25 outubro 2015

Sínodo das famílias ou dos bispos? (2)

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Perguntaram-me, com razão, na sequência do texto do Domingo passado: O Sínodo das Famílias até pode ser uma boa ideia, mas que se entende, hoje, por Família?

 O documento de trabalho para a preparação do Sínodo (2014) apresentou as situações inéditas que teriam estilhaçado, nas últimas décadas, a significação mais óbvia de família ou assim considerada.

O texto de O. Bonnewijn, reprodução de uma sua conferência em Cracóvia, tenta descrever e avaliar as chamadas famílias pós-modernas [1].

Estas seriam o resultado de uma desconstrução crítica e de uma reconstrução livre, com as peças desconjuntadas das concepções tradicionais dos agregados familiares.

Como é que isso foi acontecendo? Procurando, por um lado, reinventar - ao sabor e à medida de projectos individuais e sociais - a constituição e a articulação de laços, papéis, sexos e gerações; por outro, promovendo, ao máximo, os valores de autonomia criativa e optando - no sentido ultraliberal do termo – pelo desenvolvimento pessoal, pela qualidade relacional, pelo desabrochamento afectivo e sexual.

Ao concretizar um modelo igualitário, democrático e contractual, as famílias pós-modernas julgam estar a realizar uma revolução antropológica e cultural, fruto de um progresso decisivo e irreversível da humanidade.

Nesta perspectiva, as novas concepções seriam o dobrar dos sinos das famílias-clã pré-modernas, isto é, um sistema patriarcal de tendência holística, sem espaço privado, cuidando apenas em transmitir a vida e o património.

 O dobrar dos sinos recai também sobre as famílias nucleares modernas, pelo menos na sua forma conservadora: um homem entregue à produção, unido a uma mulher destinada à reprodução e às tarefas domésticas. Este modelo sócio-cultural estaria fundado sobre a desigualdade dos parceiros e dos seus respectivos papéis, sobre uma definição naturalista dos sexos e num certo machismo hétero-sexista, sobre valores do dever, do sacrifício e da rentabilidade industrial. Esse tipo de família, fabricado pela burguesia, teria sido sacralizado pela Igreja e difundido como um ideal nas classes trabalhadoras.

2. Estamos, agora, perante modalidades radicalmente novas de agregação familiar, assim caracterizadas: modalidade heterossexual, recomposta ou não: um homem e uma mulher vivendo em conjunto sem compromisso civil ou religioso, com ou sem filhos; modalidade homossexual, declarada homo-parental, em caso de parentalidade; modalidade celibatária, declarada monoparental, em caso de parentalidade; modalidade de casamento institucional, hétero ou homo, aconteça ou não depois de um divórcio e o que mais possa vir a acontecer.

 A desconstrução e a reconstrução atingem também a paternidade e a maternidade. Com ou sem a ajuda da biotecnologia dá para haver várias “mães” e vários “pais” (ou nenhuns) da mesma criança. Introduzindo uma separação entre o biológico e o social construído, as famílias podem figurar como puros produtos culturais. A família fundada sobre a diferença dos sexos e sobre a sucessão das gerações estaria ameaçada de marginalização.

O ideal de uma genealogia clara e coerente que permita à criança acolher, imaginar, pensar e configurar a sua própria filiação, respondendo a perguntas elementares, parece também marginalizado: quem é meu pai, quem é minha mãe, quem são meus avós, os meus tios e tias, os meus primos e primas?

Os filhos não pediram para nascer nem são consultados à nascença sobre o modelo cultural em que desejariam crescer, mas um dia vai ser preciso responder às suas perguntas. 

3. O Sínodo cristão das famílias ainda se torna mais urgente nesta paisagem em mudança. O amor humano (nas suas expressões eróticas, de amizade e de pura gratuidade) é mais forte do que a morte e foi interpretado na Bíblia, como parábola da Aliança indissolúvel de Deus com todos os seres humanos.

Quando duas pessoas convergem em desejar, por amor, fazer família e resolvem casar, naquele momento, formam um só desejo. Nesse desejo há uma vontade de que seja para sempre, uma continuidade no tempo. É uma promessa de constância. Vivemos de acreditar, de prometer, de esperar.

