25 novembro 2012

COMBATE À RECESSÃO LITÚRGICA (I)

      
1. Terei de continuar a viver sem as máquinas superinteligentes, prometidas para 2030, dotadas de consciência reflexiva, multiplicadoras do eu pessoal, tantas vezes quantas se desejar e com a imortalidade à vista. É possível que venham a resolver, de forma científica e técnica, todas as questões existenciais, imanentes ou transcendentes, sem restos das ingenuidades do passado. Alguns perguntam com malícias tradicionais o que será namorar e casar com um computador, pedir-lhe para procurar saber se Deus existe ou não, se haverá vida (e que vida) depois da morte, se a oração e as liturgias religiosas terão algum sentido.
Esse género de perguntas pertence a ignorantes do admirável mundo novo inscrito na dinâmica das novas tecnologias que dispensa tanto as velhas utopias humanistas como o património artístico e religioso dos nossos antepassados. Essas máquinas prodigiosas vão superar os voos poéticos do velho Apocalipse: vi então um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra foram-se e o mar já não existe. Nunca mais haverá dor, lágrimas, morte, luto, clamor. As coisas antigas desapareceram. Não haverá mais noite e o sol também não será preciso. Vou fazer novas todas as coisas (Ap. 21-22). 
Este Livro prodigioso parece que servia de encorajamento às igrejas cristãs perseguidas. A desgraça não tem de ser eterna, eterno é o misterioso Deus de Amor. Quando não se sabe nada do futuro, ou se aposta em cálculos que saem sempre errados ou resta-nos a imaginação delirante. Quando é poética, não se lhe pedem responsabilidades. É verdadeira por ser como é. Quando pretende ser científica, tecnicamente garantida, é preciso esperar para ver e não sobra tempo para tanto.
2. É próprio da celebração litúrgica enraizar-se no passado, transformar o presente e abrir o futuro das comunidades cristãs. A encenação litúrgica, como teofania e antropologia, ou vive da convocação musical de todas as artes ou não consegue reunir o céu e a terra na regeneração transfiguradora do ser humano. É na luz da palavra poética e na energia da acção simbólica do agir ritual que acontece a graça de Deus. Quando a celebração se degrada, fica o ritualismo vazio e o fastio litúrgico. Quando a prática religiosa deixa de ser considerada uma obrigação, sob pena de pecado mortal e suas consequências, já nada consegue vencer o aborrecimento, a prática religiosa entra em crise, surge o abandono, a recessão litúrgica. Não se vence com a obsessão ritual. Seria procurar a cura na doença. 
Outro foi o caminho escolhido pela Faculdade de Teologia da UCP e o Patriarcado de Lisboa, que organizaram as jornadas Liturgia, Arte e Arquitectura nos 50 anos do Concílio do Vaticano II, a 15 e 16 deste mês. O tema é abrangente e com razão, pois a liturgia exige o contributo de todas as artes da palavra e da encenação ritual, num tempo e num lugar concreto, como celebração de uma comunidade. Não se trata de preservar o património religioso nem de encenação de espectáculos. O ponto de partida não pode ser um desígnio abstracto de construção de uma comunidade com gente sem história, sem desejos e sem projectos. É preciso partir de grupos de pessoas cristãs, em processo de conversão, com proveniências diferenciadas, que vão adquirindo consciência de que são elas a Igreja em construção.
O primeiro alicerce é o da escuta recíproca. A primeira qualidade do ministro ordenado, para ajudar a comunidade, é a capacidade de escutar e promover as formas várias de encontro entre todos os membros desse corpo. A pressa e o adiamento das decisões não ajudam esse processo vital. É a partir daqui que tem sentido pensar no espaço, na arquitectura e nas artes da celebração da comunidade. Pensar e projectar, com a participação de todos, não atrasa a obra porque esse processo já está a construir o mais importante. Não é tempo perdido.
3. Poder-se-á objectar que um método desses vai dificultar a renovação litúrgica, a participação criativa de artistas, arquitectos e músicos.
Isso só pode acontecer quando se procura espaço para a igreja sem haver Igreja. É na construção de uma comunidade plural, culturalmente marcada, que, de forma dialogada, se podem manifestar as formas artísticas em que ela se reconheça, sabendo que pertence a várias gerações.
Dito isto, a pertinência da temática do encontro não podia ser mais ajustada. A cinquenta anos do Vaticano II, já é possível avaliar a importância da reforma proposta pelo Concílio, tendo em conta a sua preparação, mediante o movimento litúrgico de vários países e tendências, ao longo dos anos.
Continuaremos no próximo Domingo.

