26 novembro 2017

A Igreja fechada no seu “Olimpo”

       É difícil olhar para a persistência de uma dupla moral em sectores com muita responsabilidade na Igreja Católica.

Conta-se que Hegel, cuja filosofia pretendia constituir uma interpretação total e totalizante da realidade, terá sido um belo dia confrontado com um estudante que lhe fez esta simples pergunta: “E se a realidade não for assim?” Hegel, saindo do “Olimpo” da sua complexidade filosófica, terá respondido: “Então, tanto pior para a realidade!”

O surgimento recente, na sociedade portuguesa, do debate em torno do tema da homossexualidade como motivo de rejeição de candidatos ao sacerdócio e da existência de padres católicos com filhos — na sequência de declarações proferidas por um alto representante da Igreja em Portugal na semana passada — poderia constituir uma oportunidade para olhar para a realidade, e não para um “dever ser” castrador e humilhante para os diretamente envolvidos e para a própria Igreja Católica. Neste sentido, o enunciar destas questões constitui uma “saída do armário” (diria antes, “de vários armários”) de um discurso que torna explícita a forma como membros relevantes da hierarquia da Igreja Católica (pois é a posições a este nível que nos referimos ao longo deste texto, e não aos católicos em geral) encaram realmente, não encarando, as questões da sexualidade, da dignidade das mulheres e das famílias nas suas várias formas, mas também a dificuldade em ultrapassar um pensamento em relação a estes temas que não implique o “recuo para o Olimpo” ou, por assim dizer, a tentativa frustrada e visivelmente pouco lógica de conseguir fazer a quadratura do círculo. Senão, vejamos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma, no seu artigo 2.º: “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.” Como é possível compatibilizar os discursos da Igreja Católica em defesa dos Direitos Humanos com esta exclusão manifestamente contrária aos mesmos?

Além disso, não será também legítimo perguntar o que pretende a Igreja fazer relativamente a padres e bispos que sejam homossexuais? Se a questão se relaciona com o celibato obrigatório, nada a distingue das normas que os padres heterossexuais “têm de cumprir”. Se é com a intenção de prevenir situações de pedofilia, pensar que o risco de situações de abuso sexual é menor se não houver padres homossexuais é um raciocínio lamentável, pois a pedofilia atinge tanto pessoas homossexuais como pessoas heterossexuais. E se é verdade que esta questão também não tem relação direta com o celibato obrigatório é, por outro lado, necessário falar do mesmo.

É sabido que, quando o celibato se tornou obrigatório para o clero não monástico, uma vez que os monges e os frades vivem em comunidade e esta questão não se lhes coloca da mesma maneira, pretendia-se que constituísse um sinal de “purificação” de uma Igreja a deixar-se enlear e a criar, ela própria, situações de escândalo, nomeadamente de corrupção, para as comunidades. Será que hoje a afirmação de que o celibato é relevante para manter “o perfil do sacerdote” ainda será interpretada pelos católicos como um sinal positivo? Será que garante o respeito das comunidades pelo padre? Se o padre for corrupto, autoritário, intolerante, tem o respeito garantido pelo facto de ser celibatário?

Além disso, não entra a ideia de que “se o celibato deixar de ser obrigatório, perde-se o perfil do sacerdote” em contradição com a realidade da Igreja Católica de rito bizantino, na qual os padres são ou podem ser casados? Terão eles “perdido o perfil de sacerdotes”? Por outro lado, se o celibato é querido como um valor em si mesmo para se ser sacerdote, poderão todas as pessoas que decidiram viver em celibato candidatar-se a ser padres (desde que não possuam “tendências homossexuais”)?

Estas questões, associadas à forma como a Igreja encara a existência de filhos de padres, tornam (mais uma vez) visível, ainda que de um outro modo, as dificuldades que a mesma tem em equacionar a sexualidade e em reconhecer de facto o estatuto pleno de ser humano às mulheres. Estas dificuldades parecem querer ser sublimadas muito frequentemente através de um discurso idílico sobre a família. Ora, desta vez, não foi isso que aconteceu. E não foi isso que aconteceu porque o caso de um padre que assumiu ter uma filha fez notícia, “saindo assim do armário” uma situação silenciada, normalmente, à custa da renúncia ao contacto com a mãe da criança, a troco de pensões para filhos com os quais, no entanto, os padres não viverão, e da possibilidade de permanecer no sacerdócio (não me refiro aqui a casos em Portugal, porque não possuo esses dados, mas sim a situações concretas minhas conhecidas noutros países europeus).

