28 dezembro 2014

Um milénio entre a excomunhão e a bênção

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Segundo a cronologia, devia ter deixado para hoje o que escrevi no Domingo passado. Mas assim é melhor. Vamos, então, à fonte donde nasceram as questões que os jornalistas levantaram ao Papa, no voo de regresso da Turquia.


Foi uma peregrinação que durou três dias cheios de acontecimentos, cuja significação profunda e decisiva para o futuro passou quase despercebida. Começo pelo contraste complementar entre as declarações fervorosas sobre o Islão – a não confundir com as organizações que o invocam para matar em nome de Deus - e o apelo veemente aos dirigentes religiosos e políticos muçulmanos para que se unam na denúncia clara e pública desses crimes e ameaças.


 A Turquia é a fronteira de muitas fronteiras políticas, religiosas e cristãs. Bergoglio não foi lá dar lições a ninguém. Foi encorajar os que procuram caminhos de paz no Medio Oriente, intensificar o diálogo inter-religioso e revigorar a proximidade católica com o mundo cristão da Ortodoxia. 


Era conduzido pelo desejo de congregar as energias de todas as pessoas de boa vontade, daquelas que vêem o mundo a partir do rosto das vítimas da violência, dos pobres e dos excluídos e que não aceitam esta vergonha como uma fatalidade.

2. Depois de se referir ao horror da islamofobia, da cristianofobia e de realçar a importância do diálogo inter-religioso, ele próprio explicou a alma da sua viagem: Eu fui à Turquia e fui como peregrino, não como turista. De facto, o que me levou, o motivo principal, foi a festa de hoje: fui precisamente para a partilhar com o Patriarca Bartolomeu; foi um motivo religioso. Depois, quando fui à Mesquita, não podia dizer: «Não! Agora sou turista!» Isto não; era tudo religioso. E vi aquela maravilha! O mufti explicava-me bem as coisas, com tanta serenidade e mesmo com o Alcorão, onde se falava de Maria e de João Baptista, explicava-me tudo... Naquele momento, senti necessidade de rezar. E disse: «Rezamos um bocado?» «Sim, sim!» - disse ele. E rezei… pela Turquia, pela paz, pelo mufti... por todos... por mim, que bem preciso... Rezei verdadeiramente. E, sobretudo, rezei pela paz. Disse: «Senhor, acabemos com a guerra!» Assim mesmo. Foi um momento de oração sincera.

3. Ao participar na Oração Ecuménica, na Sede do Patriarcado Ortodoxo, no dia da festa de Santo André, fez e disse algo, que irritou os fanáticos da superioridade católica e à qual as outras igrejas se deveriam render: "(...) André e Pedro eram irmãos de sangue, mas o encontro com Cristo transformou-os em irmãos na fé e na caridade. E nesta noite jubilosa, nesta oração de vigília, quero, sobretudo, dizer: irmãos na esperança"


Que grande graça, diz Francisco a Bartolomeu, poder ser irmãos na esperança do Senhor Ressuscitado! Que grande graça – e que grande responsabilidade – poder caminhar juntos nesta esperança, sustentados pela intercessão dos Santos irmãos Apóstolos, André e Pedro! Saber que esta esperança comum não desilude: está fundada - não sobre nós e as nossas pobres forças - mas sobre a fidelidade de Deus.


Com esta jubilosa esperança, transbordante de gratidão e trepidante expectativa, formulo a Vossa Santidade, a todos os presentes e à Igreja de Constantinopla os meus votos cordiais e fraternos pela festa do Santo Patrono. E peço um favor: de nos abençoar, a mim e à Igreja de Roma.


Um milénio entre este pedido de bênção e o envio de uma excomunhão papal!
 Com este espírito, não era difícil que, no final da Divina Liturgia, de Domingo, o Patriarca Bartolomeu e o Papa assinassem uma Declaração Comum de empenhamento em superar os obstáculos que dividem estas Igrejas.


Não é uma Declaração para servir as respectivas “sacristias”, mas para colocar as duas Igrejas no horizonte das suas responsabilidades no mundo, escutando as suas vozes: a voz dos pobres, que pedem uma ajuda material necessária em muitas circunstâncias, mas sobretudo que os ajudemos a defender a sua dignidade de pessoas humanas e a lutar contra as causas estruturais da pobreza; a voz das vítimas dos conflitos, em diversas partes do mundo - conflitos, muitas vezes entre grupos religiosos; a voz dos jovens, que vivem sem esperança, dominados pelo desânimo e resignação e que vão buscar a alegria apenas à posse de bens materiais e na satisfação das emoções do momento. Devemos encorajar as multidões de jovens, ortodoxos, católicos e protestantes, que se reúnem em Taizé, apressando o momento da unidade de todos.


Na Catedral Católica, o Papa sublinhou a nossa permanente tentação de resistir ao Espírito Santo, porque ele perturba, revolve, faz caminhar e incita a Igreja a avançar. É sempre mais fácil e confortável acomodarmo-nos nas posições estáticas e inalteradas. Na realidade, a Igreja mostra-se fiel ao Espírito Santo, quando desiste de o regular e domesticar e afasta a tentação de só olhar para si própria. Nós, cristãos, tornamo-nos autênticos discípulos missionários, capazes de interpelar as consciências, se abandonarmos um estilo defensivo para nos deixamos conduzir pelo Espírito. Ele é frescura, criatividade, novidade.


O diagnóstico das 15 doenças do Vaticano só pode vir de quem se incomoda e não se acomoda. Bom Ano!

Público, 28.12.2014

21 dezembro 2014

Quantos Cristos Ressuscitaram (1)

