29 janeiro 2017

A LIBERDADE É UM PERIGO

     1. 800 anos é muito tempo. Foi com este título que anunciei o jubileu da Ordem dos Pregadores (1216-2016). Não tenho uma devoção especial pelas comemorações, mas sei que uma das doenças mais temidas na minha idade é, precisamente, a perda da memória, Alzheimer. As crianças têm pouco passado. Elas são a realidade do futuro. Os idosos têm algum passado e pouco futuro. As Ordens Religiosas não nasceram todas ao mesmo tempo e, dentro da mesma época, nasceram para responder a desafios novos e diferentes, supondo que têm algo a dizer ao mundo em mudança. Não têm promessas de vida eterna. Algumas nasceram e morreram depressa, outras têm a pele mais dura.
A Ordem dos Pregadores, com suas glórias incomparáveis, virtudes e pecados, celebrou 800 anos. Como muitas outras, não nasceu só de uma vez. Por vezes, onde foram mais vigorosas e fecundas, enfraqueceram e começam noutras áreas culturais e sociais, como se estivesse a nascer de novo. Há 70 anos que conheço os dominicanos. Encontrei-os em muitos países, umas vezes em grande desenvolvimento, noutras com muitas dificuldades e, noutras ainda, a começar como se estivem a fundar a Ordem.
Faço parte dos dominicanos há 64 anos. Quando entrei, vivia-se uma grande turbulência nas províncias dominicanas francesas. Era a época da nova Teologia, dos Padres operários, do diálogo activo com as diferentes correntes do mundo contemporâneo: teólogos com as suas obras no Index dos livros proibidos, outros no exílio, etc.. Essa história triste está feita e abundantemente documentada[1].
Só depois, já durante o Noviciado, tomei conhecimento de uma história anterior, trágica e gloriosa. Estou a referir-me ao itinerário do dominicano Marie-Joseph Lagrange, fundador da Escola Bíblica de Jerusalém (1889-1913).
2. No passado dia 21, Frei Miguel dos Santos fez, no novo Convento de S. Domingos em Lisboa, a apresentação desse itinerário escrito pelo próprio autor[2].
Trata-se, na verdade, de recordações pessoais que o Padre Lagrange escreveu, não para serem publicadas, mas para informar os seus confrades e explicar as intenções subjacentes à fundação da Escola Bíblica e, sobretudo, acerca dos embates e combates a que esteve ligado em defesa desta genial fundação ameaçada.
Só foram publicadas em 1967, por iniciativa do Padre Pierre Benoit, que foi um dos últimos e célebres discípulos directos do Padre Lagrange, juntamente com o Padre Roland De Vaux.
O Padre Lagrange foi um dos pioneiros, no campo católico, da moderna exegese científica da Bíblia, que pode caracterizar-se, simplificando, pelo seu método histórico-crítico. Este método consiste, essencialmente, na utilização das ciências históricas e seus instrumentos específicos na abordagem dos textos bíblicos.
Este tipo de abordagem foi sobretudo desenvolvido por exegetas protestantes alemães do século XIX. Julgava-se que o seu racionalismo demolidor punha em causa os fundamentos históricos de toda a Bíblia.
A posição do Padre Lagrange foi a de perceber que não valia a pena, por parte dos católicos, entrincheirarem-se numa apologética puramente defensiva contra os ataques do racionalismo alemão, mas sim de entrar no mesmo campo em que ele se movia, utilizando os mesmos instrumentos críticos de estudo e análise dos textos bíblicos.
A fundação da Escola Bíblica foi, de início e em geral, bem acolhida. Tratava-se de criar uma instituição dedicada aos estudos bíblicos no meio geográfico onde nasceu a maior parte dos livros da Bíblia e no meio cultural mais afim com aquele em que viveram os seus autores.
Quando o Padre Lagrange e os seus colaboradores começaram a concretizar o projecto que os movia, tudo se complicou. O clima era terrível. Tudo o que cheirasse a inovação era acusado de modernismo. Esta palavra abarcava diferentes correntes teológicas condenadas pelo Papa Pio X, através do decreto Lamentabili e da encíclica Pascendi. De facto, lamentável era esta mentalidade inquisitorial.
Com os artigos do Padre Lagrange e de outros colaboradores, na Revue Biblique e com as primeiras obras de folego na colecção Études Bibliques, é a própria Escola Bíblica, o seu fundador e o seu projecto que são postos em causa e atacados de forma vergonhosa.
As tribulações incríveis deste caminho são o conteúdo da obra apresentada no Domingo passado. Devem dar muito que pensar. A invocação, na Igreja, do dever de obediência devia ser sempre acompanhada pelo direito e pela exigência de prosseguir os caminhos da investigação da verdade. O perigo não é a liberdade, é o autoritarismo.
3. Hoje, podemos perguntar que seria dos estudos bíblicos, na Igreja, sem a tenacidade heroica do fundador da Escola Bíblica? Muita gente conhece, em muitos países a Bíblia de Jerusalém, mas não é aí nem nas muitas investigações e publicações que a Escola produziu, ao longo de 100 anos, nem em se ter tornado num centro de atracção de investigadores de todos os quadrantes e de todo o mundo, que está a sua importância. O seu mérito principal é porque a luta do P. Lagrange e seus colaboradores possibilitou abrir, na igreja Católica, o espaço a todas as formas de investigação e interpretação da Bíblia[3].
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 29.01.2017