O facto de existirem muitas situações em que a renúncia à mulher constitui a moeda de troca para continuar a exercer o sacerdócio, por vezes fora do país onde a criança e a sua mãe vivem, “faz sair do armário” a “ideologia de género” de que a própria Igreja “sofre” sem o reconhecer: é que é à luz da “ideologia” que atribui determinados papéis e características às mulheres (neste caso, terem a obrigação de educar os filhos sozinhas, por terem colocado o homem-sacerdote “em pecado”, tal como Eva colocou Adão!) que a Igreja está disposta a expor-se perante o mundo como uma instituição cujo discurso insiste na santidade da família como pilar da sociedade e como “igreja doméstica”, à exceção das situações em que a família seja constituída por uma mulher, um padre e um filho (embora se deva notar que a palavra “mulher” nunca é mencionada nas declarações acima referidas, onde apenas se fala de “conjugalidade).

Nestes casos, os padres “devem assumir a responsabilidade pelo filho”, sim, mas o filho é privado do contacto diário com o pai e a mãe desaparece do cenário devendo viver muda e “como morta” relativamente ao pai da sua criança. É difícil (mas útil) olhar para a persistência de uma dupla moral em sectores e instituições com muita responsabilidade na Igreja Católica, segundo os quais é preferível o silêncio, porque permite a duplicidade, do que a afirmação e a explicitação de identidades e de opções de vida contrárias a uma normatividade com dificuldade em reconhecer que a vida “fora do Olimpo” não é tão (hipocritamente) simples.

Teresa Toldy[i]
in Público 25 de Novembro de 2017

[i] Teóloga; Universidade Fernando Pessoa; Policredos (CES)

Entrevista de Frei Bento Domingues ao Público

       Frei Bento Domingues sustenta que Igreja só está “com este problema ridículo às costas porque recusa discutir o fim do celibato eclesiástico”. Bispos portugueses reúnem-se esta semana mas não abrem a boca sobre o assunto.
 NATÁLIA FARIA

 “O assunto não está na agenda”. A 193.ª assembleia plenária dos bispos portugueses começa hoje, mas o celibato não será discutido XX DIREITOS RESERVADOS
 “O voto de celibato dos padres não é dogma nenhum. Quem fez essa norma do direito canónico também a pode – e deve – desfazer. Ao fim e ao cabo, qual é esse tabu do sexo?”. O dominicano frei Bento Domingues, considerado por muitos o maior teólogo português, não duvida de que o sobressalto provocado esta semana pelo padre Giselo Andrade, que assumiu a paternidade de uma criança nascida em Agosto, e que, ao que tudo indica, continuará em funções na sua paróquia no Funchal, deveria ser aproveitado pela Igreja Católica portuguesa para discutir o fim do celibato eclesiástico.
“O reconhecimento da paternidade desta criança é uma questão de direitos humanos, parece-me indiscutível. Quanto ao padre continuar ou não em funções, só pode haver um ‘não’ se houver rejeição dos paroquianos. E os próprios bispos deviam ter o cuidado de mostrar que isso não é problema”, diz frei Bento Domingues. “A Igreja só está com estes problemas ridículos às costas porque se recusa a discutir o problema de fundo: o celibato e as supostas objecções teológicas que levam a que as pessoas casadas não possam ser ordenadas e a que os padres em exercício não se possam casar. Isto é um desastre”.