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Nas crónicas de Natal, durante vários anos, preocupei-me, com questões de ordem histórica e teológica, levantadas pelo género literário dos chamados “Evangelhos da Infância”. Esses belos tecidos simbólicos, anunciando o reinado do Espirito de Cristo – recusa do mundo de senhores e escravos – são mal servidos por uma leitura estéril de biologia milagrosa.
Este ano, opto pela peregrinação ecuménica do Papa Francisco à Turquia, fundamental para o renascimento das Igrejas. Selecciono, apenas, duas respostas descontraídas a perguntas dos jornalistas, no voo de regresso [1]. Voltarei, em breve, a outros aspectos.
O Papa Bergoglio tinha afirmado que, para chegar à suspirada plenitude da unidade, “a Igreja católica não tem intenção de impor qualquer exigência”. Daí a questão: “estaria a referir-se ao Primado (do Bispo de Roma)?
Resposta: A questão do Primado não é uma exigência; é um acordo porque também os ortodoxos o desejam. É um acordo para encontrar uma modalidade que seja mais conforme com a dos primeiros séculos. Li, uma vez, algo que me fez pensar – um parêntesis - aquilo que sinto de mais profundo acerca deste caminho da unidade está na homilia que fiz, ontem, sobre o Espírito Santo. Li, com efeito, que só o caminho do Espírito Santo é caminho certo, porque Ele é surpresa. Ele mostrar-nos-á onde está o ponto decisivo. Ele é criativo…
Talvez isto seja uma autocrítica, mas corresponde, mais ou menos, ao que eu disse nas congregações gerais, antes do Conclave, o problema está no seguinte: a Igreja tem o defeito, o hábito pecador, de olhar demasiado para si mesma, como se imaginasse que possui luz própria. Mas, como sabem, a Igreja não tem luz própria. Deve voltar-se para Jesus Cristo!
 À Igreja, os primeiros Padres chamavam-lhe mysterium lunae, o mistério da lua, porquê? Porque dá luz, mas não tem luz própria; é a que lhe vem do sol. E, quando a Igreja olha demasiado para si mesma, aparecem as divisões. Foi o que sucedeu depois do primeiro milénio. Hoje, à mesa, falávamos do momento, de uma terra – não me lembro qual – em que um cardeal foi comunicar a excomunhão do Papa ao Patriarca (ortodoxo). Naquele momento, a Igreja olhou para si mesma; não estava voltada para Cristo. Creio que todos estes problemas que surgem entre nós, entre os cristãos – falo pelo menos da nossa Igreja católica – surgem quando ela olha para si mesma: torna-se auto-referencial.
Hoje, Bartolomeu usou uma palavra, não foi «auto-referencial», mas era muito semelhante, uma palavra muito bela… Agora não me recordo, mas era muito bela, muito bela [o termo na versão italiana é introversão].
Eles aceitam o Primado [do Bispo de Roma]. Hoje, na Ladainha, rezaram pelo «Pastor e Primaz». Como diziam? «Aquele que preside…». Reconhecem-no; disseram-no, hoje, na minha frente. Mas, quanto à forma do Primado temos de ir um pouco ao primeiro milénio para nos inspirarmos. Eu não digo que a Igreja errou, não. Percorreu a sua estrada histórica. Mas, agora, a estrada histórica da Igreja é aquela que pediu João Paulo II: «Ajudai-me a encontrar um ponto de acordo à luz do primeiro milénio».
Este é o ponto-chave. Quando se fixa em si mesma, a Igreja renuncia a ser Igreja para ser uma ONG teológica.
2. Uma jornalista interpelou-o “acerca da histórica inclinação” que ontem o Papa Francisco tinha feito diante do Patriarca de Constantinopla: como pensa agora enfrentar a crítica  de quem talvez não entenda estes gestos de abertura?  
Resposta: Atrevo-me a dizer que não se trata de um problema só nosso; é também um problema dos ortodoxos. Eles têm o problema de alguns monges, de alguns mosteiros que estão nessa estrada. Por exemplo, há um problema que se discute desde os tempos de Paulo VI: é a data da Páscoa. E não nos pomos de acordo! Mas porquê? Porque, se a fizéssemos na data da primeira lua depois do 14 de Nisan, com o avanço dos anos, correríamos o risco – os nossos bisnetos – de ter de a celebrar em Agosto. E devemos procurar… Paulo VI propôs uma data fixa concordada, um domingo de Abril.
3. Bartolomeu foi corajoso, sublinhou o Papa. Por exemplo, em dois casos, recordo um, mas há outro. Na Finlândia, ele disse à pequena comunidade ortodoxa: festejai a Páscoa com os luteranos, na data dos luteranos, para que num país de minoria cristã não haja duas Páscoas. E o mesmo problema vivem os orientais católicos. Ouvi esta, uma vez, à mesa na Via della Scrofa: preparava-se a Páscoa na Igreja católica e estava presente um oriental católico que dizia: «Ah, não! O nosso Cristo ressuscita um mês mais tarde! O teu Cristo ressuscita hoje?» O outro observou: O teu Cristo é o meu Cristo.
A data da Páscoa é importante. Há resistência a isto por parte deles e nossa. Quanto a estes grupos conservadores, devemos ser respeitosos, sem nos cansarmos de explicar, catequizar, dialogar, sem insultar, sem os denegrir nem criticar porque tu não podes arrumar uma pessoa dizendo: «este é um conservador». Não. Este é tão filho de Deus como eu. Mas convidemo-lo: vem cá, falemos! Se não quer falar é um problema dele, mas eu respeito-o. Paciência, mansidão e diálogo.
Boas festas

Público, 21.12.2014


[1] Cf. Seguirei, de perto, a narrativa do L’Osservatore Romano, 04.012.2014

14 dezembro 2014

A política do Natal

Frei Bento Domingues, o.p.

1. A conversa de taxista sobre política e políticos generalizou-se. Faz deles os responsáveis por todos os males. Está decretado que são e serão todos iguais.
 Pela ausência de pensamento crítico, esta atitude é preguiçosa e perigosa. Certeiro é o aforismo: as mãos mais puras são as de quem as não tem. Não querer nada com a política é esquecer que ela, desde que nascemos até ao cemitério, nunca nos larga.
Descobri há 60 anos, com algum espanto, a apologia da política, precisamente ao começar o estudo da obra filosófica de S. Tomás de Aquino. No proémio do seu comentário à Política de Aristóteles observa: se a ciência mais importante é aquela que estuda o que há de mais nobre e mais perfeito, é necessário que seja a política a principal das ciências práticas e a matriz arquitectónica de todas as outras.
S. Tomás distinguia a política da religião, mas não a separava da ética, da “vida boa”, fruto da virtude e que exige instituições justas. Ele coordenava a ética e a política mediante a noção de justiça geral orientada para o bem comum, de todos e cada um. Ela exige a virtude da prudência no governante - virtude do recto agir nas decisões concretas – a qual também não dispensa nenhum cidadão.
Tudo isto exige mais do que os princípios comuns da chamada “lei da natureza”, pois eles não podem ser aplicados do mesmo modo a todos, devido à grande variedade das realidades humanas. A diversidade da lei positiva é exigida pela diversidade dos povos[1].
 Em geral, com um misto de medo e desprezo, os cristãos - de modo especial os católicos - inclinam-se para a passividade política.
O Papa Francisco, no seu programa pastoral, ”A Alegria do Evangelho” (n. 205), assume uma posição completamente diferente. Depois de avisar que não podemos confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado, pede a Deus “que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo, que vise efectivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos convencer que a caridade é o princípio, não só das micro-relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações, como relacionamentos sociais, económicos, políticos”.
Depois desta referência teológica, aponta, na mesma passagem, indicações para uma espiritualidade da militância política.
 
