31 julho 2016

FORA DO ESTUDO NÃO HÁ SALVAÇÃO

1. Ao apresentar em Luanda, com este título, um programa de trabalho histórico-teológico a um grupo de jovens estudantes dominicanos, sobre os modos de fidelidade e infidelidade ao carisma da Ordem dos Pregadores - ao longo dos seus 800 anos - um deles destacou os graves inconvenientes desta afirmação. A sua sonoridade evocava demasiado uma outra expressão que envenenou séculos de teologia missionária e pastoral: fora da Igreja não há salvação! Mas o que agora propomos é algo que nada tem a ver com essa aberração. O título diz apenas que em qualquer tempo, lugar e cultura, sem a dedicação permanente ao estudo, os dominicanos não podem realizar a sua missão na Igreja, acabando por cumprir tarefas que os não definem e os torna facilmente dispensáveis e substituíveis.
M. D. Chenu O.P., famoso historiador-teólogo que suscitou várias gerações de investigadores das ciências indispensáveis às práticas teológicas inovadoras, lembrou que “a Ordem dos Pregadores nasceu, radicalmente, da compreensão, da análise e do amor a um mundo em mutação. Enquanto o conjunto da Igreja hierárquica e povo simples praticante se sentem tolhidos, as novas equipas religiosas, Frades Menores e Pregadores à cabeça, reconhecem que esse mundo como tal, e não apenas a ordem estabelecida, é provocação ao Evangelho. É aí que importa ler os “sinais dos tempos”, acontecimento actual do Reino, presença activa da Igreja no gemido da criação. Não é obra de reformismo moral, de simples revisão pastoral, de acomodação de regras e estruturas, nem sequer, ao fim e ao cabo, de uma santificação das virtudes. Trata-se de um carisma, com a compreensão viva, profética, de uma situação humana nova, na evolução do mundo”.

2. Este é um sugestivo retrato histórico do mundo em que nasceram os franciscanos e dominicanos. A realização da originalidade do carisma da Ordem dos Pregadores implicava, não apenas a convicção de que sem a graça da pregação, graça do Pentecostes, não podia preencher uma das mais graves lacunas da Igreja do seu tempo, a miséria espiritual da ignorância. Consciente de que a graça não substitui a natureza, pelo contrário, exige a mobilização de todos os seus recursos cognitivos e afectivos, foi o próprio S. Domingos que, em 1217, dispersou os primeiros companheiros para estudar, pregar e criar comunidade, preferindo, para esse efeito, os centros universitários de Paris e Bolonha. O estudo não é uma ocupação ocasional, mas uma peça mestra da observância religiosa. Por isso, a aquisição de livros e a sua boa conservação não podiam ser afectadas pelo voto de pobreza. Os livros são as nossas armas, dizia o capítulo provincial de Avinhão, em 1288.
As exigências do estudo justificavam a flexibilização da vida conventual, por meio da dispensa individual e colectiva. Logo que um jovem começava o Noviciado, o padre Mestre devia ensinar-lhe que, sempre e em toda a parte, de dia e de noite, em casa ou em viagem, devia ter a preocupação de estudar e reflectir. A existência quotidiana de uma comunidade de Pregadores organizava-se como escola de teologia e pregação.
Segundo as primeiras Constituições, não se podia abrir nenhuma comunidade sem dispor de um prior e de um professor de teologia. A assiduidade ao estudo era um dos elementos da vida conventual que os visitadores, encarregados de controlar a regularidade da vida das comunidades, deviam verificar.
Por isso, todos os conventos da Ordem terão de ser, ao mesmo tempo, centros de vida consagrada, de pregação e de teologia. Foram estes os diversos elementos da nova fórmula de «vida apostólica» que S. Domingos procurou e conseguiu ver explicitamente enunciados nos documentos pontifícios, a fim de organizar e estabilizar o seu desígnio fundacional.
Ainda nos começos do século XVI, um célebre Mestre Geral da Ordem e grande teólogo, Tomás de Vio Cayetano, retomou a mesma convicção: se o estudo da Verdade sagrada desaparecer da Ordem dos Pregadores, esta Ordem acaba[1]. 

