Frei Bento Domingues, O.P.
1. Quem decide casar, seja pelo civil seja pela Igreja, é obrigado a marcar uma data. É por isso que existe um antes de casados e um depois de casados. Banalidade das banalidades. As instituições têm normas. Mas esta evidência jurídica não deve esconder as misteriosas dimensões humanas e cristãs de laços que se desenvolvem no tempo e que nenhum tempo explica.
O casamento é um processo infinitamente mais complexo do que o processo civil e religioso. Para não morrer, tem de ir crescendo sempre nos noivos e no casal. Aquilo a que normalmente se chama o casamento é apenas a Festa de uma realidade que só pode ser bem conjugada no gerúndio. As pessoas que se acolhem como casal serão lúcidas se perceberem que ganham em ir casando cada vez mais, nas diferentes etapas da vida, preparando-se, nos dias calmos, para o imprevisível.
Se for verdade, como diz A. Bessa Luís, que as famílias são férteis em tensões e desajustes e que, sem conflitos, a família não subsistiria, então o casal, para ter futuro, precisa da conversão permanente à escuta recíproca, ao diálogo e ao perdão, sabendo que seremos sempre um mistério para nós próprios e para os outros. A ambição da transparência total é o engano de almas lisas.
Era ainda criança, mas lembro-me, como se fosse hoje, das conversas que provocou na minha aldeia uma pregação do padre Domingos, que depois foi Bispo da diocese da Guarda. Pregava contando histórias exemplares e parábolas semeadas de aforismos que tinham tanto de rústico como de prático. Num dos sermões, conhecendo a realidade local, resolveu falar, com muitos pormenores hilariantes, sobre três modelos de gestão familiar: a do varão - manda ele e ela não; o da varunca - manda ela e ele nunca; o da varela – manda ele e ela!
A questão mais difícil não é saber quem manda, mas o que comanda, em profundidade, as reacções de um casal que sonhou com um paraíso.
2. Nos debates em torno do Sínodo dos Bispos sobre a Família, alguns parecem obcecados pela indissolubilidade e pela impossibilidade de uma segunda celebração cristã do casamento. Nota-se pouca atenção aos seus modelos culturais e religiosos, no passado e no presente. Mesmo no âmbito da tradição cristã, podem observar-se diversos paradigmas.
Nem o Antigo nem o Novo Testamento impõem uma estrutura determinada e fixa. A partir da experiência cristã, em confronto com outras culturas, numa época de globalização, é normal que se pense, dentro do próprio cristianismo, em instituições mais aptas para a família e para o casal europeu, latino-americano, africano e asiático.
Embora de forma muito esquemática e rápida, importa passar os olhos pelos traços essenciais da sua história como convite para leituras especializadas[1].
Nos séculos I-III, o casamento era uma questão terrena que se procurava viver em espírito cristão: casava-se no “Senhor”, sem cerimónias próprias. Os cristãos casavam-se como os não cristãos: uns, segundo os ditames do Direito Romano, outros conforme os costumes locais (o direito consuetudinário). O grande cuidado a ter era com os ritos e sacrifícios pagãos que estivessem em contradição com a mensagem cristã.
Nos séculos IV-XI foi-se elaborando uma liturgia cristã, em duas fases: os esponsais e o casamento. As formas não eram obrigatórias. Obrigatória era a Bênção. Entretanto, foram-se introduzindo as formas civis no direito eclesiástico.
Pelo ano mil, todas as questões relativas ao casamento passaram para a jurisdição eclesiástica. Em suma: antes do ano mil, os cristãos casam-se de modos diversos: uns, segundo um rito cristão (direito eclesiástico); outros, segundo o direito civil; outros, segundo os costumes locais; outros ainda, clandestinamente.
Nos séculos XI-XV, produziu-se uma teologização e uma eclesiologização do casamento. O debate teológico sobre a sua essência agudizou-se. Toda a jurisdição do casamento passou para a Igreja, que ficou a regulamentar até os seus efeitos civis. Acabou assim por subsistir apenas o casamento religioso e o clandestino.
No Concílio de Trento (1545-1563), o casamento tornou-se numa instituição da fé. Todas as causas são transferidas para os tribunais eclesiásticos. É invalidado o casamento clandestino, dada a dificuldade dos tribunais em determinar qual era a esposa legítima de determinado varão comprometido, ao mesmo tempo, com várias mulheres.
3. F. Xavier de la Torre, da U. Pontifícia de Comillas, recorda que essa razoável proibição não pode fazer esquecer que, durante 15 séculos, a cerimónia não era uma exigência e, em termos teológicos, não tem de lhe estar associada. Isto permite-lhe destacar o valor luminoso do casamento e entender a crise de uma certa institucionalização. A trilogia sempre unida de casal, casamento e família, fragmentou-se. O adeus à Família é, no entanto, precipitado. De modos diversos, todos a procuram.
Jesus de Nazaré rejeita apenas a família como um mundo fechado, um egoísmo mais ou menos alargado, esquecida do nosso parentesco universal.
Público, 14.06.2015
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[1] Gabino Uríbarri, SJ (ed),La família a la luz de la misericordia, Sal Terrae, 2015, Santander.
