlação íntima entre essa actuação e as experiências de vida da assembleia celebrante. Estas são essenciais ao acontecimento sacramental e precisam de ter expressão pública.
Dizer que foi Cristo que instituiu os sacramentos e, especialmente, a Eucaristia, não se pode pensar como se ainda estivéssemos no mundo cultural da época de Jesus. Pensar dessa maneira é amputar o cristianismo da sua significação universal e da sua capacidade de inculturação em todos os povos e culturas. Quem, no seu perfeito juízo, pode hoje supor que na chamada celebração da última Ceia, Jesus tenha dito: fazei isto em memória de mim, mas só com pão de trigo, ázimo e a bebida só pode ser vinho?
Dir-se-á que hoje os comerciantes do trigo podem assegurar esse cereal em qualquer parte do mundo. Não tenho dúvidas. Todos sabemos das imposições culinárias da grande indústria. Não me parece que seja essa a missão da Igreja.
A simbólica da Eucaristia é a mesa partilhada, por isso, quando se convida alguém para jantar não se lhe pode dizer: vem, mas não comas.
Uma das grandes tarefas das Igrejas locais consiste em exprimir a identidade da Fé cristã nas linguagens das suas culturas.
Sarah, com as suas exigências culinárias, mesmo com risco para a saúde, anulou a simbólica essencial da Eucaristia, como mesa cristã de todos os povos. A base dos Sacramentos é terrestre, é sensível, mas é a sua tríplice significação do mistério cristão que mais conta. O cardeal atirou fora a simbologia e ficou, apenas, com as coisas, retirou-se da sacramentalidade.
Não sei se Jesus gostava ou não de broa. Talvez até nem soubesse que existia. Mas imaginar que ficaria atrapalhado, nos lugares em que o trigo não é o principal alimento, em celebrar com broa ou com arroz é duvidar do poder de Cristo.
Sou levemente alérgico a estas crónicas durante o mês de Agosto. Até Setembro.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 28.07.2017 

23 julho 2017

JESUS NÃO GOSTAVA DE BROA? (1)

