1. Não há palavras inocentes. A sua significação depende do seu uso. Subversão evoca uma turbulência que, aparentemente, não ficaria bem numa missa. O culto obedece a um ritual pré-estabelecido e intocável. Não suporta o imprevisível. Em certas concepções da sagrada liturgia, o próprio Deus deve deixar-se de fantasias e seguir à risca o que está mandado e aprovado pela competente autoridade religiosa.
No campo católico, a reforma litúrgica do Vaticano II, sem perder o sentido plural da ritualidade, tentou vencer a doença da obsessão ritualista. O fundamentalismo de uns, a incultura de outros, a preguiça e a mediocridade geral têm dificultado os caminhos de uma genuína criatividade. Em nome da ortodoxia e da piedade, está a ressurgir, em alguns grupos e paróquias, a mentalidade restauracionista.
Este é um caminho de ignorância. A linguagem e os gestos litúrgicos pertencem ao mundo simbólico, metafórico, poético em ruptura com a relação curta e congelada entre significante e significado. A linguagem sacramental é subversiva, alterante, transformadora. Por energia divina, faz acontecer o que diz no acto de dizer o indizível, se não lhe pusermos obstáculos.
2. O ritualismo, no espaço cristão, esquece a prática histórica de Jesus Cristo. Segundo as narrativas do Novo Testamento, Ele, como bom judeu, frequentava, ao Sábado, a Sinagoga. Aproveitava sempre esses momentos especiais para subverter a desumanidade em que tinham caído as instituições e os tabus do sagrado, do inviolável.[i] Para os adeptos da estrita observância, essas atitudes eram provocações tão graves que evidenciavam que Ele não podia ser um homem de Deus. Os prodígios que realizava manifestavam, claramente, que era um diabo disfarçado ao serviço de Beelzebu, o príncipe dos demónios.[ii]
Para o Nazareno, o dia consagrado a Deus deve ser o que celebra o acontecer actual da libertação e que fora transformado numa nova prisão. A tentação católica é sempre a de esquecer que o Domingo é para celebrar, de forma eficaz, a subversão de tudo o que mata a vida e a alegria. Liberta, em nós, o Espírito da ressurreição, fonte de insurreição.
Jesus levou muito tempo a encontrar o seu caminho. Frequentou o grupo liderado por João Baptista, um judeu indisposto com a religião do Templo, o centro de tudo. Depois de baptizado nessa opção teve uma experiência mística que lhe mostrou que a alternativa de João, uma figura extraordinária, não superava as asperezas do moralismo, ao querer mudar o ser humano sem subverter as representações de um Deus ameaçador.
Essa experiência mística continha uma revolução teológica que alterava o percurso que Jesus tinha vivido até esse momento. Do Céu, de Deus, não poderiam vir ameaças. Não interpretou, porém, as “declarações de amor”, como algo de pessoal e intransmissível. Descobriu, nelas uma vocação: mostrar que o mapa da salvação e da condenação estava mal desenhado. Excluídos – e a precisar de conversão - eram aqueles que excluíam, que classificavam os outros como pecadores, e a si próprios como justos. Jesus dirá que sabiam ver, muito bem, um argueiro no olho do vizinho e não enxergavam a trave que tinham nos próprios olhos.
Jesus, ao ser acusado de comer com os pecadores, expunha-se a ser considerado um deles e a desclassificar a sua pregação da proximidade do reino de Deus. Subvertia, assim, toda a ordem religiosa, moral e antropológica. Era o próprio Deus que fazia suas, as más companhias de seu Filho.
3. Os discípulos nunca perceberam o que o Mestre pretendia, porque nunca captaram o Espírito que O animava, nem mesmo depois da Sua morte e ressurreição. Continuaram a perguntar-se quando é que chegaria a sua vez.[iii] O próprio Jesus acabou por desistir pois nenhuma explicação poderia alterar a ambição do poder. Teriam de passar pela experiência espiritual que Ele próprio teve depois do baptismo, o dom do mesmo Espírito, a nova lei. Sem a subversão da festa judaica do Pentecostes, da Lei do Sinai, não haveria a festa de todos os povos de todas as línguas e culturas. É o anúncio da única globalização desejável, a do Espírito que tudo fecunda, sem nada apagar.
Para não renegar o Pentecostes cristão foi preciso convocar um Concílio que abrisse Jerusalém às novas e imprevisíveis experiências do Espirito Santo, que nunca pede licença às autoridades da Igreja para as suas surpreendentes iniciativas.[iv]
No século XX, João XXIII percebeu que sem um concílio ecuménico não haveria aggiornamento possível. Uma igreja, mesmo numerosa, pode tornar-se um ghetto. Fala, mas não vê nem ouve. Exclui.
O mundo não parou em 1965. Para se tornar católica, a Igreja no seu devir na história humana, tem de rever, continuamente, as suas posições. Não pode dizer que não há alternativas. As configurações actuais dos ministérios ordenados, já não correspondem ao que deles se deve exigir, para estarem abertos às surpresas do Espírito de Cristo, que não é exclusivo dos homens. A exigência desta mudança e da reforma da Cúria estão interligadas.
Frei Bento Domingues, O.P.
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