28 junho 2015

Só para depois do juízo final

Frei Bento Domingues O. P.

1. Dizem que o Papa Francisco não é um homem apressado, mas tem muita pressa. Tentarei compreender porquê. Para já, quero manifestar a alegria que vivi na leitura da primeira Encíclica de um Bispo de Roma, dirigida a cada pessoa que habita este planeta a reconhecer, a respeitar e a cuidar. Ele é a nossa própria casa. A humanidade não pode continuar a envenenar o seu próprio futuro.

É um rio de muitos afluentes. Pelo horizonte, pelo conteúdo e pelo estilo é justo chamar a este texto a Carta Magna da ecologia integral [1].

Ao contrariar a liberdade de exploração egoísta dos recursos de todos, o Papa Francisco vai ter de enfrentar novas campanhas contra o seu pontificado, campanhas movidas por aqueles que procuram reduzir tudo a negócios de miopia. Pedem-lhe que se ocupe do Céu e esqueça os pobres. Mas este argentino continuará a protestar contra os vendilhões da terra de todos apenas para benefício de alguns.

2. Hoje, porém, quero chamar a atenção para uma outra história muito breve, muito atrevida e abafada pelos “empatas profissionais” do ecumenismo oficial. 

Vejamos: a 23 de Maio, Bergoglio enviou uma mensagem-vídeo a uma jornada de diálogo organizada pela Diocese de Phoenix (EUA), em colaboração com pastores evangélicos de orientação pentecostal.

Era uma mensagem de radical indignação contra a cegueira cruel, paradoxal e chocante do movimento ecuménico. 

Eis o facto: neste momento, quem mata os cristãos, aos milhares, tanto lhe dá que sejam ortodoxos, católicos ou protestantes. Para os assassinos, são Cristãos e basta! Sabem reuni-los pelo mesmo ódio.

Pelo contrário, os Cristãos andam sempre a fazer mil distinções para adiar, sine die, a união que Jesus Cristo insistentemente lhes pede. Cedem ao “ecumenismo do ódio”, mas continuam a retardar sempre a união na diferença, mais que estudada. Como dizia Jesus de Nazaré, os filhos das trevas vêm mais do que os filhos da luz.

O melhor é ler o que Papa realmente disse, no seu estilo inconfundível: “Hoje reunidos, eu em Roma e vós aí, pediremos que o Pai envie o Espírito de Jesus, o Espírito Santo, e que nos conceda a graça, a fim de que todos sejam um só, «para que o mundo creia». Vem-me ao pensamento o desejo de dizer algo que poderá ser insensato, ou talvez uma heresia, não sei. Mas alguém «sabe» que somos um só, não obstante as diferenças.

“Quem será esse alguém? É aquele que nos persegue, aquele que hoje persegue os cristãos, que nos unge com o martírio; ele sabe que os cristãos são discípulos de Cristo: que são um só, que são irmãos! Não lhe importa se são evangélicos, ortodoxos, luteranos, católicos, apostólicos... isso não lhe importa! São cristãos! É aquele sangue que nos une.

“Hoje, amados irmãos, vivemos o ecumenismo do sangue. Isto deve impelir-nos a fazer aquilo que já fazemos: rezar, falar entre nós, diminuir as distâncias, irmanar-nos cada vez mais.

“Estou convencido de que a unidade entre nós não será feita pelos teólogos. Os teólogos ajudam-nos, a ciência dos teólogos assistir-nos-á, mas se esperarmos que os teólogos se ponham de acordo entre si, a unidade só será alcançada no dia seguinte ao do Juízo Final.
“A unidade é feita pelo Espírito Santo; os teólogos ajudam-nos, mas assiste-nos a boa vontade de todos nós que estamos a caminho e com o coração aberto ao Espírito Santo!