3. Outro Mestre Geral, Humberto de Romans (1200-1277), já tinha destacado a originalidade da forma de vida configurada por S. Domingos, seus companheiros e seguidores, afirmando que a Ordem dos Pregadores foi a primeira a unir, de forma estrutural, estudo e vida religiosa.
Não aconteceu, por acaso, que em poucas décadas florescessem no seu seio figuras como Sto Alberto Magno e S. Tomás de Aquino. O primeiro sublinha que é na doçura da vida comunitária que se busca a verdade. Não suporta que a ignorância queira recusar à Ordem dos Pregadores o estudo e o uso da filosofia. O seu discípulo, Tomás de Aquino, realça que a forma de vida activa, pregando e ensinando a realidade contemplada é mais perfeita do que a pura vida contemplativa. É melhor iluminar do que ser apenas luz.

Desejo que os dominicanos em Angola, continuem decididos, na linha de S. Domingos, a desenvolver centros de vida consagrada, de pregação e de práticas teológicas aliadas às ciências humanas.

Frei Bento Domingues, O.P.
Luanda, 31.07.2016
in Público

[1] Para todos esses aspectos históricos, ver André Duval, O.P., Síntesis histórica de la Orden de los Frayles Predicadores, Biblioteca Dominicana, Bogotá, s/d.

24 julho 2016

OS DOMINICANOS EM ANGOLA

1. No Domingo passado, não tive condições para mandar, de Angola, a minha crónica para o Público. A pedido do meu Provincial, vim a Luanda participar num conjunto de iniciativas de estudo organizadas pelos dominicanos angolanos. A perspectiva que me orienta, na realização do programa desenhado, é esta: outro mundo, outra Igreja e outra vida dominicana são possíveis. É uma questão de fidelidade à mensagem cristã. Jesus Cristo cresceu e foi educado nas tradições da religião de Israel. Quando hoje se fala de inculturação do Evangelho, algumas práticas pastorais julgam que se trata de adaptar o Evangelho a uma cultura. Se assim fosse, Jesus Cristo não tinha nada que fazer, pois já estava moldado pela sua herança judaica, cultural e religiosa. O que pode ser observado, tanto nos escritos de Paulo como nas narrativas dos Evangelhos, é que Jesus de Nazaré não se apresentou para perpetuar os costumes do seu tempo. Teve de discernir o que havia de mais vital na herança recebida e o que havia de opressor na religião mais recomendada, sob a invocação de Moisés: disseram-vos, mas Eu digo-vos!
Continuamos com certas orações que podem sugerir a consagração do conservadorismo: assim como era no princípio agora e sempre pelos séculos dos séculos, Ámen. Ora, no principio era a criatividade. A fé cristã está ligada a um Deus que não passou à reforma, mas que é criação contínua, suscitando criadores, não repetidores. Rezamos para que «pelos séculos dos séculos» não se extinga a criatividade dos que desejam ser fiéis ao Evangelho.
2. Não posso dizer que conheço Angola, embora noutros tempos tivesse trabalhado em várias províncias. Conhecer um «povo de povos» é um caminho sem fim. Eu só conheci Angola em guerra civil, nem antes nem depois. Seria estúpido fazer considerações e comparações entre um breve passado e a realidade actual. Não tenho vocação de repórter. Não sou sociólogo nem economista para epilogar acerca da nova Luanda, tão diferente daquela que conheci e que também não era um paraíso. Tenho a impressão que não foram os arquitectos paisagistas os mais consultados para desenhar a renovação desta cidade que já conta com 7 milhões de habitantes numa população nacional de 25 milhões. Duvido que sejam especialistas em sistemas de transportes que obrigam as pessoas a gastar mais tempo e energias a chegar aos seus empregos e a regressar a casa do que propriamente no trabalho. Não seria possível e mais eficaz cruzar a cidade de comboios e/ou de linhas de metro do que reduzir tudo a táxis e a transportes particulares? Parece que uma economia baseada sobretudo no preço do petróleo chegou a uma situação insustentável. Sobem os preços e baixa o poder de compra. A população mais carenciada é sempre a que mais sofre.
De um Estado marxista à privatização do Estado, o salto foi muito grande e a defesa dos direitos humanos pouco acautelada. Do ponto de vista humano e cristão, quando um Estado se coloca ao serviço de interesses privados, o bem comum é necessariamente sacrificado. Desse modo, não haverá interesse em ampliar e melhorar o ensino público, a todos os níveis, nem criar e desenvolver um Serviço Nacional de Saúde eficaz.
Quem desejar documentar-se e analisar estas questões, a nível local e nacional, poderá dirigir-se ao Mosaiko, Instituto para a Cidadania, fundado e assumido pelos Dominicanos em Angola, desde 1997. É um instituto angolano sem fins lucrativos, tendo sido a primeira instituição deste país a assumir explicitamente como missão: promover os Direitos Humanos em Angola[1].
3. Ao visitar os espaços da Paróquia do Carmo, entregue aos dominicanos, e onde vivi um ano como professor do Seminário de Luanda, fiquei comovido com a exposição das fotografias de frei João Domingos, frei José João e frei Luís de França que desapareceram do nosso convívio. São pessoas que fizeram suas as dificuldades de um povo vítima de guerras loucas e que não se resignaram a uma paz que recusa o abraço da justiça e a defesa dos direitos mais elementares. Os dominicanos angolanos são hoje a garantia de que a paixão evangelizadora de São Domingos e desses irmãos vão descobrindo e praticando caminhos de transformação da sociedade e da Igreja.
Tudo começou com frei João Domingos, frei Gil Filipe e frei José Nunes em 1982. Foi a mão generosa de D. Zacarias Kamwenho que os levou para Waku-Kungo (Diocese do Sumbe). Era então uma frente de guerra entre o MPLA e a UNITA.
Este bispo, mais tarde arcebispo do Lubango e prémio Sakharov, estava a realizar um grande plano de evangelização inculturada na sua diocese, servindo-se do modelo tradicional Ondjango[2] e pediu a colaboração destes missionários.
Reconhecendo o trabalho exemplar realizado em Waku-Kungo, os dominicanos foram convocados para uma presença mais alargada e diversificada em Angola da qual será preciso falar noutra crónica.
Frei Bento Domingues, O.P.
Luanda, 24.07.2016
in Público



