30 abril 2017

INFERNOS NÃO FALTAM

           1. Pesadelos do Inferno, evidências do Purgatório e tristezas do Limbo faziam parte da paisagem religiosa da minha infância. As Alminhas do purgatório habitavam em dois nichos na minha aldeia. Suscitavam devoção e reciprocidade: «Vós, que ides passando, lembrai-vos de nós que estamos penando». As pessoas lembravam-se e, para tudo o que precisavam, a elas recorriam, sabendo que aliviavam as suas penas. Em favor delas não podiam fazer nada, mas, quando invocadas com promessas cumpridas, eram uma fonte de graças para todas as ocasiões. Não desempregavam Santo António ou S. Bento da Porta Aberta, mas estavam mais à mão. As esmolas que recolhiam serviam para mandar dizer missas pelas mais abandonadas. 
       Eram Alminhas pintadas. Um dos nichos ficou muito estragado e foi pedido a um habilidoso de muitas artes, que periodicamente passava por lá, para o repintar. Perguntou: querem ver as Alminhas a irem para o céu ou a continuarem no Purgatório? É claro, a irem para o céu. Veio um inverno rigoroso e a pintura desapareceu. O pintor não aceitou a queixa acerca da má qualidade das tintas. Tinham ido todas para o céu.
       O inferno era outra história. Por tudo e por nada, uma mãe zangada com os filhos (ou até com o gado), juntamente com um palavrão, exclamava: metes-me a alma no inferno! Não era grave. Grave, muito grave, eram os sermões de preparação para o “confesso”: quem não confessasse, com todas as circunstâncias, os pecados mortais e morresse nessa situação, ia direitinho para o Inferno. A alma caía num lago de fogo, atiçado por uma multidão de diabos feios e maus e nunca mais de lá saía. O relógio infernal repetia “sempre, nunca”: aqui entraste, aqui ficas e daqui nunca sairás!
       O inferno era eterno, mais eterno que o infinito amor de Deus que nada podia fazer contra essa Instituição. O diabo tinha vencido o Anjo da Guarda e o próprio Deus.
       Para as pessoas de bom senso, não havia lenha para tanta eternidade nem alma que aguentasse tanto fogo! Um bom caminho para a descrença: um deus que fabrica tais enormidades é inacreditável.
      O Limbo, nem triste nem alegre, para onde iam as crianças que morriam sem baptismo, era o além mais povoado, não passava de um eterno aborrecimento. Bento XVI encerrou-o sem protestos.
       2. Voltei a ler as Memórias da Lúcia de Jesus. O que diz acerca do inferno não excede o que também eu ouvi em criança: «Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados em esse fogo os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas saiam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros»[1]. Como sugestão para um filme de terror, não está nada mal. Diz a Lúcia que a Jacinta perguntava: «porque é que Nossa Senhora não mostra o inferno aos pecadores? (…) Às vezes perguntava ainda. Que pecados são os que essa gente faz para ir para o inferno? Não sei, talvez o pecado de não ir à Missa ao Domingo, de roubar, de dizer palavras feias, rogar pragas, jurar. E só assim por uma palavra vão para o inferno? Pois! É pecado. Que lhes custava estar calados e ir à Missa? Que pena que eu tenho dos pecadores, se eu pudesse mostrar-lhes o inferno!»[2]
Passando da Terceira para a Quarta memória, há revelações curiosas. “Então Nossa Senhora disse-nos: não tenhais medo, eu não vos faço mal. De onde é vossemecê? Sou do Céu. E que é que vossemecê me quer? lhe perguntei. Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13 a esta mesma hora, depois direi quem sou e o que quero. Depois voltarei aqui uma sétima vez. E eu, também vou para o Céu? Sim, vais. E a Jacinta? Também. E o Francisco? Também, mas tem que rezar muitos terços.
«Lembrei-me então de perguntar por duas raparigas que tinham morrido há pouco, eram minhas amigas e estavam em minha casa a aprender a tecedeiras com minha Irmã mais velha.
« A Maria das Neves já está no Céu? Sim, está. Parece-me que devia ter uns 16 anos. E a Amélia? Estará no purgatório até ao fim do mundo. Parece-me que devia ter 18 a 20 anos. Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido, e de súplica pela conversão dos pecadores? Sim, queremos. Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto»[3].
3. Nossa Senhora mostrou que era uma pessoa muito organizada e pouco supersticiosa com o dia 13. Estou um bocado desapontado com a pouca originalidade das suas revelações e pedidos. Por tudo o que li, parece-me que os Pastorinhos levaram para os locais do seu pastoreio o que rezavam em família, o que aprendiam no catecismo e nas pregações. Deviam ser crianças bastante impressionáveis. A revelação mais extraordinária é, também, a mais incrível: não bastando à Amélia ter sido violada, vir de Nossa Senhora a afirmação de que ficaria no Purgatório “até ao fim do mundo”, é de mais. Isso não se faz!
A edição crítica das Memórias de Lúcia de Jesus, as investigações históricas já realizadas e em curso, vão oferecer um panorama da vida e religiosidade da freguesia de Fátima que irão atenuando os delírios acerca destes fenómenos nomeados como aparições ou como visões.
O que mais falta não é só a revisão crítica da pastoral católica da época. Muitas das suas concepções alojaram-se na história de Fátima. Desamparada, em Portugal, de uma prática crítica de reflexão teológica até ao Vaticano II, e até muito depois, Fátima dá uma imagem do catolicismo português que não corresponde à reforma desencadeada pelo Papa Francisco.
Falta-lhe ser o centro da nossa evangelização, como veremos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 30.04.2017



