22 outubro 2017

DEUS, NOSSO RIVAL?

       1. As narrativas dos Evangelhos já têm mais de dois mil anos, mas foram escritas para desassossegar as igrejas de todos os tempos. Contam que Jesus de Nazaré não conseguia passar ao lado das vítimas de doenças físicas ou psíquicas, frutos de muitas outras misérias. Convivia e comia com as pessoas que a hipocrisia religiosa e moral classificava como pecadoras, sabendo que se expunha a ser considerado como uma delas. Por causa da sua teimosia em trabalhar na libertação das pessoas, mesmo no dia mais sagrado da sua religião, o Sábado, era tido como um agente clandestino de Satanás. Mas para ele, esse dia só podia ser reservado para Deus se fosse a festa da vida liberta.
Os evangelistas puseram na boca deste Nazareno um apelo comovente: vinde a mim todos os que andais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei. Os Actos dos Apóstolos resumiram todo o seu itinerário numa frase: passou a vida fazendo o bem.
Não suportava, porém, os espiões da sua ortodoxia religiosa ou política. Não tinha paciência para as astúcias dos príncipes dos sacerdotes, dos escribas e fariseus. Àqueles que o interrogavam de má-fé – só para ver se o apanhavam em falta – mandava-os bugiar. Jesus, mesmo em pleno tribunal não reagiu como um vencido ou um cobarde. Passou ao ataque. A imagem que melhor o pode sugerir é a de um profeta bíblico, figura da lucidez perante as contradições da actualidade. Profeta e mais do que profeta, irmão universal.
No texto do Evangelho da Missa de hoje, ao desmascarar os fariseus que o queriam meter num beco sem saída, cunhou um aforismo que tem percorrido os séculos e desautorizado os que não se cansam de manipular a religião para fins políticos e a política para fins religiosos.
A questão dos impostos é sempre muito sensível, sobretudo em situações de luta anticolonial. Naquele caso, era especialmente grave. Jesus tinha de tomar posição e mostrar se estava com ou contra a dominação romana, se era um verdadeiro israelita ou um traidor. Resposta de Jesus: fostes vós que criastes esta situação política estampada na moeda que usais. Portanto, «dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus».
Os aforismos não são demonstrações, mas podem traduzir e suscitar atitudes exemplares. As actuais e violentas manifestações de fundamentalismo religioso e político já deviam estar ultrapassadas pela resposta de Jesus. Não estão. A chamada morte de Deus e do homem – nem deísmo nem humanismo – conduziram ao puro niilismo. Quando vale tudo, nada vale a pena. De facto, estamos, de novo, na pior forma da perversão religiosa: matar em nome de Deus!
2. Sem tentar refazer essa história de rivalidades loucas, não posso esquecer o conhecido mito grego de Prometeu ou o drama da relação entre religião e cultura. Os deuses escondem aos seres humanos o segredo da vida feliz. Aquilo que os seres humanos precisam para fazer a sua vida, por sua conta e risco, o fogo (isto é, as ciências e as técnicas), tem de ser arrancado aos deuses contra a sua vontade, como o fez Prometeu. Deuses e homens são rivais. A felicidade dos deuses é a desgraça dos humanos e a felicidade dos seres humanos é uma usurpação aos deuses. São irremediáveis concorrentes.
Essa mentalidade penetrou em certas formas de pensamento e comportamento no mundo cristão de diversas épocas, embora de forma indevida, perversa. Desenvolveu-se no âmbito de uma pseudo-espiritualidade de “desprezo do mundo”. Esta é uma expressão carregada de ambiguidades. O dito popular, «tudo o que sabe bem é pecado ou faz mal», teve e tem um sucesso anticristão. Por detrás dessa atitude está uma concepção do chamado pecado original, deveras muito original: sem saber como, nascemos não apenas com uma herança genética, sã ou doente, mas também com uma história de pecado em que fomos concebidos. Temos contas a ajustar com Deus, reparar o mal que lhe fizemos, antes mesmo de ter feito ou pensado seja o que for!
Mesmo quando somos conscientes do mal que fazemos, S. Tomás de Aquino lembrou que Deus não é ofendido por nós, a não ser na medida em que agimos contra o nosso próprio bem ou o dos nossos irmãos, filhos de Deus[1]. Nem Deus procura a sua glória por causa dele, mas por nós e para nós. Não é um carente afectivo[2]. A glória de Deus é a alegria dos seres humanos.
 Deus não é, não pode nem quer ser tudo. O mundo não é divino. Deus afirma-se fazendo ser o que Ele não é. Gera a diferença radical. A transcendente acção divina não entra em concorrência com a evolução cósmica ou com a liberdade humana.
      A teologia negativa de Tomás de Aquino é anti idolátrica, mas não é niilista. O prazer de Deus criador, o Poeta, não é a negação dos prazeres humanos.
      Dizia o teólogo evocado que o prazer é o resultado do agir perfeito. O prazer dos sentidos testemunha a sua boa saúde e a sua integração harmoniosa no bem total da pessoa, guiada pela razão e pelos afectos. A construção humana é um processo de conjugação de relações interiores, consigo mesmo, com os outros e com o mundo. O mal surge quando, de modo responsável, nos privamos dessa virtuosa conjugação de relações limpas. Os apetites desgarrados introduzem uma desordem que nos destrói.
3. Durante vários anos ensinei a cadeira de teologia das realidades terrestres. A sua temática tinha-se afirmado nos anos 40-50 do século passado e marcou a constituição conciliar, «A Igreja no mundo contemporâneo» (Gaudium et Spes). A questão que a desafiava era existencial: qual é a significação das actividades nas quais os seres humanos passam a maior parte do seu tempo – na família, na escola, na profissão, nos lazeres – para o acolhimento e realização do Reino de Deus, alegria do mundo? É uma descoberta nunca acabada.
Era e continua a ser importante acabar com a ideia de que um católico praticante é, apenas, o das práticas religiosas, prescritas ou devocionais. Quando os inconformados com as situações degradantes da sociedade se decidem a trabalhar na construção de um mundo mais humano é que se tornam, como diz S. Paulo (Rm 12), verdadeiramente praticantes do culto que agrada a Deus. Mesmo sem assinatura religiosa.
Neste momento, o culto que Deus nos pede, em Portugal, é a mobilização da Igreja e da sociedade pela nossa casa comum ameaçada, ano após ano, pela incúria de todos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 22. 10. 2017