Frei Bento Domingues, o.p.

in Público

22 novembro 2012

Primeiro viver, depois filosofar

Quando este aforismo foi inventado já se tinha filosofado muito e chegado à conclusão de que para se filosofar é preciso ter vivido alguma coisa daquilo que se pensa. É preciso ter matéria sobre a qual reflectir, sob pena de se cair num exercício mental inútil, estéril e vazio. E é necessário que o pensamento seja adequado à realidade. Por outro lado, como poderá filosofar quem não consegue sequer o mínimo para viver? Meio a propósito, ocorre-me citar um poema de A. O’Neill: “Você tem-me cavalgado, seu safado! Você tem-me cavalgado, mas nem por isso me pôs a pensar como você. Que uma coisa pensa o cavalo, outra quem está a montá-lo”. Pois é, neste caso aquilo que parece uma realidade, na verdade são duas. Aquilo que poderia parecer traduzir-se num único pensamento, na verdade exige dois e opostos. Vem isto a propósito de quê? Sei lá, se calhar de nada. Talvez palavras que, como se diz vulgarmente, perdem a oportunidade de ficarem caladas. A intenção é referir-me àquela coisa a que, na actualidade, quase toda a gente que escreve se refere: a crise. Já foram feitos muitos comentários, dadas muitas explicações, descrita a esquizofrenia entre a euforia económica e a depressão financeira. Fala-se da metáfora bíblica de tempos de vacas gordas e magras, de pensamentos de séculos passados que se referem ao mesmo problema em circunstâncias diferentes, de profetas que acertaram e de cientistas que se enganaram. Parece que ainda não se falou de Jesus, mas também se pode falar. De como ele se dirige às pessoas a partir da realidade concreta de cada uma. De como anima as suas vidas, encorajando-as a saírem do sufoco ou do caos em que outros as metem. De como as cura ou lhes dá alimento de um modo que evite o aparecimento dos missionários do negócio ou dos comerciantes do milagre. Esses que em tempos de crise têm a habilidade de criar ilusões e enganos. Hoje vivemos num mar de análises, esclarecimentos, observações, peritagens, previsões, cálculos, projecções… que nos perdoe o mar por o compararmos a tais coisas. Muita demagogia em pouca filosofia, muito escrever em pouco viver.
Isso também acontece na Igreja que, por definição, é diversa e plural. E se nós, que também somos Igreja, nos indignamos por não nos darem atenção, não nos terem em consideração, não atenderem àquilo que defendemos ou propomos, que dizer da indignação que toca o rés-do-chão da vida? Que dizer daqueles que também são homens e mulheres que querem trabalhar e não têm trabalho, que terminaram um curso e não têm um lugar onde exercer a sua profissão, que querem ter filhos e temem não terem possibilidade de os poderem criar, que são idosos e doentes e a sociedade os vai deixando para trás, que também são portugueses e vão buscar refúgio noutras pátrias! A grande maioria dos que passam por isto não tem possibilidade de filosofar sobre essas realidades. E se tem, não lhe é dado lugar onde o dizer a não ser na rua. Vive-as e sofre-as com as palavras entaladas na garganta, palavras que talvez não fossem sequer consideradas bem escritas ou bem ditas para se tornarem públicas ou serem publicadas. E os que falam e escrevem sobre essas realidades, falam e escrevem realmente sobre elas? Convém não ser injusto porque há quem o faça, mas no geral trata-se de filosofar sem viver. Mesmo na Igreja. Na Igreja há muita gente que faz o bem impelida pela sua fé e pelo conhecimento da pessoa de Jesus. E faz o bem com muito amor e beleza. Mas vejo acontecer com bastante frequência aquilo que é descrito numa pequena história já antiga: uma lenda cheia de humor popular, sempre muito realista, diz que, por volta de 1453, quando os turcos invadiram Constantinopla e entraram no palácio imperial, encontraram o imperador com a sua família e o seu círculo de teólogos, imperturbáveis, numa animada discussão sobre teoremas religiosos sem qualquer ligação a qualquer realidade. Um dos debates era sobre o sexo dos anjos, considerada uma questão que poderia ser de grande relevância para os destinos da humanidade. Entretanto o invasor ia ocupando a cidade e apoderando-se livremente dos seus bens. Sabendo nós que a lenda e a história andam juntas, Deus nos valha!
Frei Matias, O.P.

18 novembro 2012

Tudo em aberto (2)

    
           1. Com a chamada "morte de Deus", anunciada por Nietzsche, preparada e acompanhada por outras correntes que encaravam Deus e o ser humano como rivais, eclipsou-se a poesia da criação divina e da criação humana, que brilhavam da mesma surpresa e da mesma alegria. Na generalizada era da suspeita, vai entrar em crise a nova e eterna aliança-alma da "idade cristológica", celebrada na Eucaristia.

           Jesus Cristo deixava de ser o Emmanuel, Deus connosco, o rosto humano do maior acontecimento divino. Ruíam as suas definições dogmáticas do séc. IV e V, comentadas, durante séculos e séculos, nas Igrejas cristãs e sucediam-se fortes abalos nos próprios fundamentos da identidade cristã e da essência do cristianismo. Os próprios textos do Novo Testamento, submetidos ao método histórico-crítico, passaram a habitar as incertezas das ciências humanas.

         É verdade que, desde os séculos XVIII-XIX até à actualidade, já muita água passou por baixo e por cima das pontes, dentro e fora das Igrejas, na investigação dos textos e dos contextos que narram as origens das expressões da fé cristã. Xavier Pikaza, um conceituado biblista espanhol, no seu contributo para a obra coordenada por Anselmo Borges, fruto de um colóquio substancial, subordinado à pergunta Quem foi, quem é Jesus Cristo? (Gradiva), fez uma resenha exemplar desse longo percurso.