[1] Lúcia de Jesus, Memórias, Edição crítica de Cristina Sobral, Fátima 2016, pp.186-187.
[2] Ib., pp. 188-189.
[3] Ib., pp.230.

23 abril 2017

METAMORFOSES PASCAIS DO DESEJO (2)


          1. O filósofo Bertrand Russel não foi muito original ao destacar que os dois grandes desejos humanos são o poder e a glória. Podem realizar-se pelos caminhos da ilimitada vontade de dominação económica, política e religiosa ou pelo desenvolvimento dos próprios talentos em função da vontade de criar condições para que tenham todos iguais oportunidades.
        Em Portugal, a julgar pelas aparências, o grande desejo de poder e glória, de pais e filhos, é que ganhe o clube da sua paixão. Os mais devotos têm sempre os caminhos de Fátima à disposição. Se aparecer um Papa, é o segredo da glória, o desejo consumado.
      Em meados do séc. VI a. C., nasceu um príncipe desencantado, Siddharta Gautama, mais conhecido por Buda, o iluminado, viu-se confrontado com a pulsão avassaladora do desejo. No célebre discurso pronunciado em Benares, nas margens do Rio Ganges, teria sentenciado que a terceira “nobre verdade”, para acabar com a dor omnipresente, era indispensável abolir o desejo e os seus laços. Vale a pena perguntar: será o desejo uma doença ou uma bênção?
        O mundo do desejo, da fantasia, do afecto é de tal forma essencial ao psiquismo humano, que todas as outras faculdades é dele que recebem a sua energia. Nasce de uma falta estrutural no ser humano, não como uma maldição, mas como um infindo desassossego. Para Espinosa, a essência do ser humano é o desejo. Segundo Aristóteles, os desejos que não dependem da fisiologia, mas da razão, são ilimitados; os seres humanos desejam o infinito. S. Tomás de Aquino descobriu, nessa sede insaciável, o desejo natural de ver a Deus que não pode ser defraudado[1].
        Não há notícias de que Buda tenha influenciado o Nazareno, embora este também tenha mudado de rumo depois de uma divina iluminação. Já foram descobertas afinidades entre certas passagens dos evangelhos e algumas propostas da sabedoria budista, mas não são da mesma extracção. Jesus não era pela abolição do desejo, mas pela sua intensificação e metamorfose, isto é, pela sua conversão. O seu desejo mais ardente era colocar-se ao serviço do desejo libertador de Deus, alegria do mundo. Era vontade humana e divina de alteração radical da nossa sociedade.
       Os Evangelhos sinópticos mostram, no entanto, que ele teve de lutar contra tentações diabólicas infiltradas nos caminhos do advento e da configuração da era messiânica. Se era realmente o Messias tinha de o provar. Mediante acontecimentos espectaculares, transformações económicas, políticas e religiosas radicais, teria o mundo a seus pés.
       Jesus conhecia os desejos, os modelos, os grupos e os movimentos messiânicos que agitavam o povo a que pertencia e que, sem um poder absoluto, era impossível realizar os seus projectos. Percebeu também que, por esse caminho, tinha de renunciar à alma da sua alma: à experiência do Deus do puro amor e ao projecto de passar os marginalizados dos diversos poderes para o coração da sociedade.[2]
