19 maio 2020

JOÃO PAULO II: NO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO, por Anselmo Borges

JOÃO PAULO II: NO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
1. Celebra-se amanhã, 18 de Maio, o centenário do nascimento de Karol Wojtyla, que havia de ser Papa, com o nome de João Paulo II.
Fica aí um breve apontamento sobre essa figura marcante do século XX. Não é, de facto, possível escrever a história do século XX ignorando João Paulo II, que não foi apenas uma figura marcante, mas determinante, do século passado. Apresento alguns acontecimentos, um pouco à maneira de flashes, referentes concretamente ao seu pontificado, um dos mais longos da História: mais de 26 anos, de 18 de Outubro de 1978 a 2 de Abril de 2005.
João Paulo II foi um dos líderes mais influentes do seu tempo. Era um homem de convicções, corajoso, profundamente crente no Evangelho e no Deus de Jesus. Foi com ele e as suas viagens por mais de cem países que a Igreja católica tomou real consciência de ser uma Igreja mundial. Foi decisivo para o fim do comunismo no seu país natal, a Polónia, e para a queda do Muro de Berlim. Afirmou e reafirmou os Direitos Humanos. Escreveu notáveis encíclicas sobre ética social e concretamente sobre os direitos dos trabalhadores (Laborem exercens e Centesimus annus) e, se não me engano, foi o primeiro Papa a utilizar a palavra ecologia em todo o seu significado de defesa do meio ambiente. Perdoou àquele que o quis assassinar e visitou-o na cadeia. Reuniu em Assis os representantes das religiões mundiais para a oração, criando o que ficou conhecido como “o espírito de Assis”, no sentido da compreensão entre as várias religiões a favor da paz. Fez o possível para evitar a invasão do Iraque, um erro histórico brutal cujos efeitos ainda hoje o mundo está a pagar. Foi um lutador incansável pelo que considerava a sua missão: precisamente a defesa da paz, que o levou a viajar pelo mundo todo como seu mensageiro. Era humilde: ele que chegara a Papa, jovem e atleta, não teve vergonha em envelhecer sem ocultar ao mundo a sua decadência física.
Foi um dos homens mais populares do seu tempo. O mundo agradeceu-lhe, despedindo-se dele com milhões de pessoas no funeral, que teve também o maior número de representações diplomáticas de sempre. E o povo gritou que queria vê-lo rapidamente canonizado: “Santo subito!”
2. Mas João Paulo II era um homem do seu tempo e tem de ser situado nesse tempo e no seu contexto histórico. Ele vinha do Leste, com uma Igreja perseguida, e ele próprio tinha uma certa visão da Igreja, mais hierárquico-autoritária do que propriamente participativa, sinodal, em comunhão. E vivia-se então na Igreja uma forte tensão entre os chamados progressistas e os conservadores, dentro da necessidade de um novo rumo para uma Igreja conciliar, em ligação com o espírito do Concílio Vaticano II.
Neste contexto, viveu grandes contradições. Por exemplo, pediu perdão pelas culpas da Igreja ao longo da História ao mesmo tempo que continuou a condenar um grande número de teólogos (mais de 100). Defendeu os Direitos Humanos para o mundo ao mesmo tempo que reprimiu quem dissentia das suas concepções doutrinais, teológicas ou relacionadas com a organização da Igreja. Pôs travão a horizontes abertos pelo Concílio Vaticano II e concretizou esse propósito com a nomeação de bispos da sua linha conservadora no mundo inteiro. Limitou o diálogo ecuménico entre as Igrejas cristãs. Opôs-se tenazmente a uma reflexão sobre a obrigatoriedade da lei do celibato para os padres. Recusou terminantemente debater de modo sério o lugar da mulher na Igreja, pretendendo inclusivamente invocar a infalibilidade, para pôr termo definitivo ao debate teológico sobre a possibilidade da ordenação de mulheres.
Sobretudo, João Paulo II deixou uma herança dramática por causa do modo como terá lidado com os abusos de menores por parte do clero e com a figura perversa do fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel. Neste sentido se pronunciou também, numa entrevista recente ao “Der Sonntag”, o actual cardeal de Viena, Christoph Schönborn, para quem João Paulo II é certamente “um dos grandes Papas”, mas “ficou arrasado com o tema dos abusos, foi uma das suas debilidades... Esperávamos que João Paulo II encontrasse uma palavra de consolação e compaixão para os afectados, para os que tinham sofrido... Essa palavra não veio”, concretamente na sua viagem à Áustria em 1998. Do ponto de vista teológico e pastoral, Karl Rahner, um dos teólogos do Concílio Vaticano II e talvez o maior teólogo católico do século XX, morreu com a tristeza do que antevia como a caminhada da Igreja para um “inverno”.
3. Permita-se-me uma nota pessoal. Uma vez, foi-me dada a possibilidade de encontrar pessoalmente o Papa João Paulo II nos seus aposentos privados, no Vaticano. Era a primeira vez que estava com um Papa. Apertei-lhe respeitosamente a mão e disse no meu mais íntimo: “É apenas um homem”.
João Paulo II era apenas um homem. Com imensa grandeza, mas com grandes debilidades também. O que é facto é que o sucessor, que tinha sido no seu pontificado Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Bento XVI, encontrou a Igreja numa situação tal que não teve forças para continuar à sua frente e tomou aquele gesto histórico de resignar. Foi então que foi eleito o Papa Francisco, uma bênção para a Igreja e para o mundo.
in DN, 17.05.2020