[1] www.mosaiko.op.org
[2] Foi o tema da tese de doutoramento de frei José Nunes. Pequenas Comunidades Cristãs – O Ondjango e a Inculturação da fé em África-Angola. UCP,1991.    





10 julho 2016

Entrevista a Frei Bento Domingues, O.P.

À conversa com… Frei BENTO DOMINGUES

ANDRÉ RUBIM RANGEL

VP – O seu lar familiar foi desde cedo uma ótima escola de fé, a ver-se pela entrega à vida religiosa dominicana do Frei Bento e do irmão, Frei Bernardo. Sentiu-se interpelado e descobriu a vocação através do irmão mais velho? Através de que sinal?

BD – O Frei Bernardo tem mais 3 anos e 3 meses do que eu. Foi recebido na Ordem dos Pregadores também antes de mim. Ambos fomos influenciados por um sedutor dominicano brasileiro, Frei Adriano, muito influente em vários movimentos da Acção Católica do Porto. Ele era amigo de um tio meu, chamado Frei Bernardo que se fez dominicano, pouco depois de ter chegado, como imigrante, ao Rio de Janeiro. Esteve 23 anos sem vir a Portugal. A seu pedido, Frei Adriano foi visitar a minha avó que não achou graça nenhuma que, depois de lhe terem roubado o filho, lhe viessem roubar os netos. A pedido do pároco, pregou um tríduo em Nossa Senhora do Livramento (Vilar – Terras de Bouro). Ele era uma tal alegria de Deus – o contrário da religião vinagreira e ameaçadora que então se vivia em toda aquela zona – que, quando me perguntou, na confissão, o que é que eu queria ser quando fosse grande, respondi sem hesitar: quero ser como você. Creio que com o meu irmão Bernardo (chamava-se Domingos) aconteceu algo semelhante, só que ele tinha jeito para tudo e eu não tinha jeito para nada. Mandaram-me guardar as ovelhas e elas escutavam um livro em latim que eu não entendia, mas que achava muita graça. Os meus pais, esses sim: eram uma escola de fé viva e interrogada.