Padre que assumiu paternidade de criança continua (para já) à frente de paróquia

Numa altura em que “até Lisboa estaria sem padres para todas as dioceses se não fossem as congregações religiosas”, o teólogo crê que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) deveria “abandonar a sua resistência passiva contínua às orientações do Papa Francisco” – que tem dado sinais de eventual abertura à ordenação de homens casados –, e começar a pressionar o Vaticano para retroceder na questão do celibato. “O Papa não o pode fazer sozinho sem despertar o clamor dessa gente que está a fazer campanhas internacionais contra ele, tem que ser uma coisa a partir das conferências episcopais e dos bispos.
“Continuar a insistir nas mesmas condições para ser ordenado padre é uma demonstração de excessiva confiança no milagre da sua multiplicação”, ironiza Bento Domingues, para quem “se não olhar de frente esta questão, a Igreja consentirá na existência de cada vez mais pessoas baptizadas sem direito à eucaristia”.
Porém, a CEP não parece disposta a abrir qualquer brecha no muro que, sobretudo desde Gregório VII, no século XI, separa o sacerdócio da possibilidade do matrimónio. “O assunto não está na agenda”, escusou-se o porta-voz da CEP, Manuel Barbosa, quando o PÚBLICO lhe perguntou se o caso do Funchal e os problemas que este convoca serão abordados na 193.ª assembleia plenária dos bispos portugueses, que começa esta segunda-feira e discutirá o novo documento orientador para a formação dos sacerdotes e a exortação apostólica pós-sinodal sobre a família.
O PÚBLICO mandou dezenas de emails às diferentes dioceses do país, mas só o bispo das Forças Armadas, D. Manuel Linda, respondeu, lembrando que não haverá na quebra dos votos do celibato “mais falhas do que, por exemplo, na devida e jurada relação matrimonial”. E quando um padre se torna pai, defende,“ao menos que se cumpram os deveres de justiça relativamente às crianças nascidas nesta situação”. “E o dever mínimo”, resume, é "perfilhação, alimentos, afectividade, educação…”.
Quanto à imposição do celibato, D. Manuel Linda diz apenas que “a Igreja continua a apreciar o voto do celibato, desde que assumido com liberdade, alegria e generosidade”.
É pouco. Mas é mais do que se espera ouvir da CEP, cujo silêncio “teimoso”, como o qualifica frei Bento, persiste numa altura em que, lá fora, o problema ganha contornos mais definidos. Em 2014, o Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas deu três anos ao Vaticano para fazer o levantamento do número de crianças nascidas de membros da Igreja e assegurar-se de que estas vêem respeitado o direito a conhecer o pai. A proibição dos acordos de confidencialidade impostos pela Igreja a muitas destas mulheres era outra das condições da ONU. O prazo terminou a 1 de Setembro e o relatório ainda não foi entregue, embora esteja “a ser preparado”, segundo fonte do comité.
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Em Maio, a Conferência Episcopal Irlandesa (CEI) decidiu emitir orientações claras quanto ao problema dos filhos dos padres. O documento, que quebra um silêncio de séculos, lembra que um padre, como qualquer outro pai, “deve enfrentar as suas responsabilidades – pessoais, legais, morais e financeiras”. E acrescenta que cabe aos superiores religiosos assegurar que nenhum padre se exime às suas obrigações.
Ao PÚBLICO, Vincent Doyle, o psicoterapeuta irlandês que descobriu aos 28 anos que o seu pai era, afinal, o padre com quem passara largas temporadas na infância, e que fundou depois disso o Coping- Children of Priests International, que deu visibilidade ao problema, considerou, que depois da tomada de posição dos bispos irlandeses, nenhuma conferência episcopal se pode “dar ao luxo de ficar calada”. Quanto ao caso do Funchal, Doyle lembra que a pressão no sentido de que o padre assuma as suas responsabilidades perante o filho não é compaginável com o seu afastamento. “Não se pode dizer com razoabilidade ‘vai, toma conta da tua criança' e ao mesmo tempo ‘estás despedido’ – não só não é justo com a mãe, como põe a criança em desvantagem”, sustenta. Sublinhando que “não haverá muitas oportunidades de emprego para um ex-padre”, pergunta aos bispos: “O que é mais importante: as vossas leis ou que a criança tenha comida na mesa todos os dias?”.
in Público 13 de Novembro de 2017

TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO OU LIBERTAÇÃO DA TEOLOGIA? (3)

