27 maio 2018

TERCEIRA ROSA DE OURO PARA FÁTIMA?


P / INFO: TERCEIRA ROSA DE OURO PARA FÁTIMA? & “A Religião dos Portugueses”: Reabrir portas que frei Bento abriu

 A TERCEIRA ROSA DE OURO

1. No Concílio de Trento (1545-1563), Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga, teria afirmado que os eminentíssimos cardeais precisavam de uma eminentíssima reforma. Esta custou muito a chegar e, no nosso tempo, foi o Papa Francisco que se empenhou na reforma da Cúria com uma coragem e desenvoltura que não fica nada a dever à do nosso Bracarense. Perante as resistências activas e passivas que encontrou, já terá desistido? Há quem assim julgue e há quem assim espere. Creio que estão enganados.

Em 2017, pelo quarto ano consecutivo, Bergoglio voltou a usar a mensagem de Natal à Cúria Romana para sublinhar, com muita dureza: para servir a missão da Igreja na sociedade continuam a ser indispensáveis mudanças profundas na assembleia dos cardeais e na mentalidade de muitos elementos da hierarquia eclesiástica.

Destacou que alguns dos que formam o aparelho burocrático do Vaticano usam-no para formar grupos de pressão e de intriga, para impedir as reformas que ele próprio desencadeou. São um cancro que gera egoísmo e está infiltrado nos organismos eclesiásticos e nas pessoas que lá trabalham. A permanente denúncia que o Papa faz do clericalismo e do carreirismo destina-se a libertar a criatividade das comunidades cristãs, frutos da graça do Pentecostes, em saída para todas as periferias existenciais e prontas para todos os socorros como um hospital de campanha.

Estas expressões só não se tornaram lugares comuns porque a imaginação de Bergoglio surpreende-nos todos os dias e o desejo de dominar renasce em todas as gerações. Em nome de banalidades sacralizadas, o Papa é apelidado de herético e o sempre assim foi serve os sinais da restauração do catolicismo convencional. Pelo contrário, a santidade é fonte de criatividade de novas expressões do Evangelho no mundo caótico e niilista da nossa actualidade.

Desde que foi eleito, em 2013, não abandonou a sua obsessão de reforma da Cúria, dominada por italianos. Era inadiável acabar com os escândalos financeiros e os comportamentos de ocultação da pedofilia de eclesiásticos que tornavam a imagem da Igreja, nos meios de comunicação social, como irrecuperável.

As resistências foram muitas e não desarmaram. O Papa destacou: até os que foram incumbidos de realizar as reformas traíram a confiança, deixando-se corromper pela ambição e vã glória. Quando são afastados, declaram-se, erradamente, mártires do sistema... em vez de fazerem o mea culpa.

Quando se fala na reforma da Cúria, convém ter em conta a sua história e os debates actuais em torno de questões de ordem sociológica, política, teológica e pastoral. Isto não cabe nos limites de uma crónica. Sugiro, por isso, a leitura de um bem informado artigo de Massimo Faggioli[1]
2. A reforma da Cúria é um trabalho em andamento. Este Papa não quer fazer dela um processo burocrático dependente de uma nova constituição apostólica, como disse Dom Semeraro. Segue os princípios da flexibilidade gradual, da tradição como fidelidade à história, da inovação e da simplificação.
Na visão de Bergoglio, a Igreja, o papado e a Cúria Romana estão interligados. A Cúria não existe apenas para transmitir mensagens para o resto da Igreja, mas também para receber mensagens de uma Igreja sinodal.
Além disso, a existência da Cúria é vital para que o génio romano, isto é, a aspiração de Roma a ser a síntese, seja o ponto de encontro da dimensão universal e local da Igreja. O Papa leva a sério a ideia de reforma de Yves Congar: o primado da caridade e da pastoralidade; a preservação da comunhão; a paciência e respeito pelos atrasos; a renovação através de um retorno ao princípio da tradição, a não confundir com as tradições.
Para M. Faggioli não existe nenhuma alternativa real à proposta do dominicano Y. Congar para uma reforma da Igreja, excepto aquela que levaria a um cisma. Mas, do ponto de vista das actuais políticas eclesiais, a questão é muito mais complicada. A ideia de Congar sobre a reforma da Igreja pode ser frustrante para aqueles que perderam a paciência que o teólogo francês invocava há 50 anos.
Muitos católicos esperavam que Francisco já tivesse implementado uma reforma institucional visível da Cúria depois de cinco anos no cargo. Mas, como já dissemos, o Papa não acredita numa reforma burocrática.
Apesar das esperanças dos liberais e dos temores dos conservadores do status-quo, o Papa Francisco não governa por decreto, nem mesmo a Cúria.
Para ele, a reforma é, em primeiro lugar, movimento e não apenas a mudança estrutural das instituições. É uma mudança de mentalidade, que não começa com uma mudança na lei. É uma descentralização, o que significa que as periferias devem assumir mais responsabilidades. Ela faz parte do caminho para uma Igreja mais colegial e sinodal, que é salvaguardada através do papel universal do bispo de Roma.
O Papa deseja a Cúria Romana como um pequeno modelo de Igreja, que procura ser sério e, quotidianamente, mais vivo, mais saudável, mais harmonioso e mais unido entre si e a Cristo[2] . Não aceita a Cúria para um lado, a Igreja para outro e em luta permanente.
3. No Domingo passado, o Papa anunciou que a 29 de Junho haverá um Consistório para a nomeação de 14 novos cardeais. A proveniência destas nomeações procuram exprimir a universalidade da Igreja. Entre os novos cardeais surge o bispo de Leiria-Fátima, António Marto. Daqui o saúdo pelos motivos que foi nomeado e pelos que aceitou.
O Papa não precisa de aumentar o número de cardeais que resistem, de forma activa e passiva, às reformas que ele anunciou desde a primeira hora e que procuram que essas reformas não lhe sobrevivam. A Igreja precisa de cardeais que ajudem este Papa e que sejam uma garantia de que estas reformas se tornem, de forma criativa, irreversíveis.
Não se pode deixar de realçar as declarações do bispo António Marto: O Santo Padre conhece bem o que eu penso e sabe que tem em mim um apoiante.
Não o move a atracção pelas caudas vermelhas e os chapéus cardinalícios. A simplicidade do Papa e as suas causas bastam-lhe. Não aceitou a sua escolha em termos de meritocracia, mas como um serviço que lhe é pedido. Não é um prémio, uma terceira Rosa de Ouro ao Santuário de Fátima.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 27. 05. 2018


[1] Uma ''reforma da reforma'' diferente: Papa Francisco e a Cúria Romana, artigo publicado por La Croix International, 05-02-2018. Ver tradução em: http://www.ihu.unisinos.br/575885-uma-reforma-da-reforma-diferente-papa-francisco-e-a-curia-romana-artigo-de-massimo-faggioli
[2] Encontro pré-Natal em 2014

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 “A Religião dos Portugueses”: Reabrir portas que frei Bento abriu

Foi hoje posto à venda o livro A Religião dos Portugueses – Testemunhos do Tempo Presente, da autoria de frei Bento Domingues, com organização de Maria Julieta Mendes Dias e de mim próprio (ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores). Publicado inicialmente em 1987/88, A Religião dos Portugueses tornou-se uma referência, nestas três últimas décadas, nos estudos religiosos em Portugal, em diferentes âmbitos. Essa marca, aliada ao facto de o livro estar há muito esgotado, impunham a sua reedição. Foi o que aconteceu com o livro agora disponível que, além da edição original, acrescenta vários textos de frei Bento Domingues sobre o mesmo tema, incluindo um capítulo escrito propositadamente para esta edição.
O livro será apresentado terça-feira próxima, dia 29, a partir das 18h30, pelo padre José Tolentino Mendonça. A sessão decorre na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa (R. Camilo Castelo Branco, ao Marquês de Pombal).
Fica a seguir o meu texto de apresentação:


