30 outubro 2016

A Igreja e a Política: que Igreja e que política? (2)

       
1. Continuando, como prometemos, na temática do Domingo passado, lembro o que escreveu José M. Mardones[1]: depois das revoluções norte-americana e francesa, do século XVIII, marcos da modernidade, a religião abandonou o campo da política. Tinha deixado de ser necessária para legitimar o que podia ser perfeitamente legitimado pela razão humana. Ergueu-se, então, um muro entre Igreja e Estado, muito fino na América e uma separação abrupta e violenta na Europa. A partir daí, os crentes sentiram muitas vezes a tentação, não de trabalhar no âmbito da política, mas de politizar a religião e de religiosizar a política.
Emilio Garcia Estébanez estudou, de forma crítica, o percurso ocidental, desde Platão até aos nossos dias - passando por Aristóteles, os Estóicos, Sto. Agostinho, S. Tomás e Maquiavel, etc. - das relações entre ética e política[2]. Procurou esclarecer a ambiguidade da noção de bem-comum, muito celebrada na Igreja Católica.
Para este filósofo e teólogo, o pensamento ético-político dos estóicos constituiu um dos mais completos da antiguidade, ainda que o seu forte tenha sido a ética. A respeito desta, do ponto de vista histórico, pode-se dizer que eles alcançaram o mais alto nível prático e teórico a que chegou a filosofia moral pagã. Isto pode afirmar-se não apenas em termos relativos, mas também em termos absolutos: a escola estóica, real e objectivamente, construiu um sistema quase perfeito de moral natural, quanto aos seus elementos essenciais.
Em política, a sua concepção sobre a igualdade de todos os seres humanos e o seu universalismo social constituiu, unida às elaborações do mesmo género dos seus antecessores, um corpo completo de doutrinarismo político. Os elementos da doutrina política de Platão e de Aristóteles, enquadrados pela doutrina estóica, teriam criado o panorama político ideal, pouco menos que perfeito. Parece, a esse autor, que o conjunto que poderia ser formado por aqueles sistemas, devidamente articulados, ainda não foi superado por nenhum outro sistema. Além disso, os Estóicos puseram como fundamento de todo o seu filosofar um princípio realmente exacto e frutífero: viver em sintonia com a natureza. Num mundo sem revelação sobrenatural como garantia, o caminho para chegar à verdade consiste em interrogar, com honestidade e sem preconceitos, a natureza.
2. Sto. Agostinho negou que os pagãos pudessem ser virtuosos. Se fosse possível, sem a fé, alcançar a justiça, Cristo teria morrido em vão. Não agiam pelo verdadeiro fim, isto é, para agradar a Deus, pois o único Deus é o dos cristãos. Não basta actuar com energia, constância, afrontando com valentia penas e perigos. É preciso fazer tudo isso pelo Deus verdadeiro. Acusaram Sto Agostinho de dizer que as virtudes dos pagãos eram, apenas, esplêndidos vícios. Nunca o disse expressamente, mas, segundo Estébanez, quem tirou essa conclusão estava na linha das suas invectivas contra os pagãos. Sto Agostinho recusou a existência de uma ética natural.
A doutrina política deste grande génio era uma consequência lógica das suas concepções morais. A finalidade do Estado consiste em promover, sobretudo, o culto divino, cuidar dos bons costumes e práticas dos seus membros, de modo que em nenhum momento se ofenda o Deus verdadeiro. Juntamente com esta, enumera outras finalidades, tais como, manter a paz interior e exterior, promulgar leis que tenham em conta uma justa partilhar dos direitos e deveres, velar pela guarda das leis mediante a aplicação de castigos.
A ideia agostiniana do Estado estava marcada pela convicção de que este deve ser antes de tudo cristão, nos seus membros, na sua actividade e nos seus interesses. Sem esta orientação, degenera num bando de ladrões. A ideia de que o Estado deve, inclusive, aplicar os seus meios específicos, a força, para promover o bem espiritual está a um passo. Sto Agostinho deu esse passo.
Acerca da doutrina política desse grande Doutor da Igreja, S. Tomás de Aquino teve a habilidade de o interpretar num sentido diametralmente inverso. Adopta, sem mais explicações, a definição que Cícero deu do Estado e que Agostinho tinha rejeitado categoricamente.
3. Desde a antiguidade pagã, desde o regime de cristandade, desde as revoluções da Modernidade muita coisa mudou. A melhor de todas foi a Declaração dos Direitos e Deveres Humanos. A globalização, ao não ser a mundialização da solidariedade, nem sempre os respeita e promove. Em 2014 os refugiados já eram 19,5 milhões e 38,2 milhões de deslocados.
A guerra fria regressou mesmo no combate ao DAESH. O panorama político tanto nos EUA como na Rússia, a situação anémica da UE e as ambições da China levantam a pergunta: estaremos a construir um mundo onde haja lugar para todos, em diálogo e cooperação?
Depois de, na Europa, se terem mandado as religiões para a sacristia, para não perturbar a política e a política não perturbar as religiões, estas apresentam-se inopinadamente na praça pública em trajes e armas pouco convencionais.
É preciso repensar tudo, de fio a pavio, e ensaiar outros caminhos. Será isso que pretendem os Bispos franceses? Veremos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 30.10.2016