VP – Em 62 anos de vida religiosa há algo de que se arrependa de ter feito? E há algo que ainda não fez, que gostaria de fazer e que acredita / sabe que ainda realizará? Se não fosse religioso e dominicano, o que seria?

BD – Arrependo-me de quase tudo – menos de ser dominicano – e peço a misericórdia de Deus e a da Ordem dos Pregadores na qual fui recebido. Há tanto que fazer, mas já não vou ter tempo. Por outro lado, foram sempre os outros que me disseram o que eu tinha de fazer. Se não fosse dominicano? Seria dominicano.

VP – Os dominicanos celebram correntemente 800 anos de presença em Portugal. Que oito pontos essenciais destaca nesta presença em cada um dos centenários vividos?

BD – No dia 1 deste mês, fiz a conferência inaugural das Jornadas de História da Ordem dos Pregadores (1216-2016), no espaço Corpus Christi, de Vila Nova de Gaia, sobre os principais pontos altos e baixos de 800 anos de história, com o título Missão da Ordem dos Pregadores Hoje. Procurei documentar uma convicção que sempre me acompanhou: quando a investigação teológica esteve atenta aos sinais dos tempos, foi fecunda a pregação do Evangelho. Quando se deixou dominar pelos apelos do poder político-religioso, foi um desastre. Desde S. Domingos, fora do estudo, em actualização contínua, não há salvação para os dominicanos cumprirem a missão que lhes compete, na Igreja e na sociedade, seja onde e quando for.

VP – No início da década de 60 viveu no Porto e estabeleceu uma relação próxima com Francisco Sá Carneiro. O que lhe fica do Porto e realça desta cidade, bem como do portuense e antigo primeiro-ministro?

BD – Quando cheguei ao Porto e me fizeram assistente da Juventude ligada à Igreja de Cristo Rei, por influência do Frei Bernardo, o Vaticano II já era uma preocupação viva e interveniente de uma minoria de jovens e adultos que sentiam a falta de D. António Ferreira Gomes (no exílio). A minha relação com o Francisco Sá Carneiro inscrevia-se nesse movimento. Tornou-se cada vez mais amiga. Entre muitas outras coisas, ele teve influência junto de Marcelo Caetano para permitir o regresso do Bispo do Porto.

VP – Enquanto teólogo, e após ter sido obrigado a sair de Portugal em 1963, voltou a Roma – onde estudou – para acompanhar os trabalhos do II Concílio do Vaticano, até 1965. O que mais lhe marcou na altura e que marca mantém hoje em si, fruto do Concílio?

BD – Ir para Roma, nessa altura, embora por motivos pidescos, foi o melhor castigo que me podiam dar. Já tinha sido um frequentador das audiências gerais, espantosas, de João XXIII. Isso continuou, mas participar nos debates em torno do que acontecia na aula conciliar, com peritos e jornalistas de todo o mundo, deixou-me sempre um devoto de João XXIII e do Vaticano II. Nenhuma decepção do pós concílio me fez perder a esperança na renovação de uma Igreja, serva e pobre, que, se não for para servir os que mais precisam, também não serve para nada.

VP – Nunca teve medo de dizer verdades nem de ser, por isso, confrontado com a então PIDE? Uma afirmação em 1970, das muitas interessantes que teve, foi: “Vem aí o Natal, vão dar-vos pistolas. Não aceitem. Digam: quando formos grandes não queremos andar em guerras” (numa eucaristia com crianças). Sente que foi ouvido e/ou ignorado, num planeta com muitas guerras, ódios, violências, etc.?

BD – Quando fui interrogado pela PIDE, na António Maria Cardoso, por causa dessa homilia, perdi o medo ao perceber que, na altura, não sabiam nada da minha participação em actividades clandestinas contra o regime opressor e a guerra colonial. A loucura da guerra continua.

VP – Na década de 80 fomentou a Teologia da Inculturação, indo em missão e ensinando teologia em Moçambique, Angola, Perú, Colômbia e Chile. O que guarda na memória desses tempos? E em que estado global está este tipo de teologia?

BD – Participei, dentro dos meus limites, nesse trabalho de teologia e pregação inculturadas que se fazia em África e na Améria Latina. Com o Papa Francisco foi retomado esse horizonte e esse método, de modo alegre e criativo. Na memória conservo, apenas, que trabalhei sempre em países atravessados por conflitos tremendos e que a realidade actual não deixa esquecer.


