Texto escrito e lido por Filipa Lowndes Vicente no dia 29 de Abril de 2015 na missa de sétimo dia de sua mãe, Ana Vicente, na Igreja do Convento de São Domingos, Alto dos Moinhos, Lisboa.
Não vos vou falar da minha perda, do amor profundo e cúmplice
que sentia e sinto pela minha mãe, nem como me sinto uma órfã de 43 anos, a
aprender a viver esta segunda parte da vida em que sou mãe mas já não posso
ouvir a palavra "filha". Muitas das pessoas presentes sabem do que
falo. Não somos as primeiras nem seremos as últimas.
Também não
vos vou contar como, numa comunhão absurda e misteriosa, me senti fisicamente
doente durante todos estes últimos meses em que a doença da minha mãe lhe
começou a coartar os sentidos, as vontades e os gestos: jantar fora com o meu
pai e os amigos; viajar; os concertos na Gulbenkian; as reuniões do Nós Somos
Igreja e do grupo de autoajuda para doentes oncológicos que criara há poucos
anos; o trabalho diário em forma de escrita - artigos de opinião, emails, mas
também os livros, projectos intelectuais que sabia começar, acabar e gozar; os
almoços com as tantas amigas, queridas; a leitura dos livros e jornais que
transbordavam sempre da mesa de cabeceira; ou olhar para as ondas selvagens do
Guincho ao fim da tarde. Só quando deixou de poder fazer tudo aquilo que lhe
enchia a vida e que foi capaz de fazer plenamente durante todos estes anos, é
que partiu. Quando quis partir.
Disse várias
vezes à minha mãe, a brincar, como na sua forma de ser inclassificável e pouco
convencional, ela combinava o melhor de ser inglesa e portuguesa. Sei que a
minha mãe, no seu optimismo pragmático, agora diria, "não há nada a fazer,
não vale a pena lamentarmo-nos e vamos, sim, tentar ser positivos". E eu,
como a menina obediente que nunca tive que ser, porque a minha mãe também fez
da maternidade uma forma de liberdade e de aceitação, vou agora tentar "obedecer-lhe",
tentando transformar a minha tristeza nos três verbos que a moviam, sempre
entrelaçados uns nos outros: escrever, rezar e agir. A palavra escrita, a
palavra em prece e a acção. Uma forma de a lembrar-mos é a de todas, e todos
nós, pormos estes verbos ao serviço de algumas das causas pelas quais lutou,
naquele seu modo único de ser combativa e serena, subversiva e paciente:
1. Em primeiro lugar, e central a todas as outras
inquietações, a sua consciência feminista, os direitos das mulheres, local e
globalmente, nas suas relações com todas as dimensões sociais, políticas,
religiosas, jurídicas ou culturais. Os modos como não só nunca teve medo da palavra
"feminista", como a imbuiu dos sinónimos de justiça, direitos
humanos, e prática cristã.
2. Em segundo lugar, as formas como fez da Igreja Católica
também a sua Igreja, como a sua fé, sempre forte, ao serviço de uma
transformação: o sacerdócio das mulheres, e as mulheres, em geral; uma nova posição
face à sexualidade, ao planeamento familiar, à orientação sexual; uma Igreja
mais pobre, próxima, e pacífica.
3. Em terceiro lugar, e através do "Projecto Vida",
as alternativas à toxicodependência numa década em que a droga se tornou uma
história portuguesa que marcou tantas vidas - a daqueles que a viveram e a das
pessoas que lhes eram próximas, também dos milhares de crianças que hoje ainda
vivem em instituições públicas portuguesas.
4. A protecção legal, social e afectiva dos mais frágeis -
dos idosos, das crianças, e das pessoas com deficiência que estão a cargo do
Estado - tal como a necessidade de um novo empenho institucional e político em
relação à adopção foram outras esferas profissionais que mereceram o seu
empenho. Na sua acepção holística e aberta de todas as esferas humanas, a minha
mãe não sabia isolar os "problemas sociais". As crianças sem a
presença e o amor das mães e dos pais, a violência física contra as mulheres
por parte de ex-namorados, maridos e ex-maridos, a pobreza, a droga, a maior
fragilidade salarial ou laboral das mulheres, muitas vezes cruzam-se numa só
pessoa ou numa só família. Proteger e defender os direitos daqueles que têm
menos voz e menos poder foi outra das suas formas de ser cristã.
5. O cancro surgiu como mais uma causa, claro. A fragilidade
transformada em força. Não apenas a sua força, mas uma força partilhada com outras
pessoas. Criou o grupo de autoajuda de doentes e pessoas próximas de doentes
oncológicos e estava no processo de criar um grupo de apoio a pessoas em fim de
vida. Quem é que toma conta das pessoas que tomam conta de outras e ficam
doentes? Quem acompanha e apoia aqueles, muitos, que estão sozinhos e ficam
doentes? A dignidade na morte, foi assim uma das suas últimas causas. Sobre a
qual escreveu, rezou, agiu, mas também viveu. Viveu a sua morte com a dignidade
que queria. E rodeada de muitas formas de amor. Os abraços e as palavras, de
quem gostava dela têm sido para mim um enorme conforto.
A minha mãe morreu no dia em que cerca de 1000 pessoas também
morreram nas águas do Mediterrâneo. Eu só me apercebi da dimensão do que tinha
acontecido uns dias depois, porque a história é feita pela simultaneidade de
muitos tempos e muitos lugares, e a nossa história individual e o nosso
sofrimento tende a sobrepor-se às histórias alheias. A minha mãe tinha o dom de
cruzar a sua história, e o seu caminho, com as histórias das pessoas com nome
ou sem nome que lhe estavam próximas, ou que estavam do outro lado do mundo.
Teria escrito um artigo para o Público
sobre estas mil pessoas que não tiveram a possibilidade de ter a dignidade na
morte. Agora que a minha mãe está no
outro lado do caminho, já não pode escrever. Mas a sua força, as suas
lutas, a sua serenidade, o seu sorriso, a sua fé podem continuar a motivar-nos
para fazer deste o tal mundo melhor de que falava o seu querido amigo Frei
Bento Domingues.
Filipa Lowndes Vicente
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