26 julho 2015

Livros para férias

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Durante vários anos, ao interromper estas crónicas durante o mês de Agosto, costumava destacar alguns livros para férias. Dizem-me que já não vale a pena. Hoje, quem não for velho e desajeitado como eu, dispõe dos livros que quiser nos seus iPhones ou iPads, ligados a uma nuvem, limpa, vadia e sempre disponível.

Acerca das férias, a Igreja distribuiu, na Missa do passado Domingo, um texto curioso, tirado do Evangelho de S. Marcos. Por razões óbvias, Jesus de Nazaré resolveu partir para férias com os discípulos: ”vinde para um lugar deserto e descansai um pouco sozinhos. Com efeito, os que chegavam e os que partiam eram tantos, que não tinham tempo nem para comer” [1].

Fugiram de barco, mas não adiantou nada. Tinham sido vistos. Quando desembarcaram, Jesus deparou com uma multidão que o procurava e, diz o texto, ficou cheio de compaixão, eram como ovelhas sem pastor. Como poderia ele ficar indiferente perante aqueles que andavam “cansados e oprimidos” [2]?

“Começou logo a ensinar-lhes muitas coisas”. Entusiasmaram-se e perderam a noção do tempo. Os discípulos, sempre desconfiados das estravagâncias do Mestre, foram-lhe dizer já era muito tarde e que despedisse aquela gente para que pudesse ir aos campos e às aldeias mais próximas arranjar algo para comer.

Resposta pronta de Jesus: “Dai-lhes vós de comer”. Fizeram contas e não havia dinheiro para ir comprar pão para aquela multidão! Jesus insiste: ide ver quantos pães tendes. Tinham cinco e dois peixes!

Foram para um lugar relvado, sentaram-se no chão, em grupos de cem e cinquenta pessoas. Jesus pegou naqueles cinco pães e dois peixes e, de olhos no céu, proferiu uma bênção, partiu os pães e deu-os aos discípulos para os distribuírem. Comeram todos quanto quiseram e ainda sobraram doze cestos de pedaços de pão e de peixes.

2. Depois de uma leitura destas, o padre corre o risco de ficar a gaguejar uma homilia inconsequente, pois o Mestre não deixou nenhum manual de instruções para quando fosse preciso outra intervenção de emergência.

Nos Evangelhos, o milagre não é uma solução. É apenas um sinal contra a resignação e o fatalismo, um apelo à imaginação criadora que não dispensa os caminhos das ciências e da inovação técnica. Situa-se na linguagem da mobilização para um objectivo que parece impossível de alcançar. Não se trata de algo exclusivo da religião. A recusa de um presente insustentável e a luta por um futuro que parece irrealizável é a mola da consciência humana, quando não se deixa anestesiar pelo conformismo da propaganda.

Isto é só meia verdade ou uma escapatória à dificuldade na leitura do texto. Se fosse assim, não haveria razão nenhuma para lhe dar tanto espaço. Mas não será da própria essência do Evangelho o sentido da partilha, da solidariedade, do dom? Enquanto houver pessoas que se comovem com a alegria e a tristeza que as rodeiam - que nos rodeiam – não podemos desesperar. Há salvação.

Eduardo Vera-Cruz Pinto, no seu recente manifesto sobre o futuro da Justiça em Portugal, não se perde em reformas no sistema existente. Aposta num processo radical de mudança das estruturas e do modelo institucional vigente [3].

Recomendo este contributo para um debate imprescindível na sociedade portuguesa. Vale para as férias e para depois das férias. Este género de “milagres” exige uma profunda conversão ao primado incontornável das pessoas concretas e do bem comum: “A construção política de uma comunidade de pessoas implica um combate eficaz à pobreza e esse combate passa pela luta por uma sociedade mais igual e mais justa, isto é, por uma sociedade que combata as causas da pobreza. Esse combate precisa de um sistema de justiça diferente daquele que temos hoje”.

 “O sistema em que vivemos produziu estas leis, estas ideias dirigentes, estas ofensas à pessoa. Veja-se por exemplo, que o Direito considera o trabalho uma dimensão essencial da personalidade da pessoa humana. Mas o sistema político vigente e aceite, obediente à troika e submetido a banqueiros e a jornalistas, criou biliões de desempregados, tratando-os como “mercadoria descartável”.

