Frei Bento Domingues, O. P.
1. Compreendo o desejo, manifestado por alguns leitores, de não terem encontrado na crónica do Domingo passado a transcrição integral dos referidos 10 princípios para um novo humanismo de J. Kristeva. Talvez não tenham reparado que deixei, em nota, a forma fácil de recorrer à sua tradução brasileira [1].
Estas crónicas nunca poderão superar o seu carácter fragmentário. A abordagem dos acontecimentos ou dos temas selecionados pretende apenas sugerir que é preciso pensar, questionar e debater se não quisermos ser vítimas dos arsenais mediáticos, mais ou menos sofisticados, vozes diversas do mesmo intuito de dominação.
Para Kristeva, a refundação do humanismo não é nem um dogma providencial, nem um jogo de ideias. Confessa que se trata de uma aposta, isto é, da coragem de apostar na renovação contínua das capacidades dos homens e das mulheres, juntando crer e saber no “multi-universo”, cercado de vazio.
Pertence ao novo humanismo o cuidado amoroso do outro, o cuidado ecológico da Terra, a educação dos jovens, a assistência aos doentes, aos deficientes, aos idosos, aos fracos.
O novo humanismo não será um regulador do liberalismo. Ao contrário, será capaz de o transformar, sem inversões apocalípticas ou promessas de futuros gloriosos. Não cede nem ao delírio nem ao niilismo.
Por outro lado, não tem um discurso fechado, seja em relação ao passado, ao presente ou ao futuro. É uma aposta de trabalho, um caminho de abertura e participação na revolução antropológica em curso, carregada de promessas e ameaças. Ao juntar ousadia e humildade, criatividade e reavaliações permanentes torna-se a via da sabedoria. O poder de dominação é a droga e o veneno dos sonhos e projectos imperiais.
Por que razão, perguntava Rousseau, apenas o ser humano corre o risco de se tornar imbecil? Ele conhecia a resposta: pode cometer os maiores excessos, quer no mal quer no bem, por que não é guiado apenas pelo determinismo da Natureza. Custa-lhe, por outro lado, tomar consciência da sua finitude, do tempo que passa e da morte que o espreita. Tanto o culto de uma religião alienante, como a rendição à pura imanência, não respeitam a complexidade da condição humana.
2. Malebranche dizia que entre todas as ciências humanas, a do homem é a mais digna dele, mas não é nem a mais cultivada nem a mais desenvolvida. Kant, o grande filósofo da modernidade, assinalou, com agudeza, a tarefa de uma antropologia filosófica que deve responder a quatro questões: 1ª, que posso eu conhecer? 2ª, que devo eu fazer? 3ª, que me é permitido esperar? e 4ª, o que é o homem?
À primeira pergunta, corresponde a metafísica, a moral à segunda, a religião à terceira, à quarta corresponde a antropologia. Acrescenta: todas estas disciplinas podem ser reconduzidas à antropologia, pois as três primeiras desaguam na última.
Kant nunca chegou a escrever essa obra. Como diz Martin Buber, embora tivesse nos seus escritos um conjunto de preciosas observações sobre o conhecimento do homem, não abordou nenhum dos problemas que a antropologia implica: o lugar especial do homem no cosmos, a sua relação com o destino e com o mundo das coisas, a compreensão dos seus semelhantes, a sua existência como a de quem sabe que há-de morrer, a sua atitude em todos os encontros, correntes e extraordinários, perante o mistério.
Podemos, hoje, lamentar a linguagem machista destes filósofos. Nunca poderiam ter convivido com os movimentos feministas. A questão de fundo era outra: a diversidade sexual não era importante para a antropologia filosófica corrente. Entretanto, muita água correu sob as pontes e a transformação e a diversificação das ciências antropológicas mudaram completamente o panorama. J. Kristeva pode agora escrever: O humanismo é um feminismo.
3. A proposta do Papa Francisco assume muito bem esta aposta assim como a de muitos outros cientistas, pensadores e activistas sociais. A Laudato Si desenvolve e integra a convicção de que tudo está estreitamente ligado no mundo. A visão holística fica integrada no pensamento social da Igreja. Esta perspectiva responsabiliza a política local e internacional pela casa comum, nosso bem-comum. Tudo isso será bem acolhido pelos crentes e não crentes que procuram uma orientação de responsabilidade inter-geracional para todas as dimensões da vida humana. A originalidade do Papa Francisco não consiste apenas em apresentar uma proposta que tem tido uma repercussão absolutamente extraordinária, apesar de todas as resistências encontradas, dentro e fora da Igreja. O que ele tem feito é ajudar a ver que nada pode ser resolvido se não encararmos o mundo a partir dos excluídos, seja qual for o género de exclusão. Mas mesmo isso podia ser apenas um enunciado doutrinal. O que ele faz é uma convocatória universal. Mas uma convocatória é sempre para os outros. Ele tornou-se, pela sua prática de vida pessoal e pastoral, uma convocatória. É possível ser e viver de outra maneira. Ele é uma profecia em acção.