[1] Contra Gentiles, III, c. 122
[2] Summa Theologiae, II-II, q. 132, a.1

17 outubro 2017

500 anos de reforma luterana

No sábado, 14 de outubro de 2017, o ISTA (Instituto São Tomás de Aquino)
NSI-PT (Nós Somos Igreja – Portugal) organizaram uma conferência sobre "500 Anos da Reforma Luterana: alcance ecuménico da visita à Suécia do Papa Francisco".

As duas intervenções do Fr.Gonçalo Diniz,op e e da Pastora Ilse Berardo podem ser ouvidas aqui:

Frei Gonçalo Diniz: http://bit.ly/2yQ5Zl4

Pastora Ilse Berardo: http://bit.ly/2igzQvN 

15 outubro 2017

UM LIVRO INDISPENSÁVEL

       1. Que livro é esse que me leva a dizer que é mesmo indispensável? Se tenho de confessar que foi essa a convicção que a sua leitura me impôs, sei que o espaço desta crónica não é o mais adequado para a justificar. A verdade é esta: ajudou-me a diminuir ignorâncias que talvez não sejam só minhas; ofereceu-me o conhecimento de alguns percursos da Bioética que ajudam a vencer a ideia de que perante questões tão complexas, o mais razoável seria deixá-las no segredo dos especialistas.  
O título, que enche a capa dessa obra, revela, sem ambiguidades, o seu conteúdo: Eutanásia, Suicídio Ajudado, Barrigas de Aluguer. Destina-se a possibilitar um debate de cidadãos, esclarecido e fecundo.
O autor, Miguel Oliveira da Silva, é Professor Catedrático de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Foi, entre 2009 e 2015, o primeiro Presidente eleito do Conselho Nacional para as Ciências da Vida. Integra, por eleição, o Bureau da DH-Bioética do Conselho da Europa.
No passado dia 9, a obra foi apresentada, na Casa Museu Fundação Medeiros e Almeida, por José Barata-Moura e Anselmo Borges.
Ficou claro que as questões abordadas neste livro não deveriam deixar ninguém indiferente. Têm a ver com a dignidade humana de todos os cidadãos, do presente e do futuro. Vivemos num mundo global, mas que também parece cada vez mais fragmentado e não se prevê que se vá tornar mais estável.
Como reza um velho aforismo, o que a todos diz respeito deve ser tratado por todos. Segundo S. Tomás de Aquino, a virtude da prudência política – condição para intervir de forma esclarecida nas orientações e decisões da comunidade - não é uma exigência exclusiva de legisladores e governantes. É indispensável a todos os cidadãos.
Se a cultura activa das virtudes torna bons os seus praticantes e boas as suas acções, sem ela até as leis mais justas perdem vigor e eficácia na sua aplicação.
Para serem virtuosas, as opções e decisões políticas não podem dispensar o recurso a estudos adequados. Segundo o citado autor, o estudo, além de todas as experiências e dados recebidos dos investigadores, professores e educadores, exige sempre uma veemente aplicação da mente. Sem esse esforço não se consegue verdadeira autonomia pessoal. 
Não se deve confundir ética e política. Não esqueço, porém, que a política é uma ciência prática cujo objecto é o agir, algo complexo e mutável. A decisão prudencial ganha em associar a ética da convicção e a da responsabilidade, isto é, tem de saber calcular os riscos e as consequências das opções. As melhores intenções, sem políticas bem preparadas e executadas, alimentam as piores asneiras.