        1. A interrogação desta crónica tem raízes ocultadas e persistentes na teologia dos sacramentos. Regressou devido a graves problemas alimentares e simboliza a marginalização de questões abafadas na reflexão e na prática da inculturação da fé cristã. Saltou para aqui por alguma falta de humor.
       O Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos dirigiu uma Carta aos Bispos diocesanos – ou àqueles que, por direito, lhe são equiparados – para lhes recordar o dever de vigiarem a qualidade do pão e do vinho destinados à Eucaristia e à idoneidade daqueles que os fabricam. Um amigo, pouco versado na linguagem litúrgica, reagiu: querem ver que a ASAE já chegou à Missa!? Acrescentei: ou será que já andam para aí a celebrar com broa de milho?
      Um padre, muito zeloso, não gostou nada dessas mansas piadas: não admito que se brinque com uma das realidades mais sérias da nossa fé!
        Quando tentei mostrar que a Carta não era sobre a Eucaristia, mas apenas sobre a qualidade do pão e do vinho que lhe são destinados, a indignação não abrandou, pois estaríamos a desrespeitar uma zona sagrada que a protege. Não melhorei o ambiente ao dizer que antes do problema da qualidade do pão destinado à Eucaristia, existe um imperativo mais sagrado e mais cristão: lutar para que todos tenham o pão de cada dia, o alimento suficiente, como consta da mensagem do Papa Francisco ao Presidente da FAO. Lembrou-me, com razão, que essa não era a preocupação do Cardeal Sarah.
      Era preciso regressar a uma pergunta banal: que terá acontecido para motivar um texto cardinalício sem qualquer novidade?[1].
       A explicação é oferecida numa linguagem eclesiástica que alguns julgarão ser altamente ridícula. “Enquanto até agora, de um modo geral, algumas comunidades religiosas dedicavam-se a preparar com cuidado o pão e o vinho para a celebração da Eucaristia, hoje estes vendem-se, também, em supermercados, lojas ou mesmo pela internet. Para que não fiquem dúvidas acerca da validade desta matéria eucarística, este Dicastério sugere aos Ordinários que dêem indicações a este respeito; por exemplo, garantindo a matéria eucarística mediante a concessão de certificados.
       «O Ordinário deve recordar aos sacerdotes, em particular aos párocos e aos reitores das igrejas, a sua responsabilidade em verificar quem é que fabrica o pão e o vinho para a celebração e a conformidade da matéria (…)».
       A Carta funciona como um puro acto de memória. As normas acerca da matéria eucarística já estavam estabelecidas: 
       «O pão que se utiliza no santo Sacrifício da Eucaristia deve ser ázimo, unicamente feito de trigo, confeccionado recentemente, para que não haja nenhum perigo de que se estrague por ultrapassar o prazo de validade. Por conseguinte, não pode constituir matéria válida, para a realização do Sacrifício e do Sacramento eucarístico, o pão elaborado com outras substâncias, embora sejam cereais, nem mesmo levando a mistura de uma substância diversa do trigo, em tal quantidade que, de acordo com a classificação comum, não se possa chamar pão de trigo (…).
       «O vinho que se utiliza na celebração do santo Sacrifício eucarístico deve ser natural, do fruto da videira, puro e dentro da validade, sem mistura de substâncias estranhas… (...) Não se deve admitir, sob nenhum pretexto, outras bebidas de qualquer género, pois não constituem matéria válida»[2].
       2. Esta pureza ritual embate em graves problemas de saúde reconhecidos no citado documento. De facto, a própria Congregação para a Doutrina da Fé já tinha indicado as normas para as pessoas que, por diversos e graves motivos, não podem consumir pão normalmente confeccionado ou vinho normalmente fermentado[3]:
     «As hóstias completamente sem glúten são matéria inválida para a eucaristia. São matéria válida as hóstias parcialmente desprovidas de glúten, de modo que nelas esteja presente uma quantidade de glúten suficiente para obter a panificação, sem acréscimo de substâncias estranhas e sem recorrer a procedimentos tais que desnaturem o pão.
       «O mosto, isto é, o sumo de uva, quer fresco quer conservado, de modo a interromper a fermentação mediante métodos que não lhe alterem a natureza (p. ex., o congelamento), é matéria válida para a eucaristia.
       «Os Ordinários têm competência para conceder a licença de usar pão com baixo teor de glúten ou mosto como matéria da Eucaristia em favor de um fiel ou de um sacerdote»[4].
       3. Quando frequentei a catequese, os cuidados rituais para a comunhão exigiam, além do jejum desde a meia-noite até à hora de comungar, a tortura de engolir a hóstia, sem a mastigar e sem a deixar tocar nos dentes. Supunha que era para não magoar o Senhor, mas estava em oposição ao mandato de Jesus: tomai e comei e, na altura, reservada ao padre: tomai e bebei.
     Esta Carta dispensa essa tortura, mas liga a verdade e a eficácia sacramental da Eucaristia à pureza de um cereal – o trigo – e ao produto da videira, o vinho fermentado ou não.
      Urge uma alteração de paradigma na teologia dos sacramentos e da liturgia. Veio mais do mesmo. Se esquecermos as exigências universais das múltiplas faces da inculturação, continuaremos num beco sem saída.
       Temos de voltar a esta questão
       Frei Bento Domingues, O.P.
       in Público 23.07.2017



[2] Cf. Can. 924 do CIC e nos números 319 a 323 da Institutio generalis Missalis Romani, foram já explicadas na Instrução Redemptionis Sacramentum desta Congregação (25 de Março de 2004)
[4] Cf. Carta ao Perfeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, 9 de Dezembro de 2013, Prot. n. 89/78 – 44897.



MARÍA MAGDALENA Y VIRGINIA WOOLF PIONERAS DE IGUALDAD

       A las filósofas, teólogas, escritoras y artistas feministas, mis maestras y amigas, en sintonía