VP – O título do seu primeiro livro, “A Religião dos Portugueses” (de 1988), leva-me a perguntar-lhe como era nesse tempo e como é agora a religião nacional. Estamos a falar de uma mesma religião, duma mesma fé num só Deus? Que fé é esta de que, como povo, somos feitos e o que caracteriza a sua transmissão?

BD – O Padre Tolentino Mendonça queria reeditá-lo. Graças a Deus, hoje, a investigação, acerca do período por ele abrangido, tem-se desenvolvido de forma espectacular. Teria de ser muito revisto. Não sei se vou ter tempo. Seja como for, a “arte portuguesa de ser religioso”, nas suas constantes e variantes, está a concentrar-se em Fátima. E Fátima cada um tem a sua.

VP – Dos seus nove livros publicados, qual aquele que teve mais impacto e que sente que as pessoas, crentes ou não, mais aprenderam e mais se identificaram consigo? E qual é a principal ideia e máxima que escreve nessa mesma obra?

BD – O que sempre me interessou foi isto: só posso crer interpretando e partilhando o que vou vivendo e entendendo desafiado pelo cruzamento permanente entre fé cristã e os fenómenos culturais, sociais e políticos. Houve pessoas e editoras (de modo especial, o jornal Público) que acharam interesse em publicar o que escrevi. Nunca foi iniciativa minha.

VP – De que forma vê a relação atual e dualidade “Igreja – Mundo”, comparativamente ao passado? Como tem sido o mundo da Igreja: tem sabido estar à altura de tudo o que se passa no Mundo e que mais lhe diz respeito?

BD – Neste momento, vivo tão agradecido a Deus pelo Cardeal Bergoglio ter aceite ser o Papa Francisco que, apesar de todo o tecido de oposições que ele encontra, a relação “Igreja-Mundo” está a encontrar caminhos e expressões que vai ser muito difícil apagar da memória da Igreja e da sociedade. Entre João XXIII e Francisco, apesar de todos os invernos, a esperança resiste de forma muito activa.