3. Bergoglio não está contra o papel indispensável dos teólogos. Está contra uma casta especializada em notar, até ao último pormenor, até à última virgula, aquilo que deve impedir a união dos cristãos. É uma casta de  juízes, em vez de aprendizes. Acabam por cair na cegueira que Jesus censurava: vêem o argueiro no olho do outro e não dão pela trave que há no seu próprio olhar [2]. Não entram nem deixam entrar. Bem pode o Papa rezar com Santa Catarina de Sena: Senhor, alargai-lhes a alma!

A boa prática teológica é o empenhamento da inteligência cordial na adesão a Jesus Cristo, abraço do mundo. É uma construção de pontes, não a arte de criar obstáctulos. O universo simbólico realiza-se no registo da aproximação do que está distante. O “diabo”, ao contrário do símbolo, afasta o que está próximo.

A verdade em teologia não é um adquirido. É um infindável horizonte de busca, uma contínua passagem para a outra margem e uma navegação que se faz sempre mais ao largo. 

A teologia vive bem na oração, como consciência do mistério insondável de Deus. Este não cabe em nenhuma definição. Quando a teologia se torna soberba, pensa que tem Deus na mão e transforma-se em juíza das expressões da fé das outras confissões cristãs. Não concebe a importância de procurar os pontos de convergência no caminho para uma Realidade que não é propriedade das Igrejas Ortodoxas, da Igreja Católica Romana, ou das Igrejas Protestantes.

A virtude do caminho ecuménico é a Esperança, a não confundir com a arte de adiar o que urge resolver. Será sabedoria cristã repetir apenas que o futuro a Deus pertence, que é melhor deixá-lo nas mãos de Deus e não se perguntar se Ele gostará de tanta confiança em nome da nossa irresponsabilidade e preguiça?

Essa irresponsabilidade teológica deixará a unidade dos cristãos para o dia seguinte ao do Juízo Final.

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[1] L. Boff: A Carta Magna da ecologia integral: grito da Terra - grito dos pobres
[2] Mt 7, 1-5


26 junho 2015

Comunicado à imprensa

O Movimento Internacional Nós Somos Igreja – Portugal enviou para a imprensa o seguinte

Comunicado à Imprensa


O Movimento Nós Somos Igreja-Portugal congratula-se com

a universalidade da Encíclica Laudate Si, em que a palavra, o pensamento e o texto do Papa Francisco se pronunciam sobre o Meio Ambiente, um dos cinco pontos evocados na Petição que é sua Carta de Princípios,

— a criação pelo Papa Francisco do Tribunal Eclesiastico para os crimes de Pedofilia, coordenado pela Congregação para a Doutrina da Fé,

— o gesto do Papa Francisco, em reconhecimento do martírio e beatificação de D. Óscar Romero, arcebispo de São Salvador, assassinado em 1980,

— a posição do Papa Francisco, por admitir que algumas separações de casais são inevitáveis, por condenar a violência doméstica, por defender especialmente as crianças e todas as vítimas desta violência. O NSI lamenta que a Conferência Episcopal Portuguesa nunca se tenha manifestado sobre estes temas.  

O Movimento Nós Somos Igreja- Portugal aguarda ainda com esperança as conclusões do Sínodo sobre a Família, no próximo outubro, não esquecendo de que há temas da nossa Petição, como o celibato obrigatório, a ordenação das mulheres, a situação dos divorciados e recasados e a diversidade sexual que não estão resolvidos, e pelos quais continuaremos a lutar.      

Pel’O Movimento Internacional Nós Somos Igreja – Portugal
Margarida Pereira-Muller
Leonor Xavier

Lisboa, 25 de junho de 2015

21 junho 2015

Novos olhares sobre o casamento (2)

Frei Bento Domingues O. P.

1. Entrei numa Igreja paroquial para a celebração do casamento de uns noivos, meus amigos, para a qual tinha recebido jurisdição do respectivo pároco. Ao dirigir-me à sacristia para me paramentar, deparei com uma senhora que me perguntou se os noivos se tinham confessado. Respondi que não sabia nem queria saber.