       2. As tentações supunham que conheciam bem a Deus, os apetites do coração humano e o projecto do Nazareno. Vencida a tentação, ficou o aviso: quando alguém invocar a Deus para O negar ou para O louvar é indispensável perguntar: qual é a experiência pessoal, existencial donde nasce essa negação, exaltação ou indiferença religiosa? Fora do contexto cultural, político e religioso que provoca essas atitudes, não podemos saber o que está a comandar o uso da palavra Deus.
       Na teologia de S. Tomas de Aquino, muito marcado pela teologia negativa do Pseudo-Areopagita, Deus só pode ser conhecido como infinitamente Desconhecido. A tentação permanente das religiões é a criação de deuses à imagem dos nossos desejos distorcidos para legitimar sociedades enlouquecidas pelas lutas da dominação económica, política e religiosa.
       Como vimos, Jesus disse radicalmente não às tentações messiânicas que o assaltaram, mas levou muito tempo a compreender a prontidão dos discípulos em abandonar tudo para o seguirem. O Evangelho segundo S. Marcos mostrou, com insistência, que Jesus os chamou para uma missão e o que eles desejavam era que o Nazareno tomasse mesmo o Poder e o resto era só conversa. Por isso, a discussão entre eles girava sempre em torno da futura distribuição dos cargos políticos. Um dia a tensão explodiu: os irmãos, Tiago e João, perderam o pudor e foram reclamar os dois primeiros lugares, o que indignou os outros dez.
       Perante essa situação, Jesus resolveu pôr tudo em pratos limpos: sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele dentre vós que desejar ser grande, seja o vosso servidor e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela libertação de todos[3].
        3. O texto de S. Marcos deixou claro como devem ser as relações de poder na Igreja. Só dessa forma ela se pode tornar uma instância crítica dos poderes de dominação na sociedade.
       O que o Papa Francisco está a fazer na Cúria romana, com tantas resistências, é puro Evangelho. Já em 1969, o Cardeal Suenes denunciava o sistema que aprisiona o Papa e o torna cúmplice e solidário daquilo que ele não quer, tenha ou não a sua assinatura. É preciso conseguir libertar o Papa do sistema do qual há queixas há vários séculos, sem resultado. Porque, como Suenes frisou, ainda que os Papas mudem, a Cúria permanece.
     O poema do bispo Casaldáliga gritou: larga a cúria, Pedro,| desmantela o sinédrio e a muralha.| Ordena que se mudem| todas as filactérias impecáveis | em palavras vibrantes de vida.
Ao fim desta Quaresma, da Semana Santa e da Oitava da Páscoa, há um sabor amargo: tirando o Papa, quem, no mundo católico, nas dioceses, nas paróquias, nos conventos, se levantou contra os sinais de guerra que marcam o mapa do mundo?
        Repetiu-se: estar com o Papa é estar com a Igreja. Isto era quando os Papas não se comoviam com as dores dos mais feridos.
        Frei Bento Domingues, O.P. 
        in Público, 23.04.2017