2. A fraqueza, a insignificância, a esterilidade actual da Europa resulta, em parte, de ter esquecido o sobressalto da sua alma, antiga e moderna, depois da vergonha de duas guerras loucas.         
Desaparecidas as grandes figuras inspiradoras do projecto europeu, entramos numa época de vazio, de imaginações adormecidas. Não se trata de propor qualquer “partido católico”, mas de perguntar, como Bergoglio fez perante os membros do Conselho da Europa: “Onde está o teu vigor? Onde está aquela tensão ideal que animou e fez grande a tua história? Onde está o teu espírito de curiosidade e empreendimento? Onde está a tua sede de verdade, que comunicaste, com paixão, até agora?”
É da resposta a estas perguntas, segundo o Papa, que dependerá o futuro do continente.
Para renovar a sua fisionomia é preciso retomar a nossa história política e espiritual, curada das suas patologias, em diálogo activo com todos os povos e culturas, presentes entre nós e atirados para a clamorosa injustiça dos “guetos”.
Hoje, a promoção dos direitos humanos ocupa um papel central no empenho da União Europeia. Visa promover a dignidade da pessoa, tanto no âmbito interno como nas relações com os outros países. Trata-se de um compromisso importante e admirável, porque persistem ainda muitas situações onde os seres humanos são tratados como objectos, dos quais se pode programar a concepção, a configuração e a utilidade, podendo depois ser dispensados, quando já não servem por se terem tornado frágeis, doentes ou velhos[2]

3. Durante muito tempo, as questões mais fracturantes da moral familiar foram silenciadas. Depois da Humanae Vitae, reduziam-se às questões dos anti-conceptivos. Antes, durante e depois da III Assembleia do Sínodo dos Bispos[3], os desafios pastorais exigiram o fim dos tabus, mas inflacionaram tanto o discurso que já não se aguenta. O Papa, na mensagem aos participantes no Festival da Família (05.12.2014), optou por mudar de registo. É a própria família que se deve tornar, no plano social, cultural e político, protagonista dos seus interesses que são os do futuro da humanidade.
A família, tendo como centro o bem de cada uma das pessoas, não é um apêndice da política, nem apenas o seu objecto. As famílias têm de se tornar protagonistas das políticas desejáveis para todos.
Não temos de resolver os problemas da Sagrada Família, de há dois mil anos. Mas hoje, que desafios representa o Natal para a família humana?

Público, 14.12.2014


[1] Summa theol. I-II, q.95 a. 2. ad 3.
[2] Entre dignidade e transcendência, Parlamento Europeu, 25.11.2014
[3] III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, Paulinas, 2014

07 dezembro 2014

O clericalismo é o vazio da profecia


Frei Bento Domingues, O.P.

1. Não gosto muito dos livros de homilias. Extinta a luz e o calor da comunicação directa – quando existem – os textos tornam-se mortiços, sem graça. É verdade que aguentei algumas pregações quase ininteligíveis. Eram peças abruptas de teologia literária, em torrentes metafóricas, pouco adequadas às exigências da oralidade, mas que ressuscitavam com uma força enorme quando saboreadas na leitura. Era, aliás, o estilo de Frei José Augusto Mourão, O. P..

Há missas de ritual perfeito que são também um perfeito aborrecimento. Algumas são salvas pela qualidade da música, outras pela acutilância das homilias. Raras são as celebrações que combinam todos os elementos da encenação simbólica da graça, em consonância com a experiência de vida quotidiana de uma assembleia cristã.

Jorge Bergoglio - não o “Santo Padre”, mas o pecador confesso - é um caso raro. Incarna uma novíssima cultura da graça da pregação tocando a sensibilidade, a mente e o coração das pessoas de diferentes povos, continentes e culturas, segundo inumeráveis testemunhos.

      As Ed. Paulinas acabam de publicar, em Portugal, as homilias que ele pregou na Missa matutina da casa Santa Marta[i]. O breve prefácio de Federico Lombardi explica suficientemente o seu percurso até à sua divulgação. As 27 páginas pretensiosas de A. Spadaro são inteiramente dispensáveis.

       Receio que a avalanche de livros desta época do ano - até de livros sobre o Papa Francisco – não ajude a reparar no que devia ser considerado como o grande acontecimento cultural do ano. O próprio estilo familiar não atenua, reforça esta convicção. Se os bispos, os padres, os membros dos diversos movimentos cristãos quiserem, dispõem, agora, de um método muito especial para uma nova evangelização da Igreja. Diria que estas homilias são muito mais do que a concretização dos seus grandes textos programáticos, já publicados[ii]. Praticam o que estes propõem.

    Divulga-se que o Papa desconhece as regras do funcionamento da economia, ignorando que é a própria distribuição desigual da riqueza que se converte no motor do avanço económico e da civilização. O mais urgente, dizem, é desmantelar o Estado Social, erradicar a conversa sobre o amor preferencial pelos pobres e ver o mundo a partir dos que têm sucesso. A mentalidade católica, sobre o enriquecimento, continua a ser a fonte da pobreza dos países do Sul. 

2. O que irrita, nos discursos, nas tomadas de posição, nas atitudes e gestos de Bergoglio, é a dificuldade em o classificar sob ponto de vista de um agrupamento ideológico ou partidário e de o arrumar numa corrente espiritual exclusivista. A sua espantosa liberdade é o tecido das Homilias agora publicadas. Não se repetem nem servem para ser repetidas. Valem como inspiração de criatividade na Igreja e na sociedade. Não são feitas para distribuir doses de doutrina sobre a verdadeira fé da Igreja, nem de receitas repetidas sobre a moral católica. Também não são, apenas, um novo estilo com ares de modernidade. São uma nova cultura. Este Papa não é escravo do passado, não fica cego pela última moda, nem remete tudo para o futuro. Pratica o discernimento permanente nestas três dimensões do tempo. 

Dedicou uma das homilias a uma das suas convicções fundamentais: sem profecia, cai-se no clericalismo. O profeta é o homem de olhar penetrante que escuta a Palavra de Deus. Nem sempre é bem recebido. O próprio Jesus diz aos fariseus que os seus pais mataram os profetas, porque estes diziam coisas desagradáveis, coisas que os molestavam. 

Quando não há profecia, isto é, clarividência, a força recai toda sobre a lei. É a vitória do legalismo. No Evangelho, os sacerdotes foram ter com Jesus para lhe pedirem o registo da legalidade: Com que autoridade fazes tudo isto? Nós somos os donos do Templo. Não tinham olhos penetrantes nem ouvidos para escutar a Palavra de Deus. Só tinham a autoridade. Quando não há profecia no Povo de Deus, o vazio por ela deixado é ocupado pelo clericalismo: é precisamente esse clericalismo que interroga a autoridade de Jesus. Para o clericalismo não há passado nem futuro. Manda o que é legal e que se perpetue. 

Reproduzimos a prece do Papa Francisco nesta homilia:

Que a nossa oração, nestes dias em que nos preparamos para o Natal, seja “Senhor, que não faltem profetas ao teu Povo! Todos nós, baptizados, somos profetas. Que não esqueçamos a Tua promessa! Que não nos cansemos de seguir em frente! Que não nos fechemos nas legalidades que fecham as portas! Senhor, liberta o teu povo do espírito de clericalismo e ajuda-o com o espírito de profecia[iii].”

Na Turquia, Bergoglio lembrou que todos os dirigentes muçulmanos do mundo, políticos, religiosos e universitários se deviam pronunciar, claramente, contra a violência que afecta o Islão.

Público, 07.12.2014


[i] A verdade é um encontro, Homilias em Santa Marta, Paulinas, 2014
[ii] Francisco, Papa, A Alegria do Evangelho, Difusora Bíblica, 2013; Discurso do Papa Francisco aos participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 27 a 29.10.2014; Discurso ao Concelho de Justiça e Paz sobre o Estado Social, 2.10.2014; Discurso no Parlamento Europeu, 20.11.2014
[iii] Cf. Homilias em Santa Marta (pp 428-430)

30 novembro 2014

Melhor do que a esperança é ser esperado

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Frei Bento Domingues, O. P.