       1. Depois das duas crónicas anteriores, importa responder à pergunta que as motivou e que elas tentaram introduzir: qual foi o impacto da Teologia da Libertação (TdL) em Portugal?
O peruano Gustavo Gutiérrez, considerado o pai da TdL, explicou, muitas vezes, como ela nasceu e se desenvolveu. Para ele, os anos que vão de 1965 a 1968 foram os mais decisivos na experiência dos movimentos populares da América Latina (AL) e na participação dos cristãos nesses movimentos. A TdL tem aí as suas raízes. A célebre Conferência de Medellin (Colômbia 1968) assumiu uma das tarefas que João XXIII tinha proposto ao Vaticano II: a causa dos pobres. O tema central da Conferência acabou por ser reformulado nos seguintes termos: a Igreja do Vaticano II à luz da realidade latino-americana.
Na TdL existem duas intuições centrais e que foram, mesmo cronologicamente, as primeiras: o método teológico e a perspectiva do pobre. O acto primeiro é o compromisso com o processo de libertação; a teologia brota daí como acto segundo, servida pelas ciências humanas e sociais. É a reflexão crítica a partir e sobre a praxis histórica em confronto com a Palavra de Deus. Esta é acolhida na Fé que nos chega através de múltiplas e, por vezes, ambíguas mediações históricas, que importa refazer no dia-a-dia.[i]
As lideranças da Igreja da AL fizeram o que deveria ter sido feito em todos os continentes. O Vat. II trabalhou na viragem do papel da Igreja no mundo contemporâneo. Pertencia às Igrejas locais confrontarem-se com a significação dessa viragem. Esta tarefa exigia a realização de mini-Vaticanos II de acordo com a diversidade de povos e culturas, tornando o Concílio efectivamente ecuménico.
2. Em Portugal, como mostrou mais tarde o Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel de Almeida Trindade, o Vaticano II não foi preparado, não foi acompanhado e, por isso, ficou sem pessoas ou grupos que tivessem incorporado esta revolução. Como dizia o Cardeal Cerejeira, nós já estávamos muito mais adiantados do que aquilo que era dito, discutido e decidido nessa assembleia conciliar. A tradução dos livros litúrgicos e, na celebração da Eucaristia, o padre ter abandonado a posição de costas para o povo foram ganhos evidentes.
O importante era impedir quaisquer interrogações, discussões, debates. Por outro lado, o regime de censura política era suficiente para preservar o país desse contágio. A inércia dos dirigentes da Igreja portuguesa só podia agradecer.
Não se pode esquecer que a situação do país, a nível interno e internacional, era complicada e agravou-se durante a época conciliar: três frentes de guerra[ii], imigração galopante e uma juventude sem perspectivas. São temas já saturados de análises diversas e também não faltam estudos sobre as relações entre a Igreja e o Estado Novo.
O catolicismo tradicional entrou em crise um pouco por toda a parte. Não por causa do Concílio, como muitas vezes se diz, mas porque, mesmo a nível do Vaticano, não houve resposta para concretizar as orientações conciliares. Algumas medidas autoritárias, entre elas as referentes à ética matrimonial, aos ministérios ordenados e às mulheres, impediram que o Vat. II realizasse a sua primavera. O inverno que se seguiu foi muito longo.
Portugal, além de sofrer o que outras Igrejas sofreram, não estava preparado, nem tinha recursos para enfrentar a originalidade das nossas dificuldades. A Acção Católica entrou em crise irreversível e os movimentos que entretanto surgiram não era com o futuro do Vat. II que estavam preocupados.
Com o 25 de Abril, os militantes católicos, cada um com as suas preferências, interessaram-se, sobretudo, com as dimensões sociais e políticas do país. Não houve, no interior da Igreja, espaços e meios para alimentar a Fé em novo contexto. Os chamados Vencidos do Catolicismo e os católicos não praticantes (do culto) passaram a ser uma designação corrente.
3. Falta a resposta à pergunta principal: qual foi o impacto da Teologia da Libertação (TdL) em Portugal?
Uma resposta documentada e exaustiva não cabe nas dimensões desta crónica[iii]. É importante esclarecer que a situação que se vivia em Portugal, quando nasceu a TdL na América-Latina, era de opressão política e eclesial, como foi referido. Aconteceu, no entanto, um pequeno milagre na Teologia não académica. As Congregações Religiosas (depois também alguns Seminários) uniram-se para criar o Instituto Superior de Estudos Teológicos (ISET), no seguimento do que já tinha sido iniciado em Fátima (Sedes Sapientae e ISTA). Teve realizações muito diferentes em diversas cidades do país, mas só trabalhei no de Lisboa. Era uma escola teológica, profundamente democrática no seu funcionamento interno, num país de ditadura político-religiosa.
O seu Programa foi elaborado para realizar as orientações do Vaticano II. Não era, sobretudo, para explicar os seus documentos. O objectivo era muito mais ambicioso: integrar, na reflexão teológica, não apenas as ciências humanas, mas o pulsar da vida do país em todo o seu devir e complexidade. Assumia as questões da guerra e da paz, as transformações aceleradas no mundo do trabalho e na desertificação rural. Construía uma nova Teologia marcada pelos acontecimentos e pelos “sinais dos tempos”, numa tentativa de preparar alunos e professores para discernir o que é que se exigia da Igreja no nosso país em transformação.
Clodovis Boff, ao examinar o que se estava a fazer no ISET, testemunhado no seu Boletim, concluiu que, sem o nome, a problemática e o método seguidos eram os praticados na América Latina com o nome de Teologia da Libertação.
O ISET de Lisboa durou de 1967 a 1975. Começou na ditadura e foi encerrado quando a liberdade chegou a Portugal. Uma campanha eclesiástica, acusando esse centro teológico de falta de ortodoxia, serviu para obrigar os seus estudantes a frequentarem a Faculdade de Teologia da Universidade Católica, ainda muito incipiente.
Lembrei esse passado, mas o que me interessa é o futuro reaberto pelo Papa Francisco, sonhado e trabalhado por muitos que já não puderam ver esta nova esperança.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 26. 11. 2017