         A reedição da obra-mestra de Hans Küng, O Cristianismo, Essência e História (Círculo de Leitores), em Portugal, é o acontecimento editorial mais importante do mundo cristão em 2012. Precisamos dela para não cairmos em desdobradas ilusões.

         A Essência do Cristianismo já tinha sido o título que, em 1841, Ludwig Feuerbach dera a uma obra cujo objectivo confessado era transformar os teólogos em filósofos; os teófilos (amantes de Deus) em filantropos; os candidatos ao além em estudiosos deste mundo; os lacaios religiosos e políticos da monarquia e da aristocracia celeste e terrestre em cidadãos livres e conscientes da terra. Era a transformação da teologia e da cristologia em pura antropologia.

         2. Esta redução não exaltou a condição humana, como se pretendia. Freud (1855-1939) destacou as três humilhações, as três doenças narcísicas: primeiro, Copérnico demonstrou que a Terra girava à volta do sol, privando-nos do lugar central no universo; depois, Darwin mostrou a nossa origem, fruto da cega evolução, privando-nos do lugar privilegiado entre os seres vivos; finalmente, quando o próprio Freud tornou visível o papel predominante do inconsciente nos processos psíquicos, esclareceu que o nosso ego não manda em sua própria casa. Hoje, surgem humilhações adicionais: a nossa mente, em si mesma, é apenas uma máquina de computação para o processamento de dados. O nosso sentido de liberdade e autonomia seria ilusão do usuário dessa máquina. As neurociências estão cheias de promessas, até acerca do que ainda não podem saber. Também não sabemos o futuro da biotecnologia, mas já estamos tão desiludidos e aborrecidos com a nossa condição humana - a solução de um problema é sempre a origem de outro - que é normal que se deseje um pós-humano, tão cientificamente arrumado que nos liberte de todas as preocupações, mesmo se a troco da nossa liberdade. Talvez não seja muito fácil um referendo mundial que possa decidir do presente e do futuro da humanidade.

         Não será possível continuar o nosso trabalho humilde, nunca acabado, de nos libertarmos de ideias rasteiras, sempre renascentes, tanto acerca de Deus, como do ser humano? A rivalidade existencial - ao contrário da competição lúdica - é infantil e mortal para ambos. Daí a importância de percorrer caminhos, dentro e fora das religiões, que tenham gosto nas diferenças e que não matem as próprias diferenças.

         3. Para o Novo Testamento, a grande rivalidade não é entre Deus e o ser humano, mas entre o Deus libertador e a divinização escravizante do Dinheiro, do máximo lucro a qualquer preço. Seria ridícula uma divindade que dissesse: eu quero os seres humanos ao meu serviço, ao serviço dos meus caprichos e voltados para mim. O lugar do encontro transcendente com Deus são as pessoas que precisam de ajuda. Daí que a incómoda e constante pergunta que Ele nos faz, do começo (Gn 4, 9) ao fim do mundo (Mt 25), seja esta: que fizeste do teu irmão?

         Quando Jesus diz: não podeis servir a dois senhores, a Deus e ao Dinheiro (Mt 6, 24), os discípulos espantam-se. A riqueza era um sinal de gente bem sucedida, divinamente abençoada. Para mal, já bastavam os pobres, imagens do abandono de Deus.

Eles não tinham percebido nada e nós também não. Precisavam e precisamos de silêncio, de oração e de meditação para fazermos a pergunta essencial: quem manda em nós? Se for o amor ao dinheiro, já temos dono: seremos escravos e precisaremos de tornar os outros escravos do nosso desejo.

         Se quisermos ser livres e ajudar na libertação dos oprimidos, vamos continuar a precisar de dinheiro e de bens deste mundo. É evidente, mas surgirá outra pergunta: o dinheiro é dono ou instrumento? A nossa civilização teima numa solução que sempre perdeu os seres humanos e as sociedades: criar sistemas para dominar. Ao fazê-lo devora-se a si mesma. Arranja lenha para se queimar. Uma civilização comandada pelo amor do serviço caminharia para a liberdade.




Por Frei Bento Domingues O.P.
Crónica semanal publicada no jornal Público

 