1. Hoje é o primeiro Domingo do Advento. Mudou o cenário exterior das celebrações litúrgicas, quanto a paramentos, velas, textos e músicas. Estas modificações de ornamento só merecem atenção se exprimirem a urgência de um novo impulso na alma profunda da Igreja, isto é, dos cristãos, assim como nas reformas das instituições mais resistentes à mudança.
Tornou-se convencional dizer que o Advento convida à vigilância e à meditação, para entrar no misterioso sentido do tempo. Não apenas o que é medido pelo relógio e desfolhado nos calendários, no fluxo cósmico das estações, no ritmo biológico que vai dizendo o nosso desgaste inexorável. No entanto, como diz S. Paulo, não nos deixemos abater. Pelo contrário, embora o nosso aspecto exterior vá caminhando para a sua ruína, a nossa vida interior renova-se dia a dia (…) pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno (2 Co 4, 16-18).
A pergunta mais importante desta quadra litúrgica não é sobre as nossas experiências de outono da vida, mais chuvoso ou mais ameno. Poderia talvez ser formulada assim: qual é a graça regeneradora, para não aceitarmos - usando as palavras do Papa Francisco – que milhões de seres humanos, nossos irmãos, vegetem e morram com o estatuto de sobrantes e descartáveis

       2. Para a inteligência bem informada de história e antropologia, de profunda compreensão teológica e espiritual dos paradoxos da celebração do ano litúrgico – com analogias noutras culturas e religiões, de quem vai recebendo e rejeitando certas influências, - recomendo uma obra notável, de dimensões razoáveis, bebida nas melhores fontes e inspirada nos mestres mais inovadores, traduzida do espanhol e, inserida na colecção coimbrã “Para Viver”[1].
 Este livro, de José Manuel Bernal, não tem nada a ver com a abundante literatura de lugares comuns do ritualismo e do espiritualismo moralista ou das folhinhas e receitas do agrado da ignorância homilética. Pretende contribuir para que os pastores consigam organizar celebrações de qualidade onde seja possível uma profunda experiência do mistério transformante. Espero regressar a esta obra, sobretudo ao capítulo fundamental sobre os rituais sagrados da “regeneração do tempo”.
Falar do Advento é pensar no Natal. A. Cunha de Oliveira[2], sacerdote católico, dispensado do ministério, casado e notável exegeta da Bíblia, publicou uma obra minuciosa, erudita, volumosa, fundamentada e extremamente clara, cuja leitura é indispensável para quantos se interessam pela verdade, pelas lendas e mitos em torno do Natal. Não conheço nada de comparável, em português.    
O Natal significa que no cristianismo a salvação não se atinge pela fuga ou desprezo do mundo, embora seja essa uma das tentações que, periodicamente, o assaltam.
Foi inscrito, pela pena de S. Lucas, no devir da história universal, colocando a figura mítica de Adão como o primeiro antepassado de Jesus Cristo. No impressionante hino cósmico da Carta aos Colossenses, surge como princípio e sentido de todas as realidades, visíveis e invisíveis. No conhecido poema que abre o Evangelho de S. João, o Verbo eterno fez-se carne, fragilidade humana. Numa dramática poesia de S. Paulo (Fl 2, 6-11), Cristo é reconhecido como divino na suprema humilhação da cruz.
Como escreveu E. Schillebeeckx, O.P.[3], a história dos seres humanos é a narrativa de Deus. Fora do mundo não há salvação, neutralizando o nefasto e abusado aforismo: “fora da Igreja não há salvação”.
Recordo-me, como se fosse hoje, do espanto de muitos quando ele surgiu, no congresso internacional de teólogos dominicanos, em Valência (1966), a defender a obrigatória inclusão do mundo na lista dos clássicos “lugares teológicos”. 

3. A virtude do Advento é a esperança. Não pode ser a esperança de que haverá Natal, mas que este produza o renascimento da Igreja e do Mundo. Precisamos de voltar sempre às narrativas de S. Mateus e de S. Lucas chamadas, impropriamente, Evangelhos da Infância. Para o seu estudo remeto para o citado livro de Cunha de Oliveira. Se forem entendidas como lições de pura história ou de biologia, como tantas vezes acontece, fazem-nos perder a esperança de acreditar na verdade mais profunda do Novo Testamento: Jesus Cristo era em tudo igual a nós, excepto no pecado.
Quem melhor escreveu acerca desta virtude do Advento foi o poeta- teólogo, Charles Péguy[4]: O que me espanta, diz Deus, é a esperança./ E disso não me canso./ Essa pequena esperança que parece não ser nada./ (…) Que veio ao mundo no dia de Natal do ano passado./ (…) Ama o que será./ No tempo e na eternidade.
A esperança merece todos os elogios. Sem ela é impossível viver. Mas melhor do que esperar é ter a certeza de que somos desejados e esperados. Afinal é este o evangelho dentro do Evangelho, a célebre parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-31). Deus tem eternas saudades de nós.

Público, 30.11.2014


[1] José Manuel Bernal, O Ano Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001
[2] Natal: Verdade, Lenda, Mito, Instituto Açoriano de Cultura, 2012
[3] L´histoire des hommes, récit de Dieu, Cerf, 1992
[4] Os portais do mistério da segunda virtude, Paulinas, 2013

23 novembro 2014

Que rei é este?


Frei Bento Domingues, O.P.

1. A celebração litúrgica de Cristo Rei foi instituída por Pio XI, em 1925, com as monarquias em crise e as repúblicas em conflito com a Igreja Católica. Tornou-se, depois, a coroa do ano litúrgico que recomeça com o Advento, ritmando o infindável acontecer da graça divina – simbolizado na Liturgia - que atinge todos os tempos e lugares, como fonte de libertação das nossas servidões mentais e afectivas, antigas ou novas, materiais, culturais ou religiosas. Sem um programa libertário, o ciclo litúrgico anual dará a ideia do eterno retorno do mesmo.
Quem, por outro lado, desejar conhecer a história do Santuário Nacional de Cristo Rei, elevado, em Almada, a 113 metros acima do Tejo, pode recorrer às informações do Google. Mas com ou sem esse facilitador, abandone os preconceitos e suba ao miradouro mais abrangente sobre a deslumbrante e inesgotável beleza de Lisboa. Regale os olhos e medite no que o tempo faz às cidades e à nossa vida, entre a ruina e o contínuo renascer. Com passaportes dourados ou não, não deixemos privatizar as cidades de milenares gerações de povos e culturas. Que as mil formas de criatividade as tornem cada vez mais acolhedoras.
A simbólica bíblica de “Cristo Rei” implica a luta contra miragens de grandeza efêmera das dominações imperiais e a redescoberta de uma cidadania de acolhimento e serviço de todos, a começar pelos mais pobres, os sobrantes e descartáveis, na linguagem do Papa Francisco.