Tornou-se um hábito dizer mal da política e dos políticos, sobretudo dos que não são da nossa cor. Mas esquecer que nos pertence alterar rumos e métodos da prática política é uma forma de masoquismo. Um dos frequentes incitamentos do Papa Francisco aos cristãos incide, precisamente, sobre a importância da cura da intervenção política para que esta não seja guiada pelos interesses do Dinheiro que geram a economia que mata crianças e adultos e provoca os criminosos negócios das guerras, desgraça dos povos.
2. Na contra capa desde livro de Miguel Oliveira da Silva está escrita a sua motivação. Perante o alargamento de direitos individuais nos extremos da vida humana, somos responsáveis pelo modo como o Estado assegura ou não a protecção dos mais vulneráveis: os jovens produtos de tecnologias genéticas e reprodutivas e as pessoas humanas em sofrimento intolerável que reclamam querer morrer.
Como ser equitativo no acesso a estas tecnologias e qual é, aqui, a relação entre o Serviço Nacional de Saúde e o sector privado? Quando e como têm os pais a obrigação de assegurar que os seus filhos possam conhecer a verdade sobre a sua história biológica: quem lhes deu o esperma ou o óvulo, qual a mulher que os gerou e pariu, quantos meios-irmãos poderá ter?
O parecer dos peritos deve servir para pôr as pessoas a pensar, debater, informar, cogitar para não ser uma perfeita trivialidade.
Um debate sobre uma questão ética nunca está completamente encerrado. Por vezes, e ainda que de outro modo, há que retomar, periódica e recorrentemente, as mesmas interrogações e dúvidas. As leis bioéticas não podem prever todos os casos, todas as situações concretas, sobretudo quando se trata de novas tecnologias reprodutivas e genéticas que podem obrigar a uma reapreciação e eventual mudança legislativa[1].
3. É absolutamente impossível tentar resumir o conteúdo dos diferentes capítulos ou temas desta obra, embora fosse a melhor maneira de apresentar as razões que me levam a chamar-lhe um livro indispensável. Indispensável não é o livro. Indispensável é conhecer a história e os debates da bioética, em Portugal e nos outros países, para que seja possível uma participação democrática em assuntos que a todos dizem respeito.
Como já escreveu Anselmo Borges, o achismo é o inimigo do conhecimento e do debate entre cidadãos. Para encher os meios de comunicação - rádios, televisões, jornais, redes sociais - não é preciso conhecimento argumentado. Basta dar a ilusão que a verdade não tem interesse, tanto mais que a época da pós-verdade é o seu reino. Silêncio imposto sobre determinados temas já o conhecemos e ainda existe em muitos países. Mas agora, procura-se o mesmo resultado falando muito. Poucos dias depois de ter chegado a Nampula (Moçambique), e não sabendo nada de macua, passei por um grupo que falava e gesticulava alegremente. Perguntei a um rapaz macua, que sabia português, o que estava aquela gente a dizer com tanto entusiasmo. Resposta rápida: não estão a dizer nada, é só falar. Hoje em dia, e entre nós, em relação a muitos programas que pretendem ser de informação e debate, tenho a impressão de que também não dizem nada. É só falar. Seriam bem dispensáveis.
O que não se pode dispensar é o conhecimento da história da Bioética que – ao contrário da clássica Ética Médica até aos anos 70 do século XX – tem um outro horizonte temporal e outro alcance filosófico: a equação moral que não se esgota na imediatidade ou proximidade da relação quase sempre privada e individual médico-doente. Há um outro tempo, uma esfera pública e comum, transgeracional que pode mesmo afectar o futuro do planeta[2].
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 15.10.2017