3. A linguagem do Papa Francisco vai-se difundindo. No entanto, dentro e fora da Igreja, ainda há muitos obstáculos a vencer, por inércia, por indiferença, por oposição declarada e, sobretudo, disfarçada. Daí que a grande leitura de férias poderá ser a meditação d’A Alegria do Evangelho (EG) e do Louvado Sejas (Laudato Si), que o Papa Francisco nos ofereceu.

E porquê? Porque abre todos os horizontes, sem fechar nenhum e sem se perder nas nuvens. Propõe uma Igreja de saída para a realidade, sem a pretensão de saber tudo. É uma abordagem da natureza, da história e da Igreja por quem se considera aprendiz do mundo e do Evangelho. Como é uma história aberta, não pode dispensar o contributo de ninguém. Basta olhar a realidade com sinceridade para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. Se o olhar percorre as grandes regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa que a humanidade frustrou a expectativa divina. Mas, podemos mudar de rumo. (Cf. LSI nº 61)

Público, 26.07.2014
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[1] Mc 6, 20-44
[2] Mt 11, 28
[3] O Futuro da Justiça, Vega, 2015


19 julho 2015

A religião não é para mulheres

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Em 1946, depois de cuidada preparação, começava, em Palma de Maiorca, o conhecido movimento Cursilhos de Cristandade. Eduardo Bonnin Aguiló foi sempre reconhecido como o seu carismático fundador. Vi-o e ouvi-o apresentar-se apenas como “aprendiz de cristão”.

Em Portugal, realizou-se o primeiro cursilho, em Fátima, de 19.11 a 02.12, de 1960. Frequentei o terceiro realizado no Porto. Ainda conservo o meu Guia de Peregrino. 

No princípio, este movimento destinava-se a proporcionar aos homens a descoberta, em três dias, de uma nova paisagem católica e operar uma viragem radical de comportamento pessoal, para alterar ambientes onde os participantes fossem considerados “vértebras da sociedade”.

Cada cursilho obedecia a uma selecção dos participantes, apenas de varões, apoiado em ficha secreta. Era moderadamente interclassista. O cenário do acolhimento, o cancioneiro espanholado, de colores, os gestos, os rolhos doutrinais, recheados de anedotas certeiras, destinavam-se a desconstruir o imaginário de uma religião beata e para beatas e fazer a passagem exaltante para o essencial de um catolicismo másculo, marcado pela euforia do sacrifício e do testemunho, sem preocupações de transformação social imediata. O grande e repetido enunciado de marca, com eficácia do melhor marketing, era este: a religião católica não é para mulheres.

Se os conteúdos dos cursilhos, os rolhos, eram tradicionalistas, a sua inscrição num ritmo de emoções muito fortes criava um ambiente que não deixava lugar para dúvidas ou questionamentos. Estavam espantosamente bem concebidos do ponto de vista técnico e psicológico, com tudo previsto até ao último pormenor e uma rede informativa que não deixava ao acaso nenhuma reacção dos participantes.

Tratava-se de um acontecimento da graça do Espírito Santo do qual a organização e os intervenientes eram puros instrumentos, pincéis do divino artista, mas que Ele não dispensava nem era possível alterar.

Quando, no Domingo, pelas duas da manhã, muitos daqueles  inebriados chegavam a casa, acordavam a família e punham-na a rezar de joelhos e a cantar, em espanhol, de colores! As mulheres que, anos a fio, com tanto esforço, tentaram levar os maridos à Missa, sem qualquer resultado, passavam a não entender donde vinha tanto fervor.

O pós-cursilho tentava reeditar o fervor emocional e delirante da noite da sua conclusão, a “mega-ultreia”.

Dizia-se que os cursilhos de senhoras nasceram para que pudessem entender a nova religião dos maridos.

Segundo me dizem, realizaram-se, entretanto, ajustamentos de acordo com as redescobertas eclesiológicas do Vaticano II.

Apesar de tudo, os cursilhos foram uma pedrada eficaz no charco do conformismo anti-religioso.

2. Sabemos que foi às mulheres, suas discípulas, que Jesus ressuscitado confiou a reevangelização dos Apóstolos. Cristo respondeu assim ao seguimento e à fidelidade inquebrantável de um grupo de mulheres que, ao contrário dos discípulos, nunca lhe pediu nada em troca.

