26 outubro 2014

Eu já não acredito no Papa Francisco

Frei Bento Domingues, O.P.


1. O Domingo passado não foi de grande festa para toda a Igreja. Está em curso um Sínodo dos Bispos no qual foi possível discutir temas considerados incómodos, como o do acolhimento eclesial dos homossexuais e dos divorciados recasados. Do relatório final da primeira etapa deste Encontro sobre a família esperava-se mais e melhor. Por outro lado, a beatificação do papa Paulo VI, responsável da Humanae Vitae (HV), - adiando questões que há muito deveriam estar superadas – também não foi um sinal muito encorajador. Mais do mesmo.

Não vale a pena dizer que isso não tem importância. Cada um ficará onde já estava. Os casais que se identificam com a doutrina da HV e a da Familiaris Consortio (J. Paulo II) suspenderam os seus receios. Quem aguardava, para já, uma alteração dessas posições, terá de esperar por melhores dias. O Sínodo sobre a família não está encerrado. Cada dia que passa, a realidade vai mostrando que a “Pastoral Familiar” não é a mais adequada, pois se “os pastores” conhecessem e escutassem as suas “ovelhas” não se contentariam apenas com as do rebanho privilegiado.

O Papa Francisco lançou uma esperança e, na sua prática, mostra-se fiel à Alegria do Evangelho. No entanto, foi-se apercebendo de que os apelos feitos à hierarquia da Igreja não têm tido os frutos desejáveis. Sentiu como estavam activos, na preparação e realização do Sínodo, os funcionários da indústria da conserva eclesiástica, ao ponto de ter de afastar o cardeal Raymond Burke, presidente do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica (Supremum Tribunal Signaturae Apostolicae).

Mario Bergoglio surgiu com um programa de reforma do papado e da cúria romana para lançar a Igreja como uma realidade evangelizadora, em todas as suas instâncias, vendo o mundo e actuando a partir das periferias. Trabalha por uma Igreja, toda ela, em movimento. Seria um desastre se as conferências episcopais, as dioceses, as paróquias, os movimentos, as congregações religiosas se comportassem como meros observadores das iniciativas, das tomadas de posição, das intervenções do Papa. É a forma mais requintada de o atraiçoar. Mas, enquanto uns ficam parados, outros atiram-lhe pedregulhos para o caminho.

Não podemos deixar este Papa sozinho e comportarmo-nos apenas como espectadores benévolos e simpatizantes das suas atitudes.

2. Seria péssimo que agora nos deixássemos enredar em discussões que se arrastam desde a HV, desde 1968. O mundo não pára e o próprio passado, se não for congelado, está sempre em devir. Um dos méritos deste papado tem consistido, precisamente, em descongelar doutrinas, atitudes, normas consideradas irrevogáveis, definitivas, situadas fora do tempo e valendo para todo o sempre. Entrar numa casuística de moral sexual, dentro de um universo humano isolado por uma concepção de modelos imutáveis de família, é o caminho do farisaísmo.

Ganharíamos muito se lêssemos e interpretássemos as narrativas dos Evangelhos como belas e eficazes peças de teatro. Têm acção, controvérsias, actores e existem para colocar uma assembleia em movimento. A nossa tentação é a de extrair desses textos apenas princípios doutrinais, sentenças e normas de conduta, reduzindo tudo a lições de moral. As reduções de Jesus eram de outro tipo.

3. Neste Domingo, passada a discussão sobre o tributo a César e a história hilariante da mulher de sete maridos da lei bíblica – de quem será ela depois da ressurreição? - surge um aproveitamento dos escribas contra os fariseus. Vale a pena ler e imaginar.
”Constando-lhes que Jesus reduzira os saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se em grupo.  Um deles, que era legista, perguntou-lhe para o embaraçar: «Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?» Jesus disse-lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.» (Mt 22, 34-40 e Mc 12,28-34; Lc 10,25-28; Jo 13,33-35)”.

S. Paulo ainda foi mais sintético: “não fiqueis a dever nada a ninguém, a não ser isto: amar-vos uns aos outros. Pois quem ama o próximo cumpre plenamente a lei. De facto: Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, bem como qualquer outro mandamento, estão resumidos numa só frase: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei (Rm 13, 8-10)”.