[1] Cf. Miguel Oliveira da Silva, Eutanásia, Suicídio Ajudado, Barrigas de Aluguer, Caminho, Lisboa, pp 80-87; 114-124
[2] Cf. Obra citada pp 63-68

08 outubro 2017

Tranquilizar ou desassossegar Fátima? (2)

1. Um amigo, depois de ler o meu texto do domingo passado, pediu-me para deixar Fátima em paz. Depois da intoxicação mediática em torno do centenário, é saudável deixar arrefecer essas alucinações. Lembrei-lhe que ainda não se fez uma avaliação deste ano, pois ainda estão em curso preparações de novos congressos. A avaliação que já deveria ter sido feita é a da vinda do Papa Francisco a Fátima.
Paulo VI foi o primeiro Papa que veio a Fátima em circunstâncias que já foram analisadas de diversos pontos de vista. João Paulo II foi à Cova da Iria mais do que uma vez. Bento XVI presidiu à peregrinação de 12 e 13 de Maio 2010. Como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé já tinha serenado, do ponto de vista teológico, o empirismo que dominava a discussão sobre as aparições/visões.
O Papa Francisco veio como peregrino, a 12 e 13 de Maio 2017. Não trouxe uma rosa de ouro, não foi agredido nem miraculado em Fátima, não se ocupou com as narrativas sobre o inferno, o purgatório, a Rússia e a devoção dos primeiros Sábados. Não teve de fazer nenhuma das consagrações pedidas à Lúcia por N. Senhora. As consagrações que Ela exigiu, tantas vezes ensaiadas, já estavam finalmente aprovadas. Também não havia mais nenhum segredo a revelar. A devoção ao rosário, em 1917, já tinha séculos. A canonização da Jacinta e do Francisco tanto poderiam ter sido feitas na Cova da Iria como na Praça de S. Pedro. Então não veio cá fazer nada?
Em duas breves homilias virou tudo do avesso. Em Fátima, a grande preocupação eram os sofrimentos de Deus, dos corações de Jesus e de Maria por causa dos nossos pecados. Era preciso multiplicar os sacrifícios para reparar o Céu ofendido. O Papa conhecia esse mundo que não é o dele. De que se lembrou? Escolheu, das várias narrativas locais, uma que lhe permitiu introduzir um novo horizonte. «Não vês tanta estrada, tantos caminhos e campos cheios de gente, a chorar com fome, e não tem nada para comer? E o Santo Padre numa Igreja, diante do Imaculado Coração de Maria, a rezar? E tanta gente a rezar com ele?»
 Voltou-se, então, para os seus companheiros de peregrinação: “Irmãos e irmãs, obrigado por me terem acompanhado! Não podia deixar de vir aqui venerar a Virgem Mãe e confiar-lhe os seus filhos e filhas. Sob o seu manto, não se perdem; dos seus braços, virá a esperança e a paz que necessitam e que suplico para todos os meus irmãos no Baptismo e em humanidade, de modo especial para os doentes e pessoas com deficiência, os presos e desempregados, os pobres e abandonados.”
Não se pode confundir esta passagem com mais uma beatice mariana. Bergoglio desvia o olhar dos peregrinos para a terra de todos os irmãos no Baptismo que envolve católicos, protestantes, membros das Igrejas Orientais e todos os que se reconhecem no Espírito de Jesus Cristo. Não são apenas os que vão a Fátima! Mas não fica por aí. Quem reconhecesse como irmãos apenas os que se dizem cristãos era um traidor ao Evangelho, um anti-ecuménico. Por isso, o Papa acrescenta: e de todos os irmãos em humanidade! Este universalismo podia ficar numa abstracção. Mas ele concretiza: os nossos irmãos em humanidade que mais precisam de cuidados especiais são os doentes e pessoas com deficiência, os presos e desempregados, os pobres e abandonados.