“A questão da ‘religião dos portugueses’ precisa de ser reaberta”, escrevia frei Bento Domingues, em 1987. Foi o que acabou por conseguir fazer este seu texto, que viria a tornar-se marcante na reflexão contemporânea sobre a religiosidade portuguesa e as interpenetrações mútuas entre espiritualidade e cultura.
Em rigor, acrescente-se, A Religião dos Portugueses não é apenas um texto sobre o fenómeno relativo a Portugal. O seu autor faz um percurso sobre a pesquisa recente (e, por vezes, também com pequenas incursões históricas) acerca da questão espiritual e religiosa, sobre as características e definições de religião e a relação desta(s) com a cultura.
Nesse percurso, frei Bento Domingues percorre as definições de religião e do que cada um dos diversos conceitos comporta dentro de si. E questiona mesmo análises superficialmente sociológicas que ora decreta(va)m a morte de Deus, ora levanta(va)m a bandeira do retorno do religioso. A sua leitura propõe chaves bem mais profundas e complexas, que procuram radicar-se na natureza humana e numa realidade que não se esgota em chavões prontos a usar. E que procura, sobretudo, entender que deus é que a realidade e as pessoas mataram e a que deus(es) elas regressam. Aliás, a própria própria sociologia actual – James A. Beckford, Grace Davie, Zygmunt Bauman, José Casanova, Danièle Hervieu-Léger, Sabina Acquaviva ou Enzo Pace, entre outros– tem privilegiado uma leitura complexa dessa mesma realidade, procurando fugir a leituras simplistas que pouco ajudam a pensar e compreender o que se passa.
Frei Bento contesta as “frases bombásticas” e as “sentenças de morte ou ressurreição, tentações da publicidade”. Critica as ambiguidades quer da “ideologia da secularização dos anos 1960” quer da ideia do “retorno do religioso”, que seria promessa de um século XXI religioso. E conclui: “A situação actual é bem mais complexa do que a clara divisão entre Terceiro Mundo religioso e Europa Ocidental secularizada e a-religiosa. A indiferença religiosa nem sempre é tão indiferente como se diz e a religião não tem só o sentido que as Igrejas lhe costumam dar. (...) Nem sempre é fácil distinguir sintomas e causas, correntes de fundo e agitações de superfície, actualidade que desenha o futuro e ecos de um passado sem retorno. Com isto não se pretende propor a renúncia a entender o mundo em que vivemos. Mas renunciamos a fazer da religião o reflexo de um passado obscurantista e da secularização a luz beatificante da modernidade.”
O “fim da religião” de que tanto se falou é, para frei Bento, outra coisa: “[O] papel de estruturação do espaço social que o princípio de dependência desempenhou, no conjunto das sociedades conhecidas até à nossa, chegou ao seu termo. A religião não se explica historicamente, nos seus conteúdos e nas suas formas, senão pelo exercício de uma função exactamente definida. Ora, essa função não só já não existe, como se tornou no seu contrário, mediante uma transformação que, longe de lhe abolir os elementos, os integrou no funcionamento colectivo, sinal seguro da sua reabsorção. A sociedade moderna não é uma sociedade sem religião, é uma sociedade que se constituiu nas suas articulações principais pela metabolização da função religiosa.”
Sair e voltar ao cais, sempre em viagem
Neste caminho de reflexão, frei Bento dá um outro passo: a sua humildade intelectual leva-o a considerar que a reflexão que propõe nunca está terminada e que outros podem continuá-la; ao mesmo tempo, a empatia que mostra para com a fé das pessoas leva-o a considerar o perigo de “determinar, no concreto, o que é religião e o que é a magia, o que é idolatria e o que é mediação simbólica inerente à religião, o que é religião da fé cristã e o que é perversão do Evangelho”. Mesmo pugnando uma religiosidade e uma fé cristã mais purificadas, o nosso Autor não ignora as dificuldades desse processo e admite que até a mais autêntica experiência cristã “não consegue passar sem mediações, sem expressões simbólicas”. Há uma razão, explica: “O dom da revelação, ou a revelação como dom de Deus, é sempre feito a seres humanos, histórica, social e culturalmente marcados. E religiosamente marcados!”
Se se fala de um caminho, devemos assumir que é mesmo uma viagem aquela que frei Bento Domingues propõe – e não será por acaso que ele fala de Fátima como o cais dos portugueses ou que dizia, numa conversa preparatória deste livro, que “um místico está sempre em viagem”.  Uma caminhada que sai e volta ao cais, para ir ao fundo dos tempos buscar elementos da obra de António Leite de Vasconcelos As religiões da Lusitânia, que passa por S. Martinho de Dume e o seu De Correctione Rusticorum(séc. VI), passa pela presença muçulmana e pelo padre António Vieira, até chegar ao fenómeno em que Fátima se transformou, com todas as suas cambiantes, interpelações e paradoxos.
Nesse itinerário, frei Bento leva-nos também na companhia das reflexões de Lúcio de Azevedo, António José Saraiva e Eduardo Lourenço, Teixeira de Pascoaes, Natália Correia, Agustina Bessa-Luís ou Fernando Pessoa, entre tantos outros. Sempre com o objectivo de procurar entender se há uma “arte de ser católico português”, reciclando a expressão de Pascoaes. E propondo uma síntese da religião dos portugueses, que se pode definir por um “complexo judaico”, por causa da ideia do “povo escolhido” e por um “misticismo vago” e “difuso”. É uma religião que se define ainda pelo seu carácter “nem muito alegre nem muito triste”, com personagens que temperam os sofrimentos dos “Cristos dolorosos e Virgens dolorosas, ensanguentados”, que se vêem em Espanha; e por ser uma religião anticlerical, não só por parte dos não-católicos, mas também pelo facto de não “poder passar sem a Igreja e sem o padre, mas em não consentir que o padre confisque só para ele a direcção da vida religiosa”, na linha da caracterização de Agustina Bessa-Luís.
O nosso Autor aponta ainda, com insistência – quer neste, quer em outros textos e pronunciamentos – a incapacidade de a religião dos portugueses se pensar teologicamente. “Não deixa de ser curioso que um País quase maciçamente religioso e católico, como acusam as estatísticas, não conte, a nível de ensino superior e da investigação nas Ciências Humanas, com o fenómeno religioso”, observa, a dado passo.
Fátima, a vergonha e o coração
É nesta etapa da sua viagem que frei Bento se detém em Fátima. Para, de novo, se espantar com o alheamento ou desprezo com que, durante décadas, o país (seja no âmbito cultural ou religioso) se relacionou com um fenómeno crescente e mobilizador. Primeiro, por causa do conflito entre República e Igreja; logo em seguida, pelas relações de proximidade pessoal entre o ditador Salazar e o patriarca Cerejeira. Finalmente, pela Guerra Colonial, quando Fátima era olhada fosse como um anestésico (pelo regime do Estado Novo), fosse como adormecedor de consciências (por quem se opunha ao conflito), ou ainda como a única tábua de salvação e de refúgio, além da possibilidade da emigração (por parte de muitas pessoas com as vidas destroçadas e sofridas).
Neste contexto, Bento Domingues cita Vitorino Nemésio que, na véspera da visita do Papa Paulo VI a Fátima (13 de Maio de 1967), dizia: “Fátima foi, para o que se chama ‘os intelectuais’ portugueses, um episódio de massas, de que não se quiseram dar conta. (...) nós, os intelectuais, aprofundamos pouco e não estranhamos nada... (...) O espírito sopra onde quer. Fátima aí está, no volume mundial de um contágio de fé, como uma transcendência. Um fenómeno de multidões atesta uma qualidade.”
Pode acrescentar-se à observação de Nemésio que os diversos poderes – incluindo o do Estado Novo, que queria usar Fátima em seu proveito – olharam também com desdém, durante décadas, para o lugar e as pessoas. Foi isso que permitiu que só bem recentemente a localidade passasse a estar servida por um acesso digno em autoestrada (mas não nas estradas secundárias nem na ferrovia). Como também foi esse desprezo que levou a que só nos últimos três anos, em vista do centenário, a localidade tenha começado a lavar a cara dos espaços públicos, criando passeios e zonas pedonais, melhorando a iluminação pública e promovendo outras melhorias do casco urbano, que tentam corrigir os erros da tremenda falta de planificação urbana, que durou quase um século. Se pensarmos que ali acorrem mais de cinco milhões de pessoas por ano (fazendo a média dos últimos anos) e que Fátima é um dos principais destinos turísticos do país, essa é uma situação que nos deveria envergonhar como país.
Só o novo quadro democrático surgido após 25 de Abril de 1974 permitiu – apesar dos preconceitos que perdura(ra)m ainda, seja no âmbito social e académico, seja na instituição católica – passar a olhar para Fátima de outra maneira. Uma sucessão de congressos, debates e conferências; a publicação da Documentação Crítica de Fátimae de dezenas de obras de história, análise e contextualização, mesmo numa perspectiva crítica; e várias realizações teológicas, pastorais, culturais, académicas, científicas e artísticas, na década que antecedeu o centenário de Fátima, permitiram começar a fazer aquilo que há muito deveria ter acontecido: olhar para um lugar que atrai milhões de pessoas em cada ano, de forma crescente, e estudar quais são as razões que fazem mover tanta gente.
Seja no âmbito da sociologia, da história, da antropologia, dos estudos teológicos ou de outros âmbitos do saber, há finalmente clima para se olhar de outro modo para o que se passa em Fátima – independentemente de se acreditar ou não na história original; aliás, a decifração e contextualização do que se passou em 1917 tem sido um dos trabalhos importantes deste movimento.
A Religião dos Portugueses foi, em 1987-1988, um contributo fundador neste processo, em vários aspectos: procurando entender as razões e especificidades do catolicismo português; lançando o debate sobre as causas do alheamento académico e social acerca de Fátima e acerca da ignorância e falta de aprofundamento teológico e pastoral com que o próprio catolicismo português se debruçava sobre o fenómeno; e procurando, ao mesmo tempo, entender as razões da perseverança do fenómeno, para lá das tensões políticas, controlos clericais e outras ambiguidades.
“Movimento de crianças transformado em movimento popular”, Fátima não é uma terra de milagres, mas de refúgio para dores e sofrimentos, onde as pessoas escutam uma mensagem que lhes diz que tudo acabará “no fogo do amor” e onde se produz “um estremecimento da alma”, observa frei Bento. Para acrescentar, noutro passo: “É neste inferno mundial, neste mundo sem coração, que se ouve o céu chorar a terra e pedir aos homens que não se consagrem mais à guerra, mas às obras do amor, ao Coração não manchado, mas ferido pelos pecados de um mundo desumanizado e desumanizante. Por isso, conclui ainda: “Se para o português «o coração é a medida de todas as coisas», é normal que se dê com a «revelação» da religião do Coração num mundo sem coração. Por outro lado, a religião do Coração não se pode fechar sobre si mesma. Neste sentido, é feliz a fórmula do irmão Roger, monge protestante e fundador de Taizé: Maria é a catolicidade do coração.”
Viagem de insatisfação
Claro que o fenómeno de Fátima está cheio de contradições, paradoxos, histórias por contar ou mal contadas. Mas ele traduz também, para muitas pessoas (e não apenas pessoas “do povo”, incultas ou ignorantes, como tantas vezes se pensa) uma experiência de aproximação ao essencial ou de possibilidade do refúgio num colo que frei Bento identifica com a ideia do coração: “Em Fátima, onde se viram fogueiras do inferno, nunca foi dito que ia tudo acabar numa fogueira. Isto vai acabar tudo no fogo do amor. É uma vitória, não do ódio do mundo ou ao mundo, mas do coração. Antes de perguntar pelo coração da mensagem de Fátima é preciso escutar esta mensagem do coração. «Para o português, o coração é a medida de todas as coisas» (Jorge Dias).”
Como não entender isso quando se olha para os dois momentos mágicos que são as procissões das Velas ou do Adeus, e que frei Bento caracteriza como um “estremecimento da alma”, como “esse intenso momento de saudade que resgata Fátima da repetição do mesmo cerimonial e, de forma triste e doce, compensa, um pouco, a perda das tradicionais e criadoras manifestações da religião popular”. Aliás, nesta mesma linha, Bento Domingues fala de Fátima como um fenómeno onde cabem milhares (milhões, em rigor) de experiências diferentes – tantas quantas as das pessoas que ali acorrem. Porque, sendo um espaço enquadrado pela instituição católica, cada pessoa encontra nele aquilo que entende e encontra-se nele com a expressão de Deus que entende.
Na conversa recente que já referi, frei Bento acrescentava outra ideia a este propósito: em Fátima, houve a capacidade ou possibilidade de não sufocar, dando um enquadramento litúrgico e estético às pessoas que lá vão, mas permitindo que elas façam “uma viagem de insatisfação”, à procura de formas de mitigar as suas sedes. Num quadro de uma religião que se fazia de múltiplas obrigações, Fátima impôs-se também porque não era obrigatório lá ir – ou seja, paradoxalmente, impôs-se como espaço de liberdade perante a instituição religiosa.
Refira-se ainda a coincidência de esta nova edição de A Religião dos Portugueses aparecer cinco anos depois da eleição do Papa Francisco e um ano depois da sua viagem-peregrinação a Fátima. O facto de ele ter reformulado completamente a tradicional oração da Salve Rainha ou de se ter insurgido contra a imagem de uma “santinha a quem se pedem favores a baixo preço”, e de o ter feito naquele lugar concreto, não é de somenos.
Faz sentido, por isso, incluirmos neste livro algumas das crónicas dominicais de frei Bento alusivas a Fátima e que ainda não estavam publicadas nas antologias editadas nos últimos anos (Um Mundo que Falta Fazer, A Insurreição de Jesus, O Bom Humor de Deus e Outras Histórias e Francisco – O Papa que põe a Igreja a Mexer, todos organizados por Maria Julieta M. Dias e António Marujo, ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores). Nelas se procura entender, sempre a propósito de Fátima e do catolicismo popular, a articulação com algumas das intuições do Papa Francisco acerca da Igreja Católica, das expressões da fé e do papel dos cristãos no mundo contemporâneo.
Francisco, como referia frei Bento na conversa já citada, acaba com a idolatria das fórmulas (pode dizer-se que foi isso que também fez, ao recriar o texto da Salvé Rainha), preenchendo com humor, a valorização da consciência e do discernimento, a experiência crente. O Papa, acrescentava o nosso autor, “não está contra as fórmulas”, mas, “aos marcos da viagem, prefere a própria viagem”. O que ele quer é uma Igreja peregrina, já que essa é a sua característica ontológica, e peregrina em direcção à única coisa que não passa, segundo a expressão de São Paulo na Carta aos Coríntios (I Cor 13): “A fé passa, a esperança passa, a única coisa que fica é o amor.”
* * *
Esgotadas há muito as duas primeiras edições de A Religião dos Portugueses, nem por isso o texto de frei Bento Domingues deixou de ser continuamente citado em debates, artigos, conferências, seminários... Por isso se impunha a sua reedição e actualização. É isso que esta nova edição procura fazer, acrescentando aos capítulos que compunham a edição original novos contributos que pretendem enriquecer a reflexão que esta obra fundadora já continha – todos eles, aliás, sugeridos e escolhidos pelo Autor, de entre a vasta arca da sua produção.
Neste livro, inclui-se mesmo um texto inédito – o terceiro capítulo, com o título A Religião dos Portugueses: uma religião do coração?–, escrito expressamente para esta edição, e uma extensa bibliografia que, sem pretender esgotar o tema, remete para obras que frei Bento considera indispensáveis nos estudos que se façam sobre este tema – e que elas próprias, por sua vez, indicam listas bibliográficas importantes.
Procurámos manter os textos originais tal qual foram publicados na sua primeira versão, corrigindo apenas algumas gralhas ou pequenos detalhes; nos casos em que se regista uma diferença grande com a situação recenseada há três décadas, isso fica registado em nota.
Tendo em conta os novos textos que aqui são incluídos, a ordenação dos capítulos procurou, em primeiro lugar, uma coerência interna, mesmo se há questões que se abrem num capítulo e se voltam a abrir vários capítulos à frente – porque Bento Domingues nunca é de fechar ou arrumar debates, antes volta a eles em permanência, com essa ideia da viagem sempre a marcar o seu território reflexivo. Por isso, dois dos capítulos publicados nas anteriores edições – sobre a Igreja na transição para a democracia e acerca da primeira década do Concílio Vaticano II em Portugal – surgem, nesta edição, na parte final. Esses dois textos são também marcantes pois, situando-se no campo mais estrito da reflexão teológica e pastoral, fazem uma leitura do catolicismo português num outro âmbito – o das suas tensões e dinâmicas internas ao longo do último século, que muito ajudam a entender o ponto em que estamos hoje.
Antes desses dois capítulos, há um conjunto de textos mais centrados na questão da “religião dos portugueses” e em Fátima, incluindo dois publicados nas duas anteriores edições e o texto inédito já referido. Um outro artigo, sobre o medo e a segurança na religião, inclui-se aqui também, pela proximidade de análise com vários dos temas aqui tratados.
Finalmente, incluímos como posfácio um artigo escrito como recensão de A Religião dos Portugueses, da autoria de Moisés Lemos Martins, a quem se expressa aqui profunda gratidão pela sua generosidade. Registe-se ainda a gratidão dos organizadores a frei José Filipe Rodrigues, O.P., e a Paulo Farinha, pela colaboração prestada em momentos decisivos da preparação desta obra, bem como à equipa da Temas e Debates, na pessoa da sua editora, Guilhermina Gomes, pelo acolhimento e benignidade demonstradas na concretização de mais este projecto.
Trazer à praça pública a perseverança de frei Bento é um contributo pelo qual apenas se pode estar grato. Porque a sua estimulante forma de pensar é essencial para nos entendermos enquanto povo, enquanto sociedade ou, se é o caso, enquanto comunidade crente.