Esquece-se, porém, algo fundamental: a própria declaração de casamento é mútua, mas não é a dissolução de um no outro. Nenhum é anulado na sua irrepetível originalidade. São duas fragilidades a convergir numa só fragilidade, numa só “carne”. Não é o casamento de duas divindades imutáveis, alheias ao devir, ao tempo, às vicissitudes da vida, ao imprevisível.

 O amor de Deus por nós é indissolúvel em todas as situações. O amor humano, dos seres humanos, precisa de sabedoria e de prudência para ser fiel a si mesmo. É tarefa diária para toda a vida e tem de ser do casal.

Quando se pergunta o que pode a Igreja fazer nas situações acima referidas, pensa-se logo: que poderão fazer o Papa, os bispos, os cardeais, os monsenhores, os cónegos e os padres? Esquece-se o essencial: estes são Igreja na medida em que comungam com todos os baptizados. São serviços da Igreja, mas é o conjunto das famílias que pode evangelizar a família.

Público, 25.10.2015
- - - - - - - - - -

[1]  O. Bonnewijn, «Familles postmodernes», NRT 137 (2015) 587-596

18 outubro 2015

Sínodo das famílias ou dos bispos? (1)

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Há dias, um amigo dizia-me, com ar sentencioso: a vida de uma pessoa, comparada com a duração do mundo, não é apenas breve, é insignificante. Vós, os católicos, tendes a mania de negar a evidência, inventando a ideia de vida eterna quando, de facto, não passa de um fruto enganador da megalomania do desejo. Para não entrar numa discussão estéril, citei-lhe uma frase de Manuel da Fonseca, mais radical e evidente: isto de estar vivo, ainda vai acabar mal!

A conversa tinha começado pelos rumores em torno do Sínodo dos Bispos. Segundo este amigo, está a preparar-se a primeira grande derrota do Papa Francisco. O seu raciocínio era simples: os bispos de todo o mundo dispõem de um passado e do Direito Canónico que lhes oferece a ilusão - assim como à Cúria vaticana - de mandar no imaginário de uma realidade universal, com uma longa história de muitas configurações culturais e religiosas: a Família. Para eles, as normas contam mais do que a felicidade ou infelicidade das pessoas e dos casais. O Papa Francisco, pelo contrário, acordou para as exigências do humanismo cristão, mas não conseguiu acordar os outros bispos do sono dogmático.

 Anselmo Borges fez muito bem em apresentar um artigo de J. M. Castillo que mostra e documenta que não existe nenhuma declaração dogmática que imponha a indissolubilidade absoluta do casamento [1]. Nestas crónicas, notifiquei, desde 1993, as posições que justificavam a possibilidade do acesso dos divorciados recasados  à Eucaristia, assim como a discussão aberta em torno da indissolubilidade do Matrimónio que o Direito Canónico impôs [2].

Além disso, se a vida das pessoas é muito breve, a ética inter-geracional não pode pensar apenas em termos do tempo curto das pessoas, mas insistir no tempo longo: o mundo não começou agora nem vai acabar hoje. Não é saudável deixar para o futuro o que já é possível resolver. A espiritualidade do provisório, do pão nosso de cada dia, é parecida com o dito do poeta: não há caminho, o caminho faz-se caminhando. De qualquer modo, o Evangelho de Jesus Cristo segue a lei do alívio dos oprimidos, não a atitude farisaica que carrega os abatidos sempre com mais pesos.

2. Ao que parece, há agitações no Sínodo e fora do Sínodo, com ameaças de cismas, de cisões na Igreja e não sei que mais!

Parece-me que se está a esquecer algo de muito elementar: estamos perante o Sínodo dos Bispos sobre a Família, não do Sínodo das Famílias traçando orientações para a sua caminhada segundo as diferenças de continentes e culturas. Este virá a seguir. Agora estamos perante o Sínodo dos bispos celibatários, com responsabilidades inalienáveis na Igreja universal, confrontando pontos de vista antropológicos, cristológicos e pastorais para oferecerem um bom contributo para a felicidade das famílias. Não alimento sonhos delirantes nem visões apocalípticas sobre esta grande reunião.

Procurou-se esquecer o Vaticano II (1962-1995) que foi a grande revolução católica do séc. XX. Agora, estamos a colher as consequências desse vazio. Foram várias gerações que o não aprofundaram e que ouviram, a vários níveis, as vozes que apresentaram a sua memória como uma desgraça para a Igreja. Quando se julgava que estava enterrado para sempre, surge o Papa Francisco estragando esse cálculo.