[1] François Leprieur, Quand Rome condamne. Dominicains et prêtes-ouvriers, Plon/Cerf, Paris 1989.
[2] Marie-Joseph Lagrange, o.p., Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia, Biblioteca Dominicana, Tenacitas, Coimbra/Salamanca 2017.
[3] Comissão pontifícia Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, Rei dos Livros, 1994

22 janeiro 2017

NÃO À LÓGICA DO TUDO OU NADA

          1. Perante o rumo assustador que a política internacional está a tomar e a múltipla inconsciência na “União Europeia”, fui interpelado por alguns católicos, que se identificam com a herança do Vaticano II, para a urgência de reunir pessoas de “boa vontade”, não apenas para interpretar os sinais deste tempo, mas sobretudo para encontrar formas activas de responder à pergunta dos Actos dos Apóstolos: que fazer?
É tarefa para quem não acredita no determinismo histórico. Um amigo mandou-me, entretanto, o hebdomadário, Le Point[1] (5 de Jan.) com a fotografia do filósofo ateu Michel Onfray na capa e a referência ao seu último livro – Décadence – anunciando que a civilização baseada no judeo-cristianismo está absolutamente esgotada. Os seus valores de outrora estão mortos e nada nem ninguém os pode reanimar.  
       O Islão, pelo contrário, está forte, tem um exército planetário, constituído por inumeráveis crentes prontos a morrer por Alá e o seu Profeta, ancorados em apetecíveis recompensas celestes.
A referida Revista está recheada com uma entrevista a M. Onfray, extractos do seu livro e algumas mansas réplicas.
O entrevistado deleita-se no exercício do contra ponto. Nós somos os últimos da civilização moribunda e mergulhados no niilismo, eles no fervor; nós estamos esgotados, eles cheios de saúde; nós deixamo-nos engolir pelo instante, eles movidos por uma eternidade gloriosa; temos por nós o passado, eles têm o futuro; para eles, está tudo a começar, para nós, está tudo a acabar.
Segundo este filósofo, cada coisa tem o seu tempo. O judeo-cristianismo reinou quase dois mil anos. Uma duração honrosa para uma civilização. Aquela que a substituirá também será substituída. É uma questão de tempo. O nosso barco afunda-se, resta-nos desaparecer com elegância.
       Este determinismo coloca os próprios católicos fora de jogo. O Concílio Vaticano II em nada nos pode ajudar. Querendo ser um remédio, aumentou a doença. Ao fazer de Deus um colega que trata por tu; do padre, um amigo convidado para férias; do mundo simbólico, uma velha lua a ignorar; do mistério da transcendência, uma rasteira insignificância; da missa, uma cenografia decalcada das emissões televisivas; do ritual resistente, uma cançoneta ligeira; da mensagem de Cristo, um simples panfleto sindicalista; da batina, um disfarce de teatro; das outras religiões e espiritualidades, algo equivalente ao cristianismo. Enfim: a Igreja, ao precipitar o movimento de fuga para a frente, provocava o seu descalabro.