2. A escolha dos textos da liturgia deste Domingo é particularmente sugestiva [1] ao centrar-se no final do cap. 25 do Evangelho de S. Mateus, composto por três parábolas, que podem ser lidas em separado. Eu prefiro juntá-las num quadro de oposições paradoxais.
A primeira, muito vizinha da fábula da cigarra e da formiga – a das virgens loucas e das prudentes – retrata um mundo no qual ninguém dá nada a ninguém e a ocasião perdida é irrecuperável. A solidariedade favorece a imprevidência.
A segunda, a parábola dos talentos, parece consagrar a roda da sorte e das desigualdades na distribuição das oportunidades sociais. Quem muito tem, e esperteza, terá cada vez mais; quem tem pouco e calcula com medo de perder, até o pouco que lhe saiu, na arbitrária roleta da sorte, lhe será tirado.  
Moral da história: este mundo é das grandes empresas e dos bons gestores. Com os pequenos não adianta perder tempo; falta-lhes habilidade para sair da cepa torta.
Estas duas parábolas deixam os actores sociais à sua inteira liberdade e premeiam os mais aptos, como manda a lei da selecção natural. Não se entende como é que S. Mateus as deixou entrar no seu Evangelho. Não rimam nada com a mensagem de Cristo. Ao reagir assim, esquecemos a terceira parábola. Parece uma carta fora do baralho e, no entanto, é a que leva a tribunal as duas anteriores. Nessas combate-se a imprevidência e o desaproveitamento dos recursos e das capacidades de os fazer render. Parecem mais perto do capitalismo selvagem do que do Estado Social. De facto, falam de outra coisa, daquilo que o Papa Francisco não se cansa de lembrar: os sobrantes, os descartáveis. Estes não serão seres humanos? Não serão nossos irmãos?
É precisamente destes que trata a terceira e a mais solene das parábolas: o Senhor da História universal chama a contas o mundo inteiro. O que divide ou separa as pessoas e as julga é a atitude concreta que tiveram ou têm em relação àqueles que nada podem fazer por si mesmos.
A radicalidade religiosa da parábola e o último teste do sentido da vida, presente no desenrolar do mundo, espanta tanto os que procedem bem como os que procedem mal. Na hora da sentença, o juíz desta parábola identifica-se com aqueles que foram socorridos ou esquecidos: tive fome e deste-me de comer (ou não), estive doente e foste visitar-me (ou não) …
Ninguém se apercebeu que, no dia-a-dia, no serviço que prestou ou não, estava a tocar no que há de mais Absoluto, estava a servir ou a trair o próprio Deus. A causa de Deus e a causa do ser humano é a mesma. O segundo mandamento não se distingue do primeiro, um nunca anda sem o outro, haja ou não consciência disso.
Que rei é este que esvazia a solenidade divina e exalta a condição humana?

3. Conhecidos jornalistas alemães [2] do âmbito económico, não encontraram nenhuma alegria na Exortação Apostólica, Evangellii Gaudium, do Papa Francisco. Submeteram-na a fortes críticas e atribuem-lhe uma grande animosidade contra a economia de mercado e o capitalismo. Se Bergoglio quer diálogo é preciso contradizê-lo. O conjunto desses textos tenta arrasar as observações que o Papa faz sobre economia que mata e os remédios que aponta para combater a pobreza.
Pode ser que tenham razão, mas lembrei-me do Evangelho que inspira o novo Papa, mas que não beneficia muito os que o atacam: Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará outro ou se apegará a um e desprezará a outro. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro. Os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e zombavam dele. (Lc 16, 13-14)

Público, 23.11.2014



[1] Ez 34, 11-17; Sal 22; 1Cor.15 20-27; Mt.25,31-46
[2] Cf. Friedhelm Hengsbach, El Papa se equivoca- El Papa tiene razón, Selecciones de Teología, 212, 2014, pg 253-260

16 novembro 2014

Regresso à Barbárie?

Frei Bento Domingues, O. P.                                     

1. Voltaram, há dias, a interrogar-me, em tom de exame e desafio: se existe um só Deus – segundo o credo monoteísta – porque não se unem numa mesma religião judeus, cristãos e muçulmanos? Presume-se que Deus não possa estar em concorrência consigo mesmo.  

Como qualquer cristão, tenho de estar pronto a dar razão da minha esperança, com mansidão e sem arrogância, como recomendou S. Pedro (1Pr 3,15), mas não estou obrigado a ser ingénuo. A pergunta não abriga apenas pouca informação acerca da longa história dos chamados monoteísmos. Recomendo, no entanto, La bibliotheque de Dieu: Coran Evangile, Torah [1]. É uma biblioteca escrita e comentada por humanos durante muitos séculos. Nem sempre tem ajudado a pensar e a viver a aventura humana com esperança. A sua leitura fundamentalista foi e continua a ser usada, com demasiada frequência, para matar em nome de Deus. A teologia do diabo exige o recurso permanente ao poder económico, político e religioso (Lc.4,1-13). Os seres humanos sabem que sem poder bélico e o seu comércio, as guerras perderiam o encanto das conquistas. 

Dito isto, parece-me um abuso responsabilizar a divindade pelas configurações sociais das religiões, mesmo quando algumas gostem de exibir essa pretensão. Deus não é hindu, judeu, budista, cristão, maometano, baha’i, etc.. Se fosse Ele a ditar os escritos fundadores dessas religiões estaria, de facto, em concorrência consigo mesmo.

As explicações sobre a origem da religião estão confrontadas com um facto evidente: tanto o sentimento religioso como as suas múltiplas expressões têm um passado e um presente nos diversos povos e culturas. Podemos estudar as suas metamorfoses, recomposições e migrações, com ritmos diferentes de continente para continente, de país para país e mesmo dentro da mesma área cultural. Apesar de todos os fluxos de ateísmo, agnosticismo e indiferença religiosa, as previsões do seu apagamento definitivo estão cansadas.

Aquelas religiões que pretendem fundar-se em revelações divinas - e procuram justificá-las a partir dos seus textos fundadores - não têm a vida mais facilitada do que aquelas que as reduzem a fenómenos humanos de relação com o Transcendente. Os dois caminhos não se excluem.

2. Os seres humanos vivem no labirinto dos desejos, conscientes ou inconscientes, confrontados com enigmas e mistérios quer da natureza quer da sociedade. Como não se resignam à simplicidade de animais domesticados, têm de procurar o sentido e as formas culturais de viver como humanos, isto é, com dignidade e em instituições justas. A atitude religiosa desenvolve-se numa atmosfera de atenção “à importância misteriosa de existir” (F. Pessoa) e à necessidade de ter um eixo no qual tudo se religa.

       O pluralismo religioso é irredutível, mas se uma religião tiver a pretensão de ser a única verdadeira, divinamente garantida e que fora dela não há salvação, ficam todas sob ameaça ideológica de perseguição religiosa. Consentir na liberdade religiosa seria dar espaço ao erro e à sua nefasta difusão. O raciocínio é simples: apenas a verdade tem direitos; a nossa religião é a única verdadeira; as outras vivem e fazem viver no erro, logo não têm direito a existir.