Importa meditar nesta redobrada tentativa de evangelizar a chamada espiritualidade de Fátima. Muito se repetiu que Fátima não era mais do que o Evangelho. Essa repetição servia, precisamente, para o esquecer. A peregrinação do Papa Francisco foi intencionalmente missionária: procurar evangelizar Fátima, para que ela se transforme num foco de evangelização. Repare-se neste texto de antologia:
“Queridos irmãos, rezamos a Deus com a esperança de que nos escutem os homens e dirigimo-nos aos homens com a certeza de que é Deus quem nos vale.
Pois Ele criou-nos como uma esperança para os outros, uma esperança real e realizável segundo o estado de vida de cada um. Ao «pedir» e «exigir» o cumprimento dos nossos deveres de estado (carta da Irmã Lúcia, 28/II/1943), o Céu desencadeia aqui uma verdadeira mobilização geral contra esta indiferença que nos gela o coração e agrava a miopia do olhar. Não queiramos ser uma esperança abortada! A vida só pode sobreviver graças à generosidade de outra vida”. (…)
«Sob a protecção de Maria, sejamos, no mundo, sentinelas da madrugada que sabem contemplar o verdadeiro rosto de Jesus Salvador, aquele que brilha na Páscoa, e descobrir novamente o rosto jovem e belo da Igreja, que brilha quando é missionária, acolhedora, livre, fiel, pobre de meios e rica no amor.»
2. O que nunca se poderia esperar que um dia viesse a ser proclamado em Fátima, por um Papa, aconteceu numa homilia de completo desassossego das untuosas orações e invocações do costume. Maria, a subversiva do Magnificat, que Maurras agradecia que fosse cantado em latim para que ninguém o pudesse entender, apareceu, finalmente, em Fátima:
 “Peregrinos com Maria… Qual Maria? Uma «Mestra de vida espiritual», a primeira que seguiu Cristo pelo caminho «estreito» da cruz dando-nos o exemplo, ou então uma Senhora «inatingível» e, consequentemente, inimitável? A «Bendita por ter acreditado» (cf. Lc 1, 42.45) sempre e em todas as circunstâncias nas palavras divinas, ou então uma «Santinha» a quem se recorre para obter favores a baixo preço? A Virgem Maria do Evangelho, venerada pela Igreja orante, ou uma esboçada por sensibilidades subjectivas que A vêem segurando o braço justiceiro de Deus pronto a castigar: uma Maria melhor do que Cristo, visto como Juiz impiedoso; mais misericordiosa que o Cordeiro imolado por nós? Grande injustiça fazemos a Deus e à sua graça, quando se afirma, em primeiro lugar, que os pecados são punidos pelo seu julgamento, sem antepor – como mostra o Evangelho – que são perdoados pela sua misericórdia! Devemos antepor a misericórdia ao julgamento e, em todo o caso, o julgamento de Deus será sempre feito à luz da sua misericórdia”.
3. Como essas homilias do Papa são textos e proclamações de desassossego, o método para que fique tudo como dantes, na tranquilidade de quem desvia os olhos da terra, é preciso não as ler, não as meditar, não as propor. Fazer de conta que foram desabafos de um simples peregrino habituado a ter os olhos abertos para todas as periferias existenciais.