[i]  Gustavo Gutiérrez, La fuerza histórica de los pobres, CEP, Lima, 1980
[ii] Cf. António Lobo Antunes, Até Que As Pedras Se Tornem Mais Leves Que A Água, D. Quixote, 2017; Isto não é uma crónica, é um vómito de indignação, 1n Visão (08.06.2017).
[iii] Cf. Frei Bento Domingues, O.P., Alguns estilos de prática extra-universitária em Portugal. Breves notas de leitura, in Didaskalia XLVI (2016) II, pp. 91-97; Catarina Silva Nunes, Compromissos incontestados. A auto-representação dos intelectuais católicos portugueses, Paulinas, 2005; Moisés Lemos Martins, Os dominicanos e o ensino da Teologia em Portugal, in A restauração da Província Dominicana em Portugal, Tenacitas 2012, pp. 105-120; Cf. Tb. Teologia da Libertação e prática da Teologia, Número especial de Igreja e Missão, nº 127 (1985).

19 novembro 2017

TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO OU LIBERTAÇÃO DA TEOLOGIA? (2)

      1. Recebi, recentemente, três obras de três consagrados autores portugueses. Uma é de António Lobo Antunes, outra de Frederico Lourenço e a terceira de António Damásio. Uma pertence à criação literária, outra ao alargamento do nosso mundo bíblico e a terceira à investigação científica. Ninguém escreve como Lobo Antunes, ninguém pode ousar o que Frederico Lourenço consegue, a antropologia científica, filosófica e sapiencial de António Damásio é o guião e o mapa que nos faltavam para a fascinante viagem às raízes da vida, dos sentimentos e das culturas humanas. Mostra-nos como e porquê “os seres humanos acabam sempre por depender da maquinaria dos afectos e das suas ligações com a razão. Não há maneira de fugir a tal condição”.
     Conhecer essa maquinaria ajuda a não sermos cegos a conduzir outros cegos para o desastre pessoal e colectivo. As investigações destinadas a saber quem somos, como somos, quem podemos e devemos ser, requerem a cooperação de todas as ciências e sabedorias. A cultura da cooperação é um caminho luminoso para nos irmos libertando do egoísmo, o inimigo público e privado do presente e do futuro da humanidade.
 Repete-se que a ciência e a tecnologia podem ser usadas para melhorar o nosso futuro – o seu potencial continua a ser extraordinário – ou podem representar a nossa perdição. Pode-se continuar, por outro lado, a desenvolver a ideia de que o ser humano é uma paixão inútil que importa substituir por outra coisa mais limpa, mais inteligente e mais rentável. Essa coisa pós-humana já está configurada, mas continuo a não saber para quem.  
Destaquei o novo livro deste investigador português, radicado nos EUA, porque, em primeiro lugar, preciso dele – talvez não seja o único – para perceber “a estranha ordem das coisas” na evidente desordem do mundo. Ao chegar ao fim, exprime uma atitude que é essencial à libertação da teologia. Permito-me transcrever: “Em primeiro lugar, e tendo em conta as imensas novas e poderosas descobertas científicas, é fácil ceder à tentação de acreditar em certezas e interpretações prematuras que o tempo se encarregará de rejeitar impiedosamente. Estou preparado para defender a minha actual visão sobre a biologia dos sentimentos, da consciência e das raízes da mente cultural, mas não tenho ilusões sobre a durabilidade dessa visão. Em segundo lugar, embora seja possível falar com alguma confiança das características e das operações dos organismos vivos e da sua evolução, e embora seja possível situar o início do respectivo universo há cerca de 13 mil milhões de anos, não temos qualquer relato científico satisfatório quanto à origem e ao significado do Universo, ou seja, não temos uma teoria de tudo que nos diga respeito. Serve isto para recordar que os nossos esforços são modestos e hesitantes, e que devemos estar a abertos e atentos quando decidimos abordar o desconhecido”[i].