Na Igreja Católica também se alimentou essa posição assassina ao ignorar que só as pessoas são sujeito de direitos. A Declaração “Dignitatis Humanae” sobre a liberdade religiosa só foi assinada, depois de várias formulações, no dia 7 de Dezembro de 1965, isto é, na conclusão do Concílio Vaticano II! Hoje, é a nossa glória e uma responsabilidade: fora do diálogo inter-religioso não há salvação.
 
Diálogo não pode ser um faz de conta. É um processo no qual os parceiros vão mudando, passando da hostilidade e da indiferença à mútua hospitalidade. Para derrubar as muralhas construídas ao longo dos séculos e construir pontes entre as religiões é preciso destruir os muros edificados nas mentalidades e nos afectos dos crentes. 

3. Paulo VI, na mensagem de Paz para 1971, não podia ser mais incisivo – repete, com uma voz nova que sai da nossa consciência civil, a declaração dos direitos humanos: “todos os homens nascem livres e iguais na dignidade e nos direitos, são todos dotados de razão e de consciência e devem comportar-se, uns com os outros, como irmãos”. A doutrina da civilização chegou até aqui. Não voltemos para trás.  

Esta declaração generosa dos Estados, depois de duas guerras estúpidas e monstruosas, ainda não era a voz de todos os povos, mas era o eco do Evangelho: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8) e com o método de aplicação da regra de oiro: “faz aos outros o que gostarias que os outros te fizessem” (Mt 7, 12). 

Se a doutrina da civilização chegou até aqui, como afirma Paulo VI, voltar atrás não seria regressar à barbárie?  

Público, 16.11.2014


[1] Cf. ver. “Lumière & Vie”, nº 255, 2002

09 novembro 2014

Este Papa é incorrigível

 Frei Bento Domingues, O. P.

1. Eu deveria observar algum tempo de jejum em relação ao estilo, aos temas e aos conteúdos das intervenções pastorais de Mario Bergoglio, mas não me apetece nada precipitar a Quaresma.

Não é, todavia, para o defender ou ceder à desnecessária apologia de alguém que precisa mais de seguidores do que de admiradores. Conheço a oração, “Senhor, ilumina-o ou elimina-o”, as acusações de ser “comunista” e de usar os métodos do “prec” na reforma da cúria, de abusar da noção de hierarquia das verdades e de estar a perder, por palavras, gestos e atitudes, a tradicional dignidade de um “verdadeiro” Santo Padre. Há quem discuta a legitimidade da sua eleição e não só.

Um liberal espanhol, Miguel Angel Belloso, publicou, no DN (31/10/14), um artigo intitulado “O diabo também mora no Vaticano”. Transcrevo alguns parágrafos significativos para não atraiçoar o pensamento do autor: “Depois dos felizes papados de João Paulo II e de Bento XVI, reencontrados com a economia de mercado e sensíveis ao efeito terapêutico do capitalismo sobre a pobreza, o Vaticano viu-se sacudido pelo vendaval Francisco”. (…) “Infelizmente o novo Papa não aprendeu nada [com a experiência Argentina], vem completamente contaminado de populismo e embebido da retórica infeliz da doutrina social da Igreja, para a qual os excessos e fracassos do socialismo são a consequência de erros bem-intencionados enquanto a fé no mercado é a expressão de algo parecido com um cataclismo moral”. (…) “Desde a sua primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium, até às suas reiteradas filípicas nas viagens apostólicas - a mais recente foi à Coreia do Sul -, Francisco não perdeu a oportunidade de fustigar os liberais, caricaturando o mercado como uma tirania em que vigora a lei do mais forte, na qual o ser humano é considerado como um bem de consumo e em que a ganância de poucos se satisfaz reduzindo o bem-estar dos demais. Estas premissas são claramente erros de vulto, demonstram uma ignorância elementar sobre o funcionamento da economia e um desprezo tremendo pelos resultados originados pelo sistema de mercado no progresso material dos povos”.

2. Se o autor já conhecesse o discurso do Papa aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares, reunido no Vaticano (27-29/10/14), ficaria arrepiado com as suas ousadias: “Este encontro de Movimentos Populares é um sinal, é um grande sinal: viestes colocar na presença de Deus, da Igreja, dos povos, uma realidade muitas vezes silenciada. Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela! Não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou pretextos. Também não estão à espera, de braços cruzados, da ajuda de ONG, de planos assistenciais ou de soluções que nunca chegam ou, se chegam, destinam-se a anestesiar ou domesticar. (…) Os pobres já não estão à espera, querem ser protagonistas: organizam-se, estudam, trabalham, reivindicam e, sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido ou, pelo menos, tem muita vontade de esquecer. 

“Solidariedade (…) é pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. Também é lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, de terra e de moradia, a negação dos direitos sociais e laborais. É enfrentar os efeitos destrutivos do Império do dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de vós sofreis e que todos somos chamados a transformar. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história e é isso que os movimentos populares fazem. Este nosso encontro não responde a uma ideologia. Vós não trabalhais com ideias. Trabalhais com realidades como as que eu mencionei e muitas outras que me contaram… têm os pés no barro e as mãos na carne. Têm cheiro de bairro, de povo, de luta! Queremos que se ouça a sua voz, que, em geral, se escuta pouco. Talvez porque desagrada, talvez porque o seu grito incomoda, talvez porque se tem medo da mudança que reivindicam, mas, sem a sua presença, sem ir realmente às periferias, as boas propostas e projetos que frequentemente ouvimos nas conferências internacionais ficam no reino da ideia”.

3. Pelo que se pode observar, nesse longo discurso, os ataques e as farpas que lhe chegam do mundo dos poderes económicos, políticos e religiosos, longe de o intimidar só lhe mostram o que ainda falta fazer por todo o género de excluídos.

Nesse discurso, ao deparar com a expressão, “Digamos juntos”, pensei que estava a iniciar uma prece comunitária. E estava. Só não era a mais habitual na boca de um Papa: “Digamos juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”.

Ao ritmar “terra, teto e trabalho”, no primeiro Encontro Mundial de Movimentos Populares, a ladainha do Papa, de facto, não é a de um ideólogo do capitalismo.

Público, 9. Novembro. 2014

02 novembro 2014

Eu já não acredito no Papa Francisco (2)

Frei Bento Domingues, O.P.

1. O título da crónica do Domingo passado – Eu já não acredito no Papa Francisco - foi censurado por uma razão óbvia: o título tem de exprimir o conteúdo do texto. Ora, o meu artigo era um elogio do pontificado do papa Bergoglio e uma convocatória para não o deixarmos só, no momento em que é acusado de instalar o “PREC”, na Cúria Romana. Texto e título estão em mútua oposição. Aceito e agradeço o reparo.

Além disso, o emprego corrente da expressão - “eu já não acredito” – revela um desapontamento, uma decepção com o Pontífice romano, observável em diferentes quadrantes: para uns, ele já foi longe demais; para outros, ao ser demorado na reforma da cúria, será ela a tornar impossível continuar a obra começada. Ao espelhar esta situação, visava algo muito diferente que insinuei, na última linha, sem mais explicações.