2. Dir-se-á que esta caricatura ignorante não passa de mais uma reprodução lefebvrista. Está longe da cultura da subtileza e do rigor. A experiência do autor, num colégio católico, deixou-lhe recordações da violência, real e simbólica, que não são indiferentes à sua vontade de desconstrução radical.
Seria, todavia, grave que, por causa das análises inadequadas do autor, não perguntássemos com insistência: o que aconteceu, ao longo dos séculos, para se esquecer, que numa das primeiras comunidades cristãs não havia, entre eles, nenhum indigente (…); distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade[2]? Hoje, o abismo entre ricos e pobres continua escandaloso. Alguns desses ricos e opressores ainda passam por benfeitores. Que enxertos perversos foram feitos na árvore cristã para dar frutos tão maus? 
         No ano 2000, o Papa João Paulo II multiplicou as confissões de arrependimento pelos pecados e crimes dos homens da Igreja. Pretendia ser um trabalho de purificação da memória e os contínuos incitamentos à globalização da solidariedade e a oposição frontal à guerra no Iraque. Estamos confrontados com a “vitória” de Donald Trump, a religião dos muros, as ameaças em todas as direcções e a derrota da civilização! Há muita gente assustada e outra resignada. Há também quem resista.
3. O Papa Francisco, no longo discurso da audiência natalícia à Cúria romana, deu publicamente contas do que foi realizado na reforma da Cúria, no banco do Vaticano, de todas outras reformas em curso, com todos os pormenores, marcando bem qual é a lógica que o guia: se a lógica do Natal é a subversão da lógica do mundo, da lógica do poder, da lógica do controle, da lógica farisaica e da lógica casualística ou determinista, então também a lógica da reforma da Cúria deve ir nesta direcção[3]. Há quem diga que é muito exigente e extremamente severo com cardeais, bispos e padres, quando não espelham uma Igreja pobre, dos pobres e para os pobres. De facto, para ele, o clericalismo é um mal terrível que tem raízes antigas e, como vítimas, sempre “o povo pobre e humilde”. Não é por acaso que também hoje, na missa, o Senhor repete, aos “intelectuais da religião”, que os pecadores e as prostitutas os precederão no reino dos céus[4].
O Papa não é um Trump de batina. Numa homilia, estava a proclamar que é preciso viver a santidade pequenina da negociação, ou seja, aquele realismo sadio que a Igreja nos ensina: rejeitar a lógica do isto ou nada e de empreender o caminho do possível para nos reconciliarmos uns com os outros. Nisto, uma criança desata a chorar: «não vos preocupeis porque a pregação de uma criança na igreja é mais bonita do que a do sacerdote, do bispo ou do Papa. Deixai-a chorar, porque é a voz da inocência que nos faz bem a todos»[5].
Frei Bento Domingues, O.P.
Público 22.01.2017


[1] Cf. 5 Janvier 2017, pp.38-53; Décadence, Flammarion, Paris 2017.
[2] Act.4,31-35
[3] L’Osservatore Romano, 29. Dezembro. 2016.
[4] L’Osservatore Romano, 22. Dezembro. 2016, p.12 – Refere-se a Mt 21, 28-31.
[5] L’Osservatore Romano, 16. Junho. 2016, p.14

