1. 800 anos é muito tempo. Foi com este título que
anunciei o jubileu da Ordem dos Pregadores (1216-2016). Não tenho uma devoção
especial pelas comemorações, mas sei que uma das doenças mais temidas na minha
idade é, precisamente, a perda da memória, Alzheimer. As crianças têm pouco
passado. Elas são a realidade do futuro. Os idosos têm algum passado e pouco
futuro. As Ordens Religiosas não nasceram todas ao mesmo tempo e, dentro da
mesma época, nasceram para responder a desafios novos e diferentes, supondo que
têm algo a dizer ao mundo em mudança. Não têm promessas de vida eterna. Algumas
nasceram e morreram depressa, outras têm a pele mais dura.
A Ordem
dos Pregadores, com suas glórias incomparáveis, virtudes e pecados, celebrou
800 anos. Como muitas outras, não nasceu só de uma vez. Por vezes, onde foram
mais vigorosas e fecundas, enfraqueceram e começam noutras áreas culturais e
sociais, como se estivesse a nascer de novo. Há 70 anos que conheço os dominicanos.
Encontrei-os em muitos países, umas vezes em grande desenvolvimento, noutras
com muitas dificuldades e, noutras ainda, a começar como se estivem a fundar a
Ordem.
Faço
parte dos dominicanos há 64 anos. Quando entrei, vivia-se uma grande
turbulência nas províncias dominicanas francesas. Era a época da nova Teologia, dos Padres operários, do diálogo activo com as diferentes correntes do
mundo contemporâneo: teólogos com as suas obras no Index dos livros proibidos,
outros no exílio, etc.. Essa história triste está feita e abundantemente
documentada[1].
Só
depois, já durante o Noviciado, tomei conhecimento de uma história anterior, trágica
e gloriosa. Estou a referir-me ao itinerário do dominicano Marie-Joseph
Lagrange, fundador da Escola Bíblica de Jerusalém (1889-1913).
2. No passado dia 21, Frei Miguel dos Santos fez, no novo
Convento de S. Domingos em Lisboa, a apresentação desse itinerário escrito pelo
próprio autor[2].
Trata-se,
na verdade, de recordações pessoais que o Padre Lagrange escreveu, não para
serem publicadas, mas para informar os seus confrades e explicar as intenções
subjacentes à fundação da Escola Bíblica e, sobretudo, acerca dos embates e
combates a que esteve ligado em defesa desta genial fundação ameaçada.
Só foram
publicadas em 1967, por iniciativa do Padre Pierre Benoit, que foi um dos
últimos e célebres discípulos directos do Padre Lagrange, juntamente com o
Padre Roland De Vaux.
O Padre
Lagrange foi um dos pioneiros, no campo católico, da moderna exegese científica
da Bíblia, que pode caracterizar-se, simplificando, pelo seu método
histórico-crítico. Este método consiste, essencialmente, na utilização das
ciências históricas e seus instrumentos específicos na abordagem dos textos
bíblicos.
Este
tipo de abordagem foi sobretudo desenvolvido por exegetas protestantes alemães
do século XIX. Julgava-se que o seu racionalismo demolidor punha em causa os
fundamentos históricos de toda a Bíblia.
A posição
do Padre Lagrange foi a de perceber que não valia a pena, por parte dos
católicos, entrincheirarem-se numa apologética puramente defensiva contra os
ataques do racionalismo alemão, mas sim de entrar no mesmo campo em que ele se
movia, utilizando os mesmos instrumentos críticos de estudo e análise dos
textos bíblicos.
A
fundação da Escola Bíblica foi, de início e em geral, bem acolhida. Tratava-se
de criar uma instituição dedicada aos estudos bíblicos no meio geográfico onde
nasceu a maior parte dos livros da Bíblia e no meio cultural mais afim com
aquele em que viveram os seus autores.
Quando o
Padre Lagrange e os seus colaboradores começaram a concretizar o projecto que
os movia, tudo se complicou. O clima era terrível. Tudo o que cheirasse a
inovação era acusado de modernismo. Esta
palavra abarcava diferentes correntes teológicas condenadas pelo Papa Pio X,
através do decreto Lamentabili e da
encíclica Pascendi. De facto, lamentável
era esta mentalidade inquisitorial.
Com os
artigos do Padre Lagrange e de outros colaboradores, na Revue Biblique e com as primeiras obras de folego na colecção Études Bibliques, é a própria Escola
Bíblica, o seu fundador e o seu projecto que são postos em causa e atacados de
forma vergonhosa.
As
tribulações incríveis deste caminho são o conteúdo da obra apresentada no
Domingo passado. Devem dar muito que pensar. A invocação, na Igreja, do dever
de obediência devia ser sempre acompanhada pelo direito e pela exigência de
prosseguir os caminhos da investigação da verdade. O perigo não é a liberdade,
é o autoritarismo.
3. Hoje, podemos perguntar que seria dos estudos bíblicos,
na Igreja, sem a tenacidade heroica do fundador da Escola Bíblica? Muita gente
conhece, em muitos países a Bíblia de
Jerusalém, mas não é aí nem nas muitas investigações e publicações que a
Escola produziu, ao longo de 100 anos, nem em se ter tornado num centro de
atracção de investigadores de todos os quadrantes e de todo o mundo, que está a
sua importância. O seu mérito principal é porque a luta do P. Lagrange e seus
colaboradores possibilitou abrir, na igreja Católica, o espaço a todas as
formas de investigação e interpretação da Bíblia[3].
Frei
Bento Domingues, O.P.
in
Público 29.01.2017
[1] François Leprieur, Quand Rome condamne. Dominicains et prêtes-ouvriers, Plon/Cerf,
Paris 1989.
[2]
Marie-Joseph Lagrange, o.p., Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao
serviço da Bíblia, Biblioteca Dominicana, Tenacitas, Coimbra/Salamanca
2017.
[3]
Comissão pontifícia Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, Rei dos
Livros, 1994