Lisboa, 12 de Maio de 2018
(dia litúrgico de Santa Joana Princesa,
monja dominicana no mosteiro de Jesus, em Aveiro)
in Religionline, sexta-feira, 25 de maio de 2018


20 maio 2018

QUANDO O PENTECOSTES ACABAR É O FIM

   
1. «O animal corre, e passa, e morre. E é o grande frio. / É o grande frio da noite, é a escuridão. / O pássaro voa, e passa, e morre. E é o grande frio. / É o grande frio da noite, é a escuridão. / O peixe nada, e passa, e morre. / E é o grande frio. / É o grande frio da noite, é a escuridão. / O homem come, e dorme, e morre. E é o grande frio. / É o grande frio da noite, é a escuridão. / Acende-se o céu, apagam-se os olhos, resplandece a estrela. / E aqui em baixo é o frio, e lá no alto é a luz. / Passou o homem, desfez-se a sombra, libertou-se o cativo. / Vem, espírito, vem, por ti chamamos.»[1]

O autor dos Actos dos Apóstolos diz que quando chegou o dia de Pentecostes – isto é, cinquenta dias depois da Páscoa – estavam todos os discípulos reunidos no mesmo lugar. Como disse na crónica do Domingo passado, se nada acontecesse de novo, continuava ali uma Igreja na sua prisão de medo, de gente pasmada, fiéis a um judaísmo tradicional, o judaísmo da fidelidade à letra que mata, e às interpretações infinitas do mesmo. Os Actos falam de algo insólito. Uma rajada de vento e línguas de fogo. O que teria sido aquilo? Estamos perante representações simbólicas.
Segundo uma narrativa antiga, a diversidade de línguas era fruto de uma maldição divina[2]. Era deus que não queria que os povos se entendessem, não fossem eles unirem-se contra ele. Um deus assustado com a criatividade humana.
Os factos até pareciam comprovar essa suspeita. O Pentecostes veio mostrar que era uma suspeita infundada. O que o Espírito de Deus mais deseja é o entendimento de todos os povos, sem anular a originalidade de cada um. Não lhe agrada a unicidade linguística, nem qualquer outra que tente dominar as possibilidades originais de cada povo. A dominação globalizada é a antítese do Espírito do Evangelho. Sempre que na Historia o nome de Cristo foi usado para impor uma cultura ou uma religião, traiu o que há de mais genuíno no Espírito de Pentecostes.
Existem, certamente, cidades que são património da humanidade, a diversos títulos. Entre nós, é comum referir-se a Jerusalém, a Atenas e a Roma como símbolos de uma cultura que soube unir, sem confundir, a religião, a razão e o direito. Sabemos que nunca foi uma história pacífica e linear. Mas aquilo que deve mover os cristãos é o espírito de convergência e não de arrogância. A distinção entre a fé, a razão e o direito deve permitir a sua coabitação pacífica, colaborante. Não existe, para os cristãos, cidades e povos mais santos, uns do que os outros. Podemos e devemos rezar pela paz, mas também trabalhar pelo desenvolvimento da razão e do direito se queremos que a religião, a razão e o direito não sirvam para o que há de mais torto no mundo, a dominação dos mais fortes sobre os mais fracos.
2. Já abordámos, em crónicas anteriores, os atrevimentos do Espírito de Cristo. Para Ele, não há povos que são de Deus e outros que estão irremediavelmente perdidos. Por outro lado, como não é um espírito nivelador, suscita uma grande diversidade de carismas. Como não actua só no espaço eclesial, a Igreja, enviada a todo o mundo, - Igreja de saída - tem de estar atenta a tudo o que de bom vai acontecendo na sociedade, dentro e fora das religiões. Ele sopra onde quer, quando quer e como quer, sem pedir licença ao que antigamente estava escrito na Bíblia. Mas a liberdade do Espírito suscita na Igreja o espírito de liberdade, de criatividade. Foi para a liberdade que fostes libertados. Uma Igreja que recusa a inovação em nome do que sempre assim foi, do que está escrito nos textos do Novo Testamento, atraiçoa a sua missão. Como diz Tomás de Aquino, a letra sem Espírito, mesmo a do NT, mata!
Não se trata de recusar o estudo aturado, a exegese em todas as suas formas, dos textos do NT. Não se pode pensar que o Espírito de Cristo esgotou as suas capacidades e as nossas necessidades. Precisamos de rezar como os pigmeus, Vem, espírito, vem, por ti chamamos.
3. Jacques Lacan tinha razão quando dizia que o cristianismo ainda não disse a sua última palavra. Com toda a objectividade, não se pode reduzir a sua história àquilo que atraiçoou o espírito do Nazareno. Semelhante a um grande rio, como diz Hans Küng, cuja nascente é das mais modestas, soube adaptar-se sempre a novas paisagens culturais. Sofreu derrotas estrondosas e profundas alterações. Esteve, muitas vezes, na origem de novas transfigurações da história do mundo.
O que é extraordinário é que esse Espírito conseguiu irromper sempre, apesar das falhas pessoais e das instituições, na vida daquelas e daqueles que não se contentaram com palavras e O seguiram na sua vida, de forma nova e inovadora, em fidelidade à graça que o Baptismo celebra e que a Eucaristia alimenta. 
A verdade do cristianismo não é um encadeado de ideias ortodoxas para conhecer e debater, um credo, mas uma verdade que faz viver, transfigurar a existência. O que lhe interessa não é a produção de uma história exterior de beleza e cultura. O fruto dos dons do Espírito Santo são as pessoas que consentem que as suas vidas sejam verdadeiras obras de arte, pela alegria que deram a quem precisava de uma mão estendida e de um sorriso.
O cristianismo não disse a última palavra. S. Pedro, no sermão do Pentecostes, mostrou porquê ao lembrar uma profecia que não está esgotada: derramarei o meu Espírito sobre todo o ser vivo. Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos e os vossos jovens terão visões[3].
O Papa Francisco tem feito um esforço enorme para que esta profecia continue a realizar-se. Uma das coisas em que mais insiste com os jovens é que eles devem ser pessoas criativas e de rebeldia, inconformados com o mundo que temos. Quando se lhes pede para que sejam muito ajuizados, Bergoglio pede-lhes que sejam muito atrevidos. Mas esse atrevimento, em vez de ser dirigido para a repetição da estupidez, seja criador de sonhos. Uma das invenções da juventude é a descoberta da sabedoria dos avós e daqueles que foram arrumados em casas de tristeza. Aconselha-os a irem cantar e dançar com e para quem ainda pode rir e alegrar-se.
Se o Pentecostes é a abertura, a partir do concreto, a todos os mundos, a todos os povos de todas as línguas e culturas, sem esse Espírito ficaremos atados aos projectos de quem pensa que todo o mundo é seu e que precisa de levantar muros físicos, técnicos, económicos e culturais para perpetuar a sua dominação.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 20. 05. 2018