15 janeiro 2017

UNIVERSALISMO CRISTÃO (II)

         1. Têm razão os teólogos que se empenham em sublinhar que o cristianismo não é, fundamentalmente, uma religião do Livro, como dizem que são, por exemplo, o Judaísmo e o Islão. É, na sua essência, a graça do seguimento de Jesus Cristo como caminho, verdade e vida, fonte de sentido, de beleza e responsabilidade pelos mais abandonados. Para interpretar esse acontecimento profético, os cristãos recorreram, desde o princípio, à chamada biblioteca do Antigo Testamento. A partir dela, criaram outra que narra e interpreta a inesgotável beleza de Jesus Cristo. Chama-se o Novo Testamento, a grande escrita da inovação da vida.
O chamado Novo Testamento, com dois mil anos em cima, não estará também ele já muito velho e ultrapassado? Vamos por partes.
Por essa e outras razões, vou manter o título do texto do Domingo passado – Domingo da Epifania, dos Reis Magos – clausura do ciclo litúrgico do Natal. O cristianismo é, de raiz, universal. Pode ser traído.
Seguindo um género literário identificável, S. Mateus construiu, com velhos materiais, a narrativa da viagem destas enigmáticas figuras, mostrando que já não era em Jerusalém que se podia encontrar a salvação. O Messias, sem poder, sem pompa e sem forças armadas, nasceu para todos, na periferia. Essa significação universal era dada ainda no espaço religioso judaico. Não referi o grande salto teológico de S. Paulo da Carta aos Efésios, recolhida na segunda leitura da mesma celebração universalista: ”os gentios recebem a mesma graça que os judeus, pertencem ao mesmo corpo e participam da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho”.
Não será essa uma questão já ultrapassada? Talvez sim e talvez não. Não passo adiante sem voltar mais atrás. As narrativas notáveis de S. Lucas, em dois volumes, de cristologia e eclesiologia, oferecem referências históricas e geográficas ao processo de universalização do cristianismo que importa destacar e talvez nos possam ajudar no presente.
S. Mateus partiu de Abraão para falar da origem de Jesus Cristo. S. Lucas, ao recuar a genealogia de Jesus até Adão, sublinhava que Ele assumiu o passado de toda a humanidade. Ampliou essa convicção nos Actos dos Apóstolos. Jesus, o judeu, não assumiu apenas o passado, mas também o presente e o futuro da humanização cósmica e divina da História. A coligação de Herodes e Pôncio Pilatos, com as nações gentias e os povos de Israel contra Jesus, não só não o derrotou como até provocou uma ideia perigosa, que alguns julgam, erradamente, totalitária: “não há outro nome dado aos seres humanos pelo qual possam ser salvos”[1].
2. É com essa arrojada convicção que S. Lucas, no contexto da terceira geração do movimento cristão, perante um mundo duplamente hostil, escreve uma engenhosa apologia da Igreja que julgava capaz de integrar a unidade e a diversidade, Pedro e Paulo, a comunidade cristã de Jerusalém, as comunidades helenistas e as de origem gentia. Mais ainda, num mundo social e politicamente adverso, a sua apologia procura mostrar que o movimento cristão não era uma superstição, como alguns diziam, mas uma religião respeitável, capaz de integrar e superar tudo o que havia de bom no judaísmo e no paganismo.
Para o exegeta Senén Vidal[2], Lucas arredonda a história. Existem indicações de que o movimento cristão não começou apenas em Jerusalém, mas em diversos lugares da Palestina e noutras regiões vizinhas, alcançando rapidamente as grandes cidades da bacia do Mediterrâneo. Seja como fôr, uma das razões da dispersão dos cristãos da corrente mais aberta ao mundo gentio foi, sem dúvida, a hostilidade encontrada entre os judeus da Palestina.
Importa, no entanto, não simplificar um fenómeno complexo dos começos do cristianismo. Não se devem confundir as atitudes dos cristãos jerusalemitanos, a que Paulo chama falsos irmãos, com as dos dirigentes da comunidade e nem a de Pedro era igual à de Tiago e seus seguidores[3]. Não se pode esquecer que existiam tensões e conflitos, inclusivamente nas próprias comunidades paulinas. Além disso, os cristãos das tradições utilizadas pelo IV Evangelho (S. João) não encaixam em nenhuma das correntes já referidas.
3. A memória desse passado – naquele tempo – é insubstituível. Mas poderemos viver apenas na interpretação dessa memória?   
Precisamos de elaborar novas narrativas para as experiências novas da fé cristã! Não bastam os habituais boletins das paróquias e os chamados Encontros de Formação, nem os discursos teóricos sobre a Teologia Narrativa. Que processos concretos importa desencadear, nas paróquias e nos movimentos, desde a infância e em todas as idades, seja em que mundo for, para criar um clima cultural que ajude a fomentar, em todas as formas de linguagem simbólica, estilos novos para a expressão da fé?
Não se pode exigir a todos os catequistas, a todos os pregadores, padres e bispos, que tenham as atitudes, as palavras, os gestos, o humor e a misericórdia do Papa Francisco. Mas não é obrigatório servir-se da liturgia para ser aborrecido.