Muitos queixam-se de que é o no seio do clero mais novo que surgem os padres mais reacionários. Talvez. São, porém, facilmente cooptados pelos movimentos e grupos que desejam neutralizar o impacto Bergoglio, a nível interno da Igreja e da sociedade. São manipulados que tentam manipular.

3. Em vez de perder tempo com as atoardas sobre os possíveis cismas na Igreja, devido à livre discussão que o Papa Francisco introduziu na sua orientação pastoral, talvez fosse melhor começar a pensar e a desenhar o próprio Sínodo das Famílias, segundo os continentes geográficos e culturais, a partir das paróquias, dos movimentos, dos casais, de forma inclusiva, em termos de caminhada, mais ou menos longa, segundo os contextos. Os Bispos têm mensagens e orientações para as famílias, mas não serão as famílias que vivem experiências de êxitos e fracassos matrimoniais a poderem apontar caminhos possíveis para a felicidade familiar?

Várias vezes nestas crónicas, destaquei a falta de senso quanto ao acesso dos divorciados recasados à Comunhão Eucarística, cuja simbólica é uma ceia. Como é possível convidar uma pessoa para jantar e dizer-lhe: vem, mas não podes comer!? Além disso, recomenda-se a estes pais - cuja norma os impede de comungar - que preparem e acompanhem a comunhão dos filhos. De repente, a criança pode pensar: mas a comunhão será só para crianças? Aí começa a debandada.

Público, 18.10.2015

- - - - - -

[1] Anselmo Borges, Casamento católico: indissolúvel? DN 10.10.2015; José Maria Castillo, El Papa puede admitir a la eucaristía a los divorciados vueltos a casar, Religión Digital, 26.08.2015.
[2] Frei Bento Domingues, A Humanidade de Deus, p. 203-206, 1995; As Religiões e a Cultura da Paz, p 88-91, 2002. Cf. Fidélité et Divorce, Rev. Lumière & Vie, n.206, 1992 ; Francisco Gil Delgado, Divórcio en la Iglesia. História y Futuro, 1993; Michel Legrain, Os Divorciados e a Igreja, 1995.

11 outubro 2015

Uma profecia em acção

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Compreendo o desejo, manifestado por alguns leitores, de não terem encontrado na crónica do Domingo passado a transcrição integral dos referidos 10 princípios para um novo humanismo de J. Kristeva. Talvez não tenham reparado que deixei, em nota, a forma fácil de recorrer à sua tradução brasileira [1].

Estas crónicas nunca poderão superar o seu carácter fragmentário. A abordagem dos acontecimentos ou dos temas selecionados pretende apenas sugerir que é preciso pensar, questionar e debater se não quisermos ser vítimas dos arsenais mediáticos, mais ou menos sofisticados, vozes diversas do mesmo intuito de dominação. 

Para Kristeva, a refundação do humanismo não é nem um dogma providencial, nem um jogo de ideias. Confessa que se trata de uma aposta, isto é, da coragem de apostar na renovação contínua das capacidades dos homens e das mulheres, juntando crer e saber no “multi-universo”, cercado de vazio.

Pertence ao novo humanismo  o cuidado amoroso do outro, o cuidado ecológico da Terra, a educação dos jovens, a assistência aos doentes, aos deficientes, aos idosos, aos fracos.

O novo humanismo não será um regulador do liberalismo. Ao contrário, será capaz de o transformar, sem inversões apocalípticas ou promessas de futuros gloriosos. Não cede nem ao delírio nem ao niilismo.

Por outro lado, não tem um discurso fechado, seja em relação ao passado, ao presente ou ao futuro. É uma aposta de trabalho, um caminho de abertura e participação na revolução antropológica em curso, carregada de promessas e ameaças. Ao juntar ousadia e humildade, criatividade e reavaliações permanentes torna-se a via da sabedoria. O poder de dominação é a droga e o veneno dos sonhos e projectos imperiais.

