31 dezembro 2017

UM CHORA, OUTRO FAZ CHORAR

       1. A inspiração do concílio Vat. II (1962-1965) foi retomada com vigor, originalidade e alegria, por um bispo argentino, em 2013. 2017 foi o ano da contestação ruidosa ao Papa Francisco, acusado, por grupos conservadores, de oito heresias! Como recusa o papel de vedeta, continua ocupado, sobretudo, com as vítimas das mil formas de pobreza e exploração de crianças, adolescentes, adultos, velhos, doentes e com as guerras que provocam mundos de refugiados. Os seus gestos não se destinam a chamar a atenção para a sua pessoa ou para a figura papal, mas sim para a degradação da Casa Comum de que todos somos responsáveis. Não se mostra fascinado por viagens triunfais. Os seus destinos são lugares e situações, onde é preciso estabelecer pontes de entendimento. Tudo isso é conhecido. Não se refugia, porém, no mundo dos grandes princípios, porque sente que uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida.
Na apresentação dos votos natalícios aos membros da Cúria Romana (21.12.2017), continuou o estilo já adoptado em anos anteriores, mas noutra direcção. Os meios de comunicação destacaram, apenas, uma frase que ele usou, embora não tenha sido cunhada por ele: “Fazer as reformas em Roma é como limpar a Esfinge do Egipto com uma escova de dentes”. Serve para dizer que a sua determinação encontra muitas resistências, mas não vai desistir.
Sabe que existem conluios ou pequenos clubes que representam um cancro infiltrado nos organismos eclesiásticos e, de modo particular, nas pessoas que lá trabalham. Desce ao concreto na denúncia de um outro perigo: “o dos traidores da confiança ou os que se aproveitam da maternidade da Igreja, isto é, as pessoas que são cuidadosamente seleccionadas para dar maior vigor ao corpo e à reforma, mas – não compreendendo a alçada da sua responsabilidade – deixam-se corromper pela ambição ou a vanglória e, quando delicadamente são afastadas, autodeclaram-se falsamente mártires do sistema, do «Papa desinformado», da «velha guarda»... em vez de recitar o «mea culpa». A par destas pessoas, há ainda outras que continuam a trabalhar na Cúria e às quais se concede todo o tempo para retomar o caminho certo, com a esperança de que encontrem, na paciência da Igreja, uma oportunidade para se converterem e não para se aproveitarem. Isto naturalmente sem esquecer a esmagadora maioria de pessoas fiéis que nela trabalham com louvável empenho, fidelidade, competência, dedicação e também com grande santidade”.
O Papa Francisco não está preocupado com uma Cúria de puros anjos a quem não haja nada a apontar, uma instituição exemplar para autoconsolo. Seria ficar numa reforma ad intra, numa estética organizativa. O que lhe importa é uma Igreja ad extra, de saída, de diálogo com crentes e não crentes, para chegar a todas as periferias e colocá-las, não só no centro das preocupações das Igrejas e das Religiões, mas também no centro da política mundial.
2. Um caso exemplar foi a sua recente viagem apostólica a Myanmar e ao Bangladesh, países de minoria católica, mas de grande significação na promoção do diálogo inter-religioso em condições extremamente complexas, dada a grave violação dos direitos humanos. A Amnistia Internacional considera que as autoridades de Myanmar estão a aplicar, ao povo rohingya, no Estado de Rakhine, um sistema comparável ao apartheid, descrito como uma «prisão a céu aberto».
No avião de regresso, foi questionado sobre todos os passos desse percurso. O mais importante era a questão da situação do povo rohingya. Uma jornalista perguntou-lhe o que tinha sentido no encontro com esses exilados no Bangladesh.
Resposta do Papa: “Aquilo não estava programado assim. (…) Depois de muitos contactos, inclusive com o governo, com a Cáritas, o governo permitiu a viagem destes que vieram ontem. (…) Aquilo que o Bangladesh faz por eles é estupendo, é um exemplo de acolhimento. Um país pequeno, pobre, que recebeu 700 mil refugiados...”.
“Vinham cheios de medo, não sabiam que fazer. Alguém lhes dissera: «Cumprimentais o Papa, não dizeis nada». (…) Chegou o momento de eles virem cumprimentar-me. Em fila indiana: já não gostei disto, um atrás do outro. O pior é que, imediatamente, queriam expulsá-los do palco. Nesse momento, irritei-me e levantei um pouco a voz – sou pecador – e repeti muitas vezes a palavra «respeito», respeito! Fiz parar a evacuação e eles ficaram lá. Em seguida, depois de os ouvir um a um com a ajuda do intérprete que falava a língua deles, comecei a sentir algo dentro de mim: «Não posso deixá-los ir embora, sem dizer uma palavra»; e pedi o microfone. E comecei a falar... Não me lembro do que disse. Sei que, a dada altura, pedi perdão. Penso que duas vezes, não me lembro”.
“Entretanto, a sua pergunta é: «Que senti». Naquele momento, eu chorava. Fazia de modo que não se visse. Eles choravam também. Depois pensei que estávamos num encontro inter-religioso, mas os líderes das outras tradições religiosas estavam distantes. [Então disse:] «Vinde também vós; estes rohingya são de todos nós». E eles cumprimentaram. Eu não sabia o que dizer mais, porque fixava-os, cumprimentava-os... Veio-me este pensamento: «Todos nós, líderes religiosos, já falámos. Peço a um de vós que faça uma oração, um do vosso grupo». Penso que foi um imã, um «clérigo» da sua religião, que fez aquela oração e eles também rezaram ali connosco. Ao ver todo o caminho percorrido, senti que a mensagem tinha chegado. Não sei se respondi à sua pergunta. Uma parte estava programada, mas a maior parte saiu espontaneamente”.
3. O Papa Francisco chorou com aqueles exilados. Por desgraça, ensinaram a Donald Trump a oração de S. Francisco ao contrário: onde houver paz, que eu leve a guerra; onde houver amor que eu leve o ódio; onde houver perdão que eu leve a ofensa; onde houver a união que eu leve a discórdia; onde houver a verdade que eu leve o erro, a mentira; onde houver esperança que eu leve o desespero; onde houver alegria que eu leve a tristeza; onde houver luz que eu leve as trevas.
D. Trump parece ter uma paixão especial pelo caos. Sem a promoção da desordem mundial, sem fazer sofrer, sem fazer chorar, não sabe o que fazer como presidente dos EUA, um cego guia de muitos cegos.
Não vale a pena diabolizar este senhor da guerra e do comércio das armas. É preferível que todos os cristãos, fundamentalistas ou não, o saibam ajudar a descobrir a verdadeira oração de S. Francisco: onde houver guerra, que eu leve a paz. É muito melhor para todos!
Bom Ano!
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 31. 12. 2017

25 dezembro 2017

NATAL: BIOLOGIA OU CRISTOLOGIA?