[1] Pigmeus, África Equatorial (trad. de Herberto Helder)
[2] Gn 1, 9
[3] Act 2

● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●
À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO DE PENTECOSTES Ano B
“Soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo».”
 Jo 20, 22

O futuro, já hoje…

“O futuro…, a Deus pertence”! Quem nunca ouviu ou usou esta expressão? Presente em ditos populares e até na sabedoria bíblica, pode traduzir inúmeras atitudes que vão da esperança à desistência. Do entusiasmo ao medo do futuro, a verdade é que também somos responsáveis pelo amanhã. E se na esperança cristã acreditamos que o próprio Deus e a sua vida plena são o nosso futuro, Jesus Cristo compromete-nos com o dia que se chama “hoje”, com o tempo e o espaço que vivemos, com a ressurreição quotidiana do amor. A descida do Espírito Santo que culmina a Páscoa é sinal eficaz do futuro, já hoje!

Desejamos saber para onde vamos. E há realidades e reflexões em torno do futuro que são interpeladoras. Partilho duas. Numa reportagem de Inês Rocha na webtv da Renascença, intitulada “Bons cidadãos vs maus cidadãos. Como a China está a excluir quem não interessa”, dá-se a conhecer o “sistema de crédito social na China”. Nele é possível um estado decidir se alguém “é bom ou mau cidadão consoante as compras que faz, os hobbies que tem, com quem se dá e que tipo de mensagens que publica nas redes sociais”, atribuindo uma pontuação, promovendo uns e excluindo outros. Noutra reportagem, de Diogo Queiroz de Andrade, no Jornal Público (30.04.2018), dá-se a conhecer o pensamento de Gerd Leonhard, um futurista preocupado com a ética da evolução tecnológica, empenhado em “limitar aquilo que diz ser o culto da eficiência, que põe em causa a essência da humanidade.” Fala da inteligência artificial, do trabalho que a tecnologia suprime, da importância da transmissão dos valores humanos (“Como é que vamos fazer as crianças entender compaixão, empatia e criatividade? Nada disto se aprende na escola, mas sim a viver.”) e da derradeira questão da tecnologia: “se faz o ser humano feliz, se proporciona mais avanços para os humanos, se cria uma sociedade melhor. E se a resposta for não, devíamos pensar em não a utilizar ou em implementar algumas restrições.”

O Espírito Santo está sempre a abrir futuros. Como Jesus, que a cada um que d’Ele se aproximava, prisioneiro de doenças ou demónios, condenado ou excluído, prestes a ser apedrejado ou triste por uma traição, lhes abria caminhos novos. Não há becos sem saída quando nos abrimos a Deus. Pois salvar é isso mesmo: dar futuro a quem não o tinha! Assim, é urgente acolher o Espírito Santo que recria possibilidades de vida onde se defende a morte, que promove laços entre as pessoas onde se difundem distracções e consumo, que liberta e promove as pessoas onde se propagam novas escravidões.

Desde a tarde daquele primeiro dia da semana, nunca mais o Espírito Santo deixou de soprar. E para o futuro avança-se sem medo, falando novas línguas para que todos nos entendamos, anunciando e vivendo o amor que Deus tem a todos.
in Voz da Verdade, 20.05.2018

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13 maio 2018

A IGREJA NÃO É DE GENTE PASMADA


                                     
1. A festa litúrgica da Ascensão não é a celebração da passagem de Jesus à reforma, nem a sua fuga para o céu, seu lugar de repouso junto de Deus, onde aguardaria, no eterno descanso, os discípulos que fossem aparecendo.
A este respeito, as narrativas dos Evangelhos e dos Actos dos Apóstolos, embora não sejam contraditórias, ajustam-se com alguma dificuldade. Frutos de várias estratégias, e em contextos diferentes, tentam interpretar a significação do itinerário terrestre de Jesus para comunidades que não O conheceram. Parecem um retorno ao passado - “naquele tempo” -, mas por causa do presente. As promessas paradisíacas não são evasões deste vale de lágrimas.
São textos que procuram, por um lado, mostrar que o tempo da visibilidade da figura histórica de Jesus está encerrado; já não há ninguém para dizer eu vi! Por outro, todas as narrativas, discursos e exortações insistem na sua invisível presença. Como disse o Ressuscitado ao empirista Tomé: felizes os que crêem sem ver.
Nada disto impediu que, muito cedo, tenham surgido na Igreja duas tendências que não deveriam ser dissociadas, mas complementares: uma insiste mais na dimensão contemplativa, na comunhão mística com Cristo, e outra que não aceita a espiritualidade de gente consolada e pasmada a olhar para o céu, quando há tanto que fazer pela alegria pascal, transformante da sociedade. 
S. Lucas construiu, nos Actos, o começo da sua história da Igreja, um espantoso teatro, em três actos, para não separar o que, em tensão permanente, deve caminhar unido[1]. O primeiro mostra um Jesus ressuscitado, impotente perante a insistência dos discípulos em continuar a sonhar com poder, riqueza e glória. Não deveriam esquecer que foi o baptismo no Espirito de Deus que alterou o rumo da vida de Jesus. Foi Ele que o reorientou, guiou e animou, mesmo no meio das maiores tribulações. Um discípulo não é mais do que o Mestre: o Espírito Santo descerá sobre vós e Dele recebereis força. Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra.
No segundo acto, Jesus entra na nuvem da divina invisibilidade, - a Ascensão -, mas com um aviso solene: não quero gente pasmada, a olhar para o céu, pois há muito que fazer na sociedade. Não à toa, mas de forma bem preparada nas fontes da contemplação do Mistério, para a conversão do desejo de mandar, em desejo de servir.
No terceiro acto, fica vincada a convicção de que a essencial simbólica dos Doze Apóstolos não pode ser confundida com a Igreja. Esta é constituída por homens e mulheres que se vão convertendo, entre elas, Maria, mãe de Jesus e os seus irmãos. Toda a comunidade participou na escolha de um candidato para substituir Judas, o traidor.
É neste cenário que a alegria pascal se consuma na loucura do Pentecostes, na bebedeira do Espírito Santo. Ficamos a saber que Jesus, pela Ascensão, não foi para férias. 
2. Volta e meia manifestam-se comportamentos nas celebrações da Fé, sobretudo na Eucaristia, que revelam que ainda não saímos do culto idolátrico de certos gestos tidos como os únicos admissíveis. Pessoalmente, não me importa que as pessoas rezem de pé ou de joelhos – também se pode rezar deitado -, que comunguem pela própria mão ou pela mão do ministro da Comunhão que pode considerar os adultos como bebés ou doentes. Aconselharia, no entanto, a leitura de uma obra de José Manuel Bernal[2] para entrar na inteligência do tempo pascal constituído por cinquenta dias, entendidos como um grande Domingo, um tempo para refazer, na Alegria, a vida à luz da vitória de Cristo sobre a morte. Tertuliano, entre muitos outros autores cristãos da Antiguidade, repetem: nós consideramos que, ao Domingo não é permitido jejuar nem rezar de joelhos. Do mesmo privilégio gozamos no dia da Páscoa e no período do Pentecostes.
Seria ridículo reduzir a significação do tempo pascal ao cumprimento das prescrições de um Directório Litúrgico. Um ritual não pode ser auto referente. Uma assembleia celebrante ao fazer tudo o que nele está mandado e como está mandado pode realizar a suprema traição. Uma comunidade crente não existe para o culto, mas o culto para a transformação cristã da comunidade.
Ouço perguntar, muitas vezes, qual o papel da religião no mundo contemporâneo. Essa questão pode conduzir a becos sem saída, como se lhe competisse resolver os problemas políticos, sociais e culturais de uma determinada população e, se o não fizer, é considerada inútil.
Do ponto de vista cristão, haverá sempre quem se pergunte porque é que Jesus, que teve uma intervenção profética tão exigente no campo económico, político e religioso-cultual, não nos tenha deixado um manual pronto a servir para todos os tempos e lugares acerca do que os cristãos devem pensar, fazer e rezar? Era prático e não devia ser difícil à sua sabedoria divina.
Se o caminho cristão fosse apenas a adesão mística à transcendência absoluta de Deus, bastava deixá-lO em paz e que Ele nos deixasse também em paz e ponto final. Mas o Verbo fez-se fragilidade humana e todo o seu percurso foi para que a vossa alegria seja completa[3].
3. A degradação da religião é feita pelas idolatrias criadas pelos nossos desejos de poder de dominação: pelo dinheiro, pela política, pela própria religião ou por tudo isso junto. Adoramos o que nos destrói e destrói o nosso mundo.
Desde o profeta Moisés, a religião autêntica brota da revelação de um Deus irrepresentável, mas que não tolera idolatrias que nos degradem. Jesus teve de vencer, desde o começo, as chamadas tentações messiânicas: servir-se, em nome de Deus, do poder económico, político e religioso para a realização da sua missão. Ao recusar esse caminho, tornou-se um homem livre, capaz de denunciar tudo o que escravizava a vida dos seus contemporâneos.
Como diz S. Tomás de Aquino, não se recolheu num mosteiro para ter uma vida de iluminada contemplação. Não Lhe bastou ser luz. Viveu no meio do povo para que todos vissem o que liberta e o que escraviza o ser humano. O testamento que nos entrega nesta festa da Ascensão continua a ser o mesmo: não é de uma Igreja de gente pasmada a olhar para o Céu que se podem descobrir e manifestar as idolatrias que nos escravizam. Como diz o Papa Francisco o que importa é uma Igreja de saída para todas as periferias.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 13.05.2018 