        No he encontrado otra forma mejor de recordar a María Magdalena en su fiesta religiosa del 22 de julio que haciendo una reflexión sobre su figura bajo la inspiración del magnífico libro La resurrección de María Magdalena. Leyendas, Apócrifos y Testamento cristiano (EVD, Estella, 2008), la teóloga Jane Schaberg, y relacionando a María Magdalena y a Virginia Woolf. La mística escéptica y subversiva de la escritora británica sirve de modelo interpretativo a Schaberg para reconstruir la emblemática figura de María Magdalena en clave feminista. ¿Es ésta una alianza espuria? Creo que no.
Las diferencias entre ambas mujeres son ciertamente notables, pero también lo son las similitudes, al menos en el imaginario colectivo. Las dos son tenidas por “trastornadas” o “enfermas”: la una, “maniaco-depresiva, la otra, posesa; ambas están exorcizadas o autoexorcizadas y confiesan momentos de visión. Las dos resultan extrañas para el círculo patriarcal y ninguna de ellas es miembro del selecto grupo de los “Apóstoles”, o al menos han sido excluidas de dicho grupo por el poder patriarcal. Coinciden hasta en la vida póstuma: Woolf y la Magdalena son figuras para el mito y la leyenda e iconos en la lucha por la emancipación.
        Desde una lectura feminista, Schaberg reconstruye las figuras de Woolf y Magdalena, hasta identificarse con ellas para crear, con su ayuda, una espiritualidad propia no excluyente conforme al ideal woolffiano: “En mi condición de mujer, no tengo patria. Como mujer no quiero patria. Como mujer, mi patria es el mundo entero”. Y Schaberg añade: “Como mujer, no tengo religión. No soy judía o cristiana o musulmana o pagana. Como mujer soy judía y cristiana, musulmana y pagana”. El deseo confesado de la teóloga feminista es haber “encontrado”  a una María Magdalena tan valiente y arrojada como Virginia Woolf o como Ethel Smyth, amiga suya, compositora inglesa y dirigente del movimiento sufragista, a quien Virginia describe de esta guisa: “Pertenece a la raza de las pioneras, de las que van abriendo camino. Ha ido por delante, y talado árboles, y barrenado rocas, y construido puentes, y así ha ido abriendo camino para las que van llegando tras ella”.    
        A través de una rigurosa investigación interdisciplinar de las fuentes cristianas canónicas de la Biblia hebrea y del Testamento cristiano, de los escritos gnósticos y de la arqueología, del arte y de las leyendas, Schabert imagina y recupera la figura de María Magdalena liberada de las imágenes negativas que sobre ella ha construido la ideología patriarcal desde los propios textos canónicos hasta la exégesis actual.
Schaber ve en los textos analizados indicios fragmentados de María Magdalena como continuadora del profetismo hebreo, iniciadora de la creencia cristiana en la resurrección, sucesora de Jesús de Nazaret y heredera de su autoridad espiritual. Los evangelios apócrifos de carácter gnóstico ofrecen elementos importantes para reconstruir la figura de María Magdalena, si bien de manera tentativa y provisional:
- Existe como personaje y como memoria en un mundo cuyos textos acusan un lenguaje androcéntrico y patriarcal.  
- Se expresa con atrevimiento y osadía en un mundo real y simbólico dominado por varones, lo que le da un relieve especial.
- Es una persona preeminente entre los seguidores y las seguidoras de Jesús, ya que posee autoridad espiritual y ejerce un liderazgo en igualdad de condiciones con los discípulos varones.
- Es presentada como compañera íntima de Jesús.
- Entra en conflicto con algunos discípulos varones por la fiabilidad de su testimonio.
- Aparece como consoladora y maestra de los demás discípulos.
- Es elogiada por su inteligencia superior.
La teología feminista cristiana recurre a María Magdalena como fuente de autoridad para llevar a cabo las transformaciones necesarias en el terreno eclesiástico y como pionera de la igualdad para generar cambios culturales y sociales que eliminen en la sociedad las discriminaciones de todo tipo: étnicas, sociales, culturales, religiosas y de género. Discriminaciones estas últimas que o suelen pasar desapercibidas o no cuentan como prioridad para su superación. 
El libro dibuja un sugerente cristianismo en torno a la figura de María Magdalena, vigente durante los dos primeros siglos en algunas iglesias y olvidado por la Iglesia patriarcal hasta hoy: un cristianismo inclusivo de hombres y mujeres bajo el signo de la continuidad profética más que bajo la sucesión apostólica; un cristianismo como posibilidad desconcertante, terriblemente vulnerable, que intentó alcanzar lo imposible. Aquel cristianismo fracasó, o mejor, lo hizo fracasar el patriarcado religioso aliado con el patriarcado político.
Pero no podemos considerar su fracaso por definitivo. Es verdad que ha durado muchos siglos, pero eso no significa caer en el fatalismo histórico que imposibilite su recuperación. Todo lo contrario. Es necesario recuperarlo, reinventarlo, reformularlo y revivirlo en nuestro momento histórico para contribuir en la lucha contra la discriminación de género en intersección con otras discriminaciones que se refuerzan y apoyan entre sí: etnia, clase, sexualidad, religión, procedencia geográfica, etc., y para trabajar por la emancipación y la igualdad en todos los terrenos.
Juan José Tamayo
22 de julio de 2017, fiesta de María Magdalena
Director de la Cátedra de Teología y Ciencias de las Religiones. Universidad Carlos III de Madrid, y autor de Otra teología es posible. Interculturalidad, pluralismo religioso y feminismo (Herder, Barcelona, 2012, 2ª ed.) y director y coautor de Religión, género y violencia (Dykinson, Madrid, 2016, 2ª ed. Próxima obra: Teologías del Sur. El giro descolonizador (Trotta, Madrid, aparecerá en noviembre).