[1] Fe y Política, Sal Terrae, 1993, Bilbao
[2] El bien común y la moral política, Herder, Barcelona, 1970

23 outubro 2016

A Igreja e a Política: que Igreja e que política? (1)


        1. A Igreja Católica está em alta! Foi a exclamação de um amigo ao mostrar-me, numa rua do Porto, a primeira página do jornal, Le Monde. No Vaticano, está o Papa Francisco, António Guterres no topo das Nações Unidas e o episcopado francês surge, na praça pública, com um grito de alarme para que os responsáveis da direita e da esquerda reencontrem o verdadeiro sentido da política. A laicidade do Estado é um quadro jurídico que deve permitir a todos - crentes de todas as religiões e não-crentes - viverem juntos, com as suas diferenças.

Não deitei água fria naquela euforia. Ele tinha vivido, desolado, o inverno da Igreja desde os anos 80 do séc. XX e com melancolia a mediocridade das lideranças do catolicismo português. Fomos conversar.

É um facto que o Papa Francisco é uma figura mundialmente respeitada. Não apenas pelo seu empenhamento na reforma da Igreja, mas sobretudo porque esse esforço não se destina a fixar-se em questões da instituição ou baixar os braços dos adversários e acusadores.
Quando ele procura levar os católicos a ver o mundo a partir dos excluídos, não é para aumentar os diletantes que discutem a irradicação mundial da pobreza no mundo, mas nada fazem para que isso aconteça. O que lhe importa é convocar as capacidades de todas pessoas - seja qual for a sua ideologia ou religião – para uma política de serviço universal a partir das comunidades e iniciativas locais.

O bem da Igreja Católica não é a sua-auto glorificação. Esse é o seu funeral. Uma Igreja auto referente perde-se de Deus e do mundo, isto é, de Jesus Cristo. A Igreja está em alta quando é guiada pela liturgia do lava-pés e pela ética samaritana. 
Bergoglio insiste que é satânica a invocação de Deus para matar. Sabe que temos muitos testemunhos desses na Bíblia. Espero que ninguém se lembre de a expurgar desses horrores. Revelam aquilo que os seres humanos são capazes: atribuir ao supremo bem, a Deus, o que há de pior. Ainda no domingo passado, certamente com a intenção de mostrar a necessidade da persistência na oração, os seleccionadores das leituras para a Eucaristia escolheram uma passagem tenebrosa do livro do Êxodo. Moisés, com a vara de Deus na mão, pôs Josué a combater o dia todo, até ao pôr-do-do sol, desbaratando Amalec e o seu povo, ao fio da espada.