       1. A Eucarística do passado Domingo começou com um manifesto poético e musical centrado na alegria do Evangelho. Esta flor da fé cristã é, muitas vezes, sufocada por regras, preceitos, proibições e rezas que a cobrem de tristeza. Quando um membro da assembleia celebrante lembrou que o Papa Francisco fazia anos, o canto e as palmas festejaram nele a esperança de um mundo outro e de uma Igreja outra, interpelada a destruir todos os muros.
Estaremos hoje a celebrar os anos do menino Jesus? Não são as incertezas históricas acerca do dia, do ano e do lugar de nascimento que impedem essa festa. O Natal é a evangelização inculturada de uma festa cósmica e política do império romano.[1] Não se manifesta como a primeira preocupação dos escritos cristãos.
S. Paulo não mostrou particular interesse pelo itinerário terrestre de Jesus de Nazaré. Era, como toda a gente, nascido de uma mulher. Neste caso sob a Lei judaica que ele julgava ultrapassada. Nada indica que o tivesse conhecido pessoalmente. A sua experiência é de ter sido sacudido até às raízes por Jesus ressuscitado. Viver com Ele era o que lhe interessava e convencer as outras pessoas de que a morte tinha sido vencida. Esta não era a última palavra sobre a existência humana[2]. A ressurreição realizava o eterno encontro com Jesus na glória do Deus vivo. Para S. Paulo, o mundo estava a chegar ao fim. Habitar com Ele para sempre era o seu grande desejo. A sua tarefa evangelizadora destinava-se a mostrar a todos que a última estação da viagem da vida não era a morte. Essa era só a penúltima. Insiste, na primeira Carta aos Tessalonicenses, o primeiro escrito do Novo Testamento (NT), que nem os que morreram há muito tempo nem os que morrem agora, estão perdidos. O Senhor virá ao encontro de todos. Sente a urgência em dizer isto por causa da alegria que descobriu nessa esperança[3]. Em questão de prazos, S. Paulo tinha-se enganado. Na Segunda Carta tem de corrigir a sua precipitação, pois o resultado foi catastrófico: alguns dentre vós levam a vida à toa, muito atarefados a não fazer nada. A ordem que vos deixei foi esta: quem não quer trabalhar que não coma[4] e acabam as vãs especulações.
S. Pedro, na Segunda Carta, resolve a questão do tempo de forma muito mais aleatória: um dia diante do Senhor é como mil anos e mil anos como um dia[5].
2. Como o fim nunca mais vinha, as comunidades cristãs não podiam viver só da pregação de que o crucificado era, agora, o ressuscitado para sempre[6]. Não tinham conhecido Jesus de Nazaré nem acompanhado o seu percurso. Era preciso quem contasse o que se tinha passado para quando já não houvesse ninguém para dizer: eu vi, eu sei como foi. Sem isso, como interpretar o sentido da revolução do Nazareno para os novos tempos?
Assim nasceram, no seio das comunidades cristãs, diversas pela geografia e pela cultura, diferentes narrativas. S. Lucas explica essa situação de forma muito clara: Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos factos que se cumpriram entre nós – conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e servidores da Palavra –, a mim também me pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo, desde o princípio, escrever-te, de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste[7].
Nasciam, assim, as Cristologias Narrativas. A primeira, a de S. Marcos, começa por apresentar Jesus a pregar o Evangelho de Deus. O tempo está pronto e o Reino de Deus está próximo. Mudai de mentalidade e acreditai no Evangelho.
Marcos começa pelo fundamental. Mas a curiosidade não está satisfeita. Este Jesus nasceu adulto? Mateus e Lucas escreveram aquilo a que se chama, impropriamente e de modo diverso, os Evangelhos da Infância. Apresentam a alegria do nascimento de Jesus e de João Baptista. Aí, começam as confusões.
Ao não se ter em conta que são admiráveis narrativas teológicas, desliza-se para uma biologia de conveniência que acaba por ocultar o essencial. Continua-se a discutir a forma como Jesus foi concebido e como nasceu. Não faltaram as declarações mais absurdas: Nossa Senhora, virgem antes, durante e depois do parto. Jesus passou por Maria como o sol pela vidraça.
Ao evitar a reflexão, sobre os textos, sobre o seu tecido simbólico e sobre os seus jogos de linguagem, recorre-se a algo muito certo - a Deus nada é impossível -, mas resvala-se para concepções pseudo-milagrosas que deixam mal o Espirito Santo, Maria de Nazaré, Jesus e S. José. Perdeu-se a beleza e a verdade dessas espantosas narrativas. Quando se procede assim, pode-se perguntar: então porque é que não se ficou apenas com o Evangelho de S. Marcos?
3. Os textos do NT interpretam o sentido cristão do Antigo: Jesus Cristo realiza, corrige e supera as esperanças não só de Israel, mas de toda a humanidade. O movimento cristão é um movimento de saída universalista. Está na sua lógica derrubar os muros criados entre povos e religiões. Jesus Cristo é, na sua própria pessoa, a reconciliação. Como dirão os textos: Ele é a nossa paz[8]. Estas declarações interpretam o sentido da prática histórica de Jesus de Nazaré. Isto que se nota nas narrativas da sua vida adulta não é fruto do acaso. É fruto de um desígnio de Deus. O seu agir espantoso não era uma sucessão de milagres. Era Deus no tecido de uma vida humana, igual a nós excepto na maldade. Nasce humano e foi crescendo em idade, sabedoria e graça, perante o espanto de Maria[9]. O Emmanuel não é só Deus connosco, é um de nós.
Não nasce só de Israel e para Israel. Nasce de toda a humanidade e para toda a humanidade, como mostra a genealogia de Lucas: filho de Adão, filho de Deus[10].
As narrativas do NT nasceram para continuar a prática de Jesus na vida das pessoas e das comunidades. Isso aconteceu há 2 mil anos. Às vezes caímos na tentação de pensar que basta uma nova linguagem da Fé para os dias de hoje. É um pensamento justo e curto. São indispensáveis narrativas que contem as histórias de vida do encontro do Evangelho da Alegria com as situações actuais da nossa humanidade. Se não exprimirem esse encontro real, só podem produzir reportagens de literatura barata.
O Papa Francisco sabe que a Igreja não tem de resolver os problemas de há dois mil anos. O que o preocupa é o casamento vital da Igreja com as situações que precisam de um hospital de campanha. O importante não são as festas do Natal, mas a transformação da vida numa festa para todos. Como ele diz:
A luz de Natal és tu quando com uma vida de bondade, paciência, alegria e generosidade consegues ser luz a iluminar o caminho dos outros.
Boas Festas!
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 24. 12. 2017


[1] José Manuel Bernal, Para Viver o Ano Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001
[2] Cf. 1Cor 15
[3] 1Ts 4, 13-18
[4] 2Ts 2 – 3
[5] 2Pd 3, 8-14
[6] 1Cor
[7] Lc 1, 1-4
[8] Ef 2, 14 ss
          [9] Lc 2, 41-52
[10] Lc 3, 23-38; comparar com Mt 1, 1-17
in Público 24.12.2017
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O Menino Jesus de Fernando Pessoa
Padre Anselmo Borges

1 - Ainda era Outubro e já havia anúncios comerciais lembrando o Natal. Já se esqueceu que o Natal de Jesus é o Natal do Emanuel, o Deus connosco, e, consequentemente, o Natal da dignidade divina da pessoa humana, da liberdade, da fraternidade, dos direitos humanos, da igualdade radical de todas as pessoas. Isso foi lembrado pelos grandes: Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas, entre outros. Esquecendo o essencial, fica-se afundado na correria das compras e na concorrência opressiva das prendas, dentro da sofreguidão consumista insaciável, lembrando o velho mito do tonel das Danaides. E será o inessencial e o cansaço.