16 julho 2017

LIVRO DE RECLAMAÇÕES NAS IGREJAS

       1. Li, não sei onde, que o Vaticano anda preocupado com a falta de exorcistas em Portugal. Ao comentar essa notícia com um amigo, ele acrescentou logo que, onde faltam, de certeza, é no próprio Vaticano.
Não desejo voltar à conversa dos pseudo-preocupados com o Papa: está velho para poder realizar as reformas em que se meteu e a revolução que tentou desencadear não é tão irreversível como alguns supõem e desejam. Os que se julgam mais realistas e radicais acrescentam: não basta a Bergoglio ter encontrado um refúgio fora dos antigos aposentos dos Papas; ou fecha o Vaticano para longas obras ou continuará a espantar-se com surpresas de onde menos seriam de esperar. 
Há, de facto, rumores de poucas vergonhas, que estão a passar para a imprensa, de que os infiltrados, velhos e novos, são como as baratas: quando se abrem as gavetas, desaparecem rapidamente, mas não morrem. Esperam sempre uma nova oportunidade. Haverá alguma empresa capaz de eliminar, de forma eficaz, esses parasitas da chamada Santa Sé? Ou será que os diabos do Vaticano já se riem da fábrica de ritos dos seus exorcistas?
Tudo isso pode ter sentido, mas não vai além do anedotário romano. Como diz o Papa, os cristãos de parlatório, que conversam sobre como andam as coisas na Igreja e no mundo, sem paixão por transformar as suas vidas, continuam a flutuar nas suas espreguiçadeiras enquanto debitam sentenças sem consequências.
Ele próprio, ainda no mês passado, lembrou aos novos cardeais que o caminho é seguir Jesus que os chama a olhar para a realidade, não se deixando distrair por outros interesses, por outras perspectivas: não vos chamou para vos tornardes «príncipes» na Igreja e para vos «sentardes à sua direita ou à sua esquerda». Chama-vos para servir como Ele e com Ele .
Quem seguir de perto as intervenções do Papa Francisco – homilias, discursos, cartas pastorais, etc. – fica espantado com o grande livro de reclamações, onde vai escrevendo, em nome do Evangelho, o que exige dos padres, dos bispos e dos cardeais. 
Luta por um clero não clerical, confessando-se membro de um povo consagrado a Deus e ao serviço de toda a humanidade pelo sacerdócio comum a todos os baptizados. A função do clero não é a de mandar na Igreja de todos, mas a de ajudar a desenvolver a vocação de todos à santidade. Os padres, os bispos, os cardeais, o papa, centrados em si mesmos e nos seus títulos de carreira eclesiástica, tornam-se traidores da Igreja.
Bergoglio, no dia em que deixasse de lhes pedir contas tornar-se-ia conivente dessa traição. Não é por acaso que ele, em vez de se proclamar infalível e Santo Padre, se confessa pecador e pede a oração dos fiéis.
2. Para quem se reconhece na liderança deste Papa, mas perde o sentido da sua própria responsabilidade na reforma actual e concreta de dioceses, paróquias, movimentos, congregações religiosas, a pretexto de que o governo da Igreja, ao mais alto nível, está bem entregue, ainda não percebeu nada do desígnio de Bergoglio. 
Quando invoco um livro de reclamações nas Igrejas, não é para registar o descontentamento com o funcionamento da cúria diocesana, das secretarias, dos cartórios e dos conselhos paroquiais, da celebração dos mandamentos e da organização da catequese. Por mais importante que seja essa burocracia e o seu bom funcionamento, estaríamos, apenas, no âmbito do que se deve exigir a qualquer outra organização e que a Igreja não pode dispensar. Se assim fosse, a vida eclesial só precisaria de recorrer às escolas de gestão. 
O que pretendo sugerir com o livro de reclamações é uma forma de responsabilização de toda a comunidade. Não é o registo da má-língua. Quem reclama deve estar empenhado na mudança, na reforma da paróquia ou do movimento. Deve reclamar, pois todos os fiéis têm direito à celebração da Palavra, da Eucaristia e dos outros Sacramentos, a não confundir com a leitura escalonada dos livros litúrgicos e de homilias intragáveis ou apenas sofríveis. 
Não se pode esquecer que, hoje, em Portugal, as assembleias litúrgicas são compostas por pessoas com muitas competências profissionais e culturais que nunca tiveram oportunidade de oferecer os seus préstimos para a festa dominical. Outras foram-se afastando. Não conseguem suportar a falta de qualidade das celebrações, a começar pelas homilias e acabar nos cânticos: não tenho nada a ver com aquilo nem aquilo tem nada a ver comigo. Repete-se a cena evangélica: porque estais aí o dia todo sem fazer nada? Porque ninguém nos convocou.
 O livro de reclamações deve registar que há muitas pessoas que podem, querem e devem contribuir para que as celebrações recolham as alegrias, as esperanças, as preocupações, as frustrações e os desejos da assembleia celebrante, mergulhando-a na Palavra, na Eucaristia, no canto, na oração transfiguradoras do passado. O primeiro dia da semana é o Domingo, o renascer da esperança.
3. O livro das reclamações não regista apenas o que falta. Reclama, de cada um, o que pode dar à comunidade para que ela forme pessoas responsáveis pela sociedade, vendo o mundo a partir dos excluídos e não dos instalados. A celebração tem de formar uma Igreja de saída e não um concentrado de beatos e beatas, preocupados em reconduzir as celebrações e as devoções ao estilo pré-Vaticano II. Não passam de sabotadores do movimento desencadeado pelo Bispo de Roma.
Pelo que foi dito, não devia existir nenhum grupo, movimento ou paróquia, sem um livro de reclamações para manter o bom desassossego, a não confundir com o registo dos azedumes, das invejas e, sobretudo, das lutas pelo poder, em nome do serviço, terra de oportunistas. 
As comunidades cristãs devem ser um exemplo de perdão e de misericórdia, o que parece incompatível com um livro de reclamações, caderno de encargos, exigências e avaliações. 
Não esqueçamos, porém, o que escreveu Tomás de Aquino: Iustitia sine misericordia crudelis est, misericordia sine iustitia mater est dissolutionis. A justiça sem misericórdia é cruel, a misericórdia sem justiça é a mãe da degradação .
Talvez haja quem pergunte: como realizar esse livro de reclamações?
A imaginação humana e cristã tem sempre alguns recursos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 16.07.2017