PS: Mário Soares declarava-se republicano, laico, socialista e agnóstico. Confessava que não tinha recebido a graça da fé. Não se cansava de dizer que o seu pai foi sempre um fervoroso católico. Cultivou amizade por alguns cardeais, bispos, padres e frades. A sua grande admiração pelo Papa Francisco levava-o a lamentar não ver, em Portugal, mais seguidores.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 15. 01. 2017


[1] Cf. Act 4,12-31.
[2] Hechos de los Apóstoles y orígenes cristianos, Sal Terrae, Santander 2015, pp. 167-169.
[3] Gal, 2,1-14

08 janeiro 2017

UNIVERSALISMO CRISTÃO (I)

           1. Num grupo de cristãos que se reúnem para estudar as leituras bíblicas da liturgia dominical, assisti a uma divertida discussão. Os textos deste Domingo da Epifania são muito belos, mas o debate recaiu numa pergunta que nem ao menino Jesus podia interessar: os Reis Magos existiram ou não? São personagens da história ou da imaginação? Eram Reis, eram Magos, eram dois, eram três, eram doze? Como poderão ter ido parar à Catedral de Colónia?
A história é contada por S. Mateus[1], um Evangelho para comunidades cristãs de origem judaica. Não fala de Reis, mas de uns Magos que chegaram do Oriente, sem precisar o número. Magos, no sentido actual da palavra, são pessoas que realizam truques de magia. Na Antiguidade, eram os estudiosos de ciências secretas, os sábios e os que investigavam o rumo das estrelas. Cientistas da época!
Olhando, de perto, para esta narrativa nada bate certo com uma história plausível. Nem como fenómeno astronómico, nem como uma convocatória de Herodes aos Sumos Sacerdotes e aos escribas. Por outro lado, como poderia passar despercebida, numa aldeia tão pequena, uma visita de tão célebres personagens, com uma carga de presentes tão impressionante? Como é que o astuto Herodes confia numa história da carochinha?
A. A. Valdés pergunta: quando Jesus, adulto, sai para pregar, ninguém sabe nada disto, nem que Ele é o Messias? Que aconteceu? Houve um ataque geral de amnésia na Palestina?[2]
É melhor ir por outro caminho. Antes de mais, importa ter presente que é preciso mostrar aos judeus cristãos que o que se passou com Jesus já estava previsto na Bíblia. Para se tornar verosímil aos conhecedores das Escrituras eram precisas selecções bem feitas. Hoje, a nós, pode parecer um excessivo e artificial concordismo. Mateus, porém, tinha de escolher o que encaixava melhor com a sua visão messiânica. Ao contar episódios da infância de Cristo, foi buscar narrativas de personagens do Antigo Testamento. Uma das figuras mais admiradas era a do rei Salomão. Gozava de uma sabedoria e inteligência tão extraordinárias que nenhum outro rei teve, nem antes nem depois dele[3]. A sua ciência foi superior não apenas à de todos os outros reis, mas até à de todos os sábios do Oriente. Chegou a compor 3000 parábolas, 1005 poemas e até escreveu tratados de botânica e zoologia!