16 novembro 2012

SANTOS SEM ALTAR

Santos é um dos apelidos mais comuns em Portugal. Ser santo pelo contrário parece ser uma condição muito invulgar. É verdade que nos dois últimos pontificados se fizeram reconhecer uma genuína proliferação de santos de altar, mas esses estão no pedestal dos altares laterais das Igrejas ou apenas no calendário litúrgico.
Quanto ao uso e abuso da palavra verificamos que quando se diz de alguém que “fulano de tal é um santo homem” soa aos ouvidos menos púdicos como uma subtil dúvida sobre o exercício da sua masculinidade, ou para os ouvidos menos freudianos e mais beatíficos, como equivalente a ser um palonço, um ingénuo. Tem pois má fama, esta palavra!
Na tradição portuguesa, quer na reconstrução ideológica da identidade nacional, (“Salvé, Nobre Padroeira…”), quer especificamente na religiosidade popular, não nos compreendemos sem o recurso aos santos patronímicos das terras, das romarias, à devoção mariana a Santa Maria nas suas várias invocações, aos santos de Verão, como os ditos Santos Populares, ou aos  das outras estações do ano, como recentemente São Martinho, no Outono, que anuncia a partilha da capa com quem precisa e provavelmente das castanhas e água-pé. Virá depois São Nicolau no Inverno e assim por diante. Há muito boa gente que ao perder qualquer coisa se apressa a rezar o Responso a Stº António, confiando que há-de acontecer o milagre do aparecimento do objeto sumido. Ou a São Judas Tadeu invocado como advogado das causas impossíveis. Esta proximidade com os santos é curiosa, mas é apenas instrumental; eles são a cunha idónea para dar uma ajuda no quotidiano nos momentos de aflição e também nos de festa. Para quem desconfia de que o sistema de cunhas que vigora na terra com sucesso seja ineficaz no céu, a devoção aos santos tornou-se insignificante. Purificou-se de algum modo, mas perdeu-se.
Originalmente o conceito tem um sentido bem distinto. Paulo, o Apóstolos dos Gentios, ao escrever às comunidades da Diáspora por si fundadas refere-se aqueles que se reconhecem cristãos como “Santos”. Estão santificados em Cristo. Não são pois os mortos, mas os vivos. Não são os que receberam o título de santidade (tipo conde, marquês, etc.), o reconhecimento legal hierárquico da santidade, mas “apenas e só” aqueles que, por terem querido ser baptizados, são reconhecidos como participantes da vida em abundância do Evangelho.
Ser Santo é então ser Cristão. A questão difícil é a que vem depois; é ser capaz de viver como tal!
A falha antropológica entre o ser e o fazer revela-se precisamente na dificuldade de se viver como se pensa que se quer viver, coerentemente, entre a mensagem da Boa Nova e a incapacidade demonstrada nas obras. A esta dificuldade há quem lhe chame pecado ou apenas fragilidade humana. Seja qual for a designação mais adequada, a discrepância entre os dois planos existe. A má fama da palavra Santo vem desse uso desmesurado de bons princípios e de más práticas correntes, ou pelo menos, pouco boas, face ao que seria legitimamente expectável.
Esta expectativa é múltipla; pessoal, comunitária, eclesial e social. Quando os cristãos são atacados veementemente, por gente de fora do grupo, são-no por não serem testemunhas eficazes do amor ao próximo que Jesus Cristo viveu e anunciou. Raras vezes na praça pública se ataca o cristianismo enquanto mensagem, mas em geral a crítica incide sobre a forma como os mensageiros da Boa Nova a levam à prática. E aí cada um que “ponha a mão na consciência”! Há mesmo muitas razões de queixa por ficarmos demasiado longe do que seria necessário e credível.
Não basta a Fé, mesmo se este é o ano da Fé; pois temos muita! Não basta a Esperança e com esta crise é mesmo quase só isso o que nos resta. O que permanece é o Amor. Não confundir com caridadezinha e polémicas adjacentes. Os atos valem mais do que as palavras.
Há muitas ações concretas realizadas por gente de boa vontade, cristã ou não, em prol dos que mais precisam. Só assim o mundo se tornará mais humano, justo e solidário. Os que trabalham nas respostas de emergência social, de proximidade fraterna, na procura política de um modelo de desenvolvimento menos injusto, são esses os Santos que repõem a palavra no bom caminho pois estão a encontrar as mediações para testemunhar o que é o Reino de Deus.
Se olharmos à nossa volta reconhecemos que os Santos da nossa devoção estão bem vivos e atuantes. Precisamos deles para serem fermento da massa e nos ajudarem a sermos cristãos.
Partilhar o tempo, o que se é, o que se sabe, o que se tem é talvez uma possibilidade de Nova Evangelização mais eficaz do que as tradicionais ladainhas aos Santos. Novas vias de santificação (que palavras mais beatas!) eis alguns exemplos do que se já se faz e que importa apoiar:




Podemos pois partilhar e seremos um pouco mais santos, só que andamos demasiadas vezes distraídos a olhar para o nosso próprio umbigo, enredados nas nossas próprias dores, em vez de admirar e seguir o exemplo do samaritano da parábola que soube ver, julgar e agir sem demora! Quem faz isso hoje, são esses os Santos sem altar que encontramos todos os dias.
AFF   14-11-2012                          

13 novembro 2012

Venda de Natal

Aproximando-se o Natal avolumam-se o número de vendas de Natal que não só podem recolher fundos para boas causas como são em si uma ocasião de convívio e de oportunidade de darmos gratuitamente algum do nosso tempo. Vou falar apenas de uma dessas vendas que na minha óptica merece todo o apoio. Ainda por cima dá a oportunidade às/aos nossas/os leitoras/os de oferecerem livros que tenham em casa e de que já não precisem: Vejam também como se apresenta a própria organização, que acolhe a título permanente 38 mulheres, com problemas graves de saúde e que é gerida por uma comunidade de freiras dominicanos, com a Irmã Ana Maria à cabeça. O Convento em si é lindíssimo e merece ser visitado.