[1] Cf. Alocução do Papa Francisco, 28 de Junho de 2017.
[2] Cf. S.Tomas Aquinas, Expositio in Matthaeum S.Thomas Aquinatis Catena Aurea in quatttuor Evangelia. Roma-Taurini,vol. I, 5, 7

09 julho 2017

O DESEMPREGO ECLESIAL DOS CRISTÃOS

     
1. No passado dia 29 de Junho, foi apresentada, no Convento de S. Domingos (Lisboa), a Obra Seleta do dominicano José Augusto Mourão - O Vento e o Fogo; A Palavra e o Sopro; O Espelho e o Eco[1] - coordenada por J. Eduardo Franco.
Desta selecção resultou um volume de 1590 páginas, primorosamente editado pela Imprensa Nacional, que mostra a abrangência polifacetada e original da sua escrita.
Trata-se de uma realização singular da interacção do trabalho académico e da intervenção cultural, fora dos espaços confessionais, em ligação com a tarefa de alterar as rotinas instaladas, em nome de uma falsa ortodoxia, no campo litúrgico e teológico. O seu empreendimento, na adaptação e criação de expressões poéticas e musicais para as celebrações da fé cristã, resulta de um profundo conhecimento das respectivas tradições orientais e ocidentais. Não se confunde com a ignorância atrevida, nem com o falso respeito do que sempre assim foi e porque sim! Nele, a tradição provocava constantes inovações. A fé era recebida como «alteração alterante». Confessa num poema musicado da juventude: «creio em Ti porque isso mudou a minha vida». Fez, numa entrevista, a sua apresentação: «sou dominicano, antes de mais. Sou Professor Universitário, a seguir. Ensino semiótica e Hiperficção e Cultura, na Universidade Nova de Lisboa. Sou também Presidente do Instituto S. Tomás de Aquino. Mas sou fundamentalmente um leitor que ensina, que investiga e que escreve».
Ao responder à pergunta sobre o que o levou a escrever livros, foi muito directo: «A Academia avalia, e um dos critérios da avaliação é o que se produz em termos de ensaios, conferências, participação em congressos. Escrever, neste caso, é uma obrigação profissional. Escrever textos sobre Deus decorre do meu próprio estatuto de “teólogo”. Tenho uma licenciatura canónica em teologia, antes de mais. Escrevi textos sobre “A enunciação poética de Deus”, por exemplo, mas muitos outros sobre “Liturgia e estética”, “O espaço dos mosteiros”, por exemplo». Como dizia António Machado, a alma do poeta orienta-se para o mistério.
J. A. Mourão escrevia em resposta «a um sopro, a um Dito, a um apelo. Distingue poesia (em absoluto) e “textos para rezar”, que são textos de circunstância, utilizados em ambiente litúrgico».
Sobre o papel da Sagrada Escritura no seu trabalho, como escritor, é luminoso: «A Palavra de Deus é primeira em relação à palavra que trocamos entre nós: não dispomos dela. Não há cristão que não obedeça à Palavra. Não como enunciado morto, mas como provocação, interacção. A Palavra não é monolítica, mas multidiversa: é cada um que, ao recebê-la, a “aplica” a si e ao mundo em que vive. Não escrevo a partir da “angústia da influência”, mas da liberdade dos filhos que entre si partilham o que lhes é comum. A Palavra dissemina-se em nós como um campo que Deus trabalha».
A poesia não procura efeitos práticos: «O poeta escreve por escrever. Como a rosa é sem porquê. Não sou um escritor militantemente cristão. Testemunho no dom que recebi de dar à Palavra um lugar alto, não rotineiro, não vulgar. Nem romano. No caso dos textos para rezar, se os escrevo é para os rezar com. Não é viver, viver com?»[2]
Conheci este poeta em Vila Real, onde fui pregar, em 1962, durante oito dias, na Sé, Igreja de um antigo convento da Ordem dos Pregadores. Ainda seminarista, convidou-me para uma palestra na Academia Missionária. Passou depois pelo Seminário do Porto. Incómodo para o Bispo de Vila Real, foi convidado como missionário leigo pelo Bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto. Passados dois anos foi recambiado para Portugal pela PIDE, ao ver que ele não se resignava à situação maltratada da população africana.
      No Porto, sentiu-se reconhecido por frei Bernardo Domingues e por Frei Mateus Peres. Foi estudar para Toulouse, Lyon e Paris. Fui pregar à sua Missa Nova. Morreu em 2011.