Creio que o Papa Francisco acredita nisto.

19 outubro 2014

A Culpa é de Cristo?

Frei Bento Domingues O. P.

1. Encontrei, na escadaria da Igreja de Santo Ildefonso (Porto), um senhor que, de costas para o templo, aproveitou para descarregar sobre mim não só o habitual anticlericalismo nortenho, mas também o seu desprezo agressivo pelas religiões, frutos do medo, da ignorância e da sacralização da maldade humana.

O Islão é um ninho de criminosos, o Judaísmo, uma rede dos bancos norte americanos, o Cristianismo, um mundo caótico de divisões em cascata, piorando sempre a configuração anterior. O papa Francisco chegou demasiado tarde para salvar a face de um catolicismo que a própria Europa já rejeitou. Etc.! Se as instituições e os serviços sociais da Igreja ajudam muita gente a aguentar a pobreza e a miséria, não revelam nem combatem as suas causas reais. Pelo contrário, ajudam-nas a sobreviver.

Estranhei que não terminasse a sua diatribe com a fórmula habitual, em circunstâncias análogas: Cristo, sim; Igreja, não! No caso referido, foi Cristo que pagou todas as despesas à base de especulações teológicas e cristológicas.

Este senhor mostrou detestar as narrativas do Novo Testamento (NT). Aquelas propostas, parábolas, controvérsias, milagres e discursos são delírios absolutamente inaplicáveis. Se Jesus Cristo fosse, de facto, um enviado de Deus vinha com ideias claras e distintas acerca do passado, do presente e do futuro, da natureza e da história. Substituiria a Bíblia por um tratado divino e infalível de ciência, de sabedoria e de ética, com manual de correcta utilização para todas as circunstâncias.

2. Aquilo que Jesus introduziu de mais perturbador no mundo religioso, económico, social e político do seu tempo, foi a insegurança: não oferecer respostas pré-fixadas para todas as situações e interrogações da vida. Pelo contrário, semeou dúvidas, inquietações e possíveis alternativas a um universo bem organizado e com respostas para sempre, “em nome de Deus”. As tentativas de reduzir os Evangelhos a dogmas e a tratados teológicos bem articulados, sem falhas, nunca poderão funcionar bem enquanto houver possibilidade de confrontar essas certezas com as narrativas da liberdade de Deus e da liberdade humana. A tentação que não nos abandona é a de procurar rapidamente a lição, moral ou dogmática, que encerram. O resto parece acidental. O inconveniente desse método é de perder precisamente o essencial. Dispor de uma resposta para uma pergunta que não se conhece, e sem olhar para o contexto de onde nasceu, é o caminho mais rápido para o dogmatismo insensato. É assim porque é assim e sempre assim foi, pelos séculos dos séculos, de outro modo, como iriamos saber que é a vontade de Deus?

O estilo de Jesus, pelo que podemos conhecer nos Evangelhos, não é o de um professor que ganhou uma cátedra, num concurso universitário, apresentado, para as suas intervenções, como Senhor Professor Doutor Jesus de Nazaré.

O Nazareno é constantemente surpreendido por interrogações e problemáticas de escribas e fariseus, com o propósito de o deixarem embaraçado perante os ouvintes e de recolherem argumentos para o liquidar. Acontece que Jesus não se atrapalha e, vendo as suas intenções perversas, manda-os bugiar.

Neste Domingo, temos os fariseus e herodianos a cogitar a forma de o tramarem numa questão melindrosa: é lícito ou não pagar o tributo a César? Conhecendo Jesus a malícia da pergunta, respondeu: porque me tentais, hipócritas? Devolveu-lhes a questão: de quem é esta imagem e inscrição? De César, responderam: então dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Os judeus não podiam cunhar imagens. A única imagem de Deus é o ser humano.

3. Segundo os meios de comunicação, o porta-voz da Conferência Episcopal afirmou que os bispos portugueses estão em sintonia com a linha "inclusiva e de acolhimento" dos homossexuais e recasados, mas admite que o tema não é consensual.