[1] José Antonio Marina, Las arquitecturas del deseo, Anagrama, Barcelona, 2007; Juan Guillermo Droguett, Desejo de Deus. Diálogo entre psicanálise e fé, Vozes, Petrópolis 2000, pp. 13 e 139; Cipriano Franco Pacheco, O desejo natural da visão de Deus. Expressão de abertura humana ao transcendente, Romae, 2001;Teresa Messias, O desejo e a sua transformação no seguimento de Jesus. Uma leitura dos escritos de Sebastião Moore,Paulus,2017.
[2] Cf. Lc 4, 1-13; Mt 4,1-11; Mc 1,12-13
[3]  Mc 10, 35-45

16 abril 2017

METAMORFOSES PASCAIS DO DESEJO (1)

        1. Os textos do Novo Testamento (NT) não foram encomendados ou ditados, relidos ou corrigidos por Jesus Cristo. Surgiram em comunidades cristãs, depois da sua morte, para mostrar que o processo que O vitimou não podia ser arquivado. A coligação das autoridades romanas e judaicas, ao contrário das aparências, sob a capa de um julgamento, de facto, tinham decretado o assassinato de um inocente em nome de Deus e do Império[i].
      Os autores do NT, ao reabrirem o processo, não pretendiam rever uma questão jurídica do passado, mas testemunhar que estavam completamente enganados os que julgavam que o Nazareno e as suas propostas tinham uma pedra em cima, para sempre. Estava em curso, até ao fim dos tempos, a passagem agitada para uma nova era.
     Era difícil o caminho da realização da esperança. Mesmo depois da ressurreição, até os discípulos mais chegados, continuavam a alimentar concepções messiânicas que Jesus tinha expressamente rejeitado durante a sua vida terrestre. O autor dos Actos dos Apóstolos começa a sua obra narrando esse distorcido desejo pré-pascal: Estando reunidos, perguntaram-lhe: «Senhor, é agora que vais restaurar a realeza em Israel?»[ii]
    Jesus não lhes reconheceu competência sobre essa questão. Precisavam de outra lucidez e de outra energia para enfrentar os novos tempos: recebereis uma força quando o Espírito Santo tiver chegado sobre vós e sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em toda a Judeia e Samaria, até ao fim da terra[iii]. Os Actos dos Apóstolos desenharam um cenário  espantoso desse acontecimento: de repente, veio do céu um ruído semelhante a um vendaval, ficaram cheios do Espírito Santo, soltou-se-lhes a palavra e cada um os ouvia na sua língua materna.
      Ao espanto de uns respondia a chacota de outros: estão com os copos. Coube a Pedro explicar o que estava a acontecer e rematou o seu entusiasmado discurso com esta solene proclamação: Que toda a casa de Israel tenha a certeza de que esse Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo[iv].
       Ao ouvirem isto, diz o texto, trespassou-se-lhes o coração e disseram a Pedro e aos demais Apóstolos: que devemos fazer? Precisavam de uma viragem completa mediante a conversão, banho de Espírito Santo em nome de Jesus Cristo e partida para a missão universal.
      O profeta Joel já tinha escrito o poema para celebrar o que estava a acontecer: derramarei o meu Espírito sobre toda a carne. Os vossos filhos e as vossas filhas hão-de profetizar, os vossos jovens terão visões e os vossos velhos, com sonhos, sonharão[v].
      2. A pergunta subjacente a tudo o que foi dito é esta: quem tinha razão? Jesus ou aqueles que o mataram?
Procurar, hoje, uma resposta a essa pergunta não é para resolver um problema de há dois mil anos. Com o rodar do tempo e usando as mesmas palavras podemos estar a falar de realidades opostas ou que perderam o impacto que já tiveram.