CONVERSÃO ECOLÓGICA E DO DESEJO DISTORCIDO, Frei Bento Domingues, O.P.


CONVERSÃO ECOLÓGICA E DO DESEJO DISTORCIDO
Frei Bento Domingues, O.P.
Esta crise obrigou-nos a parar. Mas suspeito que este medonho susto ainda não conseguiu alterar, em profundidade, a mentalidade geral.
1. Chegam-me de vários lados, com propósitos diferentes, notícias e comentários sobre o comportamento lamentável de algumas correntes do alto e baixo clero unidas no afrontamento das medidas recomendadas pela OMS e que a DGS e os governos impõem para evitar o contágio do covid-19. Unidas também no declarado incitamento ao seu desrespeito, a nível nacional e internacional.
Essas movimentações ressurgem quando muita gente já se sente desesperada entre o apertado confinamento, o emprego perdido, a ronda da pobreza, a ameaça da morte e um futuro de pouca esperança. A agitação de algumas tendências do clero revela, no entanto, outra conhecida e renovada motivação: atacar a pastoral do Papa Francisco para que as linhas mais inovadoras do seu pontificado e do seu estilo morram e sejam enterradas com ele.
Procura-se fazer acreditar que Bergoglio é um instrumento das forças que desejam acabar com a prática religiosa, já muito enfraquecida, numa Europa laicizada. É preciso estar em sintonia com maçónicos, comunistas e ateus para proibir missas abertas ao público e impedir as grandes e tradicionais manifestações da fé católica. Este Papa, dizem os seus adversários, acaba sempre por fazer o jogo dos inimigos da Igreja, transformando-a numa banal associação filantrópica com igrejas de portas fechadas.
 Para a grande maioria dos católicos, a relevância do exibicionismo desse clero, com mitra ou sem mitra, depende, em grande parte, do acolhimento que lhe é dado em certos meios de comunicação e não pela sua real representatividade.
Por mim, não posso deixar de louvar a coragem do Bispo de Leiria-Fátima – em harmonia com a Conferência Episcopal – pela atitude exemplar, em relação à maior manifestação da religiosidade popular de Portugal e do Ocidente. Mostrou, pela sua decisão, que para Jesus Cristo a maior glória de Deus é o cuidado com a saúde e a vida dos seres humanos. Esse cuidado vale mais do que o cumprimento literal de todas as promessas e sacrifícios. Deus lê nos corações e o mal pede mais combate inteligente do que teologuemas sacrificiais, que insultam piedosamente o infinito mistério que envolve a nossa condição.
O Bispo António Marto tornou-se testemunha do sentido, para o nosso tempo, do célebre diálogo de Jesus com a Samaritana junto ao poço de Jacob[i]: os verdadeiros adoradores de Deus não são os que adoram em Jerusalém ou em Garizim, em Roma ou em Meca, em Fátima ou em Lourdes, mas aqueles que O adoram em espírito e verdade, dentro ou fora de qualquer igreja. O verdadeiro e sagrado templo da divindade é o ser humano, no acolhimento do outro como irmão. 
Com esta observação, não estou a desvalorizar a importância dos espaços sagrados nem a simbologia do calendário das celebrações da fé cristã. O espaço, o tempo e a itinerância são dimensões fundamentais da nossa condição que não pode prescindir da linguagem de ritos sagrados e profanos.
Participei, muitas vezes, no 13 de Maio na Cova da Iria e nunca senti nada de tão comovente como a imensa Procissão das Velas e do Adeus, ambas completamente inúteis, como são os grandes poemas e como é este: o de um povo sofrido que não desiste nem de partir nem de regressar. Fátima é o barco e o cais das nossas reais e míticas viagens na escuridão do mundo[ii].
2. Vivemos na civilização da velocidade, da pressa em chegar sempre antes do outro. Esta crise obrigou-nos a parar. Mas suspeito que este medonho susto ainda não conseguiu alterar, em profundidade, a mentalidade geral. Continuamos a perguntar quando poderemos regressar à vida normal. Aquilo a que chamamos vida normal já mostrou, nesta calamidade, as suas estruturais anormalidades semeadas de velhas e novas desigualdades vergonhosas. E surge a pergunta: o que é possível e desejável fazer para acudir ao presente e preparar um futuro viável?
As retóricas descrições de tudo o que está mal – à vista de quem quiser ver – e as retóricas das receitas prontas a resolver todos os problemas parecem-me que confiam demasiado no poder mágico das palavras. A eficácia da linguagem performativa é de outra ordem.
Fazer coincidir a rapidez do dizer com o acontecer das transformações sociais pertence à ordem do milagre, pouco frequente, no devir da natureza, da cultura e da investigação.
Os sistemas autoritários pretendem substituir, pelo quero, posso e mando, a lentidão das decisões democráticas de consensos alargados. No entanto, se as democracias se perderem na exibição de labirínticas discussões clubísticas acabam por cansar os cidadãos que reclamam e esperam resultados, em todos os domínios, para a construção do bem comum.
Será possível combinar as respostas às urgências maiores da população mais pobre e ir alterando o sistema económico dominante e insustentável, assente na exploração ilimitada de recursos limitados e em perpetuar escandalosas desigualdades sociais?
Há quem pense que é este o tempo certo para delinear futuras estratégias económicas baseadas na tríade inseparável: biodiversidade, alterações climáticas e saúde pública[iii].
3. Perante a tragédia que estamos a viver e pensando no futuro, é recorrente a expressão, nada pode continuar como dantes. Quem assim fala manifesta vontade de mudança, de conversão. Quem, pelo contrário, não quer perder a vida altamente privilegiada de que disfruta, até da crise procura servir-se para alargar os seus injustificados privilégios.
Em 2015, o Papa Francisco publicou a encíclica Laudato SI sobre o cuidado da Casa Comum que inscreveu no movimento ecológico mundial. É um documento minucioso e abrangente que mostra a raiz humana da crise ecológica, fruto e causa de muitas outras crises. A ecologia integral que propõe envolve múltiplas dimensões: ambientais, económicas, sociais e culturais, vida quotidiana, seguindo sempre o princípio do bem comum e da justiça intergeracional. Não se limita aos aspectos doutrinais. Apresenta também linhas de orientação e acção, para vencer a indiferença geral e os obstáculos levantados pelos interesses insensatos dos poderosos.
Nada disto, porém, é possível sem uma autêntica conversão ecológica e uma espiritualidade que alimente a paixão pelo cuidado do mundo e não pela sua dominação destruidora. Por outro lado, para chegar à conversão ecológica é indispensável a conversão do desejo distorcido. Quem deseja tudo para si próprio só pode ver, nos desejos dos outros, rivais a dominar ou abater. Não sente alegria com a diferença.
in Público 17.05.2020