Consensos absolutos não são de esperar em assunto nenhum e ainda bem. A clonagem dos cristãos não é aconselhável. O importante é que a assembleia cristã seja uma família de muitas famílias que respeite a diversidade, não como um favor, mas como um direito de todos e um dever de diálogo permanente. Não é a mesma coisa contentar-se com dizer: cada um que se arranje. Seria a negação da Igreja.

Finalmente, começam a cair alguns tabus. Muita água ainda vai passar debaixo das pontes até que o horizonte da Igreja esteja mais desanuviado. Cada grupo continuará a defender os seus pontos de vista. No entanto, a interrogação que todos se devem fazer, talvez se possa formular assim: para que continuar com o sofrimento inútil dos casais cristãos? O que será preciso alterar nas mentalidades católicas para que a educação sexual se torne uma exigência inerente ao desenvolvimento da vida humana nas múltiplas dimensões do amor? Será que ainda existem católicos que acham que Deus se enganou ao dizer que o ser humano é homem e mulher? Homem e mulher será o pecado de Deus?

No NT não há nenhuma preocupação em mostrar se Jesus constituiu ou não uma família. Os textos insistem em algo mais abrangente: o seu projecto era congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos (Jo 11, 52).

Seria excessivo pedir-lhe um manual de moral sexual.
 
Público, 19.10.2014

18 outubro 2014

"Agora, o Sínodo da Igreja universal deve continuar"


Este dia final do Sínodo Extraordinário iniciou um processo há muito desejado de diálogo amplo e aberto em toda a Igreja. Este processo não pode ser interrompido.

O Movimento Internacional Nós Somos Igreja apoia todos os esforços para continuar este diálogo em toda a Igreja mundial, até ao debate no Sínodo de  outubro de 2015. Ao contrário do Sínodo atual, o de 2015 deve anunciar a plena aplicação das ciências teológicas e a participação ativa dos fiéis. Só então poderão ser encontradas respotas informadas e realistas para as muitas questões prementes que persistem.

Já é tempo de os fundamentos da doutrina sexual da Igreja serem desenvolvidos de acordo com a ciência moderna. Isto deve levar, e vai levar, a um abandono das doutrinas incorretas ou desatualizadas e ao desenvolvimento da doutrina.

Acreditamos na importância dos seguintes pontos:
  • Um regresso à primazia da consciência individual (cardeal John Henry Newman),
  • Uma visão nova e holística da sexualidade, possibilitando uma abordagem razoável às questões da homossexualidade e parcerias homossexuais,
  • Uma interpretação inspiradora dos textos bíblicos relevantes e da mensagem de Jesus,
  • uma compreensão sofisticada do casamento como um sacramento, seguindo o concílio de Trento
O Movimento Internacional Nós Somos Igreja espera ainda que que a  discussão subsequente entre os bispos, em 2015, possa produzir:
  • Um novo acolhimento aos divorciados e casais recasados, seguindo o exemplo das Igrejas Ortodoxas e dos bispos do Alto Reno, tornado público em 1993,
  • Uma postura ativa por parte da Igreja Católica Romana contra a criminalização dos homossexuais, que são perseguidos em muitos países, chegando mesmo a incorrer em pena de morte,
  • Uma visão do casamento e das diversas formas de família como comunidades de vida, que assumem a responsabilidade no amor e na solidariedade,
  • Apoio, especialmente para as famílias que têm de viver, por razões sociais ou políticas, em condições muito degradadas.
Após anos de supressão de diálogo na igreja local, o papa Francisco deu um passo notável ao pedir a todos os membros da Igreja para responder ao questionário pré-sinodal. O "Instrumentum Laboris" oferece uma visão global que é impossível de ignorar.

A beatificação do Papa Paulo VI, a ter lugar no último dia do Sínodo, reconhece o seu grande trabalho na abertura da Igreja ao mundo e a continuidade que deu ao trabalho do Concílio Vaticano II, convocado pelo seu predecessor. No entanto, ele também estabeleceu doutrina sobre questões matrimoniais e sexuais tendo em conta a política da Igreja e ignorando a grande maioria dos votos da Comissão de Controle de Nascimento convocada por ele. Em 1998, a Encíclica "Humanae Vitae" resultou em grande perda de credibilidade para a Igreja como instituição e para a sua doutrina sobre a sexualidade humana. Isso não deve continuar após este Sínodo.