2 - Fernando Pessoa, o génio da melhor literatura mundial de sempre, também confessou o seu cansaço. Mas, ele, ele era por causa do mais profundo e essencial: o pensar: "O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,/Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo." "O que há em mim é sobretudo cansaço/ (...)/ Um supremíssimo cansaço/íssimo, íssimo, íssimo,/Cansaço..." Por isso, suspirava por voltar à inocência dos tempos de criança. O Menino Jesus seria o reencontro da inocência perdida: "Num meio-dia de fim de Primavera/Tive um sonho como uma fotografia./Vi Jesus Cristo descer à terra./Veio pela encosta de um monte/Tornado outra vez menino,/A correr e a rolar-se pela erva/E a arrancar flores para as deitar fora/E a rir de modo a ouvir-se de longe./Tinha fugido do céu. Era nosso de mais para fingir/De segunda pessoa da Trindade./(...)/ No céu tinha de estar sempre sério/(...)./Um dia que Deus estava a dormir/E o Espírito Santo andava a voar,/Ele foi à caixa dos milagres e roubou três./Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido./Com o segundo criou--se eternamente humano e menino./Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz/E deixou-o pregado na cruz que há no céu/E serve de modelo às outras./Depois fugiu para o Sol/E desceu pelo primeiro raio que apanhou./Hoje vive na minha aldeia comigo/É uma criança bonita de riso e natural./(...)/A mim ensinou-me tudo./(...)/Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro./Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava./Ele é o humano que é natural,/Ele é o divino que sorri e que brinca./E por isso é que eu sei com toda a certeza/Que ele é o Menino Jesus verdadeiro./ (...)/A Criança Eterna acompanha-me sempre./A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando./O meu ouvido atento alegremente a todos os sons/São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas./Damo-nos tão bem um com o outro/Na companhia de tudo/Que nunca pensamos um no outro,/Mas vivemos juntos e dois/Com um acordo íntimo,/Como a mão direita e a esquerda./Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas/(...)/Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens/E ele sorri, porque tudo é incrível./Ri dos reis e dos que não são reis,/E tem pena de ouvir falar das guerras,/E dos comércios, e dos navios/Que ficam fumo no ar dos altos mares./Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade/Que uma flor tem ao florescer/E que anda com a luz do Sol/A variar os montes e os vales/E a fazer doer aos olhos os muros caiados./Depois ele adormece e eu deito-o./Levo-o ao colo para dentro de casa/E deito-o, despindo-o lentamente/E como seguindo um ritual muito limpo/E todo materno até ele estar nu./Ele dorme dentro da minha alma/E às vezes acorda de noite/E brinca com os meus sonhos./Vira uns de pernas para o ar,/Põe uns em cima dos outros/E bate as palmas sozinho/Sorrindo para o meu sono./... Quando eu morrer, filhinho,/Seja eu a criança, o mais pequeno./Pega-me tu ao colo/E leva-me para dentro da tua casa./Despe o meu ser cansado e humano/E deita-me na tua cama./E conta-me histórias, caso eu acorde,/Para eu tornar a adormecer./E dá-me sonhos teus para eu brincar/Até que nasça qualquer dia/Que tu sabes qual é./... Esta é a história do meu Menino Jesus./Por que razão que se perceba/Não há-de ser ela mais verdadeira/Que tudo quanto os filósofos pensam/E tudo quanto as religiões ensinam?"

Em apontamentos soltos, o próprio Fernando Pessoa reconheceu que escreveu "com sobressalto e repugnância o poema oitavo de O Guardador de Rebanhos com a sua blasfémia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto", dizendo ao mesmo tempo: "Na minha pessoa própria, nem uso da blasfémia nem sou antiespiritualista." O seu Menino Jesus representa a procura terna e eterna da paz e da reconciliação, na simplicidade daquele Menino eternamente criança e humano.

Fernando Pessoa "ele mesmo" - ele era muitos, como cada um de nós é muitos; se assim não fosse, como poderíamos entender-nos uns aos outros e a nós próprios? - também escreveu: "Grande é a poesia, a bondade e as danças.../Mas o melhor do mundo são as crianças,/Flores, música, o luar e o sol, que peca/Só quando em vez de criar, seca./O mais que isto/É Jesus Cristo,/Que não sabia nada de finanças/Nem consta que tivesse biblioteca..." E assim chega mesmo a caminhar de mãos dadas com Deus: "Por isso, a cada passo/Que meu ser triste e lasso/Sente sair do bem/Que a alma, se é própria, tem,/Minha mão de criança/Sem medo nem esperança/Para aquele que sou/Dou na de Deus e vou."

3 - Fica aqui o meu mais vivo desejo de Boas Festas para todos, lembrando que o essencial do Natal é Jesus, como disse o Papa Francisco no passado dia 17, quando fez 81 anos: "Se retirarmos Jesus, o que é o Natal? Uma festa vazia."
in DN 22.12.2017
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vitor Gonçalves
DOMINGO IV DO ADVENTO Ano B
“Conceberás e darás à luz um Filho,
a quem porás o nome de Jesus.”
Jo 1, 31

Pela mão de Maria
De Nazaré a Belém, vamos num voo de águia: de manhã o “sim” de Maria e à noite o “choro primeiro” do Filho de Deus feito homem! O tempo tem destas coisas e estamos sempre a acolher Deus que é Emanuel, “Deus connosco”. Na simplicidade da casa de Maria em Nazaré e no inesperado despojamento do presépio de Belém, Deus revelou-se na pequenez e na fragilidade, salvador para todos, de braços abertos a todos. E toda a história da Aliança de Deus com Israel confluiu para aquele singelo encontro de uma jovem com um anjo. Ela, sem o saber, é porta-voz da humanidade que tem sede de Deus; ele, portador de uma mensagem e incumbido de levar uma resposta, saberia da admirável mudança da história em que participava?

O mundo mudou, mesmo sem se dar conta disso, depois da resposta de Maria. Não tremeram tronos, nem caíram estrelas no céu, não falaram os animais, nem acabaram as guerras. Com a delicadeza de tudo o que é maravilhoso, Deus começara a ser homem no seio de uma mulher. Desta mulher, Maria, escolhida para a missão mais admirável que se possa imaginar, livre para dizer um “sim” pleno de entrega, numa fé dialogante e luminosa, e confiando-se totalmente a Deus que lhe pedia o que parecia impossível! Por um momento, Deus, o anjo, o universo, estiveram suspensos num silêncio, de segundos (ou de séculos?), da resposta de Maria! Assim o conta José Luís Martin Descalzo num poema: “Mas, como dizer-lhe “não”? / Como negar ao sol o direito de ser luz e iluminar? / Como regatear com Ele, / pôr-lhe condições, pedir-lhe garantias? / O amor é assim: eleger sem eleição. // E “faça-se” lhe disse. / E recordo que o anjo sorriu / como se acabasse de tirar-lhe um grande peso de cima / como se agora pudesse já atrever-se a regressar ao céu. / E um pássaro cruzou por trás da janela. / E a tarde pôs-se como se o sol sangrasse. / E o ar encheu-se de sinos / como se o próprio Deus estivesse contente.”

Maria é a “cheia de graça”, a mais bela da humanidade, habitada pelo mistério de Deus. Espera o que verdadeiramente não compreende em plenitude. Não se perturba com a presença do anjo mas com as suas palavras, reflectindo nelas. Sabe que Deus nada impõe, e o anúncio torna-se diálogo. A sua pergunta não é vã curiosidade e a resposta do anjo é convite à fé na grandeza surpreendente de Deus. O seu “sim” vem curar todos os nossos “nãos”!

Entramos no Natal pela mão de Maria. É ela que nos põe Jesus Menino nos braços e, ao olharmos para o seu rosto reconhecemos todos os que amamos e cuidamos. É como ela que não regateamos nem adiamos o “faça-se” que Deus precisa, para fazer em nós e connosco maravilhas inesperadas. É na serenidade da sua confiança que, na humildade das nossas qualidades e meios, nos abrimos à acção do Espírito Santo. É na alegria da sua entrega que somos Natal, em mil gestos de ternura. Maria, dá-nos Jesus para O darmos como tu!
in Voz da Verdade, 24.12.2017

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IGREJA CATÓLICA
A guerra contra o Papa Francisco

A sua modéstia e humildade fizeram dele uma figura popular por todo o mundo. Mas, dentro da Igreja, as suas reformas têm enfurecido os conservadores e provocado uma revolta. O homem que há precisamente uma semana fez 81 anos e vive com apenas um pulmão, é o primeiro Papa não europeu dos tempos modernos e tem neste momento em mãos uma Igreja dividida. Um dos seus mais ferozes críticos, o cardeal Burke, é o mesmo que serviu de inspiração a uma série de proeminentes figuras laicas de direita nos Estados Unidos, de Pat Buchanan a Steve Bannon ou Newt Gingrich.


