1. Tornou-se um lugar-comum dizer que, na fonte de todas
as grandes tradições religiosas, existe uma experiência original do Mistério
Absoluto, ou de Deus, irredutível a qualquer categoria criada para o exprimir. Foi
o que tentei mostrar no domingo passado.
Mahatma
Gandhi estava convencido de que, se pudéssemos ler as escrituras das diversas
religiões, chegaríamos à conclusão de que todas elas estão de acordo nos seus
princípios básicos, úteis para todos.
Pode-se
perguntar se haverá alguém que possa viver, por dentro, as experiências de
todas as tradições religiosas nas suas diversas evoluções e interpretações? Duvido!
Será isso necessário para cultivar o respeito pela diversidade cultural e religiosa?
Creio que não. O que julgo indispensável é o questionamento ético dentro de
toda a actividade humana e, por isso, também dentro de todas as práticas
religiosas.
Para
o grande cientista, Francisco J. Ayala, professor de genética na Universidade
da Califórnia, o comportamento ético é determinado pela nossa natureza
biológica. Por comportamento ético, ele não entende a boa conduta, mas o imperativo de julgar as acções humanas
como boas ou más.
A
constituição biológica do ser humano determina-lhe a presença de três condições
necessárias - e, em conjunto, suficientes - para que se dê esse comportamento
ético: a capacidade de prever as consequências das suas próprias acções; a de
fazer juízos de valor; a de escolher entre linhas de acção alternativas. A
capacidade de estabelecer relação entre meios e fins é a aptidão básica que
permitiu o desenvolvimento da cultura e das tecnologias humanas.
Este cientista
sustenta que as normas morais e os códigos éticos não dependem da nossa
natureza biológica, mas da evolução cultural. As premissas dos nossos juízos
morais provêm da tradição religiosa e de outras tradições sociais, mas apressa-se
a acrescentar: os sistemas morais, assim como qualquer outra actividade
cultural, não podem sobreviver muito tempo se evoluem em franca contraposição
com a nossa natureza biológica[1].
2. Sem o exercício de uma ética intercultural é difícil
criar um clima de respeito mútuo que exija a recusa das tentações de dominação
económica, política, cultural e religiosa. Todas as tradições religiosas
precisam de viver em reforma permanente a partir do que existe de mais
humanizante em cada uma delas. Este é sempre um bom teste da sua autenticidade
mística, se não confundirmos uma pessoa mística com uma múmia.
Jesus
de Nazaré pôs em causa o que havia de mais sagrado na religião em que cresceu,
a partir de um postulado ético radical: o
Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. O dia de Deus,
para não se tornar o dia da suprema idolatria, tem de coincidir com o da promoção
da maior liberdade. As instituições que não seguem este critério metem os
humanos numa cadeia religiosa e fazem-lhes o que não fazem aos animais[2].
O
Papa Francisco, ao propor o Evangelho da
Alegria, como base das suas reformas libertadoras, encontrou um terreno
armadilhado com doutrinas e práticas pastorais, com sistemas de resistência, a
nível central e local, de cardeais, bispos, padres e leigos clericalizados e mais papistas que o Papa. Como Bergoglio
disse, o medo da alegria é uma doença do
cristão. São como aqueles animais, especificou o Papa, que conseguem sair
apenas de noite, porque à luz do dia não conseguem ver nada. São os cristãos morcegos[3].
3. Para Michael
Lonsdale, um grande actor de cinema e teatro, baptizado aos 22 anos, depois de uma
longa busca espiritual, confessa: Jesus é o coração da luz, a fonte de toda a
respiração humana. Este homem é, para mim, a verdade que não pode mentir. Li
muitos grandes textos espirituais, interessei-me por diferentes religiões e
sabedorias, muçulmanas, budistas ou vindas da Índia… Há coisas muito belas nos Upanishads, no Budismo e, sem dúvida,
nos filósofos que tenho dificuldade em ler. Com Cristo, eis-nos na única
religião onde o amor vem primeiro que tudo. Para mim, não há nada mais forte do
que as palavras de Jesus.
O ser
humano procura Deus. Há budistas maravilhosos, hindus com uma sabedoria
impressionante, mestres sufis… Senti-me muito feliz a gravar textos de Lao-Tsé
ou de Confúcio. Mesmo nas religiões primitivas como os Maias ou os Aztecas, a
humanidade aspira a este encontro com o divino, ficando por vezes disposta aos
gestos mais loucos.
(…)
Em toda a minha vida, aquilo que li mais verdadeiro foi o Evangelho. A palavra
de Jesus é a mais justa, a que suscita mais vida. É fonte de bondade, de generosidade
entre os seres humanos. Esta generosidade, este cuidar dos outros em primeiro
lugar, toca-me profundamente[4].
Reproduzi
uma breve passagem deste emocionado testemunho porque ao dizer a originalidade
da sua fé, não precisou de diminuir o que de belo e verdadeiro encontrou nas
outras tradições religiosas. A ética e a religião encontraram-se e são boa
companhia.
Frei
Bento Domingues, O.P.
in
Público 05.06.2016
Sem comentários:
Enviar um comentário