A Venda de Natal no Convento dos Cardaes, Lisboa, vai realizar-se este ano nos dias 23, 24, 25 de Novembro e também nos dias 1, 2, 8, 9, 15 e 16 de Dezembro, 2012 .
ATENÇÃO: Se quiserem oferecer alguns dos muitos livros, usados ou novos, (em qualquer língua), CDs, DVDs, videos, ou discos, que têm em casa e que já não sabem onde pôr, podem fazê-lo desde já, fazendo a entrega na Rua Eduardo Coelho, 1, (Bairro Alto), LISBOA, A QUALQUER HORA. CONTUDO SE FOR ENTRE AS 14.30 E AS 15.30 PODEM SER ENTREGUES NA Rua do Século nº 123.


Ana Vicente - membro do Movimento Internacional Nós somos Igreja


 








 
 Há Natal no Convento!


Queremos fazer-lhe um convite muito especial!

Partilhe connosco o Chá e Venda de Natal. Há 25 anos, em Lisboa, por altura do Natal, o Convento ganha nova vida e enche-se de amigos...

Vêm, em família, tomar o nosso Chá e os já famosos scones e bolos do Convento.
Vêm fazer algumas compras de Natal, levando a alegria de, assim, já terem contribuído para a nossa obra.







Nos dias 23 (14h-20h), 24 (10h-20h) e 25 ( 14h-20h) de Novembro
1 e 2, 8 e 9, 15 e 16 de Dezembro (15h-19h)

Tomando Chá connosco ajuda esta obra social tão extraordinária que garante o dia-a-dia de 38 meninas deficientes e cegas.
                         Traga a sua família e partilhe o nosso espírito de Natal!

 Assinatura

Rua do Século,123  Tlf: 213 427 525   www.conventodoscardaes.com  www.facebook.com/conventodoscardaeslisboa 

11 novembro 2012

TUDO EM ABERTO (1)

1. A memória e a recepção do Concílio Vaticano II continuam a dar que pensar, falar e escrever, embora em âmbitos restritos. Não é bom que as grandes religiões andem ora distraídas, ora a reagir com ameaças num mundo que continua assustador. As comemorações devem servir para rever o passado e para discernir os sinais que apontem hipóteses viáveis de um futuro aberto para todos, sem medo e sem ingenuidade. Aos movimentos espirituais compete a tarefa de ajudar a descobrir que, sem práticas de fraternidade irrestrita, não há salvação para a aventura humana.
A Igreja Católica, ao inscrever o Ano da Fé no cinquentenário do Vaticano II, não deve ceder ao marketing da banalidade: pelo preço de um, leve dois. Espero que a junção da memória do Concílio e dos seus recursos adormecidos, aliada às urgências do nosso tempo, desafie a temática do Ano da Fé, sem abafar questões eclesiais, teimosamente adiadas.
A Ouvidoria de Ponta Delgada organizou um longo ciclo de conferências para o Ano da Fé, subordinadas ao tema geral A Fé Cristã Hoje. Convidou-me a reabrir o cansado e inevitável debate das relações entre Deus e o Homem, duas palavras poluídas por maus usos. Deixarei aqui, de forma esquemática, algumas marcas desse percurso, embora sem os argumentos e as exemplificações da conferência.
Partir de Deus para o encontro com o ser humano é manter-se na “idade teológica”, segundo a periodização simplista de Auguste Comte. Mas o próprio Tomás de Aquino, que muito lutou pela consistência do mundo em si mesmo, organizou a Suma Teológica dentro do esquema neoplatónico: é de Deus, dessa fonte misteriosa, que continuamente vimos - nós e o universo - e a Deus regressamos, numa viagem da nossa responsabilidade, pelo caminho da graça, vínculo do divino e do humano, na pessoa e intervenção de Jesus Cristo, rosto do céu e da terra.   
Nesta referência, tudo é considerado a partir de Deus, embora com ressalvas: d’Ele nada se pode dizer sem a negação de precipitadas analogias que impedem o salto para a experiência do seu mistério inabarcável. Deus não cabe na ilusão de nenhum conceito e só na linguagem metafórica pode acontecer o milagre do seu advento em humanidade. É, aliás, na grande música, na poesia, em parábolas, na pintura, nas artes, no humor, que poderá ser sugerida a sua passagem.
O terminal do Credo e das argumentações teológicas não são os artigos do Credo, mas a infindável “treva luminosa” que provoca o caminhar incansável dos místicos. De Deus, tanto mais saberemos, quanto mais nos convencermos de ser “conhecido como desconhecido”. Não se confunda esta radical e ardente ignorância com o silêncio da preguiça catequética. Inspirado andava o Mestre Eckhart, quando rezava: Deus livra-me de deus, livra-me dos ídolos que levam o seu nome e procuram circunscrever e prender a sua presença transcendente a pessoas, lugares, palavras, crenças, rituais e movimentos religiosos. É essa idolatria que leva à alternância mediática do exílio e do regresso dos deuses.
2. Isso, por um lado. Por outro, quando se fala das relações do ser humano com Deus, entra-se na “idade filosófica” que parte da questão que o ser humano é para si mesmo, procurando saber donde brotam as suas próprias perguntas.
 A filosofia não começa por Deus, ainda que se diga que, desde sempre, os seres humanos, para decifrar o enigma que constituem para si próprios, fossem bater às portas dos desuses. A própria filosofia da religião situa-se no âmbito da razão, como se pode ver nas célebres quatro questões de I. Kant. Este iminente filósofo teve, no entanto, o cuidado de advertir: é próprio da razão levantar questões que ela própria não pode resolver! Na filosofia existem perguntas básicas: quem sou eu? De quem sou responsável? O que será de mim e dos outros? Como libertar o fundo de bondade que existe no ser humano? Será a qualidade das sensações a medida de tudo?
Pelos passos da razão teórica e experimental passou-se à chamada “idade das ciências”, que não precisam da hipótese Deus para existirem e se desenvolverem, embora não possam evitar o espanto diante da inteligibilidade do mundo que as torna possíveis. Por método, não são religiosas. Nem a fé teologal se ocupa das ciências, nem as ciências se ocupam dos pressupostos da teologia. Quando há conflitos, é porque uma ou as duas se atrevem a falar do que não cabe nas respectivas competências.
A ideologia cientista acreditava que o progresso das ciências bastaria para resolver todos os problemas humanos e acabaria por dispensar a religião, impulso da esperança, segundo I. Kant. Essa ideologia era insensível ao “mistério de existir”, como lhe chamou Fernando Pessoa. È legítimo supor que o oculto é sempre mais vasto do que aquilo que o desenvolvimento das ciências pode revelar. A distinção entre problema e mistério, elaborada por Gabriel Marcel, continua sugestiva e fecunda.
Quando a modernidade entrou em crise, tanto a teologia como a filosofia da religião depararam, do ponto de vista cultural, com a chamada “morte de Deus”, anunciada por Nietzsche. Para uns, a notícia é exagerada, para outros, uma evidência. Uns viverão como se Ele não existisse e outros não podem passar sem o invocar.
Continuaremos no próximo domingo.