CONTACTOS EM ROMA:
Christian Weisner, cell phone: + 49-172-5 18 40 82, media@we-are-church.org


CONTACTOS NA AUSTRIA:
Dr. Martha Heizer, Chair of International Movement We are Church
cell phone: +43 650 4168500, martha.heizer@inode.at

13 outubro 2014

El Sínodo mantiene la esperanza de un cambio positivo en la historia de la Iglesia

Comunicado do Movimento Internacional Nós Somos Igreja (em breve com tradução portuguesa)

El Movimiento Internacional Somos Iglesia acoge con satisfacción el hecho de que el Papa Francisco haya lanzado hoy un nuevo proceso valiente de diálogo amplio y abierto en la Iglesia Católica. Con el comienzo del Sínodo estamos seguros de que el proceso estará acompañado por el Espíritu Santo y no se podrá detener.

Somos Iglesia pide a los cardenales y obispos que participan en el Sínodo que  no pierdan el tiempo con discusiones fundamentalistas sino que busquen honestamente y de forma conjunta soluciones pastorales a las muchas preguntas apremiantes. La doctrina teológica y las necesidades pastorales no deben ir una en contra de las otras.

Después de años de opresión de todo diálogo dentro de la iglesia, fue un notable desarrollo que el Papa Francisco invitase  a todos los creyentes, al "pueblo de Dios",  para responder a un cuestionario de preparación para el Sínodo. Los resultados procedentes de todo el mundo que el documento "Instrumentum laboris" claramente muestra no pueden ser ignorados: La enseñanza tradicional de la Iglesia ha perdido el contacto con la vida real y con los diferentes tipos de vida familiar de nuestro tiempo. Lo que ellos llaman "situaciones irregulares o no aceptadas" es una realidad generalizada en todas las partes del mundo. "La realidad es más importante que la idea" (Evangelii Gaudium 231).

·         Es hora de que la base teológica de la enseñanza sexual de la iglesia se desarrolle de nuevo teniendo en cuenta las los planteamientos de las ciencias humanas modernas. Incluso el cuestionario cuyas respuestas resume el  "Instrumentum laboris" encuentra la comprensión tradicional de la ley natural "muy problemática, si no totalmente incomprensible".

·         Es hora de que el " sensus fidelium " (el "sentido de los fieles"), así como la primacía de la conciencia individual (Cardenal John Henry Newman) sean re-descubiertos como el punto clave de la vida y la enseñanza cristianas.

·         Es hora de que los líderes de la iglesia se abran a un nuevo enfoque para las parejas homosexuales y las parejas divorciadas y vueltas a casar - no sólo por misericordia, sino por justicia. ¿Por qué no seguir el ejemplo de las Iglesias ortodoxas con las parejas formadas por personas que han vuelto a casarse?

·         Ya es hora de que la iglesia apoye a todas las familias que viven en situaciones muy pobres y duras debidas a los sistemas económicos neoliberales,  de manera auténtica y creíble.

Esta primera reunión del Sínodo cuenta entre sus participantes con una abrumadora mayoría de cardenales y obispos que fueron nombrados por los dos papas anteriores. Hay muy pocas mujeres, expertos y auditores en el Sínodo. Hasta ahora, los miembros de los grupos de reforma no han sido invitados al sínodo , aunque Somos Iglesia propuso una serie de expertos al cardenal Lorenzo Baldisseri . Por lo tanto el proceso del Sínodo no puede y no debe limitarse al aula sinodal. El Movimiento Internacional Somos Iglesia apoyará los procesos de diálogo abierto que haya en los distintos  países hasta la segunda reunión del Sínodo en octubre de 2015.

Dr. Martha Heizer (Coordinadora), el teléfono celular en Roma: +43 650 4168500, martha.heizer@inode.at
Christian Weisner, teléfono celular en Roma: + 49-172-5 18 40 82, media@we-are-church.org

Religião reflexiva

Frei Bento Domingues O.P.