Se não se confessaram a V. Reverência, aqui também não. Havia um pedido do casamento com Missa, mas não haverá Missa. Não posso ser cúmplice de dois sacrilégios.

Procurei saber que sacrilégios eram esses. A informação foi rápida: o primeiro já é inevitável - os noivos vão-se casar em pecado mortal; o segundo é deixar os noivos comungar nessa situação. Este vou impedi-lo, pois não haverá Missa.

Como as noivas chegam, quase sempre, um bocado atrasadas, julguei que tinha algum tempo para uma breve catequese.

Disse-lhe, então, que eram louváveis os seus cuidados com a alma dos outros, mas o seu zelo parecia-me pouco informado e nada esclarecido.

Pouco informado, porque os noivos, para se confessarem, se quiserem, têm muito por onde escolher. Fazer um juízo sobre o secreto estado de consciência de outra pessoa – dizer, por exemplo, que está em pecado mortal - além de atrevimento insensato, é algo proibido pelo próprio Jesus de Nazaré[1]  . Isso, por um lado. Por outro, a senhora parece ignorar que a celebração dos sacramentos cristãos implica a presença pascal da acção de Cristo, que atinge todos os tempos e lugares. Deus e a sua graça não dependem dos sacramentos, pois se assim fosse, serviriam para limitar o alcance da acção do Espírito de Deus!

Lembrei também àquela zelosa senhora de não esquecer que o maior dos sacramentos – signos da graça divina – é a Eucaristia. Ora, está inscrito no tecido simbólico desde sacramento - do começo ao fim - a celebração da misericórdia: oferta do perdão de Deus e partilha recíproca do perdão entre os participantes na Missa. Não se trata de um faz de conta ritual, mas da própria substância da Eucaristia.

Esta tentativa de catequese sacramental teve direito a um comentário: vejo que o senhor padre também anda perdido nessas modernices, mas já tem idade para ter juízo!

Só pude acrescentar: eu pecador me confesso, mas ainda que tenha de ir a uma taberna comprar pão e vinho, este casamento terá Missa, como os noivos pediram. Resmungando lá foi arranjar tudo para a celebração e assistiu, num canto da Igreja, “àquele sacrilégio”. A conversa não era secreta. Teve a presença aflita do sacristão.

2. O excelente acolhimento oferecido por muitas paróquias não pode sofrer com o testemunho de um caso lamentável. Não posso, no entanto, esquecer tantos casais que se afastaram da Igreja, para sempre, quando tentavam uma aproximação.

Estamos, porém, em época de preparação do Sínodo dos Bispos sobre a Família. As espectativas são, como é normal, bastante diversas. Espero que a reflexão da hierarquia vá reconhecendo que o sentido da fé dos fiéis, sensus fidei, especialmente dos noivos e dos casais - nas suas diferentes expressões - deve ser o principal lugar de informação para as orientações pastorais. Estas devem assumir sobretudo um carácter metodológico, resistindo às conclusões definitivas. Esse caminho ajudaria a vencer o cepticismo daqueles que já não esperam nada de novo. Contam, apenas, com a renovada teimosia na absoluta indissolubilidade do matrimónio. Esta não deveria esquecer nem a misericórdia de Deus nem os limites da condição humana. Uma segunda celebração cristã do casamento dos divorciados, que seriamente a procurarem, não tem de ser bloqueada pelo receio de se andar a brincar aos casamentos.

Nesta questão, o recurso à declaração de Jesus esquece algo de elementar, precisamente a pergunta que os fariseus lhe fazem para o rasteirar: É lícito repudiar a própria mulher por qualquer motivo que seja? Sem esta pergunta é impossível entender a resposta. O que Jesus faz é a defesa intransigente das mulheres, sem os subterfúgios de Moisés. Os discípulos entenderam muito bem o alcance da resposta: se é assim a condição do marido em relação à mulher, não vale a pena casar-se [2].