[1] Act 1, 6-11
[2] Para Viver o Ano Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001.
[3] Jo 15, 11; 16, 24; 1Jo 1, 1-4; Cf Jo 10,10

06 maio 2018

O ESPÍRITO SANTO É UM ATREVIDO


1. Entramos em Maio e no VI Domingo da Páscoa. O Espírito Santo resolveu não esperar pela festa do Pentecostes e meteu S. Pedro em sarilhos teológicos e pastorais[i]. Contam os Actos dos Apóstolos (Actos) que estava ele para começar a rezar, mas com muita fome. Veio do Céu uma toalha cheia de manjares, mas todos proibidos a um bom judeu. Foi o próprio Espírito Santo quem lhe disse para não ligar a essas proibições e comer à vontade. Insistiu ainda que entrasse na casa de um gentio, um centurião romano, que o recebeu desvanecido. Pedro anunciou aí um princípio teológico de alcance universal: reconheço que Deus não faz acepção de pessoas, pois qualquer uma, de qualquer nação que O tema e pratique a justiça, Lhe é agradável. Não estava a criar um novo privilégio, pois Jesus Cristo, que é o Senhor de todos, até começou pelos filhos de Israel o anúncio da boa nova da paz.
O Espírito Santo mostrou que não estava para conversas nem muitas cerimónias. Desceu sobre todos. Os companheiros de Pedro ficaram maravilhados ao verem que os gentios tinham a mesma sorte que eles. Pedro rendeu-se à evidência: como negar o baptismo aos que já receberam o Espírito Santo? Nasceu ali uma nova comunidade.
Esta impertinência não agradou aos circuncisos mais fanáticos. Ao subir a Jerusalém acusaram Pedro: o que foste fazer?! Entraste em casa de incircuncisos e comeste com eles?
Pedro teve de contar tudo, de fio a pavio. Tinha alterado a distinção entre sagrado e profano: ao que Deus purificou não chames profano. Acrescentou: eu não tive culpa nenhuma. Estava a falar e o Espírito Santo caiu sobre eles como sobre nós ao princípio. Foi, então, que me lembrei das palavras de João: sereis baptizados no Espírito Santo. Quem sou eu para me opor a Deus?
 A mudança de mentalidade não se resolve com uma explicação. Os que foram dispersos por causa do atentado contra Estêvão não ficaram parados. Anunciavam Jesus Cristo, mas dirigindo-se, apenas, aos judeus da diáspora. Alguns cipriotas e cirineus chegaram a Antioquia, abandonaram essas esquisitices e dirigiram-se a todos. Barnabé, constituído espião pela igreja de Jerusalém, virou-se para essa nova realidade. Partiu para Tarso à procura de Paulo e levou-o para Antioquia. Passaram um ano inteiro nesta nova igreja que cresceu como leite ao lume. O autor dos Actos nota deliciado: foi em Antioquia que, pela primeira vez, os discípulos receberam o nome de cristãos.
A Bíblia de Jerusalém comenta: ao criarem a alcunha de cristãos, os pagãos de Antioquia fizeram do título “Cristo” (ungido) um nome próprio. E assim ficou até hoje.
2. Os discípulos de Cristo continuavam com profundas divergências: uns sustentavam que a abertura aos gentios era respeitável, mas se adoptassem os costumes judaicos; outros diziam que o Espírito Santo não ligava a essas distinções. Apesar das divergências, os cristãos de Antioquia, quando souberam da fome que se passava na Judeia, decidiram reunir auxílios, cada um segundo as suas posses, e mandaram Barnabé e Paulo entregar o fruto recolhido aos anciãos. A comunhão real é sempre mais importante do que as divergências teológicas.
Dizem os Actos que Herodes começou a maltratar alguns membros da Igreja. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João. Vendo que isto agradava aos judeus, meteu Pedro na cadeia bem policiada para fazer, depois da Páscoa, um brilharete com este prisioneiro. Na noite em que Herodes se preparava para essa operação de propaganda, um Anjo dirige as operações da fuga. Venceram todos os obstáculos e até o portão de ferro que dava para a cidade se abriu. Quando Pedro se dá conta que não esteve a sonhar, dirigiu-se para a casa de Maria, mãe de João, onde estavam muitos a rezar. Bateu à porta, a criada foi escutar e correu para dentro a anunciar que Pedro estava em frente do portal. Disseram-lhe: estás maluca. Ela, porém, sustentava que era ele mesmo. Os outros diziam: talvez um Anjo. Herodes não era para brincadeiras. Não encontrando Pedro que fugira para Cesareia, mandou matar os soldados.
3. O Espírito Santo é muito atrevido, mas não é louco, não se substitui a ninguém, não tem uma varinha de condão para eliminar conflitos, não quer fazer nada sozinho, mas também não se acomoda ao que sempre assim foi. Era viável que a memória de Jesus tivesse suscitado mais uma variante do judaísmo – era uma religião com muitas tendências – e ficasse por ali, em Jerusalém, tranquila, sem criar problemas nem rupturas.
O autor dos chamados Actos dos Apóstolos já tinha escrito uma obra sobre Jesus, que rompera com o seu austero mestre João Baptista por causa das convicções que o incontrolável Espírito Santo lhe tinha metido na cabeça e no coração[ii].
É esse mesmo Espírito que provoca uma Igreja de saída em todas as direcções. Começada com Pedro, acelerou-se com Paulo e Barnabé. É, de novo, o Espírito Santo que não se contenta com a bem evangelizada e organizada Igreja de Antioquia que tinha profetas e doutores em abundância: «separai-me Bernabé e Saulo para a obra que os destinei. Então, depois de terem jejuado e orado, impuseram-lhes as mãos e despediram-nos[iii]».
E lá foram eles, por todo o lado, a abrir o caminho do Evangelho tanto a judeus como a gentios – tendo mais sorte com estes do que com os primeiros – e organizando as comunidades para que a missão continuasse, ainda que no meio de muitas contrariedades.
Regressados a Antioquia, narraram o que tinha acontecido sublinhando como se havia aberto a porta da Fé aos gentios. Ficaram lá bastante tempo, mas não muito descansados.
Vieram alguns da Judeia com a velha história: «se não vos circuncidardes, segundo a norma de Moisés, não vos podereis salvar».
O texto acentua que isto provocou uma grande agitação. Paulo e Barnabé não se deram por vencidos. Entraram no debate. Sem solução à vista, resolveram subir a Jerusalém para tratar deste litígio com os apóstolos e os anciãos. No caminho continuaram a falar da conversão dos gentios e a dar alegria aos cristãos da Fenícia e Samaria. Ao serem acolhidos em Jerusalém pelos apóstolos e anciãos, os fariseus que abraçaram a fé cristã, não desarmaram: os gentios têm de adoptar os costumes judaicos e a lei de Moisés. Reuniram-se em concílio, a discussão não abrandou e foi Pedro que inclinou a balança para o lado de Barnabé e Paulo, a ponto de Tiago, chefe da Igreja local, também apoiar a ideia de que não deviam molestar os gentios que se convertessem a Deus. Foi redigido um documento que dava livre-trânsito à contestada missão de Paulo e Bernabé.
Lendo a história agitada dos capítulos 10-15 dos Actos, que temos seguido, somos levados a pensar que o Papa Francisco se deixou manipular pelo Espírito Santo. Esse atrevimento de recusar a consagrada receita do sempre assim foi libertou-o para procurar inserir, nas mudanças do mundo, a inquietante novidade do Evangelho.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 06. 05. 2018



[i] Act. 10 – 15.
[ii] Lc 3 - 4
[iii] Act. 13, 1-3

“As mulheres devem estar nos lugares de decisão da Igreja”


ENTREVISTA ENZO BIANCHI
“As mulheres devem estar nos lugares de decisão da Igreja”
O teólogo que fundou a comunidade monástica de Bose, Itália, mantém-se fiel à ausência de hierarquias. Procura a “espiritualidade a sério” e já ensinou um chef a confeccionar ovos pelo tempo de uma ave-maria. Bianchi não hesita ao dizer que “é estúpido querer saber se o inferno está vazio ou cheio”.
Ao fim de 50 anos, a comunidade monástica de Bose, em Itália, continua a ser uma experiência singular na Igreja de coexistência entre homens e mulheres de várias confissões cristãs. O seu fundador e prior, Enzo Bianchi, é uma voz activa na dignificação do papel da mulher na Igreja e diz que o papa Francisco “tem, de verdade, no coração a promoção da mulher”.
São palavras proferidas poucos dias antes de Francisco ter nomeado três mulheres como consultoras para a Congregação para a Doutrina da Fé. Pela primeira vez na história da Igreja, as mulheres ascendem a este cargo e passam a ser maioria (três em cinco) neste órgão que já foi a Inquisição.
A entrevista com Enzo Bianchi, que esteve em Lisboa com o filósofo Massimo Cacciari para uma das Lições Italianas organizadas pelo Instituto Italiano de Cultura e o Citer (Centro de Investigação em Teologia e  Estudos de Religião da Universidade Católica), é uma parceria do PÚBLICO com este centro universitário.
Qual é, para si, a principal mensagem da recente exortação apostólica do papa Francisco, Gaudete et Exsultate?
A mensagem central que eu identifico na Gaudete et Exultate é o destaque de que o verdadeiro santo cristão é um santo quotidiano, é um santo da vida normal, não é um herói, mas simplesmente quem na vida quotidiana, onde quer que se encontre, pode muito bem praticar o seguimento de Jesus Cristo, e vivê-lo a partir dos seus sentimentos, com as suas atitudes, com as suas preferências. Toda a vida humana é atravessada por fragilidade, por pecado, por contradições, mesmo aquela que tenta conformar-se à vontade de Deus. Mas é esta tentativa, este empenho, este esforço de amor que é a santidade comum. O papa chama-lhe “santidade ao pé da porta”, quase a convidar-nos a vê-la naqueles que habitam o mesmo condomínio, o mesmo alojamento, a reconhecê-la em vidas que são quase escondidas, que não têm nada de extraordinário, que não têm nada de heróico, mas podem igualmente ser vidas de observância e santidade cristã.