2. O acontecimento marcante na reforma da Cúria Romana foi a não recondução do Cardeal Müller, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Quem andar alheado das movimentações vaticanas reagirá de forma muito displicente: rei morto, rei posto. Desaparece um, vem outro. Não há vazio de poder. Isto significa que ainda não se compreendeu o desígnio do Papa Francisco.
Não tenho de pôr as mãos no lume pelo novo Prefeito, o bispo Ladaria, com uma carreira que tem todas as marcas de um homem do sistema.
O Papa Francisco nunca atribuiu qualquer infabilidade às suas opções. Se as faz, é para realizar um programa que apresentou, de forma clara, a toda a Igreja. Manter, como Prefeito, o cardeal G. Müller – nomeado por Bento XVI - seria mostrar que, para não ferir susceptibilidades, renunciava às reformas que prometeu. Não esperem isso de Bergoglio. Era inteiramente inaceitável que o Prefeito se servisse do seu cargo para desautorizar, sistematicamente, de forma directa ou enviesada, os caminhos do Papa Francisco. Mostrou-se, no mínimo, um funcionário sem ética profissional. A decisão só peca por tardia. É lamentável que não tivesse tido a hombridade de se demitir.
3. Confesso que não acredito nessa Congregação, herdeira do Santo Ofício. Durante o longo mandato do Cardeal Ratzinger, manifestou-se, em nome de Deus, uma instituição esterilizante do pensamento livre na Igreja. Terá de ser substituída por uma instância que estimule a criatividade cultural da fé cristã, em diálogo com as expressões do pensamento laico e inter-religioso. A fé católica dá muito que pensar e realizar como liturgia, estética e ética no respeito e apreço pela investigação científica. Tem de ser uma fé em processo permanente de inculturação. Isto não significa que vale tudo. Significa que os cristãos têm de desenvolver uma atitude de mútua escuta e mútua interpelação. A Igreja, hoje, conta, a nível local e global, com competências em todos os ramos de vida humana e de inteligência da fé, que precisam de ser activadas.
É lamentável o desemprego eclesial dos cristãos, mulheres e homens.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 09.07.2017


[1] Direcção e coordenação de José Eduardo Franco, Imprensa Nacional, 2017
[2] Ib., p.1589 1590. O sublinhado é meu. Numa entrevista a Maria João Seixas, que também figura neste volume, explicita as opções do seu itinerário, como cidadão, como investigador e professor, como dominicano com responsabilidades no interior da Ordem dos Pregadores, sem confundir ou anular nenhuma destas dimensões, potenciavam-se umas às outras (cf. Pp.1577-1587).