Por que razão, perguntava Rousseau, apenas o ser humano corre o risco de se tornar imbecil? Ele conhecia a resposta: pode cometer os maiores excessos, quer no mal quer no bem, por que não é guiado apenas pelo determinismo da Natureza. Custa-lhe, por outro lado, tomar consciência da sua finitude, do tempo que passa e da morte que o espreita. Tanto o culto de uma religião alienante, como a rendição à pura imanência, não respeitam a complexidade da condição humana. 

2. Malebranche dizia que entre todas as ciências humanas, a do homem é a mais digna dele, mas não é nem a mais cultivada nem a mais desenvolvida. Kant, o grande filósofo da modernidade, assinalou, com agudeza, a tarefa de uma antropologia filosófica que deve responder a quatro questões: 1ª, que posso eu conhecer? 2ª, que devo eu fazer? 3ª, que me é permitido esperar? e 4ª, o que é o homem?

À primeira pergunta, corresponde a metafísica, a moral à segunda, a religião à terceira, à quarta corresponde a antropologia. Acrescenta: todas estas disciplinas podem ser reconduzidas à antropologia, pois as três primeiras desaguam na última.

Kant nunca chegou a escrever essa obra. Como diz Martin Buber, embora tivesse nos seus escritos um conjunto de preciosas observações sobre o conhecimento do homem, não abordou nenhum dos problemas que a antropologia implica: o lugar especial do homem no cosmos, a sua relação com o destino e com o mundo das coisas, a compreensão dos seus semelhantes, a sua existência como a de quem sabe que há-de morrer, a sua atitude em todos os encontros, correntes e extraordinários, perante o mistério.

Podemos, hoje, lamentar a linguagem machista destes filósofos. Nunca poderiam ter convivido com os movimentos feministas. A questão de fundo era outra: a diversidade sexual não era importante para a antropologia filosófica corrente. Entretanto, muita água correu sob as pontes e a transformação e a diversificação das ciências antropológicas mudaram completamente o panorama. J. Kristeva pode agora escrever: O humanismo é um feminismo.

3. A proposta do Papa Francisco assume muito bem esta aposta assim como a de muitos outros cientistas, pensadores e activistas sociais. A Laudato Si desenvolve e integra a convicção de que tudo está estreitamente ligado no mundo. A visão holística fica integrada no pensamento social da Igreja. Esta perspectiva responsabiliza a política local e internacional pela casa comum, nosso bem-comum. Tudo isso será bem acolhido pelos crentes e não crentes que procuram uma orientação de responsabilidade inter-geracional para todas as dimensões da vida humana. A originalidade do Papa Francisco não consiste apenas em apresentar uma proposta que tem tido uma repercussão absolutamente extraordinária, apesar de todas as resistências encontradas, dentro e fora da Igreja. O que ele tem feito é ajudar a ver que nada pode ser resolvido se não encararmos o mundo a partir dos excluídos, seja qual for o género de exclusão. Mas mesmo isso podia ser apenas um enunciado doutrinal. O que ele faz é uma convocatória universal. Mas uma convocatória é sempre para os outros. Ele tornou-se, pela sua prática de vida pessoal e pastoral, uma convocatória. É possível ser e viver de outra maneira. Ele é uma profecia em acção.

Público, 11.10.2015

[1] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/502342-um-novo-humanismo-em-dez-principios-artigo-de-julia-kristeva

04 outubro 2015

Papa Francisco, incarnação do novo humanismo

Frei Bento Domingues O. P.

1. Julia Kristeva, de pais cristãos, nasceu na Bulgária, em 1941, onde frequentou a escola dominicana francesa. Depois de uma pós-graduação na Universidade de Sofia, aos 24 anos, foi para Paris.

Uma carreira brilhante fez dela uma professora de várias universidades e uma figura cultural multifacetada: filósofa, semióloga, psicanalista, romancista. Doutora honoris causa de Harvard e prémio internacional Holberg, equivalente ao Nobel para as ciências humanas apaixonou-se por uma espanhola do século XVI, Santa Teresa de Avila.

Que poderiam ter a dizer-se uma psicanalista e uma santa católica? A resposta surgiu num romance de 750 páginas [1]. Mais ainda do que um romance, dizem os críticos, é “um tratado de vulcanologia sobre a alma de fogo da santa espanhola”.

Casada há 48 anos com Philippe Sollers, nesta época de mexericos sobre divórcios, ousou escrever uma narrativa autobiográfica: “Do casamento como uma das belas-artes” [2].