O Papa Francisco é actualmente um dos homens mais odiados do mundo. E quem mais o odeia não são ateus, protestantes ou muçulmanos, mas alguns dos seus próprios seguidores. Fora da Igreja goza de grande popularidade, afirmando-se como uma figura de uma modéstia e uma humildade quase ostensivas. Desde o momento em que o cardeal Jorge Bergoglio se tornou Papa em 2013, os seus gestos prenderam a atenção do mundo: o novo Papa guiou um Fiat, transportou as próprias malas e pagou a conta em hotéis; sobre os homossexuais, perguntou: “Quem sou eu para julgar?”, e lavou os pés de refugiadas muçulmanas.


Dentro da Igreja, porém, Francisco tem desencadeado uma reacção feroz por parte dos mais conservadores, que temem que este novo espírito divida a Igreja ou até que a destrua. Este Verão, um proeminente clérigo inglês disse-me: “Mal podemos esperar que ele morra. É impublicável o que dizemos dele em privado. Sempre que dois padres se encontram, falam sobre o quão horrível Bergoglio é… ele é como Calígula: se tivesse um cavalo, fazia dele cardeal.” Claro que após dez minutos de repetidas críticas, acrescentou: “Não pode publicar nada disto, senão serei despedido.”

Esta mistura de ódio e temor é frequente entre os adversários do Papa. Francisco, o primeiro Papa não europeu dos tempos modernos e o primeiro Papa jesuíta da História, foi eleito como um outsider dos poderes instituídos do Vaticano e era esperado que fizesse inimigos. Mas ninguém previu que fizesse assim tantos. Desde a sua rápida renúncia à pompa do Vaticano, que marcou desde logo a diferença na relação com os mais de três mil empregados civis do Vaticano, ao seu apoio aos migrantes, às suas críticas ao capitalismo global e, acima de tudo, à sua intenção de reexaminar as posições da Igreja relativamente ao sexo, o Papa tem vindo a escandalizar os reaccionários e os conservadores. A julgar pelos números das votações do último encontro mundial de bispos, quase um quarto do Colégio dos Cardeais — o mais alto organismo da organização clerical — está convencido de que o Papa se está a aproximar da heresia.

A questão crítica prende-se com a sua visão sobre o divórcio. Num corte com séculos, senão milénios, de doutrina católica, o Papa Francisco tem tentado encorajar os padres católicos a darem a comunhão a alguns casais divorciados ou casados em segundas núpcias e a famílias cujos pais não são casados. Os seus inimigos estão a tentar forçá-lo a abandonar essa ideia. Como ele se tem mantido firme e mostrado uma sóbria perseverança face ao crescente descontentamento, começam agora a preparar-se para a guerra. No ano passado, um cardeal, com o apoio de alguns colegas já aposentados, levantou a possibilidade de uma declaração formal de heresia — a rejeição intencional de uma doutrina estabelecida da Igreja, pecado punível com a excomunhão. Em Setembro, 62 católicos descontentes, nos quais se incluem um bispo já retirado e um antigo director do Banco do Vaticano, publicaram uma carta aberta em que apontam a Francisco sete acusações específicas de ensinamentos heréticos.

62
católicos descontentes, nos quais se incluem um bispo e um antigo director do Banco do Vaticano, publicaram uma carta aberta em que apontam a Francisco sete acusações específicas de ensinamentos heréticos
Acusar um Papa em funções de heresia é o equivalente católico à opção nuclear. A doutrina afirma que o Papa não pode estar errado quando se pronuncia sobre questões centrais da fé; portanto, se está errado, não pode ser Papa. Por outro lado, se este Papa está certo, todos os seus antecessores têm de ter estado errados.

A discussão está particularmente envenenada porque assenta quase na totalidade em bases teóricas. Na prática, em quase todo o mundo, os casais que se divorciam e voltam a casar têm acesso à comunhão. O Papa Francisco não está a propor numa revolução, apenas o reconhecimento institucional de um sistema que já existe e que pode até ser essencial para a sobrevivência da Igreja. Se as regras fossem aplicadas à letra, nenhuma pessoa cujo casamento tivesse falhado poderia voltar a ter relações sexuais. Essa não é uma boa maneira de assegurar a existência de gerações futuras de católicos.

Mas, para os seus detractores, as reformas cautelosas de Francisco põem em causa a crença de que as verdades da Igreja são intemporais. Porque se não são, perguntam os conservadores, então qual o seu valor? A batalha sobre o divórcio e os novos casamentos põe em confronto duas ideias profundamente opostas sobre o papel da Igreja. A insígnia do Papa são duas chaves cruzadas, que representam as que Jesus terá supostamente dado a S. Pedro, e que simbolizam os poderes de unir e separar, ou seja, proclamar o que é pecado e o que é permitido. Mas qual dos poderes é hoje mais importante e mais urgente?

PÚBLICO - A sua primeira visita oficial fora de Roma, em 2013, foi à ilha de Lampedusa, que se tinha tornado o ponto de chegada de dezenas de milhares de desesperados migrantes vindos do Norte de África
A sua primeira visita oficial fora de Roma, em 2013, foi à ilha de Lampedusa, que se tinha tornado o ponto de chegada de dezenas de milhares de desesperados migrantes vindos do Norte de África TULLIO M. PUGLIA /GETTY IMAGES
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A hipótese de um cisma
A crise actual é a mais séria desde que as reformas liberais dos anos 1960 fizeram com que um grupo dissidente de conservadores da “linha dura” abandonasse a Igreja (o seu líder, o arcebispo francês Marcel Lefebvre, viria mais tarde a ser excomungado). Nos últimos anos, escritores conservadores têm repetidamente levantado a hipótese de um cisma. Em 2015, o jornalista americano Ross Douhat, um convertido ao catolicismo, escreveu um artigo para a revista Atlantic intitulado “Irá o Papa Francisco destruir a Igreja?”; num blogue na Spectator, o tradicionalista inglês Damian Thompson afirmou peremptoriamente que “o Papa Francisco está em guerra com o Vaticano. Se sair vencedor, a Igreja poderá desmoronar-se”. Segundo um arcebispo do Cazaquistão, as posições do Papa relativamente ao divórcio e à homossexualidade permitiram que o “fumo de Satã” envolvesse a Igreja.

A Igreja Católica passou grande parte do último século a lutar contra a revolução sexual, tal como havia lutado antes contra as revoluções democráticas do século XIX, e essa luta levou-a a ter de defender uma doutrina insustentável, pela qual toda a contracepção artificial é proibida, bem como qualquer relação sexual fora de um casamento eterno. Como o Papa Francisco reconhece, não é assim que as pessoas agem normalmente. E o clero também o sabe, mas é esperado que finja que não. Ou seja, a doutrina oficial não pode ser questionada, mas também não pode ser cumprida. Um dos lados terá de ceder e, quando tal acontecer, a explosão resultante poderá fracturar a Igreja.

“O Papa Francisco está em guerra com o Vaticano. Se sair vencedor, a Igreja poderá desmoronar-se”
Damian Thompson

Não deixa de ser curioso que os frequentes choques e ódios dentro da Igreja — resultantes das posições sobre as alterações climáticas, as migrações ou o capitalismo — tenham chegado a um ponto de não retorno numa enorme batalha sobre as implicações de uma única nota de rodapé de um texto intitulado “A Alegria do Amor” (ou, no original latim, Amoris Laetitia). A exortação, escrita por Francisco, é um sumário do debate corrente sobre a questão do divórcio e numa nota de rodapé o autor faz aparentemente uma leve afirmação de que os casais divorciados e que voltem a casar poderão eventualmente receber a comunhão.