Este Papa é um pouco estranho. Parece não acreditar que as viagens de uma imagem peregrina de N. Senhora possam substituir uma Igreja de saída. Para ele tem de ser um hospital de campanha, pronto a socorrer os que a indiferença deixou abandonados nas valetas da vida. E para nós?
Frei Bento Domingues O.P.
in Público 08.10.2017

01 outubro 2017

Tranquilizar ou desassossegar Fátima? (1)

      1. Fátima nunca mais é o título de um livro militante do padre Mário de Oliveira. Fátima cada vez mais, passados 100 anos, goste-se ou não, é o panorama do que está acontecer. Porque será?
    Conheço Fátima desde 1947, onde também vivi, em épocas bastante diferentes. Contactei, muitas vezes, com os familiares dos pastorinhos, a começar pelos pais da Jacinta. Ao longo do tempo, fui lendo o que se escrevia sobre o fenómeno. Já apresentei, até por escrito, as minhas impressões que não foram sempre as mesmas.
     O primeiro sentimento foi de algo banal e triste, estranho e inverosímil. Como era possível que Nossa Senhora viesse pedir mais sacrifícios a uns pobres e inocentes pastorinhos, para reparar um Deus ofendido por pecados que não eram deles? Porque não foi ela ter com esses que cometiam pecados tão grandes que deixavam o coração de Deus em sangue? Um colega mais velho respondeu-me: na religião isto é tudo ao contrário. Talvez, mas não é justo!
      Tentando, depois, entender o que tudo aquilo tinha, e tem, de assustador e cordial, nos limites das catequeses primárias e dos crescentes movimentos devocionais da época, as perplexidades aumentaram.
      Dizer que se trata de um dos fenómenos religiosos mais relevantes do seculo XX, nascido no seio do catolicismo popular português, enquadrado pela hierarquia eclesiástica, desenvolvido no quadro de uma luta católica pela liberdade da Igreja e num quadro mundial de guerras, a abordagem de Fátima dispõe, hoje, além da documentação de propaganda, apologética e contestatária, de documentação crítica e de obras de interpretação, de diversa índole, e fácil acesso. Desse conjunto, saliento: A nível da História, destaco Fátima do Bispo Carlos Azevedo[1]. Com a Senhora de Maio[2], António Marujo e Rui Paulo da Cruz, conseguiram uma Fátima, a muitas vozes, dissonantes. O pequeno Dicionário de Helder Guégués[3] revela-se muito útil. Ana André e Sara Capelo registaram as vozes dos que percorrem quilómetros e quilómetros, a pé, até ao Santuário[4]. Fátima é diferente para todos.
       Podemos saber de 1917 a 2017 – sem contar com as anteriores narrativas das aparições angélicas - como tudo aconteceu e se desenvolveu ao longo de um século, mas continuo longe de qualquer síntese explicativa. Tenho, pelo contrário, outra pergunta: os cenários espectaculares e as publicações que prepararam e acompanham o ano de 2017 vão coroar ou desassossegar uma narrativa centenária?
      2. Dir-se-á que a resposta a essa pergunta exige ter em conta outras que não cabem nesta crónica, como por exemplo: que ganhou e que perdeu o catolicismo português com Fátima? É uma questão real, mas carregada de ambiguidades, pois, entre os golpes militares de 1910, de 1928 e de 1974, Portugal mudou e a relação com o fenómeno religioso também.