       Se Jesus foi morto em nome de Deus, da religião e dos interesses do Império, é óbvio que importa redescobrir qual era a concepção que Ele tinha de Deus, da religião e dos interesses do império. Não é uma operação fácil.
    Os escritos do NT estão configurados por formulações teológicas, antropológicas e cristológicas muito diferentes. Nasceram de percursos de comunidades cristãs em contextos diversos. Temos de resistir à tentação de sistematizar ou enquadrar, numa visão unificadora, essas concepções. No entanto, na sua diversidade, nasceram da urgência de confrontar a vida pessoal e comunitária com as narrativas de experiências com Jesus Cristo, na convicção de que Ele está vivo e o seu Espírito, se for acolhido com fidelidade, suscitará atitudes criativas perante novas situações.    
    Passada a primeira febre apocalíptica paulina – a de organizar e preparar os cristãos para o fim do mundo[vi] – os textos destinam-se a preparar os discípulos, para enfrentar, com fidelidade, os novos desafios: acreditar e andar sem ver. Por isso, nunca poderão evitar a pergunta: Qual foi o percurso do Mestre?
      3. Jesus levou muito tempo a encontrar o seu próprio caminho: teve de romper com o amigo mais admirado, João Baptista; com as concepções e expectativas messiânicas dominantes, expressas nas tentações que o assaltaram e nunca o largaram até ao último momento.
      Não se dá o devido relevo à luta que teve de travar para romper com o caminho de João Baptista e sobretudo com as tentações messiânicas dominantes. Os quatro Evangelhos não são textos escolares, didácticos, professorais. São textos polémicos, precisamente, acerca da incompatibilidade entre as concepções e atitudes de Jesus, as dos discípulos e as dos adversários. Foram estas incompatibilidades que O levaram à cruz. Naquela sociedade sacral, a grande incompatibilidade nascia no seio da religião porque era ela que comandava tudo. Jesus não era um ateu, um agnóstico ou um sem religião. Aquilo que o enervava não era só a hipocrisia, que continuamente denunciou, mas verificar que o recurso às observâncias religiosas, ao nome de Deus e à sua vontade servia para classificar uns como santos e salvos e outros como pecadores e perdidos. Era uma luta teológica por causa de uma questão antropológica. Um Deus que é o consolo dos piedosos, dos ricos, dos poderosos e uma fonte de humilhação dos classificados como pecadores, por aqueles que estabeleciam as leis da santidade e as do castigo, era uma vergonha.
      O caso permanente era a sua polémica com o Sábado, uma instituição civilizacional fantástica – o ser humano não é só para trabalhar –, mas que foi transformada no dia da opressão, em nome de Deus. A insistência de Jesus em violar o sábado parecia uma actuação provocatória: escolhia, precisamente esse dia, para fazer o que estava proibido. Tinha uma razão altamente teológica, coincidente com uma razão profundamente humana: o dia consagrado a Deus tinha de coincidir com o dia da libertação das vítimas da doença interpretada como possessão diabólica, fruto do pecado. Um Deus que não é a alegria da vida, não é Deus. É um ídolo criado para justificar a dominação económica, política e religiosa, como veremos.
      Páscoa para os nossos desejos distorcidos. 
      Frei Bento Domingues, O.P.
      in Público 16.04.2017