Numa obra, de grande e rigorosa erudição [1], A. Cunha de Oliveira desmascara O Código Da Vinci, de Dan Brown, retomando todo o dossier do absolutamente inverosímil casamento de Jesus com Maria Madalena e aborda, de forma minuciosa, o discipulado das mulheres, assim como os seus ministérios ordenados até ao séc. IV.

Jesus de Nazaré, celibatário, “apreciava a amizade, a companhia, o apoio, o serviço e até as provas de apreço e de gratidão que as mulheres lhe prestavam”. Quando, no Concílio de Niceia, se considerou a hipótese de impor o celibato aos diáconos, padres e bispos, foi Pafnúcio, o famoso bispo celibatário do Alto Egipto, quem dissuadiu os colegas de tomar tal decisão!

3. A bibliografia sobre a relação entre a Igreja Católica e o Estado Novo não pára de aumentar [2]. A longa agonia da Acção Católica, a chegada de movimentos católicos, de índole internacional e a sua marca na configuração do catolicismo português, a partir dos anos 60, apresenta-se, pelo contrário, ainda pouco estudada. Parece-me urgente, no entanto, dar a conhecer às novas gerações o papel desenvolvido por um conjunto de mulheres, na segunda metade do séc. XX e no séc. XXI de um caminho, muito novo, em Portugal.

Estou a referir-me à reabilitação exemplar de um catolicismo feminista, sem complexos nem obsessões anti-masculinas.

É sempre como mulheres e homens que Deus os cria e recria, sem subordinações nem imposições recíprocas. São apenas admiravelmente diferentes e cooperantes. Substituindo o poder de dominar pelo gosto de servir a emancipação de todos os seres humanos, as mulheres retomam o testemunho do Evangelho da ressurreição do mundo.

Foi assim que conheci Maria Natália Duarte Silva Teotónio Pereira (1930-1971); Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004): Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004); Ana Vicente (1943-2015); Maria de Jesus Simões Barroso Soares (1925-2015). Evoco apenas aquelas que já vivem na alegria de Deus e no cuidado da nossa Casa Comum.

Público, 19.07.2015

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[1] Jesus de Nazaré e as Mulheres. A propósito de Maria madalena, Instituto açoriano de cultura, Angra do Heroísmo, 2011
[2] Cf. Povos e Culturas, Nº Especial, 2O14

12 julho 2015

Para vencer o clericalismo

Frei Bento Domingues, O.P.

 1. A vida é feita de conflitos e consensos. As instituições precisam de mediações e instâncias que saibam estimular e regular a participação viva de todos os seus membros. Esta é também uma questão fulcral das Igrejas.

O último número da revista da faculdade de teologia, Didaskalia [1], é dedicado, precisamente, à Sinodalidade na Igreja. Não é importante apenas pela circunstância de continuar em debate o Sínodo dos bispos sob a família e de vários sínodos diocesanos. Merece especial destaque pela qualidade dos estudos reunidos, de várias nacionalidades, sobre um tema que percorre, desde o começo até aos nossos dias, os momentos mais marcantes da História da Igreja local e universal e que está longe de ter encontrado modalidades perfeitas, para não dizer minimamente aceitáveis.

Curiosamente, Medard Kehl, SJ, abre o seu texto dando a palavra a um céptico, o famoso Gregório Nanzianzo (329 – 389), bispo e teólogo de Constantinopla. Céptico, porque andava enjoado com a pouca produtividade de tantas assembleias de bispos locais ou universais em que participara. Ele próprio confessou: na verdade, eu evito todo e qualquer Sínodo, porque ainda não assisti a um final feliz em nenhuma dessas reuniões, nem vi que qualquer delas tivesse encontrado solução para os males. Pelo contrário, amplia-os. As disputas e as rivalidades são constantes e mais do que é possível descrever com palavras.

Este juízo arrasador sobre sínodos ou concílios tornou-se um lugar-comum para os adversários destas instituições: “muito palavreado, muita rixa, nenhumas soluções de monta para os problemas pendentes e, em vez disso, o seu agravamento”.

Por outro lado, este extremismo, azedo e mordaz, gerou outro muito recente e de sinal contrário: o clericalismo. O ministério eclesiástico e a hierarquia passaram a chamar a si a decisão de configurar o futuro da Igreja. Eles é que sabem, eles é que mandam. Não acreditam no diálogo, isto é, no equilíbrio a conseguir entre várias tendências e pontos de vista em conflito.

