27 setembro 2015

O Deus da Moda

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Perguntaram, há dias, a um refugiado a razão que o tinha levado a abandonar o seu país, arriscar tudo e encontrar-se naquela situação horrível, rodeado de desconhecidos, encurralados pela polícia, sem destino garantido. A resposta surgiu da forma mais natural e óbvia: eu procuro uma vida boa e no Iraque já não se pode viver.

Aristóteles, um dos fundadores da ética filosófica ocidental, não diria melhor. O desejo e a tenacidade são as asas do ser humano. Na desordem do mundo, impelido pela esperança, mesmo contra toda a esperança, acredita misteriosamente num horizonte de justiça e misericórdia.

Ao começar esta crónica deparei com um texto que li, pela primeira vez, há 25 anos. Em 1990, a direcção da Revista Portuguesa de Filosofia pediu um texto ao filósofo Paul Ricoeur, autor de uma vasta e multifacetada obra de hermenêutica. A revista conseguiu a publicação de um texto inédito notável e no qual expunha a sua distinção entre ética e moral [1].

Nem a etimologia nem a história o obrigavam a marcar essa diferença, tanto mais que se tornou corrente usar indiferentemente uma ou outra palavra, para designar a fonte e as normas do comportamento humano, enquanto humano. Não se esqueça que existe, paradoxalmente, muita moral sem ética nenhuma e muita ética à vontade do freguês.

O filósofo francês tornou fecunda essa distinção. Recolheu as duas heranças mais famosas da ética filosófica: a aristotélica - a do desejo, do prazer, da felicidade - e a kantiana - a da norma, da lei, do dever. Sem cair em falsas simplificações, desenvolveu-as nos debates sobre a justiça de J. Rawls e M. Walzer e assumiu as argúcias virtuosas de Aristóteles. 

Para Ricoeur, o que é visado pela ética define-se nestes termos: a procura da vida boa, com e para os outros, em instituições justas.

É normal e sadio que cada um procure a sua realização humana, enquanto humana, isto é, o livre desabrochar das suas aspirações e capacidades mais profundas. Não de forma isolada e egoísta, pois implica o reconhecimento, nos outros, de igual desígnio e da mesma capacidade de procura humana de felicidade. Para superar as desigualdades inevitáveis existem processos justos e o recurso humano à solicitude, à compaixão para com os mais débeis.

Numa sociedade não bastam, porém, as relações de amizade interpessoais. Por isso, P. Ricoeur acrescenta: em instituições justas. A vida de uma comunidade histórica exige um sistema de partilha, de direitos e de deveres. A justiça consiste em atribuir a cada um a sua parte. Todos e cada um são destinatários de uma partilha justa. O sentido do que é justo faz-se notar, por vezes, mediante a exclamação da sua ausência: é injusto!

2. I. Kant resolveu eliminar do desígnio ético o desejo, o prazer, a felicidade. Esta depuração leva ao imperativo universalista, nu e cru: ”age unicamente segundo a máxima que faz com que tu podes querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal”. A segunda fórmula deste imperativo apresenta-se mais enriquecida: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.
A grandeza e a exaltação desta fórmula nunca poderão ser exageradas e, no entanto, talvez seja a mais esquecida: a pessoa nunca pode ser usada como um meio para algo melhor do que ela. Não tem preço, é um valor absoluto.

Ricoeur não se esquece da ética das virtudes que tornam bom quem as vive e boas as suas acções. Ao concluir o seu texto, lembra que a ordem de prioridade das reivindicações de segurança, liberdade, solidariedade, etc., não são sempre as mesmas em cada povo e em cada época. Exige um debate público, sem garantias de êxito. Como dizia Aristóteles, a equidade (epieikeia) é superior à lei, pois é um correctivo da lei que por natureza é geral, abstracta não pode prever tudo. A justiça exerce-se no concreto, no singular, no imprevisto.