Frei Bento Domingues, O.P.

As crónicas do Frei Bento são publicadas semanalmente no Jornal Público

07 novembro 2012

SANTOS, VATICANO II E OPÇÃO PREFERENCIAL PELOS POBRES

Dia de Todos os Santos, Dia das Bem Aventuranças, Dia do Sermão da Montanha, este ano como sempre desde que me lembro, faz-me pensar nas mais anónimas criaturas que todos os dias alcançam a santidade, na vivência das suas mais diferentes condições e circunstâncias. Faz-me pensar nos que sofrem, aqueles que Carlos Drummond de Andrade enumerava no poema “Canto ao Homem do Povo de Charlie Chaplin:” – “falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração, os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados.” E faz-me reviver momentos da Reunião Formal do Internacional Movement We Are Church, IMWAC, acontecido em Lisboa, no fim de semana passado. Treze nacionalidades, quase trinta membros do IMWAC foram recebidos pelo Movimento Nós Somos Igreja – Portugal, organizador da Reunião. A língua falada foi o inglês, as línguas pensadas foram variadas, na identidade cultural de cada presença. Estes católicos, na sua universalidade, têm em comum, no IMWAC, a reforma desejada da Igreja. Da Igreja-Instituição que está longe de ser a Igreja do Povo de Deus.
Para ampliar esta causa aos grupos católicos nos mais remotos países, à Europa de Leste, aos continentes Ásia e Austrália, debateram-se meios de divulgar a Petição do Povo de Deus. Foram faladas as relações com a hierarquia, ou o diálogo diplomaticamente possível com alguns bispos na Dinamarca e praticamente impossível em países como Itália ou Espanha. A urgência de mudança de mentalidades foi invocada, para que aconteçam as mudanças desejadas. O representante da Irlanda falou nas reações à pedofilia na Igreja. Um dos representantes dos Estados Unidos lembrou a tensão entre o ideal e a realidade, na questão social. Lançada pelos dois representantes do Brasil no IMWAC, a questão da “opção preferencial pelos pobres” que foi substância fundamental na Teologia da Libertação na América Latina dos anos 60, mereceu destaque no envolvimento de todos os participantes, unânimes na defesa da justiça social.
Foi decidido redigir um documento, cuja primeira versão ficou a cargo de José Brendan, que foi um dos representantes do Nós Somos Igreja – Brasil. Nele se exprimirá o desejo de uma Nova Igreja e a intenção é fazê-lo chegar a Roma. Na reunião preparatória para a elaboração deste documento, Ana Vicente sugeriu uma consulta atenta, com investigação sobre o Papa Leão XIII, as Encíclicas, os textos da Doutrina Social da Igreja. E propõs que os ingredientes da Teologia da Libertação sejam abordados com formas mais actualizadas, já distantes da carga ideológica marxista, em voga na fase de Puebla e Medelin, estendida a toda a América Latina, irradiando para o resto do mundo. Um outro documento, a registar a voz do IMWAC em Roma quando ocorrer o Conclave pela morte de Bento XVI, será também redigido, traçando o perfil do próximo Papa desejado por nós, Povo de Deus.   
Na Igreja, as portas estiveram fechadas até ao dia de Outubro de 1962 em que o Papa João XXIII abriu o Concílio Vaticano II, alertando o mundo para os Sinais dos Tempos e o Aggiornamento indispensável ao trânsito da Igreja de Roma no mundo. Para entender as transformações acontecidas, é preciso revisitar o contexto da época, diferente da condição atual. Concisa, firme, clara, a intervenção da teóloga Teresa Toldy envolveu o Encontro inteiro no pensamento sobre Aggiornamento e Obediência, sobre liberdade e consciência, sobre este tempo de crise em que a Igreja deve estar ao lado daqueles que não têm poder. Teresa acredita no espírito do Concílio, afirma que a Igreja está nos espaços abertos, defende que passemos às novas gerações o testemunho da experiência que vivemos. Ela cita os preceitos da Congregação da Doutrina da Fé para os bons católicos, a ilustrar aquilo que permanece e parece fundamental, na Cúria Romana, na instituição Igreja: “Vá à missa. Vá à confissão. Cumpra devoção aos santos. Leia os documentos da Igreja. Estude o catecismo. Ajude alguém. Convide alguém para a missa. Viva as beatitudes.”
Releio a notícia sobre a recomendação de Bento XVI aos padres, em 2009, para que voltem a usar batina, demonstrando hábitos, cultura e caridade, missão central da Igreja. E, relembrando os Santos, rezo pelos mais de 500 católicos caldeus assassinados no norte do Iraque, em setembro de 2010. Segundo a ONG norte americana Christian Peace Association, restam hoje 400 mil do 1,5 milhão de cristãos que viviam no Iraque em 2003. Católicos caldeus, assírios, ortodoxos arménios. Penso em todos os mortos e martirizados, nos retirantes e deslocados, nos excluídos da aparente segurança do mundo ocidental. E releio o poema de Drummond.  