06 julho 2017

Comunicado de imprensa do Nós Somos Igreja Internacional sobre a nomeação do Cardeal Luis Ladaria como novo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Igreja (CDF)

Uma mudança na CDF significa uma importante oportunidade de reorientação
Nós Somos Igreja Internacional saúda a nomeação do Cardeal Luis Ladaria como novo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Igreja  (CDF) esperando que introduza transparência, justiça e compaixão na CDF. A decisão de uma mudança no topo da CDF também é vista como um progresso na reforma da cúria.
Contudo, Nós Somos Igreja Internacional afirma: “A cúria do Vaticano dedica demasiada energia na protecção e manutenção do poder institucional. Esta situação só será alterada quando houver um total empenhamento dos leigos e especialmente das mulheres na igreja e na sua missão. É essencial e urgente uma mudança radical na nossa Igreja.”
Nós Somos Igreja Internacional apela ao novo prefeito para que anule todas as sanções contra teólogos como sinal de uma nova era de justiça na Igreja e que abra e apoie um intercâmbio vivo nas posições teológicas sem restrição de pensamento.
Nós Somos Igreja Internacional apelou para a substituição do Cardeal Müller do cargo de Chefe da Congregação para a Doutrina da Igreja (CDF) em 6 de Março de 2017. O Cardeal Müller apoia a cúria conservadora que luta para manter o poder e controle e que estão a bloquear as reformas do Papa Francisco no sentido de tornar a nossa igreja mais compatível com a imagem de Cristo.
O Cardeal Müller:
·         Recusou o pedido feito pela Comissão de Abuso Pontifício para que todas as cartas dos sobreviventes obtivessem uma resposta
·         Recusou permitir que fosse criado um tribunal para investigar e censurar bispos relativamente a abusos sexuais
·         Recusou mudar os processos que utiliza na investigação de padres e religiosos, que são injustos e estão em colisão com o curso normal da justiça
·         Recusou apoiar as mudanças para pessoas divorciadas e que voltaram a casar pudessem comungar/recebessem a Comunhão, de acordo com a  encíclica do Papa Francisco, Amoris Laetitia.


Sigrid Grabmeier, Coordenadora de Nós Somos Igreja Internacional, disse: "É lógico que o Papa Francisco não prorrogue o prazo de cinco anos de nomeação do Cardeal Gerhard Muller. O Cardeal Müller tem-se posicionado repetidamente como se fosse professor do Papa através dos seus ensinamentos e interpretações do Papado, mais recentemente no seu livro «O Papa». Uma mudança na CDF representa igualmente uma valiosa oportunidade para a importante tarefa de perseguição da violência sexual por parte dos padres."