Vamos, então, à substância. Não sou católico por causa do Papa Francisco, cujo projecto e práticas me dão muita alegria, não podendo dizer o mesmo de todos os que conheci, mas nunca poderei esquecer a minha dívida a João XXIII.

Causam-me sempre bastante tristeza os desabafos das pessoas que deixam de “ser católicas” devido a certas posições da hierarquia eclesiástica. Nessas alturas, lembro-me da reacção do Padre Chenu, quando, em meados do século passado, louvaram a sua “obediência”, em vez de revolta contra as condenações romanas a que fora submetido. Escreveu um texto para dizer que não se tratava de obediência: foi e é a fé sobrenatural em Jesus Cristo, que recebi na Igreja, mas que não é propriedade de nenhuma instituição humana ou religiosa, que me sustenta.

Chenu, grande medievalista e renovador do conhecimento histórico de Tomás de Aquino, lembrava que, para este teólogo, o terminal do acto de fé não são os enunciados do Credo, mas a misteriosa realidade divina. Estes são apenas mediações para o encontro com a Verdade (II-II, q.1.a.2 ad 2). Para S. Tomás, a fé teologal refere-se à própria realidade de Deus e não a uma criatura, como por exemplo a Igreja. Por isso, no Credo, quando se diz creio na Santa Igreja Católica, esta expressão deve ser entendida como referida ao Espírito Santo. Daí que seria preferível dizer simplesmente: creio no Espírito Santo que santifica a Igreja (II-II, q.1.a.9).

Trazer para aqui estas subtilezas parece uma tentativa para ignorar os debates actuais em torno da fé cristã e dos seus problemas, num contexto que oscila entre o ateísmo, o fideísmo e as espiritualidades à la carte, mais ou menos bem adocicadas.

2. A seguir à 2ª Guerra Mundial, certas correntes teológicas tentaram responder à seguinte questão: que sentido tem, para a construção do Reino de Deus, o trabalho e o lazer em que gastamos a maior parte do nosso tempo? Desenvolvia-se, então, a teologia das realidades terrestres e do sentido da construção da História Humana. Desejava-se viver o Cristo todo na vida toda. Os próprios padres deixavam a sacristia e iam para as fábricas aprender o que custava a vida dos trabalhadores. Dizia-se que estava mal, porque mãos consagradas e dedicadas a levantar a Hóstia na missa não se podiam manchar no óleo e na ferrugem. Nenhum trabalho, porém, era incompatível com as mãos daqueles e daquelas que o Baptismo consagrou. A “teologia do laicado” foi superando os limites da teologia da Acção Católica. O Vaticano II, na Gaudium et Spes, assumiu as dimensões incarnacionistas da fé cristã: um futuro de justiça e de paz para todos não é uma loucura. É uma tarefa! A fé é uma esperança que revela uma dimensão que a razão esquece e reprime: o horizonte dos seres humanos não se limita à sua condição mortal. O futuro não é apenas o resultado das nossas acções e do sacrifício de gerações inteiras, para que aconteça um mundo em que se possa viver. Este futuro seria um engano para todas aquelas e aqueles que foram escravos da construção daquilo que nunca poderão ver nem gozar. Só a memória infinita do Amor por cada ser humano pode vencer a vala comum.

3. No dia consagrado a não esquecer aqueles que já encontraram a Casa da Alegria, lembro o poema de Frei J. Augusto Mourão, escrito para uma música muito bela que se canta no Convento de S. Domingos:

  Não pode a morte reter-me na cruz. Não pode o mundo arrancar-me à raíz. Ao pé de Deus hei-de sempre viver. Com Deus cheguei e com Ele vou partir.
  Não poderá corromper-se a alegria. Não pode o fogo extinguir-se no céu. Meu ser demanda a morada do Deus que guarda os nomes no livro da vida.
  Não pode a morte apagar o desejo de ver a Deus face a face e viver. A Deus busquei toda a vida e vivi de acreditar no infinito da vida. Não nos reduz o escuro da noite.
  Não pode o amor esquecer o que o altera. Já ouço a voz do Senhor, Deus dos vivos. Já ouço a voz do amigo que vem.
  Não pode o mar esquecer o que o salga. Não pode a areia esquecer-se do mar.
  Meu Deus, meu Deus, vem buscar-me ao deserto. Que em tuas mãos entreguei a minha sede. A Tua vida me toma e transporta. Teu sangue inunda meu corpo de paz. Eu vejo as mãos do Senhor glorioso. Nas minhas mãos a memória de Deus.
  A Ti, Senhor, meus desejos regressam. Findo o andar, disponíveis as mãos. Abre meu corpo ao devir que não sei. Eu chamo a esperança pelo nome de Deus.

Público, 02.11.2014

26 outubro 2014

Eu já não acredito no Papa Francisco

Frei Bento Domingues, O.P.


1. O Domingo passado não foi de grande festa para toda a Igreja. Está em curso um Sínodo dos Bispos no qual foi possível discutir temas considerados incómodos, como o do acolhimento eclesial dos homossexuais e dos divorciados recasados. Do relatório final da primeira etapa deste Encontro sobre a família esperava-se mais e melhor. Por outro lado, a beatificação do papa Paulo VI, responsável da Humanae Vitae (HV), - adiando questões que há muito deveriam estar superadas – também não foi um sinal muito encorajador. Mais do mesmo.

Não vale a pena dizer que isso não tem importância. Cada um ficará onde já estava. Os casais que se identificam com a doutrina da HV e a da Familiaris Consortio (J. Paulo II) suspenderam os seus receios. Quem aguardava, para já, uma alteração dessas posições, terá de esperar por melhores dias. O Sínodo sobre a família não está encerrado. Cada dia que passa, a realidade vai mostrando que a “Pastoral Familiar” não é a mais adequada, pois se “os pastores” conhecessem e escutassem as suas “ovelhas” não se contentariam apenas com as do rebanho privilegiado.

O Papa Francisco lançou uma esperança e, na sua prática, mostra-se fiel à Alegria do Evangelho. No entanto, foi-se apercebendo de que os apelos feitos à hierarquia da Igreja não têm tido os frutos desejáveis. Sentiu como estavam activos, na preparação e realização do Sínodo, os funcionários da indústria da conserva eclesiástica, ao ponto de ter de afastar o cardeal Raymond Burke, presidente do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica (Supremum Tribunal Signaturae Apostolicae).

Mario Bergoglio surgiu com um programa de reforma do papado e da cúria romana para lançar a Igreja como uma realidade evangelizadora, em todas as suas instâncias, vendo o mundo e actuando a partir das periferias. Trabalha por uma Igreja, toda ela, em movimento. Seria um desastre se as conferências episcopais, as dioceses, as paróquias, os movimentos, as congregações religiosas se comportassem como meros observadores das iniciativas, das tomadas de posição, das intervenções do Papa. É a forma mais requintada de o atraiçoar. Mas, enquanto uns ficam parados, outros atiram-lhe pedregulhos para o caminho.

Não podemos deixar este Papa sozinho e comportarmo-nos apenas como espectadores benévolos e simpatizantes das suas atitudes.