Leonor Xavier
3 de Novembro de 2012

02 novembro 2012

FUNDAMENTOS ÉTICOS DA REFORMA

1. Nas sociedades pluralistas em que vivemos, se os imperativos éticos não forem incondicionais, se a moral não tiver uma justificação, uma fundamentação, as nossas sociedades não serão pluralistas, mas relativistas, pois não haverá distinção entre bem e mal, tudo será aceitável –“vale tudo”- basta que corresponda às tendências actuais, aos desejos de cada um, à moda. A pura actualidade sem horizonte, dominada pelo corrupio das notícias, sem referência para uma orientação de longo alcance, tende a considerar tudo provisório, com medo do império de falsos absolutos. Será uma época que tem cada vez mais recursos, mas uma época de “meios sem fins”. O declínio da causalidade final torna difícil a pergunta pelo sentido.
2. Esta justificação terá que ser imanente, reconhecível por crentes e não crentes, para valer como universalmente válida. A filosofia nasceu da religião, mas por um processo de racionalização, o símbolo foi cedendo lugar ao logos. A própria religião surge, do ponto de vista fenomenológico, como “um facto humano específico que tem origem no reconhecimento, por parte do ser humano, de uma realidade suprema, a qual confere o sentido último à própria existência, ao conjunto da realidade e ao curso da história” (J. Martín Velasco).
 Na linha da Modernidade, a fundamentação deverá ser antropocêntrica, pois o ser humano (Cf. Summa Thelogiae, I, q. 75-102) na sua complexidade, é o único ser ético – o único que é princípio das suas obras, possuindo livre-arbítrio e domínio sobre as suas acções( Cf.S. Th., II-II, Prólogo).
3. Não basta, porém, fundamentar as grandes linhas de orientação ética e manter-se nos princípios universais, pois as acções humanas realizam-se no concreto, no singular circunstanciado, onde se provam as energias virtuosas e se faz um juízo prático a partir da informação, com os dados disponíveis e se decide com base na virtude da prudência , a virtude da decisão informada. Mas sem a apreensão do mundo como experiência de profundidade, perdemos o sentido da temporalidade e trocámo-la pela canonização do que existe, estetização banal da banalidade. É certo que as tecnologias têm o carácter de estabilizadores eufóricos para muita gente. Dir-se-ia que a tecnologia é o novo instrumento de reencantamento do mundo . Basta carregar no ponto certo e está tudo. Como se diz frequentemente, a máquina tem sempre razão.
4. As propostas éticas - que não sejam a sua negação - estão todas inseridas numa tradição. Procuram, pelo menos, interlocutores na história.
Paul Ricoeur, na confluência das tradições aristotélica e kantiana, sem juramentos de fidelidade  ortodoxa a  nenhuma delas - distinguindo ética e moral -, apresenta o seu programa  de forma  sintética: “Visée de la vie bonne, avec et pour les autres, dans des institutions justes” (Cf. RPF, Jan.-Março, 1990, pp.6-17).
a)  I. Kant insere a questão ética num conjunto muito vasto, mediante quatro perguntas: - Que posso saber? - Que devo fazer? - Que me é permitido esperar? - O que é o homem?
À primeira, responde a metafísica; à segunda, a moral; à terceira, a religião e à quarta, a antropologia, já incluída nas anteriores.
É uma ética do dever e da dignidade humana – o ser humano nunca deverá ser meio. É sempre um fim. Não deve ser instrumentalizado. Não tem preço. Tem valor.
b) A tradição aristotélica é diferente. É uma ética da procura da vida boa (não da boa vida), da felicidade humana, do agir virtuoso, prudencial, do caminho da boa medida, que culmina na alegria. Como diz o grande helenista  A. –J.Festugière,  nas mais autênticas tradições gregas, o bem agir é a condição da euforia, mas a euforia é, por sua vez, a companheira inseparável da actividade virtuosa. A norma para o grego não é “ tu deves”, mas “tu podes” ser humano. O importante é saber e querer desenvolver as capacidades para realizar uma vida boa enquanto humana, isto é virtuosa, em e com os outros, em instituições justas, como sintetizou P. Ricoeur.
5. Não vou entrar aqui nas propostas de Apel-Habermas (a ética da razão comunicacional, dialógica) nem na teoria da justiça de Rawls. Mas Lévinas, com  “a presença do rosto - o Infinito do Outro - é nudez, presença do terceiro ( quer dizer  de toda a humanidade) que nos olha)”, nos olhos do  outro que me olha, olham todos os outros, a humanidade inteira”. Não posso desviar o olhar, sou responsável pelo outro, por todos os outros que se apresentam no rosto que me interpela.