É isso a que papa se refere quando fala da “classe média da santidade”?
Não é que o papa peça uma vida média, no sentido de baixa, ou que não tenda verdadeiramente para uma santidade que seja plena. Porém, é como se dissesse que a santidade não é um projecto que o homem elaborou por si composto por uma construção de esforços heróicos e de méritos. A santidade é algo que Deus faz sobre as nossas vidas, as nossas vidas comuns, porque Deus purifica-nos dos nossos pecados e perdoa-nos. E dá-nos a força para arrostar as dificuldades. E nesta dinâmica, creio eu, está a classe média da santidade, como lhe chama o papa.

As duas heresias de que o papa fala na sua exortação, o gnosticismo e o pelagianismo – hoje raras de se ouvir -, são uma resposta aos críticos conservadores?
Certamente, o papa está a falar de duas tentações que estiveram sempre presentes ao longo da história da Igreja e estarão sempre presentes. Na história do cristianismo sempre se deram estas duas visões contrapostas, e ambas não correspondentes à verdade do Evangelho: de um lado, a ideia que tudo depende do homem, da vontade, simplesmente daquilo que ele faz, das suas obras; de outro lado, a ideia que a salvação é toda questão de conhecimento intelectual, de compreensão.

Ora, o papa estigmatiza estes dois vícios permanentes, que renascem sempre no seio do cristianismo, mas não lhe pertencem, diferentemente das outras religiões que não vêem problema nisso. Exactamente porque tem esta fé no amor de Deus gratuito e preveniente, o cristianismo é profundamente crítico em relação seja ao gnosticismo, como ilusão que o conhecimento possa tornar-se meio de salvação, simplesmente como compreensão, sabedoria, seja ao pelagianismo, à soberba confiança na auto-suficiência das obras do homem.
Certamente nestas duas tentações encontram-se também críticos do papa Francisco, porque de um lado ele é mal aceite por um certo intelectualismo católico que se alimenta de uma teologia decerto altíssima, mas que acaba por confiar mais em preceitos doutrinais que não na força do Evangelho e, portanto, o papa estigmatiza-os.
Por outro lado, há uma resistência contra o magistério do papa que vem de uma atitude própria de alguns sectores conservadores, os tradicionalistas, que tendem a ver a santidade simplesmente como o resultado dos esforços das pessoas. Assim, mesmo a liturgia, perdida no mundo tradicionalista, torna-se não uma via de salvação na qual Deus perdoa os nossos pecados e nos acolhe na nossa miséria, mas torna-se simplesmente um trajecto para alcançar a comunhão com Deus que devemos merecer através de uma série de ritos, de observâncias minuciosas, como se isso fosse decisivo para a salvação do homem.
Diz que o teísmo o assusta. Porquê?
O deísmo é a afirmação de Deus como uma entidade meta-histórica, alheia à contingência que, ao contrário, é núcleo essencial da encarnação de Jesus Cristo, que é algo que podia não haver, é um acontecimento de liberdade radical. Pascal dizia por isso, com razão: “É melhor o ateísmo que o deísmo .”

Ora, também nós, porém, os católicos, estamos um pouco doentes de deísmo. Estamos presos numa tradição doutrinal em que primeiro afirmávamos Deus em si e, depois, afirmávamos Jesus Cristo. Mas este dualismo vem de um modelo cultural exterior ao cristianismo, que se aninhou nele. O que constitui o cristianismo é a absoluta centralidade de Jesus Cristo, a via, o caminho aberto por Jesus – “Eu sou o caminho”. Para chegar a Deus passamos por Jesus Cristo. O nosso Deus é o Deus de Jesus Cristo. Tudo isto faz, sim, que o teísmo, quando é afirmado de uma maneira autónoma em relação à cristologia, torna-se realmente uma espécie de deísmo e assim um grande problema para a fé. E creio que hoje há sectores culturais da Igreja que estão ainda ligados a um racionalismo metafísico que contorna o tema da encarnação, não o leva a sério. A fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado dissolve-se assim numa religião desencarnada da história, num deísmo que mata a verdade central do cristianismo, que é Deus feito homem, feito carne.
Como vê a possibilidade da comunhão dos recasados?
Este tema, que, claramente, foi tratado pela [exortação] Amoris Laetitia, pelo Sínodo e pelo papa Francisco, é um tema, sem dúvida, não fácil, porque temos por trás um tempo em que precisamente se fazia crer às pessoas que os divorciados estavam excomungados. Os divorciados nunca estiveram excomungados pela Igreja. Havia em relação a eles uma disciplina de não admissão aos sacramentos, mas excomungados nunca estiveram. No entanto, no pensamento popular, pensava-se que eles estavam excomungados. E o papa justamente, e não simplesmente por uma condição de contingência, porque hoje os católicos divorciados são muitos, mas precisamente a partir de uma reflexão sobre o Deus que é misericórdia, abriu um caminho de acolhimento que não significa que os divorciados possam fazer automaticamente a comunhão. Isto não é verdade, porque fica assente o princípio doutrinal de que a fidelidade matrimonial é um dever absoluto, com o fundamento sobre uma palavra de Jesus no Evangelho, não é alguma coisa de que a Igreja possa dispor.

O que o papa diz é que em certas condições, em certas situações, em que não se pode refazer uma história de fidelidade com o cônjuge anterior, em que se desenvolveram todas as exigências de justiça para com o outro cônjuge, e para com os filhos, e se há uma vida cristã e se há uma vida eclesial, quando todas esta condições são cumpridas, então deve ser dada ao recasados a possibilidade de iniciar um caminho que seja, antes de mais, de penitência, mas que, ao mesmo tempo, leve a usufruir dos dons que Deus nos dá nos sacramentos, e sobretudo na eucaristia, porque o papa Francisco repete o que tinha dito Bento XVI ao declarar que já o Concílio de Trento tinha estabelecido “A eucaristia não é um prémio para os bons, para os justos, mas é um dom oferecido para a salvação dos pecadores”. O Concílio tridentino, que decerto tem por trás a tradição católica, afirmou vigorosamente que a eucaristia é um sacramento para a remissão dos pecados, portanto, remite também os pecados. Tudo isto faz, assim, que, em certas condições, através do trabalho de discernimento, haja a possibilidade de os divorciados estarem na mesa da eucaristia. Mas esta não é uma lei geral e automática, prevê e requer caminhos de purificação espiritual. Para sintetizar: o que se dá é uma mudança de uma disciplina da Igreja, não uma modificação da sua fé ou da sua moral.
Qual é o significado de uma exortação apostólica que defende claramente a mulher, a exalta, falando até de um “génio feminino”, e a liga a períodos muito difíceis da história da Igreja?
Creio que o papa Francisco tem, de verdade, no coração a promoção da mulher e o desejo profundo que na Igreja haja esta possibilidade real de a mulher poder ser verdadeiramente um sujeito e não simplesmente uma destinatária, porque, de facto, está na hora de a mulher não estar na Igreja unicamente como corpo discente, mas ser parte de uma Igreja magisterial. Devo dizer francamente, todavia, que esta expressão “génio feminino”, que se deve a João Paulo II, não me satisfaz, assim como não agrada a muitas mulheres. Porque para haver um génio feminino, então deve haver um génio masculino, e entramos num jogo de distinções, algo vão.

No mundo ocidental estamos a viver um destes momentos de anestesia social e histórica. O problema é que todos, inclusive os jovens que geralmente são uma força de transformação, hoje estão muito homologados por esta cultura da sociedade de consumo.
Enzo Bianchi
Creio que devemos estar atentos à retórica que às vezes a Igreja usa, sobretudo em relação às mulheres e em relação aos jovens. A retórica é geralmente inimiga da mudança real de atitudes e um reconhecimento daquela metade do mundo que são as mulheres, não pode passar apenas por grandes palavras, mas antes de mais pelos factos.
No seu livro Jesus e as Mulheres, fala dessa espiritualidade e da dificuldade da Igreja em aceitar a mulher. De que tem medo a Igreja, ao certo?
Eu escrevi Jesus e as Mulheres exactamente para poder dizer que é absolutamente necessário procurar no comportamento e no estilo de Jesus em relação às mulheres alguma coisa que inspire também a praxis da Igreja hoje.

Jesus teve discípulos e teve discípulas, teve um discípulo amado e teve uma discípula amada, Maria de Magdala. No final do Evangelho é Maria de Magdala a primeira a receber e transmitir a mensagem da ressurreição, o que faz dela uma apóstola dos apóstolos. Mas para definir o papel da mulher na Igreja não podemos focar-nos unicamente em Maria de Magdala, mas dar adequado relevo ao conjunto da palavra e dos actos de Jesus. Jesus viveu uma vida normal, entre o seu povo, em que procurou remover todos aqueles tabus e todas aquelas proibições que impediam uma verdadeira comunicação com as mulheres e que as retinha, mesmo às crentes, numa situação de menoridade em relação aos homens. Jesus enfrentou, combateu esses tabus, rompeu barreiras e há nos evangelhos tantos exemplos desta determinação e, no meu livro, estão todos descritos e comentados. Eu estou convencido de que a Igreja deve ter a coragem de iniciar este caminho na sequela de Jesus e que o primeiro passo deve ser de dar a palavra às mulheres.
Termino, dizendo sobre a Igreja e as mulheres, que para que as mulheres façam parte da Igreja no papel de plena igualdade e dignidade que Jesus Cristo lhes reconheceu, para que as mulheres não se tornem uma parte em falta da Igreja, (o que é um risco crescente), é preciso que elas possam tomar a palavra. Isto é para mim o essencial: as mulheres devem estar nos lugares de decisão da Igreja, porque é preciso escutá-las. Há um princípio na tradição cristã: o que respeita a todos deve por todos ser tratado, meditado e deliberado. Não se pode pensar que isto não diz respeito às mulheres, que são a metade da humanidade.
Por consequência, creio que se requer uma mudança radical, que suscita um grande medo em muitos, porque a Igreja é ainda muito clerical e os homens, sem dúvida, monopolizam os postos de poder, são eles que estão habituados há séculos a decidir e a representarem eles a Igreja e a não a deixarem representar também por uma mulher. São hábitos de séculos que devem ser mudados e tudo isto faz com que o caminho seja muito, muito difícil e custoso. Mas devemos sair da retórica mais depressa e dar passos muito concretos de forma que as mulheres se sintam verdadeiramente implicadas na vida eclesial como sujeitos e em plena igualdade.
Há condições neste momento para uma mudança?
Agora, para uma mudança com vista à ordenação das mulheres, não creio que haja condições, porque isto, por um lado, é um problema ecuménico que deve ser resolvido com a Igreja Ortodoxa e hoje não há maturidade do povo cristão para pensar que haja ordenações presbiterais dadas às mulheres. Mas ao lado desta questão há todo um caminho a fazer. Penso por exemplo, em quantos organismos poderiam ser confiados às mulheres e não serem simplesmente monopólio dos homens, clérigos e leigos. Se abríssemos este caminho, dar-se-ia sem dúvida uma mudança radical da condição de sujeição das mulheres na Igreja.