in Voz Portucalense

Edição de 2016/07/06

http://www.voz-portucalense.pt/

AS TRAPALHADAS DO CRISMA

       
1. Rui Osório, jornalista e pároco da Foz do Douro, na sua pertinente coluna na Voz Portucalense (2016.06.29) revela preocupações que não são exclusivas: “Se a minha confidência de pastor vos parecer pessimista, peço-vos desculpa, mas deixem-me desabafar: a prática do Crisma é uma das experiências pastorais mais frustrantes que tenho encontrado.
“Em tempos primitivos, os catecúmenos, depois de um longo crescimento na fé, entravam na piscina e eram lavados; saíam e eram perfumados com óleo do crisma; e acediam à mesa eucarística para serem alimentados.
“Hoje, não é tanto assim e andamos, na longa e agitada onda da cristandade sociológica, a surfar um pouco aturdidos entre o cansativo cristianismo de tradição e o sedutor cristianismo de opção.
“Pastoralmente, parece-me que, em vez da iniciação à fé cristã, o Crisma está em risco de se tornar no sacramento que marca o fim de uma certa educação e de pertença cristã construídas na areia.
“Já lhe chamaram a «festa do adeus»! Os cristãos encontram-se no cais em despedida para outras andanças que não acertam no norte do cristianismo!
“Tenho boas razões para confirmar a «festa do adeus» de tantos a quem acompanhei na preparação para o Crisma, sobretudo jovens que completaram com assiduidade os seus dez anos de catequese e se despediram da Igreja ou a Igreja não lhes deu um novo porto de abrigo.
“Será o recém-ungido que abandona a Igreja ou a Igreja que já não tem mais nada a dizer-lhe?”
Talvez haja quem diga que uma citação tão longa é um abuso. Se abuso existe, é também um agradecimento a Rui Osório que tocou, como pastor e de forma exemplar, numa questão que outros, para não criar ondas, vão disfarçando o incómodo e atamancando soluções que o não são. Diria que preferem tornar o Crisma no grande sacramento da debandada.
Em certos casos, há dificuldade em aceitar para padrinhos de Baptismo e Matrimónio aqueles que são apresentados pelos pais ou pelos noivos. A escolha, por vezes, tem pouco a ver com o acompanhamento que os padrinhos devem dar aos seus afilhados. Em vez de se aproveitar a ocasião para refazer o caminho da fé cristã, opta-se pela via administrativa. Em alguns lugares, até se acabou com os padrinhos. Bastam testemunhas. Para não haver problemas desses no futuro, procura-se apressar a idade para o sacramento incómodo.
2. Deixamos de viver em regime de cristandade. A vida das comunidades cristãs já não é regulada pelo campanário nem pelo toque das Trindades.
Vale a pergunta: a orientação para receber o sacramento da responsabilidade eclesial e social da Fé cristã não deveria ter em conta a idade que, numa determinada cultura, se exige para assumir as exigências da vida adulta, social e familiar? Não se trata apenas de uma questão de idade, mas de um modo de entender o crescimento da responsabilidade de ser cristão, pois chegou a altura de ajudar os outros a crescer, a serem adultos na Fé.
É evidente que isto implica acabar com o hábito criado de julgar que a religião é para crianças e para o começo da adolescência. Essa mentalidade esquece o tempo das turbulências do crescimento humano. É esse tempo que deve ser evangelizado como preparação para enfrentar a novidade que é a de ser responsável pelo seu futuro e o dos outros, a nível familiar e profissional. Tempo de enfrentar o futuro da Igreja ao serviço da evangelização do mundo. Será também a melhor forma de combater o clericalismo tão denunciado pelo Papa Francisco. Não poderão aceitar ser apenas clientela de uma paróquia ou de um movimento. São chamados, por exigência sacramental, a descobrir os novos caminhos do Evangelho nos sinais dos tempos, que eles próprios devem marcar.
3. O que está em causa é a teologia dos sacramentos: antropologia sacramental ou sacramentologia antropogénica?, como pergunta Domingo Salado[1]. As normas litúrgicas e canónicas não bastam para uma pastoral lúcida da evolução da vida cristã no devir da existência humana, pessoal e social.
Faz-se o rito, está feito. Faz-se a cerimónia do Baptismo e está baptizado. Faz-se o Crisma e está crismado. Faz a primeira Comunhão, pode comungar, etc.. É o predomínio da causalidade mágica, do entendimento mecânico do célebre adágio ex opere operato[2].
O próprio Tomás de Aquino realizou, no interior da sua teologia, uma revolução muito esquecida. Passou do primado da causalidade ritual para o primado do signo. Os sacramentos inscrevem-se, antes de mais, no vasto mundo da linguagem simbólica e do regime cristão da incarnação, do Verbo na fragilidade humana. É propriedade dos sacramentos cristãos causarem aquilo que significam, no interior do percurso da Fé pessoal e eclesial.
Sem inscrever a pastoral dos sacramentos no âmbito de uma teologia marcada pelas ciências humanas, não há caminho para as trapalhadas que não são apenas as do Crisma. Teremos de regressar a estas questões.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 10.07.2016




[1] Antropología sacramental o sacramentología antropogénica? De la lingüística a la hermenéutica sacramental, Ciencia Tomísta, tomo 129, 418, 2002, pp 239-288.
[2] Fez-se, está feito.