3. Não renego o que escrevi, mas a realidade actual é outra. A jornalista Aura Miguel perguntou ao Papa Francisco como estava a viver a crise dos refugiados. A resposta deveria ser o nosso texto de meditação para não nos satisfazermos com alguns gestos de solidariedade, deixando o mundo correr na sua loucura para a guerra que se prepara sob os nossos olhos: “Vemos estes refugiados, esta pobre gente que escapa da guerra, da fome, mas essa é a ponta do icebergue. Porque debaixo dele, está a causa; e a causa é um sistema socioeconómico mau e injusto, porque dentro de um sistema económico, dentro de tudo, dentro do mundo - falando do problema ecológico-, dentro da sociedade socioeconómica, dentro da política, o centro tem de ser sempre a pessoa. E o sistema económico dominante, hoje em dia, descentrou a pessoa, colocando no centro o deus dinheiro, que é o ídolo da moda. Ou seja, há estatísticas, não me recordo bem (isto não é exacto e posso equivocar-me), mas 17% da população mundial detém 80% das riquezas”.

Os ídolos da eterna juventude, do permanente crescimento económico, do dinheiro, do totalitarismo da falsa comunicação alimentam-se do desejo de todos ao serviço de uma elite.

Público, 27.09.2015

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[1] Paul Ricoeur, Ethique et Morale, Revista Portuguesa de Filosofia, Janeiro-Março 1990, págs 5-17

20 setembro 2015

Uma Igreja ou um Museu?

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Este Papa continua a ser visto como um provocador na Igreja e na sociedade, a nível local e global. Uns gostam muito, outros não gostam mesmo nada. Os que se alegram com a sua chegada dizem que ele anda a reabrir janelas e a arrombar portas construídas para abafar a revolução libertadora de João XXIII e do Vaticano II. Os assustados com a sua desenvoltura teológica e canónica esperam que a idade e o cansaço se encarreguem de os aliviar deste pesadelo. Não podem com as suas manias colegiais e a sistemática teimosia em interpretar os textos dos Evangelhos em ligação com as situações actuais da vida das pessoas e dos grupos, sejam essas situações de ordem espiritual, social, financeira, económica ou política.

Porque não deixa ele os textos bíblicos dormir em paz e sossego? A sua antiguidade merece e recomenda um eterno descanso.

Bergoglio, porém, de forma muito original e criativa, escolheu para as suas intervenções, mensagens, homilias, discursos e encíclicas, o método teológico que tinha sido desactivado por várias instâncias romanas. É precisamente esse método que semeia desassossego e esperança em tudo quanto diz e faz.

Seria uma banalidade dizer que a chave do seu pensamento é teológica e cristológica. O importante é saber que Deus e que Cristo falam e actuam nas suas intervenções.

Para ficarmos esclarecidos, basta ouvir o que o Papa Francisco declarou na Praça de S. Pedro, no dia 6 de Setembro, ao comentar o texto de S. Marcos [1]: “Deus não está fechado em si mesmo, mas abre-se e põe-se em comunicação com a humanidade. Na sua misericórdia imensa, supera o abismo da diferença infinita entre Ele e nós, vem ao nosso encontro. Para realizar esse encontro com o ser humano, tornou-se humano: para Ele não é suficiente falar connosco mediante a lei e os profetas, mas torna-se presente na pessoa do seu Filho, a Palavra feita carne. Jesus é o grande “construtor de pontes”, que constrói, em si mesmo, a grande ponte de comunhão com o Pai”.

Bergoglio não ficou por aqui. “Este Evangelho também fala de nós: muitas vezes estamos fechados em nós mesmos e criamos muitas ilhas inacessíveis e inospitaleiras. Até as relações humanas mais elementares criam, por vezes, realidades incapazes de abertura recíproca: o casal fechado, a família fechada, a pátria fechada… Isto não é de Deus! Isto é nosso, é o nosso pecado. Contudo, na origem da vida cristã, no baptismo, estão precisamente aquele gesto e aquela palavra de Jesus Effata! – Abre-te”.