2. Se as lideranças da Igreja, os teólogos, os padres e os catequistas tivessem estes cuidados de puro bom senso teriam evitado, às comunidades cristãs, muitos falsos problemas no campo da criação cultural, das ciências, da acção pastoral e da ética. Não tomariam atitudes e decisões que pudessem impedir uma virtuosa abertura ao futuro, ao imprevisto e imprevisível.
Nota-se isto em muitos âmbitos, mas tornou-se uma tragédia que se aprofunda e alarga, dia a dia, em relação aos “ministérios ordenados” de solteiros e casados, sobretudo à declaração de que as mulheres nunca poderão receber o sacramento da Ordem. Poder-se-ia perguntar como é que se sabe tanto acerca do futuro e tão pouco acerca do presente?
Configuraram-se as instituições funcionais da Igreja para determinados contextos sociais e culturais que não podem ter garantias de eternidade. Não tendo isso em conta, acabam por deixar a vida pastoral em becos sem saída, paralisada. Abandonaram-se os avisos de Cristo: “para vinho novo, odres novos”; “o sábado é para o ser humano e não o ser humano para o sábado”. S. Paulo não se esqueceu: foi para a liberdade que Cristo vos libertou.
É muito importante a questão e a história da teologia da libertação, mas volto a dizer que é ainda mais decisivo libertar a teologia da ideologia, da visão distorcida da fidelidade confundida com a repetição do pré-definido, do pré-sabido e do sempre rezado, assim como era no princípio agora e sempre pelos séculos dos séculos[ii].
Um dos modelos medievais da prática teológica, que sempre me deliciaram, estava ligado à interrogação sistemática, isto é, às questões disputadas (quaestiones disputatae). Tomás de Aquino, além disso, estava profundamente marcado pela teologia negativa, que nada tinha de niilista. Qualquer afirmação tinha de ser acompanhada de negação. Depois de descrever a sua teoria do conhecimento teológico e de mostrar a razoabilidade da afirmação da existência de Deus, diz que seria normal que se procurasse saber como é Deus, mas não podia ir por aí, pois só podemos saber como Ele não é. Esta é uma teologia da libertação da idolatria dos nossos conceitos da divindade[iii].
Era o tempo da combinação do atrevimento, na teologia, com a virtude da modéstia na sua prática. Tomás de Aquino sabia unir o que outros separavam: procurar entender para crer e crer para entender.
3. Quando me perguntam qual foi o papel da teologia da libertação em Portugal, tenho de ter em conta vários aspectos para poder responder. A teologia académica, entre 1911 e 1968, esteve em perfeito jejum, como já referi. Não é uma interpretação. É um facto. Na maioria dos casos, a teologia dos seminários era de importação, de justificação do que estava mandado crer e pensar, preparava párocos. O padre Joaquim Alves Correia era um teólogo por conta própria. Testemunhava a Largueza do Reino de Deus, que lhe saiu caro, dada a estreiteza da ideologia dominante.
 Existe uma produção histórica abundante sobre a relação da Igreja com o Estado Novo e o mundo dos católicos que a questionavam. Nessa produção não se fala de teologia da libertação nem da libertação da teologia, mas existiram ambas com os limites que as circunstâncias eclesiais e políticas impunham, mas o conhecimento dos seus percursos tem de ficar para outra crónica.
Hoje, não posso esquecer que o Papa Francisco, o praticante e resistente da teologia da libertação e da libertação da teologia, instituiu o Dia Mundial do Pobre. Acontece neste Domingo. Se os pobres não estiverem na missa, é porque lha roubaram.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 19. 11. 2017