3. Em relação ao referido Sínodo, as preocupações devem centrar-se no primado das pessoas concretas e nos itinerários das suas múltiplas relações. Ao elaborar as orientações da fé cristã em terrenos tão complexos e movediços como os das famílias a constituir, a apoiar, a defender e a refazer, não se pode recorrer apenas a formulações descontextualizadas. A construção de uma família de sólidos laços afectivos, ao contrário do que por vezes se afirma, é o que as pessoas mais procuram. A alta temperatura da paixão juvenil não é a única medida do crescimento do amor.

As instituições da pastoral familiar da Igreja ganham em realismo sendo elaboradas com os noivos e os casais, nas suas diversas metamorfoses. Não se trata de relativismo, do vale tudo, mas da fidelidade à perspectiva de Cristo perante as instituições mais sagradas: O sábado é para o ser humano, não o ser humano para o sábado.

As doutrinas e as instituições da Igreja só valem na medida em que, à luz do Evangelho, respeitarem e promoverem o bem da família.

Público, 20.06.2015

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[1] Mt.7,1-5
[2] Ler Mt 19, 3-12

14 junho 2015

Novos olhares sobre o casamento

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Quem decide casar, seja pelo civil seja pela Igreja, é obrigado a marcar uma data. É por isso que existe um antes de casados e um depois de casados. Banalidade das banalidades. As instituições têm normas. Mas esta evidência jurídica não deve esconder as misteriosas dimensões humanas e cristãs de laços que se desenvolvem no tempo e que nenhum tempo explica.

O casamento é um processo infinitamente mais complexo do que o processo civil e religioso. Para não morrer, tem de ir crescendo sempre nos noivos e no casal. Aquilo a que normalmente se chama o casamento é apenas a Festa de uma realidade que só pode ser bem conjugada no gerúndio. As pessoas que se acolhem como casal serão lúcidas se perceberem que ganham em ir casando cada vez mais, nas diferentes etapas da vida, preparando-se, nos dias calmos, para o imprevisível.

Se for verdade, como diz A. Bessa Luís, que as famílias são férteis em tensões e desajustes e que, sem conflitos, a família não subsistiria, então o casal, para ter futuro, precisa da conversão permanente à escuta recíproca, ao diálogo e ao perdão, sabendo que seremos sempre um mistério para nós próprios e para os outros. A ambição da transparência total é o engano de almas lisas. 

Era ainda criança, mas lembro-me, como se fosse hoje, das conversas que provocou na minha aldeia uma pregação do padre Domingos, que depois foi Bispo da diocese da Guarda. Pregava contando histórias exemplares e parábolas semeadas de aforismos que tinham tanto de rústico como de prático. Num dos sermões, conhecendo a realidade local, resolveu falar, com muitos pormenores hilariantes, sobre três modelos de gestão familiar: a do varão - manda ele e ela não; o da varunca - manda ela e ele nunca; o da varela – manda ele e ela!

A questão mais difícil não é saber quem manda, mas o que comanda, em profundidade, as reacções de um casal que sonhou com um paraíso.

2. Nos debates em torno do Sínodo dos Bispos sobre a Família, alguns parecem obcecados pela indissolubilidade e pela impossibilidade de uma segunda celebração cristã do casamento. Nota-se pouca atenção aos seus modelos culturais e religiosos, no passado e no presente. Mesmo no âmbito da tradição cristã, podem observar-se diversos paradigmas.

 Nem o Antigo nem o Novo Testamento impõem uma estrutura determinada e fixa. A partir da experiência cristã, em confronto com outras culturas, numa época de globalização, é normal que se pense, dentro do próprio cristianismo, em instituições mais aptas para a família e para o casal europeu, latino-americano, africano e asiático.

Embora de forma muito esquemática e rápida, importa passar os olhos pelos traços essenciais da sua história como convite para leituras especializadas[1].