Estes liturgos não se dão conta de que se tornam colaboradores satânicos dos militantes do Daesh (Estado Islâmico).
Os pecados das religiões tiveram sempre sábios e profetas para os denunciar, fustigar e apelar à conversão a um Deus de pura misericórdia. Bergoglio procura algo mais: criar uma cultura, uma atitude de vida e pensamento que, sempre que se fale de Deus, de pessoas e instituições religiosas, se pense em nascentes de bondade, de misericórdia e serviço, sobretudo dos marginalizados. É uma tarefa longa. Quando este Papa fala de uma Igreja de saída, sabe que está com Jesus Cristo a continuar o estilo de vida de muitas mulheres e homens que fizeram da sua existência um dom.

2. A Igreja católica está em alta quando a palavra igreja evoca o conjunto dos cristãos e, neste caso, o conjunto dos católicos. O pluralismo cristão e católico não é pecado. As tentativas de obrigar os católicos a lerem todos pela mesma cartilha, pelo mesmo catecismo, em nome da unidade, são a violência da unicidade, da ditadura, do puro vazio. Longa tem de ser a aprendizagem do diálogo no interior da Igreja, para que toda ela se confronte, hoje, com os problemas de toda a sociedade, na diferença legítima das suas sensibilidades, mas trabalhando para vencer o abismo entre os poucos muito ricos e os muitos muito pobres. É um caminho de conversão e sem esse processo não é possível falar da generalização de direitos e deveres humanos. O destino universal dos bens pode encontrar muitas modalidades de realização, mas não muitas formas de o negar.

A Igreja está em alta não por um católico, no caso o português António Guterres, ter sido escolhido para Secretário-Geral da ONU. Este facto poderia ser interpretado como a glória de ver um católico reconhecido e consagrado no topo da mais alta carreira política, a nível mundial. Uma vaidade. Está em alta porque Guterres, segundo as próprias declarações, não pretende ser o líder do mundo, mas com determinação e humildade, ser apenas mediador e facilitador da causa da Paz. Como Alto-Comissário da ONU para os Refugiados, perante situações de horror, chegou à conclusão de que era necessário ter possibilidade de uma intervenção política, ao mais alto nível.

O que se deve pedir à Igreja não é que ela produza ambiciosos de dominação económica, política ou religiosa, mas que as pessoas, seja onde for e segundo as suas possibilidades, desenvolvam o gosto de servir.

3. Em 1991, perante um tempo de desilusão e refluxo das grandes ideologias, os bispos de França insistiram que a política é tarefa de todos. Em 1999, produziram um célebre documento sobre a reabilitação e a regeneração da política, que o Papa Francisco recordou e recomendou no começo do seu mandato. No dia 13 deste mês, publicaram um texto, que já deu brado, sobre o sentido da política num mundo em mudança, mas esta questão fica para o próximo Domingo. 

Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 23.10.2016

16 outubro 2016

NÃO HAVERÁ SALVAÇÃO?



      1. Por causa do texto do passado Domingo, recebi um telefonema longo, tentando mostrar-me que já não existem deuses, homens ou mulheres que nos possam salvar. O mundo está irremediavelmente perdido. Os cristãos são os mais culpados pela enganosa ideia de salvação. Depois da derrota de Jesus de Nazaré, inventaram a fé na impossível ressurreição. Não havendo remédio contra a morte, só ela nos pode livrar do mal de existir. 
    Depois desta metafísica veio uma sumária lição sobre a responsabilidade europeia no actual desconcerto do mundo. No séc. XIX, a filha da civilização das Luzes cegou-se com o alargamento das suas zonas de dominação. Duas guerras mundiais, de horrorosos extermínios, tornaram a memória do século XX numa vergonha sem nome.