Com mais de mil milhões de fiéis, a Igreja Católica é a maior organização global que o mundo alguma vez viu, e muitos dos seus seguidores são divorciados ou pais solteiros. Para realizar o seu trabalho por todo o mundo, a Igreja depende de trabalho voluntário, ou seja, se os comuns fiéis deixarem de acreditar no que estão a fazer, todo o sistema colapsa. Francisco sabe disso. Se não for capaz de conciliar teoria e prática, a Igreja pode assistir a uma debandada. Os seus oponentes também defendem que a Igreja enfrenta uma crise, mas a sua solução é a contrária. Para eles, a distância ente teoria e prática é exactamente o que dá valor e sentido à Igreja. Se tudo o que a Igreja tiver para oferecer for algo de que as pessoas não sentem necessidade de procurar, dizem os que se opõem a Francisco, então irá seguramente colapsar.

O Papa num momento de confissão na Praça de São Pedro. FRancisco lembrou que “o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas antes um ponto de encontro com a misericórdia do Senhor” OSSERVATORE ROMANO/REUTERS

Liberais e conservadores: uma definição falaciosa
Ninguém previu este confronto quando Francisco foi eleito em 2013. Uma das razões da sua escolha foi precisamente o objectivo de solucionar a rígida burocracia do Vaticano, tarefa há muito adiada. O cardeal Bergoglio, de Buenos Aires, foi eleito como um relativo outsider, o que à partida facilitaria a eliminação de algumas das forças de bloqueio comuns ao âmago da Igreja. Mas essa missão entrou rapidamente em rota de colisão com uma fractura ainda mais acrimoniosa dentro da Igreja, que é geralmente descrita como a batalha entre os “liberais”, como Francisco, e os “conservadores”, dos quais fazem parte os seus adversários. Contudo, essa é uma definição equívoca e falaciosa.

A disputa central põe em confronto os católicos que acreditam que a Igreja deve liderar a agenda do mundo e os que, por outro lado, defendem que são as circunstâncias mundiais que devem definir as posições da Igreja. Essas são, porém, as posições idealistas: no mundo real, qualquer católico será uma mistura dessas duas orientações, tendo, na maior parte dos casos, a predominância de uma delas.

Francisco é um puro exemplo de um católico extrovertido, ou “virado para fora”, especialmente se comparado com os seus antecessores imediatos. Os seus oponentes são os introvertidos. Para muitos, a primeira coisa que os atraiu na Igreja foi exactamente a sua distância relativamente às preocupações mundanas. Um número surpreendente dos mais proeminentes introvertidos são protestantes americanos convertidos, alguns impulsionados pela superficialidade dos recursos intelectuais com que foram educados, mas muito mais por um sentimento de que o enfraquecimento do protestantismo liberal se deve precisamente ao facto de ter deixado de ser uma alternativa à sociedade que o rodeia. Querem mistério e fervor, não senso comum estéril e sabedoria convencional. Nenhuma religião pode florescer sem tal impulso.

O Segundo Concílio, ou Vaticano II, renunciou ao anti-semitismo, abraçou a democracia, proclamou direitos humanos universais e aboliu a missa em latim
Mas também nenhuma religião global se pode contrapor totalmente ao mundo em que se encontra inserida. No início dos anos 1960, um encontro que durou três anos entre bispos de todos os quadrantes da Igreja, que ficou conhecido como o Segundo Concílio do Vaticano, ou Vaticano II, “abriu as janelas para o mundo”, nas palavras do Papa João XXIII, que o convocou, mas que morreu antes da sua conclusão.

O concílio renunciou ao anti-semitismo, abraçou a democracia, proclamou direitos humanos universais e aboliu, em larga escala, a missa em latim. Esta última medida, em particular, chocou os introvertidos. O escritor Evelyn Waugh, por exemplo, recusou-se a partir desse momento a participar numa missa em inglês. Para homens como ele, os rituais solenes de um serviço religioso realizado por um padre de costas para a congregação, falando inteiramente em latim e encarando Deus no altar, eram o próprio coração da Igreja — uma janela para a eternidade reencenada a cada representação. O ritual tinha uma posição central na Igreja, de uma forma ou de outra, desde a sua fundação.

Simbolicamente, a mudança provocada pela nova liturgia — a troca do padre introvertido que encarava Deus no altar pela figura extrovertida virada para a congregação — foi imensa. Alguns conservadores ainda hoje não se reconciliaram com a reorientação, entre os quais, o cardeal guineense Robert Sarah, que tem sido apontado pelos introvertidos como possível sucessor de Francisco, e o cardeal americano Raymond Burke, que tem emergido como o mais veemente opositor público de Francisco. Nas palavras da jornalista católica inglesa Margaret Hebblethwaite, uma fervorosa apoiante do Papa Francisco, a crise actual é nada menos que “o regresso do Vaticano II”.

“Devemos ser inclusivos e acolher tudo o que é humano”, afirmou Sarah num encontro no Vaticano no ano passado, numa condenação das propostas de Francisco, “mas o que vem do inimigo não pode nem deve ser assimilado. Não podemos seguir Cristo e Belial! As ideologias ocidentais da homossexualidade e do aborto e o extremismo islâmico representam nos dias de hoje o que o nazismo, o fascismo e o comunismo representaram no século XX”.

PÚBLICO - Campanha 'Share the Journey' (numa tradução literal, Partilhem o Caminho) com a Caritas Internacional. O objectivo é aproximação entre comunidades de imigrantes e refugiados com as populações locais
Campanha 'Share the Journey' (numa tradução literal, Partilhem o Caminho) com a Caritas Internacional. O objectivo é aproximação entre comunidades de imigrantes e refugiados com as populações locais GIUSEPPE CICCIA / GETTY IMAGES

Ressurgimento pentecostal
Nos anos imediatamente a seguir ao concílio, freiras deitaram fora os seus hábitos, padres descobriram as mulheres (mais de cem mil deixaram o sacerdócio para se casarem) e teólogos livraram-se das correntes da ortodoxia introvertida. Após 150 anos de resistência e de rejeição do mundo exterior, a Igreja deu por si completamente envolvida por esse mundo, até ao ponto em que os introvertidos temeram que o edifício estivesse em risco de se desmoronar.

A afluência às igrejas caiu a pique no mundo ocidental, tal como aconteceu noutras denominações. Nos Estados Unidos, 55% dos católicos iam regularmente à missa em 1965; em 2000, esse número era de apenas 22% [em Portugal, segundo dados do Vaticano, em 2015, existiam 9,183 milhões de católicos numa população de 10,34 milhões de pessoas, correspondendo a uma percentagem de 88,7%, mais quatro décimas do que em 2010]. Em 1965, foram baptizados um milhão e trezentos mil bebés nos EUA; em 2016, apenas 670 mil. Se esta tendência é ou não fruto de uma relação causa/efeito, é algo que continua a ser ferozmente discutido. Os introvertidos põem a culpa no abandono das verdades universais e das práticas tradicionais; os extrovertidos acham que as mudanças na Igreja não foram suficientes ou suficientemente rápidas.

Em 1966, um comité papal de 69 membros, no qual se incluíam sete cardeais e 13 médicos, bem como laicos e até algumas mulheres, votou esmagadoramente a favor do levantamento da proibição do uso de contracepção artificial, mas o Papa Paulo VI revogou a votação em 1968. Não podia admitir que os seus predecessores estivessem errados e os protestantes certos. Para uma inteira geração de católicos, esta disputa passou a simbolizar a resistência da Igreja à mudança. Nos países em desenvolvimento, a Igreja Católica foi em grande parte ultrapassada por um ressurgimento pentecostal, que oferecia tanto a encenação como estatuto para os laicos e para as mulheres.