2. Tenho, diante de mim, L’ Osservatore Romano [2] e estou espantado com um Papa que consegue ser mesmo “Sumo Pontífice”, o homem de pontes para todos os universos e para todas as situações! Se fossem só discursos poderia supor que dispõe de um centro de produção literária. No entanto, tudo ou quase tudo tem a marca, o estilo, o cunho pessoalíssimo deste argentino. É impossível ser trabalho de encomenda.

Não posso, numa crónica, dar conta deste vasto mundo de intervenções. Destaco que na mensagem que dirigiu para o encontro de Tirana [3], sobre a guerra e a paz, observa que também é violência levantar muros e barreiras para impedir um lugar de paz. É violência rejeitar quem foge de situações desumanas. É violência descartar crianças e idosos da sociedade e da própria vida! É violência ampliar o fosso entre quantos desperdiçam o supérfluo e aqueles que carecem do indispensável.

Os cristãos, perante a tragédia de dezenas de refugiados que fogem da morte devido à guerra ou à fome, não podem dizer a estes abandonados: coragem, paciência! … A esperança cristã é combativa, com a tenacidade de quem caminha rumo a uma meta segura. Ao aproximar-se o Jubileu da Misericórdia, o Papa dirige um apelo às paróquias, às comunidades religiosas, aos mosteiros e aos santuários de toda a Europa a expressar o aspecto concreto do Evangelho e a acolher uma família de refugiados, a começar pela minha diocese e pelas paróquias do Vaticano. Dirijo-me aos meus irmãos bispos da Europa, verdadeiros pastores, que acolham este meu apelo.
Na preparação da viagem aos EUA, lembra aos americanos que todos são responsáveis por todos.

3. Essa atitude do Papa resulta do que ele pensa da própria Igreja. Nos Evangelhos, a assembleia de Jesus tem a forma de uma família, de uma família hospitaleira. Não de uma seita exclusiva, fechada: nela encontramos Pedro e João, mas também o faminto e o sedento, o estrangeiro e o perseguido, a pecadora e o publicano, os fariseus e as multidões. Jesus não cessa de acolher e falar com todos, até com quem já não espera encontrar Deus na sua vida. Esta é uma lição forte para a Igreja. Os próprios discípulos são eleitos para cuidar desta família dos hóspedes de Deus. Uma Igreja que seja verdadeiramente segundo o Evangelho não pode deixar de ter a forma de uma casa hospitaleira, sempre de portas abertas. As igrejas, as paróquias e as instituições com as portas fechadas devem chamar-se museus.

O Papa não ficou por aqui.

Público, 20.09.2015

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[1] Mc 7, 31-37
[2] Edição semanal de 06.09.2015
[3] Comunidade de Sto Egídio

13 setembro 2015

Um novo discurso do método teológico?

Frei Bento Domingues, O.P.

1. O regresso a este espaço pede-me alguns parágrafos de introdução. Começo por destacar o trabalho exemplar de reconstrução de uma muito original, eficaz e clandestina “devoção”, a dos Terceiros Sábados, lançada pelo casal Natália Duarte Silva – Nuno Teotónio Pereira, nos anos 70 do séc. XX. Ignorada nas investigações sobre a relação dos grupos católicos com o Estado Novo e com a guerra colonial, foi agora tirada do limbo da memória de muitos participantes pelo esforço de António Marujo [1].

A pertinência do texto “Dói-me Portugal”, de Pacheco Pereira, não se vai esgotar na presente conjuntura política [2]. Clara Ferreira Alves, com As lágrimas de crocodilo [3], não permite esquecer que os EUA e a Europa foram e são parceiros na sementeira e na teia das loucuras cujas consequências, só em parte, estão à vista de todos, na tragédia dos fluxos migratórios. Se ninguém se lembra de perguntar aos países ricos do Golfo, irmãos da mesma fé, quantos refugiados sírios receberam, é porque os negócios sujos exigem silêncio. Em 2014, a Alemanha e os Estados Unidos bateram recordes na venda de armas no Golfo.