[i] Act 4, 27-28.
[ii] Act 1, 6
[iii] Act 1, 8
[iv] Act 2, 36
[v] Act 2, 17-19
[vi] 1Tes.4, 9-18

09 abril 2017

A BÍBLIA EM PRAÇA PÚBLICA

       1. Como escreveu, em 2016, o Prof. José Augusto Ramos, o universo cultural, editorial, científico e académico português foi recentemente presenteado com o aparecimento do primeiro volume de uma tradução da Bíblia grega, conceito que nos tem  sido estranho, desde há muitos séculos[1]. Este ano, nos finais de Março, Frederico Lourenço inundou todas as livrarias com o segundo volume da tradução da Bíblia grega, o Novo Testamento completo, escrito há quase 2000, cujo original é irrecuperável. Esta tradução está baseada no texto fixado por Nestle-Aland[2].
      Para F. Lourenço, a leitura comparativa dos evangelhos canónicos e dos restos que nos chegaram dos apócrifos não deixa qualquer dúvida quanto à imprescindibilidade de Marcos, Mateus, Lucas e João, talvez os livros mais extraordinários da História da Humanidade.
      Um padre, espantado com este fenómeno, perguntou-me: mas esse tradutor é padre? Quando lhe respondi que não era padre nem ex-padre, não era católico nem protestante e que neste trabalho prescinde, metodologicamente, de pressupostos religiosos, mostrou-se desconfiado. Aí há gato!
      O que há, de facto, é talento, competência e muito trabalho. Convidei esse clérigo apreensivo a ler o currículo do tradutor que vem nas capas de ambos os volumes e acrescentei o meu pressentimento: com esta aparição, Frederico Lourenço e os responsáveis da Quetzal Editores vão alterar o clima cultural da Bíblia, no nosso país. Não esperam canonizações, mas merecem avaliações críticas competentes[3].
    Pensar que o estudo da Bíblia e as suas traduções só merecem confiança, se forem obra de clérigos e de editoras católicas submetidos ao Imprimatur episcopal, é supor que a Bíblia é propriedade privada de empresas confessionais. Que os responsáveis das comunidades católicas zelem pela formação bíblica dos seus membros e pelas expressões da fé cristã é o mínimo que se lhes pode pedir. Infelizmente, nem sempre cumprem esta missão.
       Ninguém tem o monopólio da Bíblia e só há vantagens em que seja reconhecida e trabalhada como o Livro dos livros, a expressão das raízes judeo-cristãs da civilização ocidental. Há muito a fazer para se tornar parte activa da cultura portuguesa, nas suas diversas expressões. Criticam-se, e com razão, as correntes sociais, políticas e culturais que desejam fechar as religiões nas respectivas sacristias. Mas seria lamentável que as sacristias amuassem ao ver essa literatura religiosa estudada e debatida com toda a liberdade, no espaço público.
     Herculano Alves reuniu, numa obra muito útil, os Documentos da Igreja sobre a Bíblia, desde o ano 160 a 2010[4]. No começo deste ano, foi lançado pela Biblioteca Dominicana o testemunho incontornável de Marie-Joseph Lagrange, O.P., sobre os tormentos que sofreu do Vaticano e das invejas eclesiásticas organizadas para impedir as inovadoras investigações e publicações científicas da Escola Bíblica de Jerusalém, nos finais do século XIX e nos primeiros 30 anos do século XX[5]. Quem comparar a miséria cultural dessa situação com o documento da Comissão Pontifícia Bíblica, de 15 de Abril de 1993[6], pode ter a impressão de que não pertencem à mesma Igreja.
       Não reconhecer a importância de colocar a Bíblia no espaço público, segundo as exigências culturais do nosso tempo, só pode alimentar a suspeita de que a razão crítica é inimiga da religião, das suas linguagens e das suas práticas.
       2. O projecto de Frederico Lourenço, assumido pela Quetzal, não se limita a uma nova tradução do Novo Testamento, do qual já existem várias, de diversos estilos, mas à tradução de toda a Bíblia Grega, judaica e cristã. A Bíblia judaica e a Bíblia hebraica não se identificam, como se a grega não fosse, também, judaica. A Grega, designada como Septuaginta (LXX), é a primeira tradução da Bíblia[7] e o seu nome designa a tradução da Torah hebraica para o grego, realizada em Alexandria durante o reinado de Ptolomeu II (285-246 a.C).
    Segundo a lenda, setenta sábios de Jerusalém, conhecedores do hebraico e do grego, partiram para Alexandria, cidade com grande população judaica, mas onde se falava sobretudo o grego. Cada um tinha o seu quarto particular e a obrigação de traduzir as Escrituras. Começaram todos ao mesmo tempo e terminaram todos ao fim de setenta dias. Ao conferi-las, verificaram que todos tinham traduzido da mesma maneira. Para lenda e milagre não está mal.
       A dita versão constituiu um acontecimento cultural sem precedentes e a iniciativa literária mais importante para os anais da civilização. Pela primeira vez, a sabedoria de Israel passava de uma língua semita para outra indo-europeia e, por aí, ao mundo ocidental.
      3. Quando, séculos mais tarde, a LXX foi adoptada pelas primeiras comunidades cristãs, como a Bíblia oficial, acompanhou a expansão do cristianismo, tanto no Oriente como no Ocidente.
     A partir do séc. V d. C., a LXX foi destronada, no Ocidente, pela tradução de S. Jerónimo para latim, denominada a Vulgata. Esta versão dominou a cultura ocidental durante a Idade Média. Foi declarada como autêntica, isto é, fiável em matéria de fé e costumes, pelo Concílio de Trento (1546). Na Igreja Ortodoxa, a Bíblia grega manteve-se como Bíblia oficial ou canónica até aos nossos dias.
     Outro foi o rumo das traduções da Bíblia na Reforma. Espero que, entre nós, o nome de Lutero tenha deixado de ser considerado um insulto.
       Frei Bento Domingues O.P.
       Público 09.04.2017