1. Quem decide casar, seja pelo civil seja pela Igreja, é obrigado a marcar uma data. É por isso que existe um antes de casados e um depois de casados. Banalidade das banalidades. As instituições têm normas. Mas esta evidência jurídica não deve esconder as misteriosas dimensões humanas e cristãs de laços que se desenvolvem no tempo e que nenhum tempo explica.
O casamento é um processo infinitamente mais complexo do que o processo civil e religioso. Para não morrer, tem de ir crescendo sempre nos noivos e no casal. Aquilo a que normalmente se chama o casamento é apenas a Festa de uma realidade que só pode ser bem conjugada no gerúndio. As pessoas que se acolhem como casal serão lúcidas se perceberem que ganham em ir casando cada vez mais, nas diferentes etapas da vida, preparando-se, nos dias calmos, para o imprevisível.
Se for verdade, como diz A. Bessa Luís, que as famílias são férteis em tensões e desajustes e que, sem conflitos, a família não subsistiria, então o casal, para ter futuro, precisa da conversão permanente à escuta recíproca, ao diálogo e ao perdão, sabendo que seremos sempre um mistério para nós próprios e para os outros. A ambição da transparência total é o engano de almas lisas.
Era ainda criança, mas lembro-me, como se fosse hoje, das conversas que provocou na minha aldeia uma pregação do padre Domingos, que depois foi Bispo da diocese da Guarda. Pregava contando histórias exemplares e parábolas semeadas de aforismos que tinham tanto de rústico como de prático. Num dos sermões, conhecendo a realidade local, resolveu falar, com muitos pormenores hilariantes, sobre três modelos de gestão familiar: a do varão - manda ele e ela não; o da varunca - manda ela e ele nunca; o da varela – manda ele e ela!
A questão mais difícil não é saber quem manda, mas o que comanda, em profundidade, as reacções de um casal que sonhou com um paraíso.
2. Nos debates em torno do Sínodo dos Bispos sobre a Família, alguns parecem obcecados pela indissolubilidade e pela impossibilidade de uma segunda celebração cristã do casamento. Nota-se pouca atenção aos seus modelos culturais e religiosos, no passado e no presente. Mesmo no âmbito da tradição cristã, podem observar-se diversos paradigmas.
Nem o Antigo nem o Novo Testamento impõem uma estrutura determinada e fixa. A partir da experiência cristã, em confronto com outras culturas, numa época de globalização, é normal que se pense, dentro do próprio cristianismo, em instituições mais aptas para a família e para o casal europeu, latino-americano, africano e asiático.
Embora de forma muito esquemática e rápida, importa passar os olhos pelos traços essenciais da sua história como convite para leituras especializadas[1].
Nos séculos I-III, o casamento era uma questão terrena que se procurava viver em espírito cristão: casava-se no “Senhor”, sem cerimónias próprias. Os cristãos casavam-se como os não cristãos: uns, segundo os ditames do Direito Romano, outros conforme os costumes locais (o direito consuetudinário). O grande cuidado a ter era com os ritos e sacrifícios pagãos que estivessem em contradição com a mensagem cristã.
Nos séculos IV-XI foi-se elaborando uma liturgia cristã, em duas fases: os esponsais e o casamento. As formas não eram obrigatórias. Obrigatória era a Bênção. Entretanto, foram-se introduzindo as formas civis no direito eclesiástico.
Pelo ano mil, todas as questões relativas ao casamento passaram para a jurisdição eclesiástica. Em suma: antes do ano mil, os cristãos casam-se de modos diversos: uns, segundo um rito cristão (direito eclesiástico); outros, segundo o direito civil; outros, segundo os costumes locais; outros ainda, clandestinamente.
Nos séculos XI-XV, produziu-se uma teologização e uma eclesiologização do casamento. O debate teológico sobre a sua essência agudizou-se. Toda a jurisdição do casamento passou para a Igreja, que ficou a regulamentar até os seus efeitos civis. Acabou assim por subsistir apenas o casamento religioso e o clandestino.
No Concílio de Trento (1545-1563), o casamento tornou-se numa instituição da fé. Todas as causas são transferidas para os tribunais eclesiásticos. É invalidado o casamento clandestino, dada a dificuldade dos tribunais em determinar qual era a esposa legítima de determinado varão comprometido, ao mesmo tempo, com várias mulheres.
3. F. Xavier de la Torre, da U. Pontifícia de Comillas, recorda que essa razoável proibição não pode fazer esquecer que, durante 15 séculos, a cerimónia não era uma exigência e, em termos teológicos, não tem de lhe estar associada. Isto permite-lhe destacar o valor luminoso do casamento e entender a crise de uma certa institucionalização. A trilogia sempre unida de casal, casamento e família, fragmentou-se. O adeus à Família é, no entanto, precipitado. De modos diversos, todos a procuram.
Jesus de Nazaré rejeita apenas a família como um mundo fechado, um egoísmo mais ou menos alargado, esquecida do nosso parentesco universal.
Público, 14.06.2015
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[1] Gabino Uríbarri, SJ (ed),La família a la luz de la misericordia, Sal Terrae, 2015, Santander.
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