03 julho 2016

GOSTAR DE SOFRER: MÍSTICA OU DOENÇA

      1. Só acreditas em Deus porque te dá jeito. Recebo muito bem esta velha censura de amigos agnósticos e ateus. Só me faltava acreditar porque via nisso uma desgraça.
O que torna a ideia de Deus inacreditável ou inaceitável para muitas pessoas, já foi expressa de mil maneiras. Em alguns meios, a mais corrente é esta: Deus não pode ser simultaneamente omnisciente, omnipotente e bom. Diante do sofrimento do mundo não sabe, não pode, ou não é tão infinitamente bom como se diz. Há outras razões mais sofisticadas de ateísmo. Não pretendo refutar nenhuma. Haverá sempre razões para dizer sim e razões para dizer não. Quando perguntaram a Einstein se acreditava em Deus, respondeu: primeiro gostaria de saber em que Deus está a pensar ao fazer essa pergunta.
Conheço confissões de fé em Deus que, para mim, são tão perversas que gostaria que não existissem. A Divindade foi e é invocada para fazer guerras e extermínio de populações. Na própria Bíblia há passagens, Livros e Salmos, absolutamente insuportáveis, mas não aconselharia a sua eliminação. Ao dizerem o que não se deveria nunca dizer de nenhum deus, revelam aquilo de que somos capazes: de colocar na boca de Deus os nossos interesses, mesquinhos ou detestáveis.
Por outro lado, quando, perante uma desgraça, natural ou provocada, se diz que é a vontade de Deus, sei que não acredito nessa peça do determinismo. Espero que Deus não tenha tão má vontade.
2. Gostar de sofrer, seja por que motivo for, não me parece uma virtude, mas uma doença. A glorificação do sofrimento tornou-se a marca de certo cristianismo que julga encontrar na cruz de Cristo a sua justificação. A espiritualidade dolorista não tem nada a ver com o Espírito do Evangelho. Não consta que Jesus gostasse de sofrer e muito menos de ser crucificado. Pelo contrário, gostava da vida e apenas queria que ela fosse abundante para todos. Sentou-se à mesa de santos e pecadores sem nunca exaltar o jejum. Por alguma razão, os seus adversários o acusaram de glutão e beberrão[i].  
Ao fazer uma cruz na fronte de quem pede o Baptismo, já tenho ouvido esta observação: porque marcam a criança ou o adulto com o sinal da suprema crueldade? Sinto sempre necessidade de esclarecer: Jesus Cristo nunca desejou a cruz. A sua proposta era e é um caminho de alegria, o Evangelho da libertação. Foi assim que se apresentou na sua própria terra natal[ii]. Se gostasse de ver as pessoas a sofrer, não se teria comovido com a doença, física e psíquica, com a morte. Não teria exaltado a ética samaritana e denunciado a situação dos oprimidos. A cruz foi-lhe imposta pelos donos da dominação religiosa e política. Preferiu ser crucificado a renegar o seu projecto de libertação divina e humana.
3. Quando me dizem que acredito em Deus porque isso me dá jeito, tenho de dizer que sim. Jesus Cristo não trouxe uma explicação de Deus, do ser humano, do sofrimento ou da morte, mas não se rendeu ao fatalismo. Nada tem de ser sempre assim, pelos séculos dos séculos. Sem ver o resultado final da sua intervenção, Jesus anunciou uma lógica muito original: quem perde, ganha e quem ganha, perde. Gastar a vida a dar alegria aos que precisam, mesmo que seja de um copo de água, é tocar o Reino dos Céus, transformando as relações humanas no que têm de mais exaltantes ou de mais banal.
Os avanços científicos e técnicos não são promessas de vida eterna. Que Deus os abençoe pela vida, pelo alívio e pela esperança que trazem à nossa viagem. Ajudam-nos a vencer a falsa mística do sofrimento.
Escrevo este texto depois do funeral do Frei Luís França. Sofreu muito, sem nunca se render. Cantámos, numa música muito bela, este poema de Frei José Augusto Mourão:
Não pode a morte reter-me na cruz. /Não pode o mundo arrancar-me à raíz./ Ao pé de Deus hei-de sempre viver./ Com Deus cheguei e com Ele vou partir.//Não pode a morte apagar o desejo/ de ver a Deus face a face e viver./ A Deus busquei toda a vida/ vivi de acreditar no infinito da vida.// Não nos reduz o escuro da noite./ Não pode o amor esquecer o que o altera./ Já ouço a voz do Senhor, Deus dos vivos/ já ouço a voz do amigo que vem.// A Ti a vida me toma e transporta./ Teu sangue inunda meu corpo de paz./ Eu vejo as mãos do Senhor glorioso/ nas minhas mãos a memória de Deus.// A Ti Senhor, meus desejos regressam./ Findo o andar, disponíveis as mãos./ Abre meu corpo ao devir que não sei/ eu chamo a esperança pelo nome de Deus.
Ilumina meus olhos da luz do teu Dia, e que um canto de paz me acorde da morte.
Frei Bento Domingues, O.P.
        in Público 03.07.2016


[i] Lc 7, 33-35
[ii] Lc 4, 14-44