António Guterres, Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, espera que, nesta emergência, o crescimento da onda de solidariedade entre os cidadãos europeus se imponha aos seus governos. Mas que fazer, na Europa e nos EUA, para vencer a persistente cegueira que prepara sempre novas asneiras? 

Foi muito citado o sintético e eloquente discurso de Barack Obama: “Mais seca. Mais inundações. Níveis do mar a subir. Maior migração. Mais refugiados. Mais escassez. Mais conflito. Um líder que trate este assunto como uma piada não tem qualidades para liderar”. É verdade. Mas será necessário repetir que esta civilização se autodestrói, nas suas próprias conquistas, se continuar a ser guiada pelo império do dinheiro? As organizações e práticas políticas que ignoram o bem comum de toda a humanidade, em todas as suas dimensões, acabam por se tornar organizações criminosas, assassinas, impondo uma economia que mata. Como diz o Papa Francisco, “se queremos realmente alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de interacção que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar económico a todos e não apenas a alguns” [4].

2. É verdade que as ousadias de Bergoglio nem na própria Igreja Católica têm sempre bom acolhimento. Anselmo Borges [5] pensa que a oposição e as manobras de 17 cardeais talvez não sejam suficientes para manter, no Sínodo sobre a Família, a recusa da comunhão aos católicos divorciados que voltaram a casar. Veremos.

O papa Francisco esteve presente, mediante uma vídeo-mensagem, no Congresso Internacional de Teologia sobre o tema “O Concílio Vaticano II – memória, presente e perspetivas”, promovido entre 1-3 de Setembro para celebrar os 100 anos da Faculdade de Teologia da Universidade Católica da Argentina e os 50 anos do encerramento do Concílio Vaticano II. Assumiu a revolução desencadeada por João XXIII e apresentou o método do seu próprio discurso teológico que não dissolve as tenções nem paira na abstracção totalizante, em nome da ortodoxia. Quem se deleitava a denegrir a sua ligeireza doutrinal, vai ter muito que engolir.

3. Hoje, tenho de me limitar apenas a transcrever alguns parágrafos dessa longa mensagem. Esta pressupõe um árduo trabalho para distinguir a mensagem de Vida da sua forma de transmissão, dos elementos culturais em que foi codificada, num determinado tempo.

(…) Não fazer este exercício de discernimento conduz, com toda a certeza, a trair o conteúdo da própria mensagem. A Boa Nova deixa de ser nova e, especialmente, boa, tornando-se uma palavra estéril, vazia de toda a sua força criadora, que cura e ressuscita, pondo em perigo a fé das pessoas do nosso tempo. A falta deste exercício teológico eclesial é uma mutilação da missão que estamos convidados a realizar. A doutrina não é um sistema fechado, privado de dinâmicas capazes de gerar interrogações, dúvidas, questionamentos. Pelo contrário, a doutrina cristã tem rosto, tem corpo, tem carne, chama-se Jesus Cristo e é a sua vida que é oferecida de geração em geração a todos os seres humanos. A fidelidade a esta doutrina, a esta herança, exige o conhecimento e amor daqueles a quem é proposta, o nosso próximo.

O encontro entre doutrina e pastoral não é opcional, é constitutivo de uma teologia que pretenda ser eclesial.

As perguntas do nosso povo, as suas angústias, os seus combates, os seus sonhos, as suas lutas, as suas preocupações possuem valor hermenêutico que não podemos ignorar se queremos levar a sério o princípio da encarnação. As suas perguntas ajudam-nos a perguntar, os seus questionamentos questionam-nos. Tudo isto nos ajuda a aprofundar o mistério da Palavra de Deus, Palavra que exige e pede diálogo, entrar em comunicação. Daí que não possamos ignorar a nossa gente na hora de fazer teologia. Como?

É assunto para as próximas crónicas.

Público, 13.09.2015

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[1]  Revista do Expresso, 22.08.2015
[2]  Público 5.09.215
[3]  Revista Expresso,5.05.215
[4]  EG. 206
[5]  DN, 05.09.2015