 Nos séculos I-III, o casamento era uma questão terrena que se procurava viver em espírito cristão: casava-se no “Senhor”, sem cerimónias próprias. Os cristãos casavam-se como os não cristãos: uns, segundo os ditames do Direito Romano, outros conforme os costumes locais (o direito consuetudinário). O grande cuidado a ter era com os ritos e sacrifícios pagãos que estivessem em contradição com a mensagem cristã.

Nos séculos IV-XI foi-se elaborando uma liturgia cristã, em duas fases: os esponsais e o casamento. As formas não eram obrigatórias. Obrigatória era a Bênção. Entretanto, foram-se introduzindo as formas civis no direito eclesiástico.

Pelo ano mil, todas as questões relativas ao casamento passaram para a jurisdição eclesiástica. Em suma: antes do ano mil, os cristãos casam-se de modos diversos: uns, segundo um rito cristão (direito eclesiástico); outros, segundo o direito civil; outros, segundo os costumes locais; outros ainda, clandestinamente.

Nos séculos XI-XV, produziu-se uma teologização e uma eclesiologização do casamento. O debate teológico sobre a sua essência agudizou-se. Toda a jurisdição do casamento passou para a Igreja, que ficou a regulamentar até os seus efeitos civis. Acabou assim por subsistir apenas o casamento religioso e o clandestino.

No Concílio de Trento (1545-1563), o casamento tornou-se numa instituição da fé. Todas as causas são transferidas para os tribunais eclesiásticos. É invalidado o casamento clandestino, dada a dificuldade dos tribunais em determinar qual era a esposa legítima de determinado varão comprometido, ao mesmo tempo, com várias mulheres.

3. F. Xavier de la Torre, da U. Pontifícia de Comillas, recorda que essa razoável proibição não pode fazer esquecer que, durante 15 séculos, a cerimónia não era uma exigência e, em termos teológicos, não tem de lhe estar associada. Isto permite-lhe destacar o valor luminoso do casamento e entender a crise de uma certa institucionalização. A trilogia sempre unida de casal, casamento e família, fragmentou-se. O adeus à Família é, no entanto, precipitado. De modos diversos, todos a procuram.

Jesus de Nazaré rejeita apenas a família como um mundo fechado, um egoísmo mais ou menos alargado, esquecida do nosso parentesco universal.

Público, 14.06.2015

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[1] Gabino Uríbarri, SJ (ed),La família a la luz de la misericordia, Sal Terrae, 2015, Santander.

07 junho 2015

Espírito criador

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Há pessoas que fazem profissão de optimismo. Olham sempre, ou fingem olhar, para o “lado positivo” de tudo e, perante qualquer desgraça, repetem: ainda podia ter sido muito pior! São capazes de recuar até à pedra lascada para mostrar que agora estamos no melhor dos mundos. Se alguém, mais sensível à questão social, por exemplo, observa que 20% da população detém 80% dos recursos mundiais, a resposta já está pronta: as desigualdades são a principal fonte de progresso para todos.

Quem não quer ser acusado de negativista refugia-se no prestigiado casamento do pessimismo da inteligência com o optimismo da vontade. Por não apreciar esses tranquilizantes, o filósofo espanhol, Xavier Zubiri, apressa-se a declarar que durante toda a sua vida só conheceu a emoção do puro problematismo.

Um dos alimentos principais da filosofia são as interrogações. Mas a problematização contínua é o luxo de quem não tem que decidir. As decisões não podem esperar ver todas as dúvidas resolvidas. A concepção aristotélica da prudência – virtude da decisão bem ponderada – recomenda-se tanto aos “tontos com iniciativa”, como aos eternos hesitantes.

Não tenho que venerar nenhuma dessas atitudes. A todas falta, seja em que domínio for, a alma da vida: o inesperado, o imprevisível da criatividade, a fuga à rotina, a irrupção do novo.