02 julho 2017

NEM LUTERO NEM FRANCISCO

       1. No passado dia 21, o Grémio Literário evocou os 500 anos «dos acontecimentos que abalaram a Europa na sequência do acto simbólico que marcou o início do movimento religioso e cultural na Cristandade e que ficou registado na História sob a designação de Reforma. Foi a 31 de Outubro de 1517 que Martinho Lutero afixou nas portas da igreja de Wittenberg as suas 95 famosas teses, que acabaram por conduzir a um cisma profundo e durável na Igreja de Roma».
       Segundo a tradição, isto aconteceu na véspera da festa de Todos os Santos. A dramatização desta data deu origem à Festa da Reforma, embora a sua fundamentação histórica seja questionada, dado que a narrativa é de Melâncton, em 1546, depois da morte de Lutero.
       O V Centenário da Reforma já foi inaugurado, na Alemanha, em 2008, como a Década de Lutero.
        É uma ocasião para os historiadores da cultura, da política e da teologia reexaminarem cinco séculos de história extremamente complexa e, talvez, colherem algumas lições para o nosso presente de renovados fanatismos políticos e religiosos.
       A Ausência de Lutero em Portugal foi o título da minha intervenção. Portugal não é a pátria de Lutero e os portugueses também não o puderam acolher no séc. XVI, nem com discernimento nem sem discernimento. Além disso, e não só em Portugal, ser bom católico era dizer mal dos protestantes e ser bom protestante eram dizer mal dos papistas.
       Para assinalar os quatrocentos e cinquenta anos da sua morte, o Centro de Estudos de Teologia/Ciência das Religiões, da U. Lusófona, realizou um importante Colóquio, cujos contributos já estão publicados. Merecem reedição. Tentei, no Prefácio, explicar as razões da ausência de Lutero entre nós[i].
      O P. Carreira das Neves com o seu Lutero. Palavra e Fé tenta preencher essa lacuna: «O tema que vamos tratar tem sido objecto de milhares de livros, artigos e pronunciamentos religiosos, políticos, sociológicos, filosóficos. Só estranha o facto de nenhum autor português ter assumido, nestes quinhentos anos que nos separam de Lutero, a responsabilidade de escrever sobre esta pessoa que está na origem do protestantismo luterano e das igrejas evangélicas»[ii].
       Ausente em Portugal, teve mais sorte no Brasil, onde já foram publicados 12 volumes das Obras Seleccionadas de Martinho Lutero[iii].
       O luterano Artur Villares pergunta: «Cinco séculos depois, com a poeira da História a assentar e as polémicas, ódios e extremismos definitivamente encerrados nas prateleiras da apologética de todos os participantes, o que significa, para o homem de hoje, o nome de Martinho Lutero? Para muitos nada; para outros tantos, um mero revoltado, um rebelde, que destruiu a unidade da Igreja do Ocidente; para outros ainda, uma figura histórica, de assinalável grandeza, um dos construtores do mundo moderno. E para os luteranos? Naturalmente que a herança de Lutero é imensa: foi o pai do alemão moderno; foi o autor de uma vasta obra teológica, que hoje abarca cerca de cem volumes; dignificou o casamento, dando ele próprio o exemplo, ao casar em 1525 com a ex-freira Catarina de Bora, de quem teve seis filhos. Compôs dezenas de hinos, reestruturando o canto congregacional na Igreja. Reafirmou o sacerdócio universal de todos os crentes e introduziu o vernáculo como língua litúrgica. Inspirou grandes mestres da música, como Bach e Mendelssohn. E tudo isto, sem dúvida foi entrando no património das igrejas após Lutero»[iv]
       O dominicano, Yves Congar, investigador da obra de Lutero, concluiu que ele «é um dos maiores génios religiosos de toda a história. Coloco-o no mesmo plano que Santo Agostinho, São Tomás de Aquino ou Pascal. (…) Ele repensou todo o cristianismo. Ofereceu-nos uma nova síntese, uma nova interpretação»[v].
       2. Não cabe nesta crónica apresentar todas as razões que fizeram de Lutero um ausente da nossa cultura, da cultura que se desenvolveu em diálogo com a Reforma. Frei Jerónimo de Azambuja (†1562), grande exegeta da Bíblia, declarou no Concílio de Trento que «em Portugal, graças à providência divina e aos cuidados do rei muito cristão, não se vislumbra qualquer sinal da heresia luterana que enche o mundo». De facto, os contactos testemunhados de portugueses com Lutero foram escassos. Os métodos da Inquisição, o controlo dos livros nos portos e nas livrarias construíram adequadas barreiras de protecção contra o contágio luterano.
      No século XVI, quando se queria insultar gravemente alguém, bastava chamar-lhe Lutero. D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga, aguentou muitas insolências de alguns cónegos, mas protestou vivamente quando o apelidaram de Lutero[vi].
        3. Muitos passos de aproximação e de entendimento mútuo já foram dados entre católicos e luteranos. Em 1999, foi assinada a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação. O Papa Francisco, na viagem ecuménica à Suécia, entre 31 de Outubro e 1 de Novembro de 2016, no contexto da comemoração católico-luterana dos 500 anos da reforma protestante, assinou uma declaração comum com o presidente da Federação Luterana Mundial.
         A fórmula Ecclesia semper reformanda é antiga. A Igreja quando não vive em processo de contínua reforma, deforma-se. É da sua condição humana e cristã. Somos justificados pela graça de Deus e pecadores pelo mau uso da nossa liberdade. Para não envelhecer, é preciso renascer, deixar-se transformar.
       O que mais me espanta não são os 500 anos de ausência de Lutero em Portugal. O que me desconsola é a nossa resistência passiva à reforma, muito mais abrangente e global, desencadeada pelo Papa Francisco, o segundo Papa dos tempos modernos, verdadeiramente católico, isto é, de abertura universal.           O primeiro foi João XXIII.
A resistência à reforma dos ministérios ordenados está a privar a Igreja Católica dos serviços mínimos sacramentais às comunidades. Os padres, que são cada vez menos, tornaram-se robots de missas, baptizados e casamentos.
       Será que nas resistências às reformas de Bergoglio se esconde a aposta na 4ª Revolução Industrial para seminários de robots mais sofisticados?
        Frei Bento Domingues, O.P.
        in Público, 02.07.2017


[i] Martinho Lutero. Diálogo e Modernidade, Prefácio de Frei Bento Domingues, Edições Universitárias Lusófonas, 1999.
[ii] Pe. Carreira das Neves, Lutero. Palavra e Fé, Presença, Lisboa, 2014, p.17.
[iii] Responsabilidade da Comissão Interluterana de Literatura. São Leopoldo.
[v] Cf. Pe. Carreira das Neves, Op. Cit., pp. 419-422.
[vi] Cf. Martinho Lutero. Diálogo e Modernidade,  pp. 7-12.