[i] Jo 4, 1-42
[ii] Frei Bento Domingues, A Religião dos Portugueses, Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2018; ver também Anselmo Borges, Fátima e a covid-19, in Público, 13.05.2020.
[iii] Maria Amélia Martins-Loução, O tempo certo, in Público, 26.04.2020.



Admiração e apreço pelas decisões tomadas pela Conferência Episcopal

A 11 de maio de 2020 enviámos o seguinte email à Conferência Episcopal Portuguesa:

Senhor D. Manuel Clemente
Presidente da Conferência Episcopal

Em nome do Movimento Nós Somos Igreja Portugal, acreditamos na importância colegial dos nossos Bispos, quando se pronunciam sobre as grandes questões da realidade contemporânea.

Queremos desta forma exprimir-lhe a nossa admiração e apreço pelas decisões tomadas pela Conferência Episcopal, desde o primeiro agravamento da pandemia no nosso país.

Queremos felicitá-lo pelo seu depoimento ao DN, em que define o seu conceito de comunhão existencial, em que anuncia o testemunho de Cristo a que toda a comunidade cristã é chamada, na urgência do cuidado aos outros, para a salvação de vidas.

Queremos confirmar o nosso apoio à decisão de D. António Marto, Bispo de Leiria e Vice-Presidente da Conferência Episcopal, quanto às celebrações dos próximos dias 12 e 13 de maio, em Fátima, assim concretizando, com firmeza, as orientações das autoridades de saúde.

Com as nossas mais cordiais saudações
P’lo Nós Somos Igreja Portugal
Alfreda Ferreira da Fonseca
Fernando Fradique
Leonor Xavier
Lisete Fradique
Luís Mah
Maria João Sande Lemos
M.Margarida Pereira-Müller
Mariana Mendes Pereira
Piedade Pinto Correia