Das ruínas, surgiu a ideia de construir uma Europa como nunca tinha existido. Num momento de lucidez, alguns dirigentes de partidos democratas-cristãos e social-democratas consentiram em criar as condições para a sua união. Não previram que os sucessores iriam desprezar as boas regras da cooperação e do funcionamento democrático das instituições. Com desníveis económicos tão acentuados e sem o desenvolvimento de uma cultura de diálogo intercultural – a partir da família, da escola e das relações de trabalho – os velhos demónios do nacionalismo populista voltaram a agitar-se.
 Os eurocépticos passaram a queixar-se do casamento e a calcular as vantagens e inconvenientes de um divórcio. O outro europeu está a torna-se um adversário e os acossados pela guerra e pela fome que lhe batem à porta são seleccionados conforme o contributo que possam representar para os seus interesses e necessidades.
Uma Europa, esquecida da sua alma profunda, de mal com a economia, a política e as religiões, suicida-se julgando que está a salvar a sua pele. Recusa ver-se ao espelho, juntamente com os EUA, para não enfrentar as suas responsabilidades na desordem deste mundo. Caiu o muro de Berlim, outros continuaram e novos se ergueram. As desigualdades sociais tornam retórica a Declaração dos Direitos Humanos. As Nações Unidas são um belo nome para a desunião global.
2. Com essa injecção de tópicos históricos pretendia o meu leitor curar a minha ingenuidade teológica. Agradeci, mas observei-lhe que existem muitos outros argumentos para reforçar o seu pessimismo. Se até um candidato à presidência da maior potência mundial, dispondo das universidades mais desejadas, consegue tantos apoios vociferando ordinarices, talvez possamos ver donde não vale a pena esperar a salvação. Existem outros caminhos.
Todos os dias me espanto com a inesgotável energia criadora, em actos, gestos e palavras, do papa Francisco. Alegra-me, sobretudo, a sua atitude permanente de acolher e suscitar a criatividade das outras pessoas, analfabetas ou intelectuais, sejam elas cristãs, agnósticas, ateias, de outras religiões ou sem religião. Incita a derrubar muros, a construir pontes, a escutar o outro com afecto. Gosta de mobilizar e casar a inteligência e as emoções para desenvolver um mundo de compaixão pelos caídos na valeta. Todos convocados, de geração em geração para cuidar, reparar e tornar bela a casa comum.
A tão falada reforma da Cúria e do Banco do Vaticano, os afrontamentos do mundo eclesiástico desde os bispos, padres e seminaristas, começando sempre pelos eminentíssimos cardeais, são apenas manifestações do acolhimento de Jesus Cristo em todas as dimensões da vida humana actual. Como acaba de escrever o filósofo francês, Jean d’Ormesson, “Francisco reencontrou o espírito revolucionário do cristianismo. Foi o cristianismo, abrindo-se às mulheres, aos pobres, aos escravos que permitiu todas as grandes revoluções a partir das quais podemos pensar a sociedade na qual hoje vivemos. Só há uma revolução: o cristianismo”[1] .
3. Esta observação talvez não vá ao fundo da questão e não é apenas porque em nome do cristianismo e da sua pureza também foram praticados muitos crimes.
 Jesus Cristo está testemunhado e configurado pelos textos do Novo Testamento, mas não está congelado há dois mil anos nessa escrita. Esses textos testemunham de Alguém que está vivo, hoje, nos acontecimentos e na vida das pessoas, acolhido ou rejeitado. A grande tentação religiosa consiste em pensar que o encontro com o Ressuscitado acontece apenas e sobretudo nas missas, nos sacrários e nas exposições do Santíssimo Sacramento. Esses exercícios espirituais valem e muito na medida em que nos lembrem que Jesus Cristo é o clandestino da semana, derrubando muros, separações, inimizades, entre pessoas e grupos. A devoção que retém as pessoas nas igrejas, nas sacristias, está a opor-se a um Jesus em viagem para as periferias sociais e culturais. Foi isto que o papa Francisco veio lembrar: só vale uma Igreja de saída!
O papa não está a inventar nada. Lembra apenas a pergunta de Deus: que fizeste do teu irmão?[2] O julgamento religioso de toda a história humana, religiosa ou profana, em todos os seus momentos, depende da resposta a essa pergunta[3].
Há salvação. Deus não gosta de fazer nada sozinho e o papa Francisco também não.
Frei Bento Domingues, O.P.
16.10.2016
in Público 
                                                                                                                          