A comunidade de Bose é uma comunidade monástica singular, juntando homens e mulheres de várias confissões cristãs. Quantas confissões cristãs tem hoje Bose e quantos elementos?
A comunidade de Bose compõe-se de cerca de noventa membros, homens e mulheres. Os católicos constituem certamente a maioria, mas temos também um número significativo de membros das diversas igrejas da Reforma, e um pequeno núcleo de ortodoxos. A composição da comunidade de Bose é, decerto, igual à da Igreja actual e, para nós, isto é muito importante porque, em comunidade, experimentamos uma espiritualidade a sério, que sem fazer compromissos nem sincretismos, se alimenta de todas as tradições eclesiais e se enriquece com estas. É uma grande graça, e nós, agora, fazendo isto há 50 anos, vemos que esta comunhão no pluralismo das tradições é possível, que não é só fonte de uma reconciliação, mas que é possibilidade de um caminho comum e de uma única confissão do Senhor Jesus.

Ao fim de todos estes anos, qual é a principal experiência de que Bose é testemunho?
Não creio que tenhamos um carisma especial, porque estamos no interior da regra monástica. Certamente o nosso caminho teve dois elementos característicos que foram escolhidos como resposta a uma urgência que reconhecemos na altura da nossa constiuição e que se confirmaram como aspectos centrais da nossa experiência comunitária. O primeiro é a lectio divina (leitura orante da Bíblia), que fomos efectivamente nós a redescobrir no princípio dos anos de 1970 como praxis eclesial de primária importância e que a seguir se divulgou crescentemente na Igreja até que hoje ela é expressamente recomendada pelos papas. A revitalização da antiga tradição monástica da lectio divina é reconhecida como um marco da nossa comunidade e muitos vêm ainda a Bose, porque em Bose se pratica a lectio divina, porque em Bose todos os dias há a lectio divina e porque as nossas vidas são plasmadas por ela.

A outra característica peculiar da nossa experiência é a coexistência de homens e mulheres. É decerto uma mensagem positiva, passados 50 anos desde a fundação da comunidade, não ter havido escândalos, nem situações difíceis, não houve ‘embaraços’, o que prova a nossa intuição de partida: homens e mulheres podem viver em conjunto, escolhendo consagrar-se inteiramente a Deus. O fruto deste convívio é uma certa maturidade afectiva, uma normalidade humana importante. Sermos homens e mulheres na Igreja, na comunidade, não deve tornar-se um factor de separação e de sujeição de alguns aos outros, mas deve afirmar-se como um enriquecimento recíproco, como a construção de um caminho comum.
Tudo isto tem um significado peri-monástico que caracteriza Bose como uma forma de monaquismo numa sociedade secularizada. Um monge teólogo da grande abadia beneditina de Sainte-Marie-de-la-Pierre-qui-Vire, Ghislain Lafont, creio que era jovem quando disse que o monaquismo de Bose é o primeiro monaquismo que conseguiu inculturar-se numa sociedade secular. Creio que isto será o que decerto Bose deu, dá, e esperamos que possa ainda dar nos anos próximos.
O que atrai os jovens que vão a Bose?
Temos efectivamente a presença de muitos jovens, para os quais organizamos frequentemente acções formativas, jornadas teológicas, sessões de lectio divina, retiros… E temos uma procura que supera muito a nossa oferta. Não conseguimos efectivamente acolher mais do que cem, cento e vinte jovens de cada vez. Frequentemente os pedidos de inscrição alcançam o dobro.

SEBASTIÃO ALMEIDA
É absolutamente necessário procurar no comportamento e no estilo de Jesus em relação às mulheres alguma coisa que inspire também a praxis da Igreja hoje.
Enzo Bianchi
Porque vêm? Essencialmente, creio, por duas razões. Em primeiro lugar porque em Bose nós os escutamos. Os jovens querem ser escutados. Não devem ser tratados apenas como destinatários passivos de uma mensagem, mas devem ser reconhecidos também como sujeitos, portadores de uma palavra a escutar. Estou convencido que o que faz falta aos jovens não é atenção de os considerar destinatários de mensagens e ofertas, mas a escuta, o silêncio e paciência que os põe em condição de se exprimir.
Em segundo lugar, o que atrai os jovens é o facto que a nossa proposta é extremamente simples e se articula em dois aspectos. Por um lado, o que fazemos é transmitir uma gramática humana básica para enfrentar a vida, para os ajudar a viver o caminho de humanização que deve ser a nossa existência. Porque um jovem tem absoluta necessidade de ser exercitado na escuta, na palavra, nas relações, nas histórias de amor, e é precisamente isto que nós procuramos fazer, na sabedoria possível de comunicá-lo e de verificá-lo juntos. Por outro lado, apresentamos aos jovens, simplesmente, humildemente, a palavra evangélica. Achamos que o nosso papel é oferecer aos jovens a possibilidade se se encontrarem com o evangelho, nada mais. Não insistimos noutros temas do cristianismo, nem em questões doutrinais, que eles terão tempo de percorrer e de assumir.
A comunidade de Bose é uma comunidade onde os monges e as monjas fazem votos de celibato e vida comunitária. E é uma associação laica. Isso é importante para Bose?
O monaquismo sempre foi um fenómeno de laicos, e nós não o devemos esquecer porque todos os padres do deserto eram laicos: Pacómio era laico, Basílio era laico, mesmo S. Francisco permaneceu laico, nunca se tornou diácono, como diz a lenda. Por isso, o monaquismo, por si, é laico e eu não quis de todo que fosse diferente. Devo dizer que os bispos [da diocese a que Bose pertence] que se sucederam me pediram que eu fosse ordenado padre, mas eu sempre recusei este convite, porque quero ficar um simples fiel, um simples laico como os monges. Não esqueço aquela frase dita por Pacómio ao patriarca de Alexandria, o grande patriarca que foi procurá-lo e que era Atanásio, e que perguntou: “E a comunidade?” E ele respondeu: “Somos simples laicos.”

O que eu escolhi foi simplesmente manter-me fiel a esta tradição. É claro que isto tem consequências. Por exemplo, ter menos vocações, porque muitos querem, sim, tornar-se monges, mas também padres, o que não é certo que seja possível ao escolher ser monge de Bose. Porque em Bose é só a necessidade da comunidade que determina a ordenação de um monge como padre. Se a comunidade precisa de um padre, então dá-se uma ordenação. Mas a maioria de nós fica laico para toda a vida. É uma escolha que afasta um número consistente de jovens, e todavia, vemos que há uma resposta constante, que para nós é suficiente. Não é tanto uma questão de números, quanto de qualidade da vida comunitária. Estamos contentes ao ver que a comunidade se mantém por meio desta opção como um corpo muito mais homogéneo, muito mais unido, porque somos irmãos e simples irmãos, sem hierarquias. O nosso reconhecimento jurídico, que foi feito pelo bispo, é de uma comunidade monástica, mas no nosso estatuto, como na nossa regra, a condição é laical.
Ir para um mosteiro hoje é fugir do mundo?
Não. O mosteiro deve sempre ter esta posição de estar não marginalizado, mas marginal, nas bordas, porque se o mosteiro se separa do mundo torna-se uma seita. Deve absolutamente estar sempre à escuta do mundo, ter a capacidade de estar presente no mundo, testemunhando uma diferença, que não deve ser expressão de um medo, não pode tornar-se uma contracultura, uma forma de defesa e recusa da sociedade. Dentro do monaquismo há o celibato, uma vida fraterna comum, o trabalho e a oração criam uma antropologia diversa, em comparação com a que se encontra no mundo, mas diversa não significa contrária, não significa em luta, significa simplesmente que pode ser alternativa, porque é capaz de fazer esta estrada e a sente como a sua verdade, mas não é uma estrada de perfeição, não é um caminho melhor. O título do meu livro sobre a vida religiosa [em edição espanhola, No Somos Mejores, Una Vision Renovada De La Vida Religiosa] formula precisamente este ponto central: Nós não somos melhores.

Voltando à Gaudete et Exsultate, o papa Francisco pede aos cristãos que dêem tanta atenção aos imigrantes e sobretudo aos pobres como se dá ao aborto. Surpreende-o isso?
O papa, nesta exortação apostólica, põe os pontos nos is. Um primeiro ponto é deflacionar a contraposição entre a contemplação e vida activa. Ele diz que não podemos refugiar-nos na oração e ignorarmos o irmão em necessidade, não nos pode recolher em silêncio e fugir assim daqueles que pedem ajuda. Ele recusa como um desvio este dualismo que polariza a vida contemplativa e a vida activa como formas alternativas de vida cristã, convidando a integrar estas duas dimensões na experiência de fé de cada um. Os cristãos seguem o Senhor, certamente em momentos de contemplação, de oração, de escuta da palavra de Deus, mas da mesma maneira devem escutar os homens, escutar as mulheres, escutar os irmãos, escutar os necessitados.