É precisamente por isso que gosto do hino litúrgico de J. A. Mourão, inspirado e enxertado na música de A. Gouzes. Implora o Espírito do Pentecostes, a grande metáfora da realidade profunda do mundo e da Igreja em movimento: Sopro criador vem distribuir a fala! Vem força de partir, vem rio de fogo largo!

Esse é o refrão. O hino tem cinco estrofes. Deixo aqui duas apenas:

Tu que revelas a presença do Deus vivo
no coração do mundo e da vida
Tu que pulsas em nós como fermento
semente de fogo, terra orientada.

Tu és a nossa vontade de viver
intensamente a vida até ao fim
o presente e o futuro da nossa esperança
o que anima a festa no coração do homem.

2. Quando acolhido no íntimo do quotidiano, é o Espírito de Cristo que nos volta os olhos para o ritmo invisível dos trabalhos do mundo, seja na investigação das ciências, nas surpreendentes aproximações entre pessoas e povos, na criação de beleza em todas as artes, de todos os tempos, e nos alerta para o desconcerto do mundo. 

Herberto Helder [1], num dos seus poemas místicos, depois de sugerir a mão que refaz o universo, na sua unidade rítmica, cada coisa e cada animal com a sua aura, descansa:

Sento-me a conversar com Deus; palavra, música, martelo
uma equação: conversa de ida e volta
(…)
Deus não se debruça na canção; destroça
a cadência.

Não tem nada a ver com a recomendação piedosa de dar lugar a Deus na nossa vida. Essa recomendação esquece que é, na realidade do mundo, que se vive a sua transcendência absoluta. Para o Mestre Eckhart, um Deus que precisa de um lugar é um ídolo: por isso é que peço a Deus que me livre de Deus. E sublinhava: Deus só pode estar num lugar sem lugar. Nós, sim! Precisamos de acordar, seja onde for, para a divindade em que vivemos, nos movemos e existimos [2].

Os grandes criadores de paradoxos, os místicos, religiosos ou não, impedem a linguagem religiosa de perder o sal e adormecer nas definições dogmáticas. O terminal da viagem da fé teologal não são os credos, o culto, os sacramentos ou o direito canónico, embora sejam sinalizações importantes nos labirintos do percurso das Igrejas cristãs. Mas S. Paulo notou que todos os carismas e a própria fé teologal se desfaz na luz infinita do Amor que nos acolhe no termo da viagem.     

3. No Domingo passado, foi celebrada na Liturgia católica a Santíssima Trindade. Com música de Langeac, foi cantado, na Missa em que participei, na capela do Colégio de S. José, um hino muito belo de Santa Catarina de Sena, que transcrevo:

Ó Deus, Trindade Santa, ó Luz mais radiosa que toda a luz, fogo mais ardente que todo o fogo, Tu és um oceano, a paz. Tu és um mar sem fundo, mais eu mergulho, mais eu me afundo, mais eu Te encontro, mais eu Te procuro ainda. Sede que Tu saciaste no deserto um dia, para sempre ficar com sede de Ti.

É no dinamismo da simbólica trinitária, na procura criadora da máxima unidade na máxima diversidade, que a Natureza e o percurso da História Humana se podem salvar. Tudo se perde quando, em nome da unidade, se sacrifica a pluralidade e quando, em nome da diversidade, se esquece a comunhão universal. Como diz o citado poema de H. Helder:

e depois ninguém fala, e cada coisa actua
sobre cada coisa, e tudo o que é visível abala
o território invisível.
Redivivo. E foi por essa mínima palavra que apareceu não
se sabe o quê que arrancou
à folha e à esferográfica canhota a poderosa superfície
de Deus, e assim é
que te encontraste redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,
apenas.

Este poeta tem mesmo a “temperatura de Deus”.

7 de Junho de 2015
    
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[1] Herberto Helder, Ou o poema contínuo, Assírio e Alvim, 2001
[2] Act 17, 24-29