[1] Cadmo 25 (2016) 101-113. Cf. também de José Augusto Ramos, Traduções Portuguesas da Bíblia Transversalidades Linguístico-Culturais em Tarefas de Hoje, GAUDIUM SCIENDI, Nº 3, JANEIRO 2012, pp 124-146
[2] Entre 1898 e 2012 atingiu 28 edições.
[3]  Cf. José Augusto Ramos (Cadmo 25 (2016) 101-113); Isaías Hipólito (Brotéria 184 (2017) 205-225.
[4] Documentos da Igreja sobre a Bíblia (160-2010), Difusora Bíblica, 2011.
[5] Marie-Joseph Lagrange, O.P., Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia, Biblioteca Dominicana, Coimbra, Tenacitas, 2017.
[6] A Interpretação da Bíblia na Igreja, S. G. E., Rei dos Livros, 1994.
[7] Cf. Natalio Fernández Marcos, Septuaginta. La Biblia griega de judíos y cristianos,Sígueme, Salamanca 2008.
 

03 abril 2017

INOVAR OU REPETIR?

                     
      1. Segundo a teologia católica mais corrente, os sacramentos cristãos não são de anjos nem para anjos. A Irmã Lúcia, nas suas Memórias, abalou essa opinião. Contou que, entre Abril e Outubro de 1916, já tinha aparecido um anjo aos  três pastorinhos, por três vezes, convidando-os à oração e à penitência. Identificou-se como o “Anjo da Paz, o Anjo de Portugal”. Apresentou-se como ministro da comunhão eucarística sob as duas espécies. Não disse onde as teria ido arranjar.
    À distância de um século, é uma poderosa narrativa surrealista, indiferente à disciplina romana, de então, sobre a Eucaristia. Ver aí uma precoce antecipação portuguesa do Concílio Vaticano II que, em 1916, ainda ninguém podia prever, condiz bem com a nossa imaginação delirante, compensatória da frustração de não termos contado para nada no maior acontecimento da Igreja Católica do séc. XX.
     Com anjos ou sem anjos, os sacramentos movem-se sempre no mundo simbólico que só fala à inteligência a partir dos sentidos mergulhados nas realidades terrestres mais elementares. Ao se tornarem manifestações rituais e litúrgicas exprimem, em gestos e palavras, a identidade partilhada da fé e a sua transmissão. É a fé subjectiva e manifestada que constitui a alma e o motor de todas as formas da ritualidade cristã. Por tudo isso, petrificar os ritos, considerá-los estáticos e imutáveis é trair a condição incarnacionista do cristianismo. Ritualidade e criatividade não se excluem, exigem-se mutuamente. As celebrações litúrgicas que se limitam, ano após ano, a reproduzir um ritual fixo, tornam-se ritos de sepulcros vazios. Como escreveu S. Tomás de Aquino, a graça não substitui a natureza, não evapora o tempo, a mudança. 
     Por enquanto, – aproxima-se a era do pós-humano! - os rituais têm a sua raiz na condição corporal do ser humano e, portanto, na sua composição biogenética, ecológica – natural e cultural – e bio psíquica.[1]