O prémio Nobel da Paz perdeu-se na guerra. Se quiser reencontrar a sua missão, talvez tenha, com o Papa Francisco, uma bela oportunidade de se reabilitar.

1. As sociedades modernas foram fundadas sobre a excomunhão política de qualquer referência religiosa. Embora com vários desenhos, o cenário está identificado.

A institucionalização da autonomia da esfera secular fez-se para suspender a intolerância e a violência associadas às guerras de religião e ao poder absoluto em nome de Deus. A intervenção política ficaria, em princípio, entregue à responsabilidade de todos os cidadãos. Pertencia-lhes escolher as instituições em que desejavam viver. Os indivíduos poderiam ter convicções religiosas, mas estas deveriam cingir-se ao domínio privado e não poderiam ser invocadas na configuração das instituições próprias do agir político ou militar. Era urgente mandar para a reforma o “Deus dos Exércitos” do Antigo Testamento, do regime de Cristandade e do Islão.

Nesse terreno brotaram várias expressões de crenças ateístas, invocando a desalienação religiosa. Diz-se que o patrocínio de alguns conhecidos “mestres da suspeita” lhes emprestou credibilidade. Deus morria para se poder assistir ao nascimento de uma humanidade confiante nas suas próprias capacidades, sem muletas. A investigação da natureza e das suas leis não precisava da hipótese Deus.

O resultado não foi, em tudo, glorioso. Em nome de um futuro sem heranças obscurantistas, desatenderam-se dimensões essenciais da vida humana.

As consequências dessa miopia foi a perda de muita memória cultural criadora e o esquecimento da origem cristã de muitos conceitos e valores fulcrais da modernidade. Precisavam, certamente, de ser libertados da dominação das Igrejas e de se tornarem parte de uma saudável laicidade do espaço público livre. Mas um espaço público que recusa a participação no debate democrático, das diferentes correntes culturais, filosóficas, éticas e religiosas, esquece a complexidade da condição humana e arrisca-se a cair nas piores armadilhas fundamentalistas político-religiosas, como está à vista.

A recente e presente debilidade cultural de muitos dirigentes e decisores europeus favorece o que deveria evitar e não fez nem faz o que é da sua responsabilidade. A falta de sabedoria e de ética política e social mata a vocação europeia.        

2. J.-M. Ferry, depois de um longo percurso filosófico, marcado pela tradução para francês da obra do filósofo alemão, Jürgen Habermas e de contributos essenciais para configurar e repensar o projecto europeu, desenhou o tripé ético e espiritual para a respiração cultural da política numa sociedade contemporânea: recuperou a noção de civilidade, como princípio de socialização mediatizado pelo reconhecimento das diferentes sensibilidades; conjugou-a com a de legalidade, isto é, com a limitação da violência social ou política pela mediação do direito e pela publicidade, concebida como comunicação de experiências sociais e das decisões na discussão argumentada.

As noções deste tripé precisavam de ser esmiuçadas para testar o seu alcance prático. Neste momento, interessa-me sobretudo a sua última proposta, a religião reflexiva [1].

A preocupação de J.-M-Ferry é uma ética para as relações internacionais. É alarmante a situação política do mundo actual e do estado primitivo das relações diplomáticas. Trabalha na construção de uma ética reconstrutiva da reconciliação que complete a ética argumentativa do entendimento mútuo que tem desenvolvido, pois é urgente abrir uma nova época na história dos povos e das suas recíprocas relações.

A religião reflexiva procura reformular os imperativos mais universais da moral kantiana, à luz do que lhe é mais íntimo, mas ainda pouco explicitado: a proposta de uma filosofia da actualidade histórica. Para o conseguir desenvolve uma questão decisiva para o judeo-cristianismo e para a modernidade europeia: o laço da filosofia, da teologia e da história. Filosofia e teologia não são objectos de conhecimento só para eruditos. São instrumentos de conhecimento para todos. A ética reconstrutiva é uma ética da responsabilidade que lança os fundamentos de uma filosofia da história.

