Frei Bento Domingues, O. P.
1. Aconselharam-me
a ter cuidado com o modo como são abordadas as problemáticas levantadas pelo
Sínodo sobre a Família, pois a Igreja não pode dar a imagem de que tanto
abençoa casamentos como divórcios ou recasamentos.
Observação sábia. Não me parece, no entanto, que nos encontremos
perante esse perigo. Receio algo diferente: que o descuido dos católicos com a
significação da complexidade do que está acontecer possa levar à indiferença, à
banalização ou a diagnósticos e remédios que matam.
As religiões são expressões públicas e sociais da fé. O legalismo e o
ritualismo tendem a envenenar a sua vida concreta. Chegam a querer substituir-se
à liberdade de Deus e à consciência humana. A lei e o ritual pretendem traçar o
caminho a Deus e aos seres humanos: ou passam por ali ou não passam.
Jesus rompeu com essa concepção fundamentalista. O encontro de Deus
connosco não segue apenas nem principalmente o traçado das cerimónias do culto.
O serviço desinteressado dos mais necessitados é o seu teste inequívoco (Mt 25, 34-38). O próprio
catolicismo precisa de ser continuamente evangelizado.
Sendo
esta a realidade cristã, para que perder tempo com os rituais litúrgicos?
Talvez porque somos humanos.
2. Tomás
de Aquino, no comentário à primeira carta de S. Paulo aos Coríntios (c 15),
sobre a ressurreição, tem uma posição arrepiante para os espiritualistas: a
salvação da minha alma não é a minha salvação, pois a minha alma não é o meu eu
(anima mea non est ego).
Ao
dizer isto não tenta oferecer uma explicação da vida depois da morte, da qual
não sabe nada. Parte da convicção de que a morte não pode ser a última palavra
do itinerário humano. A salvação não pode ser entendida como a reanimação de um
cadáver.
O
ser humano é uma viva corporeidade
espiritual e um espírito corporal.
São duas dimensões de uma única e mesma realidade. Esta perspectiva recusa
qualquer dualismo, pois não se trata de um anjo
caído no mundo. Numa óptica cristã, a expressão “salvação das almas” tem
inconvenientes antropológicos, cristológicos e litúrgicos insuperáveis. As
celebrações sacramentais implicam uma corporeidade sensitiva e expressiva
marcada pela cultura e pela história. A inculturação litúrgica não é um luxo. É
uma condição de verdade.
Nos
debates do seu tempo, acerca da definição dos sacramentos cristãos, Tomás de
Aquino inscreveu-a no vasto mundo da simbólica, em todos os seus registos. A
diminuição da consistência sensível dos signos sacramentais é um atentado à sua
significação divina e humana. A sua primeira eficácia depende da capacidade de
evocação - uma exterioridade que acorda para uma interioridade -, para um
acontecimento de graça, de transformação da vida. O enfraquecimento da
densidade simbólica é meio caminho andado para a
mecânica da magia: faz-se o truque e
acontece.
A celebração dos sacramentos implica uma tríplice significação: a evocação de
um acontecimento do passado, a sua eficácia presente e a abertura a um futuro
sem clausura. Na Eucaristia, o sacramento dos sacramentos, quando lemos as
narrativas evangélicas, começamos sempre por dizer: Naquele tempo. Não é para nos instalar no passado, mas para o confrontar
com o nosso presente. Não temos de resolver questões de há dois mil anos, mas
perguntar: que haverá, no que aconteceu há dois mil anos, que nos possa ajudar
a desassossegar o nosso presente?
Temos
a ideia de que o passado passou e acabou. S. Tomás, ao abordar os mistérios da
vida de Cristo, perguntava: como poderão esses acontecimentos salvar o nosso
tempo? A resposta tem sentido: Jesus estava completamente na onda de Deus e,
por isso, a sua intervenção histórica, o amor que a percorria, atinge todos os tempos e lugares.
3. Tantas
voltas para quê? No Tablet (1), o cardeal Walter Kasper,
é confrontado com o acesso dos católicos recasados à comunhão eucarística. Sabe
muito bem que há situações diferentes, mas o que, em última análise, deve
contar nas atitudes de toda a Igreja é a misericórdia. Não está a dizer nada de
novo, não só do ponto de vista bíblico, como na sistematização teológica. A misericórdia efectiva é o que de melhor podemos
dizer de Deus (2)
Todos
estão de acordo que a simbólica da Eucaristia é a da refeição partilhada. Não
há quem negue que o sacramento da Eucaristia, do princípio ao fim, é a maior
celebração da misericórdia, do perdão, da reconciliação. Na própria consagração
do vinho diz-se, explicitamente: Tomai,
todos, e bebei: Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna
aliança que será derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados.
Fazei isto em memória de Mim.
Como
esquecer a memória das refeições de Jesus com os classificados como pecadores
(Mc 2, 15-17; Mt 9, 10-013; Lc 5, 29-32)?
Surge
a interrogação: Porque come ele com os
publicanos e com os pecadores? Ouvindo isto, Jesus responde: Não são os que têm
saúde que precisam de médico, mas os doentes. Eu não vim chamar os justos, mas
os pecadores. Ironia divina.
Continuaremos.
Público, 28.09.2014
(1) The case for mercy, Jornal The Tablet, ed. de 20 de Setembro, entrevista mensal
(2) Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, 21, 3