    Existem em qualquer sociedade, não são um exclusivo das religiões nem a sua eficácia simbólica está reduzida aos sacramentos cristãos. Não esgotam a liberdade de Deus nem a presença de Cristo na vida humana. Somos nós que precisamos de celebrar a fé, na transformação da nossa história, para nos darmos conta de que o Espírito de Deus actua onde quer, quando quer e como quer, sem nos consultar, mas com gosto de nos associar à sua criatividade. Os gestos e as palavras da liturgia não caíram do céu. No seguimento de Cristo, são responsabilidade de toda a Igreja para estabelecer um vai-e-vem contínuo entre a complexidade da vida pessoal, familiar, profissional, cultural, política e o tempo dedicado à festa da sua reconversão permanente, metamorfose pascal.
    Neste sentido, as expressões litúrgicas da Quaresma, têm de evitar dois extremos: não cair no contínuo improviso – algo desumano – nem se reduzirem à eterna repetição do mesmo. As simples exortações moralistas à oração, ao jejum e à esmola não bastam para criar uma nova consciência das nossas alienações nem provocam movimentos de transformação significativa na sociedade e na Igreja.
    2. Já me perguntaram, várias vezes, se o pedido de Jesus Cristo, na chamada Última Ceia, repetido em todas as missas – Fazei isto em memória de Mim –, não seria a manifestação de uma grande solidão, de pouca confiança nos discípulos ou até de um certo narcisismo, como o dos grandes líderes ou pessoas ilustres que desejam uma estátua, o nome numa rua ou numa praça?
    Se a expressão Fazei isto em memória de Mim manifestasse Jesus preocupado com ele próprio, com o seu futuro na memória do mundo, estaria a renegar-se e em contradição aberta com o que foi o testemunho da sua vida. O que nesse testemunho é indelével é, precisamente, a despreocupação com ele mesmo. A sua causa era o reino de Deus, como alegria do ser humano. Segundo os Actos dos Apóstolos, passou a vida fazendo o bem. Nunca andou a tratar de interesses pessoais, mas da vida que tinha sido negada aos doentes, aos excluídos da sociedade e da religião.
     Na noite em que foi traído, deixou aos discípulos o encargo que deve ser o de toda a Igreja e para sempre: não atraiçoeis o que procurámos viver juntos em função do mundo inteiro, a partir dos mais ofendidos.
    3. Um belo poema de Eugénio de Andrade termina assim: Eu sei: tu querias durar. / (…) Paciência, querido, também Mozart morreu./ Só a morte é imortal.
    O tema deste Domingo é a ressurreição de Lázaro[2]. A longa narrativa do quarto Evangelho mostra, pelo contrário, que também a morte é mortal. Diante do túmulo, Jesus gritou em voz alta: Lázaro sai cá para fora! O morto saiu, com os pés e as mãos enfaixados e o rosto recoberto por um sudário. Jesus disse-lhes: Desatai-o e deixai-o andar.
    Surge, aqui, um novo paradoxo: a partir desse dia, o Sinédrio resolveu matar Jesus, que teve de passar à clandestinidade. Os sumos sacerdotes e os fariseus tinham, por isso, ordenado que quem soubesse onde Jesus estava, o indicasse, para que o prendessem.
    O Sumo Sacerdote daquele ano tinha encerrado toda a discussão com a sentença radical: acaba-se com esse homem e fica salva a nação. Sem querer, comenta o narrador, Caifaz “ profetizou que Jesus iria morrer pela nação – e não só pela nação, mas também para congregar, na unidade, todos os filhos de Deus dispersos.”
    Temos, aqui, uma extraordinária descrição do sentido universal da missão de Jesus Cristo: fazer da vida um dom ao mundo, sem restrições.
Resta a questão que junta os paradoxos da vida e da morte, aos quais nem Jesus escapou e que talvez possa ser formulada assim: qual deve ser hoje o papel inovador dos discípulos de Cristo, de toda a Igreja, de cada um de nós na reunião dos filhos de Deus que se ignoram ou guerreiam por causa da dominação política, económica, étnica, cultural e religiosa?
    Conformar-se com o estado actual do mundo é a grande traição que diariamente nos tenta. A resignação é o nosso pecado.
    A Quaresma ainda não acabou.
    Frei Bento Domingues, O.P.
    in Público, 02.04.2017



[1] Cf. Eddward Schillebeeckx OP, L’économie sacramentelle du salut, Academic Press Fribourg, 2004, pp. 545-573.
[2] Jo 11, 1-54