2. Seria péssimo que agora nos deixássemos enredar em discussões que se arrastam desde a HV, desde 1968. O mundo não pára e o próprio passado, se não for congelado, está sempre em devir. Um dos méritos deste papado tem consistido, precisamente, em descongelar doutrinas, atitudes, normas consideradas irrevogáveis, definitivas, situadas fora do tempo e valendo para todo o sempre. Entrar numa casuística de moral sexual, dentro de um universo humano isolado por uma concepção de modelos imutáveis de família, é o caminho do farisaísmo.

Ganharíamos muito se lêssemos e interpretássemos as narrativas dos Evangelhos como belas e eficazes peças de teatro. Têm acção, controvérsias, actores e existem para colocar uma assembleia em movimento. A nossa tentação é a de extrair desses textos apenas princípios doutrinais, sentenças e normas de conduta, reduzindo tudo a lições de moral. As reduções de Jesus eram de outro tipo.

3. Neste Domingo, passada a discussão sobre o tributo a César e a história hilariante da mulher de sete maridos da lei bíblica – de quem será ela depois da ressurreição? - surge um aproveitamento dos escribas contra os fariseus. Vale a pena ler e imaginar.
”Constando-lhes que Jesus reduzira os saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se em grupo.  Um deles, que era legista, perguntou-lhe para o embaraçar: «Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?» Jesus disse-lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.» (Mt 22, 34-40 e Mc 12,28-34; Lc 10,25-28; Jo 13,33-35)”.

S. Paulo ainda foi mais sintético: “não fiqueis a dever nada a ninguém, a não ser isto: amar-vos uns aos outros. Pois quem ama o próximo cumpre plenamente a lei. De facto: Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, bem como qualquer outro mandamento, estão resumidos numa só frase: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei (Rm 13, 8-10)”.

Creio que o Papa Francisco acredita nisto.

19 outubro 2014

A Culpa é de Cristo?

Frei Bento Domingues O. P.

1. Encontrei, na escadaria da Igreja de Santo Ildefonso (Porto), um senhor que, de costas para o templo, aproveitou para descarregar sobre mim não só o habitual anticlericalismo nortenho, mas também o seu desprezo agressivo pelas religiões, frutos do medo, da ignorância e da sacralização da maldade humana.

O Islão é um ninho de criminosos, o Judaísmo, uma rede dos bancos norte americanos, o Cristianismo, um mundo caótico de divisões em cascata, piorando sempre a configuração anterior. O papa Francisco chegou demasiado tarde para salvar a face de um catolicismo que a própria Europa já rejeitou. Etc.! Se as instituições e os serviços sociais da Igreja ajudam muita gente a aguentar a pobreza e a miséria, não revelam nem combatem as suas causas reais. Pelo contrário, ajudam-nas a sobreviver.

Estranhei que não terminasse a sua diatribe com a fórmula habitual, em circunstâncias análogas: Cristo, sim; Igreja, não! No caso referido, foi Cristo que pagou todas as despesas à base de especulações teológicas e cristológicas.

Este senhor mostrou detestar as narrativas do Novo Testamento (NT). Aquelas propostas, parábolas, controvérsias, milagres e discursos são delírios absolutamente inaplicáveis. Se Jesus Cristo fosse, de facto, um enviado de Deus vinha com ideias claras e distintas acerca do passado, do presente e do futuro, da natureza e da história. Substituiria a Bíblia por um tratado divino e infalível de ciência, de sabedoria e de ética, com manual de correcta utilização para todas as circunstâncias.

2. Aquilo que Jesus introduziu de mais perturbador no mundo religioso, económico, social e político do seu tempo, foi a insegurança: não oferecer respostas pré-fixadas para todas as situações e interrogações da vida. Pelo contrário, semeou dúvidas, inquietações e possíveis alternativas a um universo bem organizado e com respostas para sempre, “em nome de Deus”. As tentativas de reduzir os Evangelhos a dogmas e a tratados teológicos bem articulados, sem falhas, nunca poderão funcionar bem enquanto houver possibilidade de confrontar essas certezas com as narrativas da liberdade de Deus e da liberdade humana. A tentação que não nos abandona é a de procurar rapidamente a lição, moral ou dogmática, que encerram. O resto parece acidental. O inconveniente desse método é de perder precisamente o essencial. Dispor de uma resposta para uma pergunta que não se conhece, e sem olhar para o contexto de onde nasceu, é o caminho mais rápido para o dogmatismo insensato. É assim porque é assim e sempre assim foi, pelos séculos dos séculos, de outro modo, como iriamos saber que é a vontade de Deus?

O estilo de Jesus, pelo que podemos conhecer nos Evangelhos, não é o de um professor que ganhou uma cátedra, num concurso universitário, apresentado, para as suas intervenções, como Senhor Professor Doutor Jesus de Nazaré.

O Nazareno é constantemente surpreendido por interrogações e problemáticas de escribas e fariseus, com o propósito de o deixarem embaraçado perante os ouvintes e de recolherem argumentos para o liquidar. Acontece que Jesus não se atrapalha e, vendo as suas intenções perversas, manda-os bugiar.

Neste Domingo, temos os fariseus e herodianos a cogitar a forma de o tramarem numa questão melindrosa: é lícito ou não pagar o tributo a César? Conhecendo Jesus a malícia da pergunta, respondeu: porque me tentais, hipócritas? Devolveu-lhes a questão: de quem é esta imagem e inscrição? De César, responderam: então dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Os judeus não podiam cunhar imagens. A única imagem de Deus é o ser humano.

3. Segundo os meios de comunicação, o porta-voz da Conferência Episcopal afirmou que os bispos portugueses estão em sintonia com a linha "inclusiva e de acolhimento" dos homossexuais e recasados, mas admite que o tema não é consensual.

Consensos absolutos não são de esperar em assunto nenhum e ainda bem. A clonagem dos cristãos não é aconselhável. O importante é que a assembleia cristã seja uma família de muitas famílias que respeite a diversidade, não como um favor, mas como um direito de todos e um dever de diálogo permanente. Não é a mesma coisa contentar-se com dizer: cada um que se arranje. Seria a negação da Igreja.

Finalmente, começam a cair alguns tabus. Muita água ainda vai passar debaixo das pontes até que o horizonte da Igreja esteja mais desanuviado. Cada grupo continuará a defender os seus pontos de vista. No entanto, a interrogação que todos se devem fazer, talvez se possa formular assim: para que continuar com o sofrimento inútil dos casais cristãos? O que será preciso alterar nas mentalidades católicas para que a educação sexual se torne uma exigência inerente ao desenvolvimento da vida humana nas múltiplas dimensões do amor? Será que ainda existem católicos que acham que Deus se enganou ao dizer que o ser humano é homem e mulher? Homem e mulher será o pecado de Deus?

No NT não há nenhuma preocupação em mostrar se Jesus constituiu ou não uma família. Os textos insistem em algo mais abrangente: o seu projecto era congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos (Jo 11, 52).

Seria excessivo pedir-lhe um manual de moral sexual.
 
Público, 19.10.2014