“A Igreja pode ser uma barafunda, mas o importante é que o centro seja sólido e tudo pode ser reconstruído a partir do centro"
Ross Douthat, jornalista católico

Os introvertidos tiveram a sua vingança aquando da eleição do Papa (agora Santo Papa) João Paulo II, em 1978. A sua Igreja polaca era caracterizada pela oposição ao mundo exterior e aos seus líderes desde que os nazis e os comunistas dividiram o país em 1939. João Paulo II era um homem impressionante, dotado de uma tremenda energia e força de vontade. Era também profundamente conservador em questões de moralidade sexual e, enquanto cardeal, tinha apresentado a justificação intelectual para a proibição do controlo de natalidade. Desde o momento da sua eleição que começou a moldar a Igreja à sua imagem. Mesmo que não conseguisse imprimir-lhe o seu dinamismo e vontade, parecia que iria conseguir purgá-la da extroversão e uma vez mais estancar as correntes do mundo secular.

Ross Douthat, jornalista católico, foi das poucas pessoas do lado dos introvertidos a disponibilizarem-se a falar abertamente sobre o conflito actual. Na sua juventude foi um dos convertidos atraídos para a Igreja de João Paulo II. Afirma hoje que “a Igreja pode ser uma barafunda, mas o importante é que o centro seja sólido e tudo pode ser reconstruído a partir do centro. Ser católico é ter a garantia da continuidade no centro e com isso a esperança do restabelecimento da ordem católica”.

Burke, o rosto dos conservadores na luta contra o Papa

João Paulo II teve o cuidado de nunca repudiar as palavras do Vaticano II, mas fez o possível para as esvaziar do seu espírito extrovertido. Começou por impor uma disciplina férrea ao clero e aos teólogos. Tentou também tornar o mais difícil possível a renúncia dos padres para poderem casar. A sua aliada nesse objectivo foi a Congregação para a Doutrina da Fé, ou CDF, antes conhecida como o Santo Ofício. Institucionalmente, a CDF é a mais introvertida de todos os “ministérios” do Vaticano (ou “dicastérios”, como são conhecidos desde o tempo do Império Romano; é um detalhe que sugere o peso da inércia e da experiência institucional — se o nome era bom para Constantino, porquê mudá-lo?).

Para a CDF, é axiomático que o papel da Igreja é ensinar o mundo, não aprender com ele. Tem uma longa tradição de punir teólogos que discordam: houve casos de proibição de publicações e de despedimentos de universidades.

Ainda no início do pontificado de João Paulo II, a CDF publicou Donum Veritatis (“O Dom da Verdade”), documento que explica que todos os católicos devem praticar a “submissão da vontade e do intelecto” aos ensinamentos do Papa, mesmo que não sejam infalíveis; e que os teólogos, mesmo que possam estar em desacordo e manifestá-lo aos seus superiores, nunca o devem fazer em público. Estas palavras foram usadas como ameaça, às vezes até como arma, contra qualquer pessoa suspeita de dissidência liberal. Francisco, contudo, virou estes poderes contra os que tinham sido os seus maiores defensores. Os padres, os bispos e até os cardeais estão ao serviço do Papa e podem ser demitidos a qualquer momento. Sob Francisco, os conservadores aprenderam essa lição: pelo menos três teólogos foram demitidos da CDF. Os jesuítas exigem disciplina.

O cardeal americano Raymond Burke (à esq., na foto) tem emergido como o mais veemente opositor público de Francisco. Foi demitido do seu cargo no tribunal do Vaticano e, depois, da comissão litúrgica GETTY IMAGES
Cardeal Burke & Steve Bannon
Em 2013, pouco tempo após a sua eleição e quando estava ainda num estado de quase universal aclamação pela ousadia e simplicidade dos seus gestos — tinha-se mudado para um par de singelos quartos no Vaticano, por oposição aos sumptuosos apartamentos do Estado usado pelos seus antecessores —, Francisco expurgou uma pequena ordem religiosa que se devotava à prática da missa tridentina, dita em latim.

Os Frades Franciscanos da Imaculada, grupo com cerca de 600 membros, homens e mulheres, já tinham sido colocados sob investigação por uma comissão em Junho de 2012, no papado de Bento XVI. Eram acusados de combinar uma cada vez mais extremista política de direita com a devoção à missa tridentina. (Esta combinação, que surge frequentemente associada a declarações de ódio ao “liberalismo”, tinha vindo também a espalhar-se online nos EUA e no Reino Unido, como é exemplo o blogue do Daily Telegraph Holy Smoke, editado por Damian Thompson.)

Quando a comissão apresentou as suas descobertas em 2013, a reacção de Francisco chocou os conservadores. Proibiu os frades de usarem a missa tridentina em público e fechou o seu seminário. Continuaram a poder formar novos padres, mas não segregados do resto da igreja. Mais, tomou estas decisões directamente, sem passar pelo sistema judicial interno do Vaticano, à altura dirigido pelo cardeal Burke. No ano seguinte, Francisco demitiu Burke do seu poderoso cargo no sistema judicial do Vaticano. Nesse momento, ganhou um inimigo implacável.

Burke, um americano robusto dado a vestes bordadas a renda e, em ocasiões formais, a uma capa de cerimónias escarlate tão comprida que precisa de ser carregada por pajens, era um dos mais conspícuos reaccionários do Vaticano. Em modos e em doutrina, representa uma longa tradição de pesos-pesados americanos do poder do catolicismo de etnia branca. A hierática, patriarcal e conflituosa igreja da missa tridentina é o seu ideal, e ao qual parecia que a Igreja estava lentamente a voltar sob o comando de João Paulo II e Bento VXI — até que Francisco começou o seu trabalho.

A combinação de anticomunismo, orgulho étnico e ódio ao feminismo do cardeal Burke inspirou uma série de proeminentes figuras laicas de direita nos Estados Unidos
A combinação de anticomunismo, orgulho étnico e ódio ao feminismo do cardeal Burke inspirou uma série de proeminentes figuras laicas de direita nos Estados Unidos, de Pat Buchanan a Bill O’Reilly e a Steve Bannon, bem como outros intelectuais católicos menos famosos, como Michael Novak, que têm batalhado incansavelmente a favor das guerras americanas no Médio Oriente e da perspectiva republicana sobre os mercados livres.

Foi o cardeal Burke quem em 2014 convidou Bannon, já na altura a mente por trás do Breitbart News, a dirigir-se a uma conferência no Vaticano via vídeo emitido na Califórnia. O discurso de Bannon foi apocalíptico, incoerente e historicamente excêntrico. Mas não foi inocente o seu chamamento para uma guerra santa: a Segunda Guerra Mundial, afirmou, foi na realidade “o Ocidente judeu-cristão contra os ateus” e agora a civilização está “nas etapas iniciais de uma guerra global contra o fascismo islâmico… um conflito brutal e sangrento… que irá erradicar completamente tudo o que nos foi legado nos últimos 2000, 2500 anos… se as pessoas nesta sala, as pessoas da Igreja, não… lutarem pelas nossas crenças, contra esta nova barbaridade que está a surgir”.

Tudo nesse discurso é um anátema para Francisco. A sua primeira visita oficial fora de Roma, em 2013, foi à ilha de Lampedusa, que se tinha tornado o ponto de chegada de dezenas de milhares de desesperados migrantes vindos do Norte de África. Como ambos os seus antecessores, opõe-se firmemente às guerras no Médio Oriente, embora o Vaticano tenha apoiado relutantemente a extirpação do califado do Estado Islâmico. Opõe-se à pena de morte e despreza e condena o capitalismo americano: depois de marcar o seu apoio aos migrantes e aos homossexuais, a primeira grande declaração política do seu pontificado foi uma encíclica, dirigida a toda a Igreja, que condenava ferozmente o funcionamento dos mercados globais.