Temos de procurar apreender e reconstruir o sentido na história universal, sem procurar nem postular um sentido da história universal.

3. Se, neste momento, a voz de um papa se libertou, de forma clara e explícita, do espírito de dominação eclesiástica e assume a causa dos oprimidos, deve haver liberdade para, no espaço público, escutar e debater esta voz, para que ninguém a tente anexar ou manipular. Os temas não são apenas de interesse mundial e local. O que Bergoglio anda a fazer é uma convocatória de todos os seres humanos de boa vontade, sejam ateus, laicos ou religiosos, para o que a todos diz respeito: um futuro de paz e cooperação de onde ninguém seja excluído. Não havendo, nesta convocatória, nada que seja para proveito próprio ou de grupo, talvez mereça mais atenção do que uma assembleia de negócios.

O prémio Nobel da Paz perdeu-se na guerra. Se quiser reencontrar a sua missão, talvez tenha, com o Papa Francisco, uma bela oportunidade de se reabilitar.

[1] J. – M. Ferry, La religion réflexive, Paris, Cerf, 2010

05 outubro 2014

Convidados para jantar, proibidos de comer (3)

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Um leitor destas crónicas lamenta a minha perda de tempo com assuntos de moral familiar e, em particular, com a discutida participação dos católicos divorciados recasados na comunhão eucarística. As próprias espectativas de mudança, no próximo Sínodo dos Bispos, são o resultado da preguiça católica em pensar pela própria cabeça. Andar a pedir ordens ao clero é infantilismo cultivado. Cada católico deve ser tutor de si próprio. Eu deveria limitar-me a recordar a célebre resposta de I. Kant (de 1784) à pergunta: o que é o iluminismo?
A resposta é conhecida: “O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude [1]! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento. Eis a palavra de ordem do iluminismo”.   
 
Recordou-me ainda que o Vaticano II (1962-1965) foi o começo de uma clara escuta de alguns ecos da modernidade, há muito esquecidos: a consciência como primeira instância moral (GS 16); a declaração sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae), destacando que a própria objectividade  da verdade moral “não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra  nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte” (n.1).     

Inteiramente de acordo, mas vamos por partes. Kant tem razão: a recusa preguiçosa de cada pessoa se servir do próprio entendimento e andar sempre a recorrer a um “director de consciência” é um exercício de infantilismo e, por outro lado, uma atitude obscurantista de quem alimenta essa dependência. No entanto, seria igualmente infantil não alimentar o próprio entendimento com as investigações dos outros. O culto da auto-ignorância para ser dono das suas decisões éticas, é uma parvoíce. Somos seres de relação em todas as dimensões. Não somos apenas responsáveis diante da nossa consciência, mas também pela consciência que podemos ter do nosso mundo e do mundo dos outros.      

2. Louis Dingemans (1922-2004), sociólogo e teólogo, era um dominicano belga que aprofundou, com um grupo de trabalho interdisciplinar, a situação eclesial dos divorciados recasados [2].   

Para a validade de uma celebração católica do casamento sempre foi exigido o consentimento livre dos esposos e, como dizia Kierkegaard, o amor nunca é tão grande como quando se assume como um dever recíproco. A multiplicidade de uniões infelizes e divórcios, a fragilidade dos amores humanos ainda não conseguiram estancar o sonho e o desejo de muitas pessoas se aliarem para construírem uma história comum, que não esteja dependente dos humores de cada dia. Encontram-se até pessoas “pouco praticantes” que pedem para se casar pela Igreja e não é apenas pelas fotografias. Como diz L. Dingemans, parece que têm uma vaga percepção de que o casamento, sendo uma loucura, precisa do Deus do Evangelho, protector dos loucos, sentindo que todo o verdadeiro amor é de origem divina.    

Muito ou pouco praticantes, por culpa ou sem culpa de um ou de ambos, o facto é que existem rupturas sem remédio. Surgem, depois, novas uniões. Pondo de lado a leviandade e os caprichos de muitos casos, também existem divorciados recasados que nesses processos complicados aprofundaram e redescobriram a sua fé, que desejam alimentar.