[1] Le Monde des Religions, n 79, p. 70
[2] Gn 4, 1-16
         [3] Mt 25, 31-46 

11 outubro 2016

Mulheres na igreja - debate

Teve lugar no passado dia 29 de setembro na Biblioteca Ana de Castro Osório um debate sobre Mulheres na igreja com Luísa Ferreira Ribeiro, Frei Bento Domingues e Maria João Sande Lemos que se pode ouvir aqui: https://archive.org/details/MulheresNaIgreja

09 outubro 2016

AS MULHERES NA IGREJA

1. O ciclo de tertúlias, de Janeiro a Novembro de 2016, na Biblioteca de Belém, é inteiramente dedicado às mulheres. No passado dia 29, o tema era As mulheres na Igreja, desenvolvido pela filósofa Maria Luísa Ribeiro Ferreira e moderado por Maria João Sande Lemos. Como carta fora do baralho, pediram-me uma intervenção.
 

Lembrei-me, imediatamente, da antiga distribuição das pessoas no espaço da igreja da minha aldeia: os homens à frente, as mulheres e crianças atrás. O padre dizia a Missa, em latim, de costas para todos.

As mulheres limpavam a igreja, enfeitavam os altares e algumas ensinavam a “doutrina” às crianças. Dizem-me que, nas igrejas das cidades, as actividades e associações femininas eram mais abundantes e variadas.


A partir dos anos 30 do século passado, a Acção Católica teve um papel muito activo na renovação da vida da Igreja. Manteve, em todas as suas expressões, a separação entre masculina e feminina. O assistente era sempre um padre.


Nos anos 60, para os Cursos de Cristandade, a religião não era para mulheres. A versão feminina surgiu apenas para que elas pudessem entender o repentino fervor dos maridos cursilhistas.


Na mesma época, casos como o da Juventude de Cristo Rei - inteiramente misto e em perfeita autogestão democrática – eram raros. 


Os chamados Institutos femininos de Vida Consagrada nunca precisaram de nenhuma ordem para se multiplicarem, mas também nunca eram dispensados da autorização masculina. 


Compreendo que as novas gerações já não saibam o que isso quer dizer e as mais velhas não gostem de o lembrar. No entanto, o tema, As mulheres na Igreja, é recorrente, mas falar do papel dos homens na Igreja parece insólito. Porque será?


2. Para o teólogo jesuíta, J. Moingt, a propósito desta e de outras questões, é indispensável reencontrar o Evangelho. Só ele poderá salvar a Igreja[1]. É preciso, de facto, alterar os termos do debate. Segundo as quatro versões do Evangelho, Jesus nunca teve nenhum problema com as mulheres. As suas dificuldades foram sempre com os discípulos que Ele próprio escolheu. O Evangelho de S. Marcos sublinha, várias vezes, que os apóstolos não compreendiam nem as palavras e nem os actos de Jesus[2]. 


Vendo mais de perto os textos, a razão do desentendimento parece-me ser a seguinte: Jesus venceu as chamadas tentações messiânicas da dominação económica, política e religiosa; os discípulos deixaram tudo para o seguirem, mas com a ideia de que faziam um bom negócio. Jesus tomaria o poder e seriam eles a ocupar os postos ministeriais. A discussão, entre eles, era sempre a mesma: Quem seriam os primeiros? A determinada altura, os filhos de Zebedeu, Tiago e João, não aguentaram a espera e foram ter directamente com o mestre: Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda. Jesus respondeu: Nem pensem! Mas há algo mais interessante ainda: Os outros dez, tendo ouvido isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Jesus chamou-os e disse-lhes: Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se servo e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos. Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos.