 O episódio mais famoso e divulgado da vida de Salomão foi a visita da rainha de Sabá. Os judeus contavam-na com grande orgulho. Apresentou-se em Jerusalém uma rainha anónima, vinda de um longínquo país chamado Sabá. Tinha ouvido falar da extraordinária fama do rei israelita. Queria conhecê-lo e admirá-lo pessoalmente. Esta passagem era tão popular e conhecida que o próprio Jesus a citou quando os judeus não queriam acreditar nele: “no dia do juízo (final), a rainha do Sul há-de levantar-se contra esta geração para a condenar, porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. Ora, aqui está alguém maior do que Salomão”[4].
2. Na boa arte de fazer concordar, por antecipação, tem de bater tudo certo: uma rainha anónima viajou para Jerusalém de um país do Oriente. Agora, uns Magos anónimos de um país distante do Oriente puseram-se a caminho de Jerusalém. A rainha era sábia, sábios eram também os Magos. Ela procurava o rei dos israelitas para o admirar. Eles buscavam o rei dos judeus para o adorar. A rainha foi guiada por uma estrela. Os Magos também foram guiados por uma estrela até Belém. A rainha de Sabá, ao chegar, colocou enigmas difíceis de resolver e encontrou as respostas. Os Magos chegaram e colocaram um enigma difícil de resolver e encontraram a resposta. A rainha ofereceu a Salomão os presentes que trazia: ouro, incenso e pedras preciosas. Os Magos ofereceram ao Menino os presentes que lhe trouxeram: ouro, incenso e mirra.
Após admirar Salomão, a rainha regressou ao seu país e desapareceu da história. Depois de adorarem o Menino, os Magos regressaram ao seu país e desapareceram da história.
Os Magos desapareceram da história, mas não da imaginação dos cristãos que, relendo o Salmo 72, os fizeram reis. Mais tarde interessaram-se pelo seu número: de dois passaram a três, de três a quatro e, na Idade Média, chegaram aos doze. No séc. II, Sto Irineu insistiu na simbólica dos presentes: levaram ouro, porque Jesus era rei, incenso porque era Deus e mirra porque era homem.
As viagens das relíquias dos Magos não foram poucas e levaram séculos. Depois de terem nomes próprios - Belchior, Gaspar e Baltasar - e de os imaginarem de raças e cores diferentes - branco, amarelo e negro -morreram na Pérsia. Os restos mortais foram para Jerusalém. No séc. IV foram descobertos por Sta. Helena e transladados para Constantinopla no ano 490. Posteriormente, o imperador Manuel doou-os ao Bispo de Milão que os levou para a sua diocese no início do séc. XII. Por pouco tempo. Frederico Barba-Ruiva saqueou a cidade em 1162 e levou os corpos para Colónia (Alemanha), em cuja Catedral repousam actualmente.
3. Para 2017, a grande tarefa de um cristão, e de todas as pessoas de boa vontade, é a Paz anunciada num presépio de há dois mil anos. Chegaram agora D. Trump, V. Putin e Xi Jin Ping, os reis magos do dinheiro, do poder e das armas. Não cabem neste presépio. Mas é este que vale a pena. S. Paulo e o Papa Francisco vão ajudar-nos a saber porquê.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 08.01.2017


[1] Mt 21-12
[2] Cf.Os Reis Magos existiram?, Bíblica, Nov-Dez, 2016, nº 367, pp 3-7
[3] 1Rs 3-5
[4] Mt 12, 42