2. O Vaticano II (1962-65) apelou para a importância da colegialidade episcopal, embora em fórmulas de compromisso entre reformistas e conservadores. Não conseguiu destronar o clericalismo. Certa posteridade  até o revigorou. 50 anos depois, o Papa Francisco, com poucos meses de pontificado, surpreendeu muita gente ao convocar uma terceira Assembleia Geral Extraordinária sobre “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”. Celebrou-se em Outubro de 2014 e serviu de preparação para a XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, prevista para Outubro de 2015, com o lema: “Jesus Cristo revela o mistério e a vocação da família”.

Veremos o que daí vai sair, dado que a sensibilidade familiar dos bispos católicos e celibatários é configurada de forma bastante indirecta e a representação familiar propriamente dita é insignificante. Graças ao Papa Bergoglio, o processo foi reatado, está em andamento, mas por um caminho cheio de obstáculos.

Não se deve esquecer que foram bispos com o papa que assinaram os documentos conciliares, afirmando que a Igreja não é constituída apenas pela hierarquia. Esta está ao serviço de todos os cristãos e só com eles forma a Igreja de Jesus Cristo. Quem se atrevesse a dizer: os cristãos não contavam para a orientação da Igreja e devem continuar a ser ignorados, seria considerado uma anedota, mas ter, na prática, esse comportamento é apenas ser conservador. Teremos de renunciar à declaração fundamental e conciliar, nós, cristãos, somos a Igreja? Teremos de renunciar a ter voz na Igreja, para que ela tenha voz no mundo?

3. Por estas razões, importa rever toda a história da vida conciliar e sinodal, como pedia o grande historiador Guiseppe Alberigo, citado no estudo de I. Pereira Lamelas. De outro modo não saímos do mundo clerical em que “os demais membros da Igreja têm um papel meramente facultativo”.

Vale a pena observar a atmosfera descrita pelo bispo de Alexandria, Dionísio (séc. III), de uma reunião conciliar, para responder a alguns cristãos acusados de seguirem a heresia milenarista. O debate decorreu durante três dias, do nascer ao pôr-do-sol: 
Pude, então, admirar o equilíbrio, o amor à verdade, a facilidade de acompanhar o raciocínio, a inteligência dos irmãos quando, por ordem e com moderação, íamos expondo as perguntas, as objecções e os pontos de convergência. Por um lado, tínhamos recusado agarrar-nos obstinada e zelosamente a decisões já tomadas, mesmo quando pareciam justas; por outro lado, não evitávamos as objecções, mas, na medida do possível, dispúnhamo-nos a abordar os temas propostos de forma cabal. Não nos envergonhávamos, tão pouco, de mudar de ideias e concordar se a argumentação o exigia; antes pelo contrário, de plena consciência e sem hipocrisia e com o coração aberto a Deus, aceitamos o que era exposto pelos argumentos e os ensinamentos das Sagradas Escrituras.
Não estávamos lá para saber se o bispo Dionísio não seria um pouco lírico, mas, para considerações azedas, já temos as do bispo Gregório Nanzianzo. São bispos. Para vencer o clericalismo é preciso escutar também, nas cidades e nas aldeias, a voz dos cristãos que lutam por uma Igreja de todos ao serviço da casa comum.

Público, 12.07.2015

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[1] Vol. XLV, 2015, fasc.1, pp. 135-144

05 julho 2015

Uma encíclica desastrosa

Frei Bento Domingues, O.P.

1. No dia 26 de Junho recebi uma mensagem: não deixe de comprar hoje o DN. Ia no comboio! Como os meus ouvidos já confundem os ruídos, consegui perceber, no entanto, que se tratava de alguém muito zangado com a encíclica do Papa. Quando cheguei ao destino, deparei com um artigo de Miguel Ángel Belloso (director da revista espanhola Actualidad Económica), Um Papa pessimista e injusto.

O artigo não é original, mas merece atenção. Tentarei um resumo. Inscreve-se num conhecido projecto internacional, de católicos e não católicos, destinado a engrossar, cada vez mais, a campanha contra o papa argentino. O autor confessa uma grande admiração pelos papas que imediatamente o antecederam. Bergoglio, pelo contrário, em muito pouco tempo, impulsionou uma revolução na Igreja.