[i] António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, Círculo de Leitores, 2017, pp. 331-332.
[ii]  Quem desejar conhecer o que era a prisão da teologia nos anos 50 do séc. passado, leia o impressionante Journal d’un théologien (1946-1956), de Yves Congar, Cerf, 2000
[iii] Summa Theologiae, q. III, Prólogo

05 novembro 2017

A ignorância não é um dever
Frei Bento Domingues
Público, 5 de Novembro de 2017

Não foi a Bíblia que deu origem à subordinação das mulheres na civilização ocidental

1. Lutero não passou por Portugal. Na revista Brotéria, de Outubro, tentei explicar porque lhe negaram o passaporte. Apesar disso, de vez em quando, surgem acontecimentos que levam os meios de comunicação a lembrar que existe uma coisa muito antiga chamada Bíblia, que ele próprio traduziu para alemão. Agora parece que foi invocada, juntamente com o código penal de 1886, pelos juízes Neto Moura e Maria Luísa Arantes, para atenuar um crime horroroso contra uma mulher adúltera.
Não admira, dizia-me um leitor de Saramago. A Bíblia está cheia de histórias escandalosas e de maus exemplos. O diabo não precisa de ser muito pior do que um deus que mata e manda matar. Esse livro parece escrito por um bipolar: passa facilmente do sublime ao detestável, por vezes no mesmo salmo. No entanto, cuidadosamente encadernado fica bem numa sala, ainda que pouco frequente numa casa portuguesa. Entre as dificuldades em ler e interpretar esses textos antigos figura uma insistente ignorância ou esquecimento: a Bíblia não é um livro!
Habituados, como estamos, a ver as Sagradas Escrituras cristãs num só volume e a dar-lhes um nome no singular, a Bíblia, somos levados a imaginar que é uma obra que um autor divino escreveu, de fio-a-pavio, mas com mais heterónimos do que Fernando Pessoa. 
Na verdade, não se trata de um livro, mas de uma biblioteca formada por 73 ou 74 obras, segundo o cânone da Igreja católica, e 66, segundo o cânone das Igrejas reformadas. Foi escrita ao longo de vários séculos em diversos contextos geográficos, sociais e culturais.
Sem poder entrar aqui em pormenores, convém lembrar o seguinte: quase dois terços dos livros da Bíblia cristã são comuns ao cristianismo e ao judaísmo rabínico, herdeiro imediato das escrituras do judaísmo antigo. Na verdade, o Antigo Testamento (AT) católico é mais vasto e variado do que o TaNak e o AT das Igrejas reformadas que adoptaram o cânone judaico. A escrita dos livros do AT católico durou cerca de um milénio. Teve como quadro essencial a Palestina. É possível que alguns livros tenham sido escritos, em parte, na Babilónia e outros no Egipto (em Alexandria).
A exegese histórico-crítica mostrou que figuram no AT diferentes géneros literários e temas que são documentados nas outras literaturas próximo-orientais do primeiro milénio a.C., em particular, nas literaturas dos demais povos semitas [1].
2. Os juízes, se queriam referir-se à relação de homens e mulheres na Bíblia, teriam de se aconselhar com o trabalho de investigação e de militância das feministas que reexaminam não só a própria Bíblia, mas também a interpretação que os homens fazem dela, tentando, muitas vezes, justificar e perpetuar uma dominação ancestral, própria de sociedades patriarcais. A mulher era propriedade do marido; a virgem, antes do noivado, propriedade do pai. O adultério da mulher e a defloração de uma rapariga eram, antes de mais, um atentado contra o direito de propriedade [2].
A exegese bíblica feminista assume-se como instrumento de luta pela igualdade social. O seu objectivo expressa-se em termos de emancipação ou de libertação das mulheres. Desse ponto de vista, a leitura feminista da Bíblia é comparada e, em parte, comparável ao trabalho da Teologia da Libertação.