Um segundo ponto no i, uma segunda chamada de atenção é feita aos católicos que fazem grandes batalhas contra o aborto, pela bioética, em defesa dos “seus valores”, e não fazem absolutamente nenhuma pelos migrantes, pelos pobres, por aqueles que sofrem a opressão. Neste caso, observa o papa, há uma defesa da vida muito teórica, cultural e política, que não corresponde a uma batalha igualmente determinada em prol da vida real, dos seres humanos em carne ossos, nas suas necessidades.
Hoje há sectores da Igreja, nomeadamente nos Estados Unidos, muito empenhados em grandes batalhas identitárias, contra o aborto, contra a eutanásia, contra a moral sexual mas que não se ouvem em relação às situações de pobreza, injustiça, exploração, opressão que se vê no mundo. Isto é escandaloso, e é este dualismo que o papa denuncia de maneira muito forte.
A dificuldade em se perceber o que é o humanismo cristão vem da dificuldade de se dizer a palavra “Deus”?
Bem, sim e não, no sentido de que hoje, sem dúvida, a palavra “Deus” é uma palavra que se esvaziou muito, de forma dramática na última geração, no milénio actual. Muitos dizem que Deus já não interessa, que podemos viver a vida sem Deus. E frequentemente esta posição é associada a uma reivindicação humanista de tolerância e de convivência pacífica, porque no contexto actual de radicalismos e fundamentalismos emergentes Deus acaba por ser associado ao fanatismo, à intolerância religiosa, aparece exactamente como factor detonante do fanatismo terrorista. Deus é uma palavra que não goza de boa saúde actualmente e devemos tomar consciência disso. Mas o facto é que a fé dos cristãos não consta na confissão de um Deus em geral, de uma entidade suprema, abstracta, meta-histórica. O nosso Deus é o Deus de Jesus Cristo e Jesus Cristo revelou-nos Deus através de uma vida humaníssima. Portanto, é inspirando-nos na vida humana de Jesus que podemos avançar em direcção a Deus, um Deus inefável, indizível, de que não conseguimos dizer nada porque nunca o vimos, que é a fonte de vida, que é a fonte do amor, e que é o Pai de Jesus Cristo. Este é, na minha opinião, o caminho que devemos fazer.

O que faz falta aos jovens não é atenção de os considerar destinatários de mensagens e ofertas, mas a escuta, o silêncio e paciência que os põe em condição de se exprimir.
Enzo Bianchi
Onde há espaço para o humanismo cristão no mundo de extremismo, populismo, violência, discurso do ódio?
Certamente hoje é fácil o fundamentalismo, é fácil a intolerância, em consequência, mesmo no interior da Igreja Católica. O papa, na exortação Gaudete et Exsultate lamenta-se da violência que se manifesta e se espalha na Web, no mundo da Internet. Mas creio que o humanismo cristão, exactamente porque é esta praxis que ajuda a convivência, que ajuda um caminho de humanização, pode ser extremamente fecundo hoje. E hoje, mais do que ontem, este humanismo evangelicamente inspirado é reconhecido antes de mais pelos mesmos cristãos, como uma mensagem de reconciliação e de integração social, como uma força que contraria a solidão e a fragmentação.

O papa Francisco terá dito a um jornalista italiano que o inferno não existia. Faz sentido hoje discutirmos isto?
O debate voltou de novo e decerto Eugenio Scalfari [jornalista italiano que alega ter ouvido essa frase ao Papa] interpretou como quis as palavras do papa. Porque o que o papa pode dizer, dentro de uma fidelidade ao Evangelho, é isto: que o inferno é uma ameaça que se encontra directamente nas palavras de Jesus. Ousarei dizer que, se há uma novidade do Novo Testamento, é a possibilidade do inferno. No Antigo Testamento, esta noção não se encontra: no Além veterotestamentário há um repouso, há uma escuridão, mas não se fala de ressurreição, de vida ultra-terrena, nem propriamente de condenação eterna. O Novo Testamento, pelo contrário, anuncia a ressurreição, que implica a possibilidade do inferno. Isso é de uma condição para além da condição terrena que se confirme na escolha existencial do pecado, como opção de viver sem Deus, sem amor. Este é o núcleo da palavra evangélica, que se reveste do imaginário judaico do fogo, da desolação de lugares ultraterrenos, mas estes são apenas ícones necessários para simbolizar o mistério.

Para os cristãos, o que é isto?
Para os cristãos, o imaginário dado por Dante dentro da Divina Comédia continua predominante. Como há o reino dos bem-aventurados, há um reino na profundidade do inferno onde há tormentos, sofrimentos diversos, conforme os pecados. Na realidade, do inferno não sabemos nada. Digamos que Jesus põe diante de nós a possibilidade de um caminho mortífero, que leva ao mundo sem Deus, sem amor, e uma vida com Deus, com amor, que é chamada Reino dos Céus, que é chamada paraíso.

O que faz o cristão? O cristão sabe e deve saber que existem estas duas possibilidades diante dele e que é ele que escolhe, aqui. O que está em jogo nesta promessa de salvação e nesta possibilidade de perdição não é um segredo que nos escapa. O essencial é claríssimo para cada um: eu hoje escolho o inferno, hoje escolho o Reino de Deus, escolho por meio das minhas acções. Esta opção levar-nos-á àquilo que é um juízo diante da misericórdia de Deus e é isto, a consciência do juízo de Deus, de um Deus que conjuga misericórdia e justiça que conta e que deve condicionar o nosso discurso. Na minha opinião, é estúpido querer saber se o inferno está vazio ou cheio. O que interessa é se queremos ou recusamos o amor de Deus, vivendo-o como amor para os irmãos.
Há apenas uma consideração que considero relevante a este respeito. Um verdadeiro cristão pode pensar na sua felicidade no Reino de Deus sem que ali se encontrem os outros? Uma pessoa não se salva sozinha. Por isso, a esperança de um cristão deveria ser que para o inferno não vai ninguém, que a misericórdia de Deus abrange tudo. Para dizer a verdade, quando penso no Além, temo o inferno, mas temo-o por mim, e pergunto-me: se para o inferno vai qualquer pessoa, porque não hei-de ir eu? Sou assim tão santo? Duvido, por isso, espero que ninguém vá para o inferno.
É a atitude de Paulo que dizia: espero que a nenhum dos meus irmãos judeus aconteça que não seja salvo. É a atitude de tantos santos da tradição oriental, que diziam: se há o inferno, Senhor, manda-me a mim, para que outros não entrem no inferno. É a atitude de quem é nutrido de amor. Não pode haver um verdadeiro cristão que afirme que há inferno, porque quer mandar para lá os outros, pensando que ele não vai.
O papa Francisco disse há algumas semanas: “Queridos jovens, vocês têm o que é preciso para gritar contra a anestesia.” Cinquenta anos depois do Maio de 68, é a Igreja, o papa Francisco, a exortar os jovens a gritar. Há 50 anos a Igreja era o símbolo do conservadorismo. Não é uma ironia?
Sem dúvida, que na história, sabemo-lo bem, há estes movimentos, estes refluxos, com uma oscilação entre momentos de grande esperança e, por consequência, também de contestação da situação existente e de batalhas para a mudança e momentos de recuo e bloqueio, em que todos parecem paralisados e mesmo as vozes de mudança se mostram extremamente fracas. No mundo ocidental estamos a viver um destes momentos de anestesia social e histórica. O problema é que todos, inclusive os jovens que geralmente são uma força de transformação, hoje estão muito homologados por esta cultura da sociedade de consumo. Então o papa quer acordá-los, dizendo “Gritai, não deixeis gritar as pedras” e desafia-os a tomar consciência do seu papel na história.

Pois, também aqui estejamos atentos a que não se torne uma retórica. O que é preciso não é só dizer aos jovens “gritai”, mas é preciso dizer “Nós estamos dispostos a tomar-vos a sério e a escutar-vos. Digam-nos alguma coisa. Não basta gritar, digam-nos a nós que, juntos, queremos mudar as coisas.”
É conhecido o seu gosto pela cozinha. De onde lhe vem?
Essencialmente da minha família e da minha terra, o Monferrato, que é sabido ser uma terra de grande tradição gastronómica, refinada pelo intercâmbio com a França. A minha avó era uma cozinheira francesa e o meu avô era padeiro. Não éramos uma família de lavradores, mas de artesãos, ligados profissionalmente à cozinha ou mais em geral à alimentação. A este contexto local e familiar acrescentaram-se as circunstâncias da vida: a minha mãe morreu quando eu tinha oito anos, o que me obrigou a preparar a comida para o meu pai que voltava do trabalho. Já aos nove anos eu era responsável pelo menos para a refeição do meio-dia, todos os dias. Desde então, nunca mais deixei de cozinhar. Cozinhava para mim e para os companheiros de alojamento quando estava na universidade, no alojamento tinha de preparar a minha alimentação. Continuei a cozinhar depois de mudar-me para Bose, porque pelo menos durante os primeiros seis ou sete anos eu era o único disponível para acolher aqueles que chegavam.

Isto nunca foi para mim um peso, mas uma alegria. Por isso, quando devo fazer festa em comunidade ou quando convido amigos, a primeira coisa que gosto de fazer é cozinhar para eles, convencido de que fazer os cozinhados é a primeira maneira de dizer a alguém “quero-te bem”.
Portanto, a comida na mesa é amor?
Sim, exactamente, é a manifestação do amor. A mesa é o magistério do amor. Come-se, mas também fala-se, compartilha-se, para que haja comida para todos, dá-se atenção aos produtos que se utilizam. À mesa celebram-se todas as nossas histórias, os casamentos, os nascimentos, as mortes. A mesa é o lugar onde se iniciou a humanização, é o lugar onde nasceu a linguagem, a palavra. Então a mesa deve ser levada a sério. O problema é que hoje a mesa se tornou o lugar da máxima estranheza, quando a mesa tem a vocação para a máxima comunhão.


chef italiano e seu amigo, Carlo Petrini, diz que o ensinou a cozer ovos com base em ave-marias. Como é que as ave-marias são mais precisas que os relógios?
A razão é muito simples: os nossos antepassados quando cozinhavam os ovos não tinham relógio e por isso tinham essa sabedoria extremamente camponesa, imbuída de religiosidade, que o tempo de fazer um ovo à la coque é exactamente o de rezar dez ave-marias, enquanto para obter um ovo cozido temos que contar o tempo de vinte pai-nossos… Hoje que temos os relógios, achamos que já não precisamos das ave-marias, mas se calhar eram as nossas avós que sabiam mais!

LURDES FERREIRA  6 de Maio de 2018
in Público
[Tradução de Rita Veiga]