Segundo os Actos dos Apóstolos[3], mesmo depois da ressurreição, os discípulos não desarmaram: Senhor, é agora que haveis de restaurar a realeza em Israel? Jesus já não aguenta mais essa ambição teimosa de poder: só o Espírito Santo será capaz de os mudar! 


O espantoso é que Jesus não escolheu as mulheres para discípulas. Foram elas que o escolheram, seduzidas pelo que ele era[4], sem qualquer miragem de poder. Pelo contrário, seguiram-no até à cruz e ao sepulcro, sem nunca lhe pedir nada em troca e prontas a financiar o seu projecto[5].


Destas discípulas, Jesus ressuscitado fez apóstolas do futuro do Evangelho no mundo. São elas as encarregadas de evangelizar os apóstolos, os discípulos: Eis que Jesus veio ao seu encontro e lhes disse: Alegrai-vos. Elas, aproximando-se, abraçaram-lhe os pés, prostrando-se diante dele. Então Jesus disse: Não temais! Ide anunciar a meus irmãos que se dirijam para a Galileia; lá me verão[6].


3. Quando se voltar a ter em conta a força desta cena ressuscitante, as discussões sobre os ministérios das mulheres na Igreja, impôr-se-á a pergunta: teremos autoridade para desordenar aquelas que Jesus ordenou? Elas não procuraram ministério nenhum. A vida delas foi de puro serviço do amor. Foi Jesus ressuscitado que, espontaneamente, as encarregou de evangelizar aqueles que, toda a vida, apenas procuravam o poder.


Se não quisermos continuar no ridículo, teremos de voltar a este tema.
 

Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 09.10.2016


[1] J. Moingt, L’Evangile sauvera l’Église, Paris, Salvator, 2013
[2] A Bíblia de Jerusalém acentua as seguintes passagens: Mc 4, 13; 6, 52; 7, 18; 8, 17-18.21.33; 9, 10. 32; 10, 35-45
[3] Act 1, 6-8
[4] Lc 7, 36-50; 8, 1-3
[5] Mt 28, 1-10
[6] Mt. 28, 9-10 e par.