6. A sentença ética universal (em forma negativa ou positiva), pois encontra-se em todas as sabedorias antigas é a seguinte: “ faz aos outros o que desejarias que os outros te fizessem a ti”.
7. A ética religiosa de alcance universal pode assumir as seguintes expressões: Que fizeste do teu irmão? (Genesis, 4,9); quem é o meu próximo? (Lc. 10, 25-37); tive fome… a história humana em três parábolas e o juízo ético radical (Mateus,25). São éticas do respeito, da compaixão, do cuidado, da responsabilidade ilimitada.
8. A questão de fundo sobre a “reforma” é a do percurso da questão antropológica para a questão da fundamentação ética.
 A chamada civilização ocidental está a universalizar-se, mas revela-se radicalmente ambígua, pois não sabe como poderá ser humanizada. Não se trata apenas de perguntar:  “descansamos para trabalhar ou trabalhamos para descansar”?,  embora haja cada vez menos trabalho devido às máquinas de substituição dos seres humanos. Os pragmáticos utilitaristas perguntam-se: a maioria dos seres humanos não estará a mais?
A questão de fundo, paradoxal é esta: por um lado, cultiva-se o respeito e a comunhão por tudo o que é vivo, pela natureza, ressuscitando o velho animismo e denunciando uma ilusória superioridade do ser humano sobre o mundo; por outro, trabalha-se na transformação da natureza humana, sonhando com o pós-humano, imortal.
9. Kant viu bem: tudo se concentra na antropologia e no dever de ser humano, de forma adulta, que pensa por si mesmo, de forma autónoma.
  Os gregos viram melhor: os seres humanos, na sua finitude, podem conjugar a grandeza da sua excepcional condição, mas sem ceder à “ubris”, à desmedida ou à humilhação, mantendo-se no sentido da sabedoria, do equilíbrio, da boa medida, da justiça para todos.
1O. Dito tudo isso, importa reconciliar o ser humano com a sua historicidade, tornando também suas as preocupações dos outros e com os outros em instituições justas. O que o implica na participação política do bem comum. Tomás de Aquino dizia que a virtude da  prudência política é de todos e para todos e não só para os governantes.
O fundamento ético da reforma encontra-se na historicidade e pluridimenção da condição humana: o ser humano não é, vai sendo, subindo e descendo e não pode ser reduzido a uma única função. Cuidar para que haja todas as idades da vida, com previdências e providências, pessoais, comunitárias e sociais para quando uma pessoa já não tiver condições para cuidar de si e dos outros. Com um cuidado especial por aqueles que não têm unhas nem viola.
 11. Numa civilização pragmatista, os idosos não valem, só estorvam; estão fora de prazo de validade. Paradoxo: caímos numa sociedade de idosos sem saber o que fazer com eles. O reformado não tem que ser um indesejado e arrumado a um canto, a esperar a morte com medo ou como alívio.
Como pensar a reforma como uma oportunidade de vida desejada por si e pelos outros, de serviço voluntário?
!2. As questões técnicas e as exigências sociais e económicas da reforma não podem esquecer a fundamentação ética, mas exigem outras competências para a poder realizar.
Mariano Rajoy declarou à TVE
... "A primeira prioridade é tratar os pensionistas da melhor maneira
possível. A minha primeira instrução ao ministro das Finanças é de que
as pessoas que não se devem prejudicar são os pensionistas.
"No Orçamento de Estado de este ano só há dois setores que sobem: os
juros da dívida e as pensões. Não tenho nenhum interesse e se há algo que não tocarei, são as pensões".
"Rajoy sublinhou que o pensionista é a pessoa mais indefesa, que tem
a situação mais difícil, porque não pode ir procurar outro posto de
trabalho aos 75 ou 80 anos, tendo uma situação muito mais difícil"...
Que não se arrependa!
Frei Bento Domingues O.P

Sobre os Idosos, ver Danusa Figueirinha; Inês Marques; José Augusto Simões, Ética na relação do Profissional de Saúde e Idoso nos Cuidados Continuados (Revista Portuguesa de Bioética, nº 16, 2012, pgs 31-46);  Diana Faria; Madalena Oliveira; José Augusto Simões, Políticas Públicas de Defesa e Promoção dos Direitos dos Idosos (ib. pgs 67-80)