“Algumas pessoas continuam a defender teorias ‘conta-gotas’ [trickle-down, no original], que assumem que o crescimento económico, encorajado por um mercado livre, irá inevitavelmente resultar em maior justiça e inclusividade pelo mundo. Tal crença, que nunca foi sustentada pelos factos, exprime uma confiança arrogante e ingénua na bondade dos que exercem o poder económico e no funcionamento sacralizado do sistema económico prevalente. Entretanto, os excluídos continuam à espera.”

Acima de tudo, Francisco está do lado dos imigrantes — ou emigrantes, como ele os vê — expulsos de suas casas por um capitalismo infinitamente voraz e destrutivo, que pôs em marcha mudanças climáticas catastróficas. Nos Estados Unidos, esta é uma questão racializada e profundamente politizada. Os evangélicos que votaram em Donald Trump e no seu muro são esmagadoramente brancos, tal como as lideranças da Igreja Católica americana. Mas cerca de um terço dos laicos são hispânicos, proporção que está a aumentar. Em Setembro, Bannon afirmou, em entrevista ao 60 Minutes da CBS, que os bispos americanos eram favoráveis à imigração em massa apenas porque isso ajuda as suas congregações — embora isso vá mais longe do que até os bispos mais à direita seriam capazes de dizer publicamente.

Quando Trump anunciou pela primeira vez que iria construir um muro para impedir a entrada de imigrantes, Francisco esteve muito perto de negar que o então candidato pudesse ser cristão. Na visão de Francisco sobre as ameaças à família, os lavabos transgéneros não são o problema mais urgente, como alguns activistas “guerreiros” culturais querem fazer crer. O que destrói as famílias, escreveu, é um sistema económico que força milhões de famílias pobres a separarem-se na sua busca por trabalho.

Uma “torrente de corrupção”

Além de lidar com os praticantes da velha escola da missa tridentina em latim, Francisco deu início a uma ampla ofensiva contra a velha guarda no interior do Vaticano. Cinco dias após a sua eleição em 2013, convocou o cardeal hondurenho Óscar Rodríguez Maradiaga e comunicou-lhe que iria ser coordenador de um grupo de nove cardeais espalhados pelo globo cuja missão era limpar a casa. Foram todos escolhidos pela sua energia e pelo facto de terem estado, no passado, em conflito com o Vaticano. Foi uma medida popular em todo o lado, menos em Roma.

João Paulo II passou a última década da sua vida cada vez mais incapacitado pela doença de Parkinson, e a energia que lhe restava não era gasta em querelas burocráticas. A Cúria, nome por que é conhecida a organização burocrática do Vaticano, foi ganhando cada vez mais poder, estagnada e corrupta. Muito poucas medidas foram tomadas contra os bispos que protegeram os clérigos que abusaram de crianças. O Banco do Vaticano era tristemente célebre pelos serviços que oferecia para lavagem de dinheiro. Os processos de canonização — algo que João Paulo II fez a um ritmo sem precedentes — tinham-se tornado uma fraude extremamente cara: o jornalista italiano Gianluigi Nuzzi estimou que o preço de tabela de uma canonização andaria à volta dos 500 mil euros por auréola. As finanças do próprio Vaticano estavam uma desgraça e até Francisco fez referência a “uma torrente de corrupção” na Cúria.

O estado pútrido da Cúria era bem conhecido, mas nunca discutido em público. Ao fim de nove meses no cargo, Francisco disse a um grupo de freiras que “na Cúria também há pessoas virtuosas, a sério, há lá pessoas santas” — de tal maneira assumia que a sua audiência de freiras ficaria surpreendida por saber disso.

"A visão ‘vaticanocêntrica’ negligencia o mundo à nossa volta. Eu não partilho dessa visão, e farei tudo o que estiver ao meu alcance para a mudar"
Papa Francisco
Afirmou que a Cúria “toma conta e cuida dos interesses do Vaticano, que são, na sua maior parte, interesses temporais. A visão ‘vaticanocêntrica’ negligencia o mundo à nossa volta. Eu não partilho dessa visão, e farei tudo o que estiver ao meu alcance para a mudar”. Declarou ainda ao jornal italiano La Repubblica: “Várias vezes os chefes da Igreja foram narcisistas, lisonjeados e empolgados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado.”

“O Papa nunca falou bem dos padres”, diz o padre que mal pode esperar que ele morra. “É um jesuíta anticlerical. Lembro-me bem dessas ideias nos anos 70. Costumavam dizer: ‘Não me chames padre, chama-me Manuel’ — esse tipo de parvoíces — e nós, o oprimido clero paroquial, sentimos que nos tiraram o chão.”

Em Dezembro de 2015, Francisco fez o seu tradicional discurso de Natal à Cúria e não poupou nas palavras: acusou-a de arrogância, de “Alzheimer espiritual”, de “hipocrisia típica dos medíocres e progressivo vazio espiritual que não pode ser preenchido com diplomas académicos”, bem como de vão materialismo e gosto pela bisbilhotice e maldizer — não é o tipo de coisa que se quer ouvir do chefe na festa de Natal da empresa.

Contudo, quatro anos decorridos sobre o início do seu papado, a resistência passiva do Vaticano parece estar a levar a melhor sobre a energia de Francisco. Em Fevereiro deste ano, apareceram da noite para o dia, nas ruas de Roma, posters que perguntavam: “Francisco, onde está a tua misericórdia?”, atacando-o pela maneira como tratou o cardeal Burke. Este episódio só pode ter sido obra de elementos descontentes do Vaticano, e é um sinal inequívoco de uma teimosa recusa em entregar poderes ou privilégios aos reformistas.

A batalha sobre o divórcio e os novos casamentos põe em confronto duas ideias profundamente opostas sobre o papel da Igreja. Na fotografia, celebração de matrimónio na Praça de São Pedro, no Vaticano GETTY IMAGES

As igrejas do mundo ocidental estão cheias de divorciados
Esta batalha, porém, tem sido ofuscada, tal como todas as outras, pelas lutas internas relativamente à moralidade sexual. A disputa sobre o divórcio e os novos casamentos centra-se em dois factos. Primeiro, que a doutrina da Igreja Católica não mudou em quase dois milénios — o casamento é eterno e indissolúvel; isso é claro como água. Mas também o é o segundo facto: que os católicos se divorciam e voltam a casar aproximadamente ao mesmo ritmo que o resto da população e, quando o fazem, não vêem nada de imperdoável nisso. Portanto, as igrejas do mundo ocidental estão cheias de divorciados e de casais em segundas núpcias, que comungam com todos os outros, muito embora tanto eles como os seus padres saibam que tal não é permitido.

Os ricos e os poderosos têm desde sempre sabido explorar lacunas. Quando querem deixar uma esposa e voltar a casar, um bom advogado consegue sempre arranjar maneira de provar que o primeiro casamento foi um erro e não algo consumado no espírito que a Igreja exige, e assim haver razão para que seja apagado dos registos — ou, em jargão, anulado. Isto aplica-se especialmente a conservadores: Steve Bannon conseguiu divorciar-se de todas as três mulheres que teve, mas o exemplo contemporâneo mais escandaloso talvez seja o de Newt Gingrich, que liderou a conquista republicana do Congresso nos anos 1990 e que desde então se reinventou como aliado de Trump. Gingrich deixou a primeira mulher quando esta estava a ser tratada a um cancro e, enquanto estava casado com a segunda mulher, teve uma relação extraconjugal de oito anos com Callista Bisek, uma católica devota, antes de casar com ela pela Igreja — Callista foi a pessoa indicada para o cargo de nova embaixadora de Donald Trump no Vaticano.