Contrariamente ao que às vezes se afirma, não foi a Bíblia que deu origem à subordinação das mulheres na civilização ocidental. A subordinação era um traço das civilizações europeias antes da chegada da Bíblia. Essas civilizações tinham esse traço em comum com as civilizações do Próximo Oriente de que a Bíblia é uma expressão. O que a Bíblia fez foi dar a essa prática a sua legitimação religiosa.
Sendo fruto da civilização ocidental, o próprio feminismo é herdeiro da mesma Bíblia que deu caução religiosa à supremacia dos homens sobre as mulheres. Por isso, é natural que a Bíblia ocupe um lugar muito importante nos estudos feministas, mas as mulheres ainda estão longe da paridade com os homens. Na Igreja Católica, intérprete autorizada da Bíblia, a hierarquia continua a ser formada só por homens e, além disso, celibatários [3].
O NT não legitima as atitudes dominadoras do AT em relação às mulheres. Pelo contrário, elas estão incluídas no espantoso universalismo cristão, sublinhado por Paulo: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” [4]. No Evangelho de Marcos, mostra-se que o homem pode ser adúltero contra a mulher. Como nota Frederico Lourenço, trata-se de “um desenvolvimento notável rumo à igualdade de género” [5].
Quanto à atitude de Jesus em relação ao apedrejamento de uma mulher apanhada em adultério, aconselho a leitura das admiráveis observações do mesmo autor ao texto atribuído ao evangelista João [6].
Se houve mulheres que se emanciparam para servir o projecto de Jesus, é porque esse projecto as incluía. O Ressuscitado encarregou-as de evangelizar os próprios apóstolos. Daí que a Maria Madalena tivesse sido designada como Apóstola dos Apóstolos.
3. Frederico Lourenço entregou-se a um empreendimento que julguei impossível, quando foi anunciado: traduzir, do texto grego, o conjunto da Bíblia, tradicionalmente conhecido pelo nome de Septuaginta, com apresentação, introdução e notas dos vários livros. Sobre a significação, a originalidade e as explicações acerca da Bíblia Grega, o tradutor encarregou-se de nos elucidar logo no Vol. I, consagrado aos Quatro Evangelhos, em 2016. Em 2017, surgiram o Vol. II, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, e o Vol. III, Os Livros Proféticos. Este, em Outubro. É o segundo acontecimento mais importante do ano para todos os que julgam que a ignorância do mundo bíblico não é obrigatória.
Francolino Gonçalves, O.P., morreu a 15 de Junho deste ano, na Escola Bíblica de Jerusalém, na qual viveu, investigou e ensinou, durante mais de 40 anos. Segundo alguns confrades, sofreu muito por não poder continuar as investigações do AT, que tinha em mãos, especialmente do universo profético, bíblico e extra bíblico, de que era um reconhecido especialista. Tenho muita pena que ele não pudesse acompanhar a obra impressionante de Frederico Lourenço, que lhe daria grande alegria.
[1] Para as informações fundamentais sobre os mundos em que se formou e desenvolveu essa biblioteca, ver o amplo e rigoroso estudo de Francolino J. Gonçalves, Mundos bíblicos, Cadernos ISTA, n.º 18, 2005, pp 7-34.
[2] Ex 20,14; 22,15-16; Lv 20,10; Dt 5,21; 22, 22-29; Ez 16, 38-40.
[3] Cf. Francolino J. Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Bíblica Pontifícia,
As mulheres na Bíblia, Cadernos ISTA, n.21 (2008), pp 109-158
[4] Gal 3, 25-28
[5] Mc 10, 1-12 e nota ao v. 11.
[6] Jo 8, 1-11; cf. Frederico Lourenço, 
Bíblia, Vol. I, pp.357-360


https://www.publico.pt/2017/11/05/sociedade/opiniao/a-ignorancia-nao-e-um-dever-1791072