O Concílio Vaticano II é a data incontornável da Igreja no século XX. Em certos países foi preparado por diversos movimentos, nomeadamente, de novas experiências ao nível da evangelização, da pastoral, da liturgia e do debate teológico. Os representantes episcopais da Igreja portuguesa apresentaram-se sem propostas de alteração do rumo do catolicismo. Alguns tiveram o desplante de afirmar que nós já estávamos muito à frente desse concílio.
      O Vaticano II deixou que ficassem em aberto, para o pós-concilio, várias questões, entre elas, as da moral familiar, dos ministérios ordenados e do exercício dos direitos humanos no interior da Igreja. O resultado foi dramático. Em vez da alegria da evangelização do mundo contemporâneo, em todos os continentes, Roma ocupou-se em ocultar as reformas urgentes no Vaticano e em impedir o debate aberto da moral familiar, da teologia da libertação e das experiências da inculturação da Fé e de abrir o debate sobre os ministérios ordenados das mulheres e dos homens casados. A primavera que João XXIII desejava transformou-se num prolongado inverno, um reino da esquizofrenia: por um lado, o impulso do Concílio e por outro uma série de medidas para o fazer esquecer.
      É conhecida essa história que a eleição do Papa Francisco tornou ainda mais evidente.
      3. Há quem diga que Fátima nos salvou. Quando uns dizem que nos livrou da II Guerra Mundial, outros apressam-se a lembrar a perda do império, as guerras coloniais, a miséria do povo e a imigração acelerada. Não vou entrar por aí. Seria demasiado fácil ter umas aparições à mão que nos servissem para resolver todos os problemas do país e do mundo. Uma propaganda dessas só poderia servir para desacreditar Fátima em toda a linha. Seria uma pseudo-substituição do país e das suas instituições.
Importa sublinhar que conseguiu uma grande vitória sobre a ideia de que a religião e a Igreja Católica, em Portugal, estariam no fim, em poucas décadas. Fátima é um grande centro de atracção no campo religioso. Não resolveu os nossos problemas sociais, económicos e políticos, nem devia. Realizou o melhor da laicidade: Portugal é um país laico, mas permite que todas as religiões possam aqui respirar à vontade.
      Fátima desenvolveu-se à margem da renovação cultural do país. Os grandes criadores da nossa literatura do século XX viveram divorciados de Fátima e Fátima deles. Mundos estranhos, salvo raríssimas excepções. Por outro lado, a cultura religiosa popular, catalisada pelos muitos santuários do país, onde convergia a devoção peregrinante e a romaria, a religião e a cultura da alegria estão bastante anestesiadas.
      Fátima vive da libertação interior de cada peregrino e isso é algo admirável e insubstituível. Fazer desse caminho o todo da inculturação da fé cristã, é o culto de uma espiritualidade de olhos fechados.
      Fátima precisa de se tornar o novo livro do Desassossego.
      Frei Bento Domingues O.P.
      in Público 01.10.2017




[1] Fátima. Das visões dos pastorinhos à visão cristã, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2017. Já tinha dirigido o Dicionário e História Religiosa de Portugal, presidido à Comissão Científica da Documentação Crítica de Fátima e coordenado, com Luciano Cristino, a Enciclopédia de Fátima. Conseguiu, em pouco mais de 200 páginas, um texto que se recomenda pelo seu rigor e sobriedade.
[2] Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2017.
[3] Factos e Figuras de Fátima. Um Dicionário, Clube do Livros, Lisboa, 2017
[4] Peregrinos, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2017.