Público, 11.10.2015
[1] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/502342-um-novo-humanismo-em-dez-principios-artigo-de-julia-kristeva
1. Compreendo o desejo, manifestado por alguns leitores, de não terem encontrado na crónica do Domingo passado a transcrição integral dos referidos 10 princípios para um novo humanismo de J. Kristeva. Talvez não tenham reparado que deixei, em nota, a forma fácil de recorrer à sua tradução brasileira [1].
Estas crónicas nunca poderão superar o seu carácter fragmentário. A abordagem dos acontecimentos ou dos temas selecionados pretende apenas sugerir que é preciso pensar, questionar e debater se não quisermos ser vítimas dos arsenais mediáticos, mais ou menos sofisticados, vozes diversas do mesmo intuito de dominação.
Para Kristeva, a refundação do humanismo não é nem um dogma providencial, nem um jogo de ideias. Confessa que se trata de uma aposta, isto é, da coragem de apostar na renovação contínua das capacidades dos homens e das mulheres, juntando crer e saber no “multi-universo”, cercado de vazio.
Pertence ao novo humanismo o cuidado amoroso do outro, o cuidado ecológico da Terra, a educação dos jovens, a assistência aos doentes, aos deficientes, aos idosos, aos fracos.
O novo humanismo não será um regulador do liberalismo. Ao contrário, será capaz de o transformar, sem inversões apocalípticas ou promessas de futuros gloriosos. Não cede nem ao delírio nem ao niilismo.
Por outro lado, não tem um discurso fechado, seja em relação ao passado, ao presente ou ao futuro. É uma aposta de trabalho, um caminho de abertura e participação na revolução antropológica em curso, carregada de promessas e ameaças. Ao juntar ousadia e humildade, criatividade e reavaliações permanentes torna-se a via da sabedoria. O poder de dominação é a droga e o veneno dos sonhos e projectos imperiais.
Por que razão, perguntava Rousseau, apenas o ser humano corre o risco de se tornar imbecil? Ele conhecia a resposta: pode cometer os maiores excessos, quer no mal quer no bem, por que não é guiado apenas pelo determinismo da Natureza. Custa-lhe, por outro lado, tomar consciência da sua finitude, do tempo que passa e da morte que o espreita. Tanto o culto de uma religião alienante, como a rendição à pura imanência, não respeitam a complexidade da condição humana.
2. Malebranche dizia que entre todas as ciências humanas, a do homem é a mais digna dele, mas não é nem a mais cultivada nem a mais desenvolvida. Kant, o grande filósofo da modernidade, assinalou, com agudeza, a tarefa de uma antropologia filosófica que deve responder a quatro questões: 1ª, que posso eu conhecer? 2ª, que devo eu fazer? 3ª, que me é permitido esperar? e 4ª, o que é o homem?
À primeira pergunta, corresponde a metafísica, a moral à segunda, a religião à terceira, à quarta corresponde a antropologia. Acrescenta: todas estas disciplinas podem ser reconduzidas à antropologia, pois as três primeiras desaguam na última.
Kant nunca chegou a escrever essa obra. Como diz Martin Buber, embora tivesse nos seus escritos um conjunto de preciosas observações sobre o conhecimento do homem, não abordou nenhum dos problemas que a antropologia implica: o lugar especial do homem no cosmos, a sua relação com o destino e com o mundo das coisas, a compreensão dos seus semelhantes, a sua existência como a de quem sabe que há-de morrer, a sua atitude em todos os encontros, correntes e extraordinários, perante o mistério.
Podemos, hoje, lamentar a linguagem machista destes filósofos. Nunca poderiam ter convivido com os movimentos feministas. A questão de fundo era outra: a diversidade sexual não era importante para a antropologia filosófica corrente. Entretanto, muita água correu sob as pontes e a transformação e a diversificação das ciências antropológicas mudaram completamente o panorama. J. Kristeva pode agora escrever: O humanismo é um feminismo.
3. A proposta do Papa Francisco assume muito bem esta aposta assim como a de muitos outros cientistas, pensadores e activistas sociais. A Laudato Si desenvolve e integra a convicção de que tudo está estreitamente ligado no mundo. A visão holística fica integrada no pensamento social da Igreja. Esta perspectiva responsabiliza a política local e internacional pela casa comum, nosso bem-comum. Tudo isso será bem acolhido pelos crentes e não crentes que procuram uma orientação de responsabilidade inter-geracional para todas as dimensões da vida humana. A originalidade do Papa Francisco não consiste apenas em apresentar uma proposta que tem tido uma repercussão absolutamente extraordinária, apesar de todas as resistências encontradas, dentro e fora da Igreja. O que ele tem feito é ajudar a ver que nada pode ser resolvido se não encararmos o mundo a partir dos excluídos, seja qual for o género de exclusão. Mas mesmo isso podia ser apenas um enunciado doutrinal. O que ele faz é uma convocatória universal. Mas uma convocatória é sempre para os outros. Ele tornou-se, pela sua prática de vida pessoal e pastoral, uma convocatória. É possível ser e viver de outra maneira. Ele é uma profecia em acção.
Público, 11.10.2015
[1] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/502342-um-novo-humanismo-em-dez-principios-artigo-de-julia-kristeva
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