Para esta militante feminista, existe um humanismo cristão intenso, incompreendido e que a cultura europeia deve reinterpretar continuamente, se quiser sobreviver ao pensamento-cálculo. Pertence ao génio do cristianismo – quando é fiel à sua vocação - a capacidade de acolher e a arte de reciclar os contributos das culturas mais diversas.

Em vários cenários de diálogo entre crentes e não crentes, esta grande intelectual, sente a urgência de despertar os participantes para um novo humanismo, o humanismo do século XXI. Para Kristeva, a chamada era da suspeita já não é suficiente para enfrentar os desafios civilizacionais que estão a bater às portas da nossa época. Dispomos de todos os recursos para ver e prevenir o desastre, mas ao faltar um humanismo inclusivo, não sabemos para que servem tantos meios. O chamado desenvolvimento sustentável, sem a paixão por uma humanidade solidária que cuida da renovação da natureza como casa de todos, sucumbe perante a teia das máfias da ganância.

2. Nas Jornadas de Assis (2011) J. Kristeva atreveu-se a formular dez princípios – não são dez mandamentos – para pensar as pontes que importa reconhecer e construir com todos os universos culturais do passado e da actualidade [3].

Na introdução à sua notável proposta, evocou a figura incontornável de S. Francisco, lembrando que ele não buscava tanto ser compreendido como compreender, nem ser amado como amar: despertou a espiritualidade das mulheres com a obra de Santa Clara, colocou a criança no coração da cultura europeia, ao recriar a festa de Natal. Antes de morrer, como verdadeiro humanista, ante litteram, enviou uma carta a todos os habitantes do mundo.
Na Divina Comédia, Dante Alighieri continuou a unir, em Cristo, o divino com o humano, desenhando, numa língua nova, o humanismo cristão. O divino e humano verdadeiros não são rivais. São aliados eternos.

Filho da cultura europeia, o humanismo é o encontro de diferenças culturais servido pela globalização e pela informação. O novo humanismo deve respeitar, traduzir e reavaliar as muitas variantes das necessidades de crer e dos desejos de saber, bebendo no património universal de todas as civilizações.

A história não pertence ao passado: a Bíblia, os Evangelhos, o Alcorão, o Rigveda, o Tao habitam o nosso presente. É utópico criar novos mitos colectivos, mas também não é suficiente reinterpretar os antigos. Cabe-nos reescrevê-los, repensá-los, revivê-los, dentro das linguagens da modernidade.

3. É preciso desfazer os equívocos gerados em torno das palavras, humanismo e cristianismo, para compreender e participar no projecto admirável de Kristeva. Os fundamentalismos da crença religiosa e da crença ateia têm impedido religiosos e ateus de escutar as vozes da complexidade material e espiritual do mundo.

Para evitar as confusões, P. Ricoeur recusava a designação de filósofo cristão, para evitar qualquer suspeita acerca da autenticidade do seu método filosófico. Dizia-se um filósofo de expressão cristã, assim como existem cristãos de expressão pictória, como Rembrandt ou de expressão musical como Bach. Irritava-se quando lhe diziam: se você fosse chinês haveria poucas possibilidades de ser cristão. “Não estão a falar de mim, mas de um outro. Não posso escolher nem os meus antepassados nem os meus contemporâneos. Nasci e cresci na fé cristã de tradição reformada. Mantenho-me nessa tradição, confrontada indefinidamente, no plano de estudo, com todas as tradições, adversas ou compatíveis, através de uma escolha contínua”. Recusou a cristologia sacrificial que faz de Deus um monstro e do ser humano um escravo. Não pode fazer parte de nenhum humanismo. Compreendo todos esses cuidados.

O Papa Francisco incarna, no mundo de hoje, o humanismo libertador de Jesus Cristo. Não só denuncia o que na religião, na finança, ou na política mata a vida dos pobres e destrói a natureza, como se manifesta tão humano que o divino respira em todos os seus gestos.

Público, 04.10.2015

- - - - - - - - -

[1] Thérèse mon amour, Fayard, 2008
[2] Du mariage considéré comme un des beaux-arts, avec Philippe Sollers, Fayard, 2015
[3] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/502342-um-novo-humanismo-em-dez-principios-artigo-de-julia-kristeva