A doutrina sobre o casamento após o divórcio não é a única maneira pela qual a doutrina sexual católica nega a realidade em que os laicos vivem, mas é a que causa mais danos. A proibição da contracepção é simplesmente ignorada por todos, em todos os sítios onde é legal. A hostilidade relativamente aos homossexuais é mitigada pelo facto geralmente reconhecido de que grande parte dos clérigos do mundo ocidental é gay e que alguns deles são bem-sucedidos celibatários. A rejeição do aborto não é um problema onde o aborto é legal e, de qualquer forma, não é uma questão particular da Igreja Católica. Mas a recusa em reconhecer segundos casamentos, a não ser que o casal faça votos de nunca ter relações sexuais, faz ressalvar o absurdo que é ter uma casta de homens celibatários a regulamentar a vida das mulheres.

A doutrina sobre o casamento após o divórcio não é a única maneira pela qual a doutrina sexual católica nega a realidade em que os laicos vivem, mas é a que causa mais danos.
Em 2015 e 2016, Francisco convocou duas grandes conferências (ou sínodos) de bispos de todo o mundo para discutir estes assuntos. Sabia que não conseguiria avançar sem um consenso alargado. Manteve-se em silêncio e encorajou os bispos a debaterem, mas rapidamente se tornou notório que era a favor de um considerável afrouxamento da disciplina à volta da comunhão após um segundo casamento. Dado que, de qualquer maneira, é isso que acontece na prática, torna-se difícil para quem está de fora entender o ardor que o assunto desperta.

“O que me interessa é a teoria”, diz o pároco inglês que confessa o seu ódio por Francisco. “Na minha paróquia há imensos divorciados e casais que voltaram a casar, mas muito deles, se soubessem que o primeiro cônjuge tinha morrido, iam a correr fazer um casamento na igreja. Conheço muitos homossexuais que fazem todo o tipo de coisas que são erradas, mas sabem que não deviam ser assim. Somos todos pecadores, mas temos de manter a integridade intelectual da fé católica.”

Com esta mentalidade, o facto de que o mundo rejeita a doutrina serve apenas para provar como está certa. “A Igreja Católica deve ser contracultura na ressaca da revolução sexual”, afirma Ross Douthat. “A Igreja Católica é o último lugar restante do mundo ocidental que defende que o divórcio é uma coisa má.”

Em Dezembro de 2015, Francisco fez o seu tradicional discurso de Natal à Cúria e não poupou nas palavras: acusou-a de arrogância, de “Alzheimer espiritual”, de “hipocrisia" GETTY IMAGES
Igreja como posto de primeiros socorros
Para Francisco e os seus apoiantes, tudo isso é irrelevante. Francisco diz que a Igreja deve ser um hospital ou um posto de primeiros socorros. As pessoas que se divorciaram não precisam que lhes digam que o divórcio é mau, precisam de recuperar e de refazer as suas vidas. A Igreja deve apoiá-las e mostrar misericórdia.

No primeiro sínodo, em 2015, esta era ainda uma visão minoritária. Foi preparado um documento liberal, que foi rejeitado pela maioria. Um ano depois, os conservadores estavam em clara minoria, mas a sua determinação era grande. O próprio Francisco escreveu um sumário das deliberações em “A Alegria do Amor”. É um documento longo, reflectivo e cuidadosamente ambíguo. A dinamite está escondida na nota 351 do capítulo 8 e assumiu uma imensa importância nas convulsões subsequentes.

A nota encontra-se anexada a uma passagem que vale a pena citar, tanto pelo que diz como pela maneira como o diz. O que diz é claro: algumas pessoas que vivem em segundos casamentos (ou em uniões de facto) “podem viver na graça de Deus, podem amar e podem também crescer na vida da graça e da caridade, e para tal podem receber a ajuda da Igreja”.

Mesmo a nota de rodapé, onde se lê que tais casais podem receber a comunhão se tiverem confessado os seus pecados, aborda o assunto com circunspecção: “Em certos casos, isto poderá incluir a ajuda dos sacramentos.” Consequentemente, “quero lembrar aos padres que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas antes um ponto de encontro com a misericórdia do Senhor”. E ainda: “Quero também salientar que a eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um poderoso medicamento e alimento para os mais fracos.”

“Ao vermos tudo a preto e branco”, acrescenta Francisco, “às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento.”

Entre os bispos, entre um quarto e um terço estão a resistir passivamente à mudança, e uma pequena minoria está a fazê-lo activamente.
Foi esta pequena passagem que teve o condão de unir todas as revoltas contra a sua autoridade. Ninguém consultou os laicos para saber o que pensam sobre o assunto e, de qualquer forma, as suas opiniões não são do interesse do partido dos introvertidos. Mas, entre os bispos, entre um quarto e um terço estão a resistir passivamente à mudança, e uma pequena minoria está a fazê-lo activamente.

O líder dessa facção é o grande inimigo de Francisco, o cardeal Burke. Primeiro demitido do seu cargo no tribunal do Vaticano e depois da comissão litúrgica, acabou no conselho de supervisão da Ordem de Malta — um organismo de caridade administrado pelas antigas aristocracias católicas da Europa. No Outono de 2016, demitiu o director da Ordem por supostamente ter permitido que freiras distribuíssem preservativos na Birmânia, algo que as freiras fazem regularmente nos países em desenvolvimento para ajudar a proteger as mulheres vulneráveis. O director demitido apelou para o Papa.

O resultado foi que Francisco readmitiu a pessoa que havia sido demitida e designou outro responsável para assumir a maior parte dos deveres de Burke. A decisão foi um castigo por Burke ter falsamente afirmado que o Papa tinha estado do seu lado na querela original.

Entretanto, Burke tinha aberto uma nova frente de batalha, que chegou o mais perto possível de acusar o Papa de heresia. Juntamente com três outros cardeais, dois dos quais morreram desde então, Burke elaborou uma lista de quatro perguntas destinadas a estabelecer se Amoris Laetitia violava a doutrina anterior. A lista foi formalmente enviada a Francisco, que a ignorou. Após a sua demissão, Burke tornou as questões públicas e afirmou estar preparado para emitir uma declaração formal de que o Papa era herege se as respostas não fossem do seu agrado.

É óbvio que Amoris Laetitia representa um corte com a doutrina passada. É um exemplo da Igreja a aprender com a experiência. Mas isso é difícil de assimilar para os conservadores: historicamente, estas rupturas doutrinárias só aconteceram em períodos de convulsão e separadas por séculos. Esta chega 60 anos apenas após a última irrupção de extroversão, com o Vaticano II, e 16 anos depois de João Paulo II ter reiterado a velha linha dura.

“O que significa que um Papa contradiga um Papa anterior?”, pergunta Douthat. “É incrível o quão perto está Francisco de entrar em conflito com os seus antecessores imediatos. Foi só há 30 anos que João Paulo II estabeleceu em Veritatis Splendor a linha que Amoris Laetitia parece contradizer.”

O Papa Francisco está deliberadamente a contradizer um homem que ele próprio proclamou como santo. Isso não é um problema para ele. Mas o facto de ser mortal pode vir a ser. Quanto mais Francisco se afastar da linha dos seus antecessores, mais fácil será para o seu sucessor reverter a sua. Embora a doutrina católica vá naturalmente mudando, a sua força depende da ilusão de que tal não acontece. Os pés podem tremer sob a batina, mas a túnica nunca deve oscilar. Contudo, isso também significa que as mudanças que ocorreram podem ser revertidas sem nenhum movimento oficial. Foi assim que João Paulo II respondeu ao Vaticano II. Para garantir que as mudanças de Francisco perdurarão, a Igreja tem de as aceitar. E isso é uma questão que não será respondida no seu tempo de vida. Tem hoje 81 anos e apenas um pulmão. Os seus oponentes podem estar a rezar pela sua morte, mas ninguém pode saber se o seu sucessor tentará contradizê-lo — e o futuro da Igreja Católica paira agora sobre essa dúvida.
ANDREW BROWN  24 de Dezembro de 2017, 8:30
Exclusivo The Guardian/ PÚBLICO. Tradução de António Domingos
Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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