Como já vimos em artigos anteriores, não são católicos excomungados. Pelo contrário, são convidados a participar na vida da Igreja e a frequentarem a Eucaristia. Mas são proibidos de comungar: convidados para uma refeição e impedidos de comer. À primeira não se entende esta incongruência e à segunda, ainda menos. Invoca-se um estado permanente de violação da aliança matrimonial. Razão apresentada: existe uma contradição objectiva de ordem simbólica, pois a aliança entre Deus e a Humanidade, entre Cristo e a sua Igreja é actualizada pelo laço entre marido e mulher. O autor citado mostra, de forma analítica, que este é um argumento falacioso. Deus é sempre fiel, mas os seres humanos não são Deus. Podem falhar e a misericórdia de Deus nunca falha.

3. É bom não esquecer uma oração da missa do Domingo passado: Senhor, que dais a maior prova do vosso poder quando perdoais e vos compadeceis, derramai sobre nós a vossa graça.
O Papa Francisco, que tem muita graça em receber a graça de Deus, resolveu, na audiência geral do passado dia 10, propor que a Igreja, em todas as suas expressões, seja uma escola da misericórdia. Não estávamos habituados. Era mais associada a um ministério com tribunais lentos e sem piedade.

[1] Atreve-te a pensar
[2] Cf. dossier  chrétians qui sont dévorcés et remariés,Centre Dominicain de Froismont, Bélgica ; Louis Dingemans, Mariage et alliance. L’ambiguïté d’un symbole, Rev. Lumière et Vie, n 206 (1992), pg 25-38 ; Jesus face au divorce, Racine|Fidélité, 2004

Público, 05.10.2014

03 outubro 2014

Jesus e a Igreja ainda interessam à sociedade portuguesa?

Texto de Ana Vicente

No dia 19 de Setembro 2014 houve uma HOMENAGEM A FREI BENTO DOMINGUES O.P., que se realizou no Auditório 2, Fundação Calouste Gulbenkian. O programa era aliciante e o homenagedo merecia. O tema geral era CIDADANIA, CULTURA E TEOLOGIA NA PRAÇA PÚBLICA. Por isso encheu-se a sala e transbordou ainda. Participei num painel cujo título era

JESUS E A IGREJA AINDA INTERESSAM À  SOCIEDADE PORTUGUESA?

Juntamente com o Pastor Dimas de Almeida e com o Prof.  Miguel Oliveira da Silva.

A moderação foi de Maria Conceição Moita.

Eis o texto que preparei e que apresentei numa versão um pouco mais resumida.

Agradecimentos pelo convite a António Marujo, Julieta Mendes Dias e Guilhermina Gomes e saudações pela iniciativa – Excelente ideia a edição dos dois volumes para memória futura. Saúdo também a excelente Fundação Gulbenkian, na pessoa do seu presidente, Dr Artur Santos Silva.

Começo por agradecer ao Frei Bento o precioso apoio que tem dado ao longo destes anos ao Movimento Internacional Nós Somos Igreja – Portugal.

O Frei Bento veio ao mundo para nos animar, fazer rir e pensar. Conheço-o há mais de de 50 anos e sou disso testemunha fidedigna. Vou contar uma história que se passou em 1995, pouco tempo depois da grande Conferência Internacional das Nações Unidas sobre as Mulheres, em Pequim. Estavamos em Leiria, perante uma sala imensa, com cerca de 200 pessoas presentes, incluindo o Bispo da diocese. Debatia-se, obviamente, os direitos das mulheres. A dada altura o Frei Bento perguntou à assistência: ‘sabem porque é que as mulheres não podem ser ordenadas?’ e respondeu à sua própria pergunta: ‘porque as mulherzinhas não têm cabeça.’ Imaginem o espanto que se espalhou pela sala.

Ou seja,  passou e continua a passar pela terra deixando muitas marcas – faz a diferença, fazendo ecoar uma frase muito utilizada no mundo anglo-saxónico – todos devemos e podemos fazer a diferença – é só uma questão de querer e de ter a noção de que temos muitos talentos, úteis para nós próprias e para as outras.