A sua nova encíclica, Laudato si', a sua carta pastoral Evangellii gaudium, assim como as suas frequentes intervenções nos foros públicos reflectem um pessimismo ontológico.
Confesso que não percebi onde é que Belloso descobriu esse “pessimismo ontológico”. Para ele, a verdadeira estatística é esta: apesar de todas as suas imperfeições, estamos no melhor dos mundos, com tendência a ficar cada vez mais radioso, se não tocarmos na sua gloriosa evolução.

Estes são dados, mas é como se a verdade fosse uma inconveniência para Francisco e para o conjunto da esquerda. João Paulo II pensava que a solução para os males do mundo estava em cultivar as virtudes pessoais e em voltar a olhar para Deus. Francisco é um Papa decididamente político, um socialista convencido. O autor, Belloso, acredita que o melhor é um mundo governado pela força espontânea do mercado.

Nesta desastrosa encíclica, Francisco segue a narrativa segundo a qual o chamado neoliberalismo despojou o mundo das suas naturais abundâncias e bondade. A partir desta concepção nostálgica e pessimista, incita os governos à acção para reverter as perdas materiais das últimas décadas. Mas nem estas foram tão grandes nem a acção do governo é o meio mais adequado para procurar o bem comum.

Os católicos tiveram muito azar com este Papa. Converteu-se num poderoso aliado das teses erróneas da esquerda que nunca proporcionaram o bem-estar geral e sustenta umas posições infelizes que casam muito mal com o seu papel de líder religioso mundial.

2. Este senhor percebeu muito bem a posição de Bergoglio. Bastou-lhe colocar-se no polo oposto para ver que as duas posições eram incompatíveis, mas a dele é a única verdadeira. Ao referir-se à interpretação política dos documentos e das frequentes intervenções nos foros públicos deste Papa parece um lamento por não poder contar com ele para as suas posições. Estava convencido que o pensamento e as actuações dos dois últimos papas lhe eram favoráveis e, por isso, estavam certas. 

Seria lastimável que agora, na Igreja, tudo fosse medido pelo seguinte critério de verdade: quem é pró e quem é contra o Papa. Não é o bom caminho. O Papa Francisco não pauta a sua acção e o seu pensamento pelo critério da infalibilidade: quem está comigo está com Deus, quem não está comigo está com o diabo. Acerca da pastoral da Igreja e, agora, acerca da ecologia, publicou apenas ideias para debate. Ele não pediu que os referidos documentos fossem abordados com espírito de adoração. Não acredita no velho adagio: Roma falou, assunto arrumado.

Como regra, perante a palavra do outro, devemos perguntar-nos donde é que ele fala, que interesses defende, que causas o norteiam? Neste caso, vale a pena perguntar: o que preocupa M. Ángel Belloso e o que preocupa o Papa? Este vê o mundo a partir dos sobrantes e dos descartáveis. Não tem soluções técnicas para desenhar um presente e um futuro que os inclua. Tem, no entanto, de gritar que não é inevitável que o nascimento ou a vida coloque uns no centro e outros à margem da sociedade. Se somos da mesma humanidade e, na interpretação cristã, se somos irmãos, alguma coisa tem de se arranjar. Pelo contrário, Belloso vê o mundo a partir daqueles a quem tudo está a correr bem. Tempo virá em que irá correr bem a todos. Até lá, azar!

Não seria nada mau que, um dia, os dois olhares se cruzassem. Que pudessem conversar sobre a raíz comum e as sortes tão diferentes.

3. Embora pouco praticantes do ecumenismo entre as Igrejas cristãs e de diálogo inter-religioso, estamos sempre dispostos a louvá-los. Já aqui referimos a posição do Papa sobre a necessidade de não deixar esta questão nas mãos de especialistas. Teríamos de esperar pelo dia seguinte ao do Juízo Final.

Será impossível estabelecer pontes entre tendências, grupos, movimentos católicos, por mais diferentes que sejam, no serviço da sociedade? Não se trata de negar as divergências, mas de encontrar os pontos de convergência.

Seria, no entanto, redutor e ridículo fazer da ecologia uma questão confessional. Bergoglio também não pretende definir questões científicas nem substituir-se à política. Deseja aprofundar um debate em que todos possam participar na salvação da casa comum. Esta não é propriedade privada de nenhuma geração e todas têm de pensar na herança que deixam aos seus filhos. Somos, apenas, os gestores dessa herança. Seria um desastre ignorar esta evidência.

Público, 05.07.2015