02 outubro 2016

A VERDADEIRA RELIGIÃO É CRÍTICA

          1. Tinha recomendado a um amigo, enfastiado com as produções açucaradas de espiritualidade pós-moderna e com as passerelles de diálogo inter-religioso, o último livro de Anselmo Borges, o questionador das manifestações da religiosidade, da religião e das religiões[1]. É um agrupamento de textos essenciais acerca do essencial.
Avisei o potencial leitor de que não são as razões que encontramos para crer em Deus e as que temos para não crer que nos fazem crentes ou ateus. Virou-se para mim apreensivo: mas, então, em que ficamos?
Não podemos ficar. Os que repousam nas suas convicções continuam o mesmo sono dogmático. Os despertos são peregrinos. É normal que, na presente condição humana, precisem de “estações de serviço” para continuar a viagem. Mas quando se diz que o nosso coração não conhecerá quietude a não ser quando repousar no infinito, imagina-se, de forma ilusória, o infinito como termo de uma caminhada.
É no infinito da divindade que vivemos, nos movemos e existimos, como disse S. Paulo, em Atenas, acolhendo, na sua teologia criacionista, as expressões de poetas e filósofos gentios[2].
Não imaginemos a divindade e a sua eternidade como uma múmia. Quando desejamos aos que morrem “o eterno descanso”, não os entregamos ao tédio eterno. Prefiro supor que entram na infinita e incansável criatividade de Deus.
Para não cair na idolatria, na manipulação do nome de Deus, deveríamos ter em conta a advertência poética de S. Gregório de Nazianzo: Ó tu que estás para lá de tudo, será possível cantar-te de outro modo? Que palavra te poderá celebrar? A ti, que nenhum termo te pode nomear. Que espírito te poderá perscrutar? A ti, que nenhuma inteligência te pode apreender? Tu és o único inominável. Porque tu criaste tudo o que é nomeado. Tu és o único que se não pode conhecer. Porque tu criaste tudo o que o pensamento abarca. Todas as coisas falantes e não falantes te louvam. Tudo o que pensamos e não pensamos é em tua honra. Os desejos comuns, as dores comuns de todos são acerca de ti. Todas as preces a ti se dirigem. Tudo o que existe e tem consciência de ti entoa um hino silencioso. Em ti tudo permanece, tudo para ti ao mesmo tempo converge. Tu és o fim de tudo, tu és o único, és tudo e ninguém.
Não sendo um só, não sendo tudo, ó todos os nomes, como te chamarei a ti, o único que não tem nome? Que espírito celeste poderá elevar-se para cima dos véus que estão para lá das nuvens? Sê-nos propício, ó tu que estás para lá de tudo. Quem terá o direito de cantar-te de outro modo?
2. Jesus era um homem profundamente religioso. A sua relação a Deus fazia parte da sua identidade. Porque terá sido, tão agreste com a religião em que nasceu, foi criado e viveu? Segundo as quatro versões do Evangelho, em vez de uma metafísica da religião, praticou uma crítica permanente dos lugares, dos tempos e das pessoas mais zelosas da ortodoxia farisaica. Até parece que tinha um gosto perverso em violar o dia mais sagrado do judaísmo, o Sábado. Um chefe da sinagoga, bastante irritado, observou-lhe: tens seis dias da semana para fazeres as curas que quiseres, mas ao Sábado, não! Resposta de Jesus: que religião é esta que, ao Sábado, os animais têm mais sorte que os seres humanos? Qual seria a razão que levou Jesus a esta falta de respeito pelo dia mais sagrado?
O dia especialmente consagrado a Deus tem de coincidir com o acontecimento da libertação, da alegria, da felicidade do ser humano. Deus não pode ser louvado à custa da humanidade. O Sábado é para o ser humano, não é o ser humano para o sábado. Deus quer misericórdia. Não se alimenta de sacrifícios humanos.
A outra crítica, não menos severa, era de ordem ética: uma religião que justifica a descriminação entre homens e mulheres, entre ricos e pobres, entre sãos e doentes é de uma árvore muito ruim. Não vem de uma divindade aceitável.
3. A dimensão ecuménica da intervenção do Papa Francisco é indiscutível. Não descura os simpósios, as mesas redondas, as celebrações para estimular o diálogo inter-religioso. Mas se estas iniciativas não levarem a um processo de crítica e de reforma de cada uma das religiões, não servem para nada. Nenhuma religião pode desencadear esse processo noutras instituições. O Papa Francisco, desde o começo do seu pontificado, nunca mais deixou os cardeais, os bispos, os padres e a formação de seminaristas em paz. Não tem medo que as outras religiões e os ateus fiquem com má impressão da Igreja Católica. Ainda agora, em Setembro, não deixou que os bispos recém-nomeados se julgassem entronizados nas Igrejas locais, como deuses e senhores das comunidades a quem devem servir. Ele não pretende que a Igreja Católica fique bem na fotografia mundana, nas imagens do sucesso e do poder. O que disse acerca da formação dos seminaristas, devia dar que pensar: quando alguns seminaristas se refugiam na rigidez, por baixo, sempre há algo de feio.
O Papa é muito crítico em relação aos eclesiásticos. Não quer amos. Faz tudo para que sejam os primeiros ao serviço dos mais oprimidos, sobretudo quando são oprimidos em nome da religião.
Frei Bento Domingues, O.P.
02.10.2016 in Público


[1] Anselmo Borges, DEUS RELIGIÕES (IN) FELICIDADE, Lisboa, Gradiva, 2016
[2] Act. 17, 16-34 Cf notas da TOB aos versículos 26-31