1. O filósofo Bertrand Russel não foi muito original ao destacar que os dois grandes desejos
humanos são o poder e a glória. Podem
realizar-se pelos caminhos da ilimitada vontade de dominação económica,
política e religiosa ou pelo desenvolvimento dos próprios talentos em função da
vontade de criar condições para que tenham todos iguais oportunidades.
Em Portugal, a julgar pelas aparências, o
grande desejo de poder e glória, de pais e filhos, é que ganhe o clube da sua
paixão. Os mais devotos têm sempre os caminhos de Fátima à disposição. Se
aparecer um Papa, é o segredo da glória, o desejo consumado.
Em meados do
séc. VI a. C., nasceu um príncipe desencantado, Siddharta Gautama, mais
conhecido por Buda, o iluminado, viu-se confrontado com a pulsão avassaladora
do desejo. No célebre discurso pronunciado em Benares, nas margens do Rio
Ganges, teria sentenciado que a terceira “nobre verdade”, para acabar com a dor
omnipresente, era indispensável abolir o desejo e os seus laços. Vale a pena
perguntar: será o desejo uma doença ou uma bênção?
O mundo do
desejo, da fantasia, do afecto é de tal forma essencial ao psiquismo humano,
que todas as outras faculdades é dele que recebem a sua energia. Nasce de uma
falta estrutural no ser humano, não como uma maldição, mas como um infindo
desassossego. Para Espinosa, a essência do ser humano é o desejo. Segundo
Aristóteles, os desejos que não dependem da fisiologia, mas da razão, são
ilimitados; os seres humanos desejam o infinito. S. Tomás de Aquino descobriu,
nessa sede insaciável, o desejo natural de ver a Deus que não pode ser
defraudado[1].
Não há notícias de que Buda tenha influenciado o Nazareno,
embora este também tenha mudado de rumo depois de uma divina iluminação. Já
foram descobertas afinidades entre certas passagens dos evangelhos e algumas
propostas da sabedoria budista, mas não são da mesma extracção. Jesus não era
pela abolição do desejo, mas pela sua intensificação e metamorfose, isto é, pela
sua conversão. O seu desejo mais
ardente era colocar-se ao serviço do desejo libertador de Deus, alegria do
mundo. Era vontade humana e divina de alteração radical da nossa sociedade.
Os Evangelhos sinópticos mostram, no entanto, que ele teve de
lutar contra tentações diabólicas infiltradas nos caminhos do advento e da configuração
da era messiânica. Se era realmente o
Messias tinha de o provar. Mediante acontecimentos espectaculares, transformações
económicas, políticas e religiosas radicais, teria o mundo a seus pés.
Jesus conhecia os desejos, os modelos, os grupos e os
movimentos messiânicos que agitavam o povo a que pertencia e que, sem um poder
absoluto, era impossível realizar os seus projectos. Percebeu também que, por
esse caminho, tinha de renunciar à alma da sua alma: à experiência do Deus do
puro amor e ao projecto de passar os marginalizados dos diversos poderes para o
coração da sociedade.[2]
2. As tentações supunham que conheciam bem a Deus, os
apetites do coração humano e o projecto do Nazareno. Vencida a tentação, ficou
o aviso: quando alguém invocar a Deus para O negar ou para O louvar é
indispensável perguntar: qual é a experiência pessoal, existencial donde nasce essa
negação, exaltação ou indiferença religiosa? Fora do contexto cultural, político
e religioso que provoca essas atitudes, não podemos saber o que está a comandar
o uso da palavra Deus.
Na teologia de S. Tomas de Aquino, muito marcado pela teologia negativa do Pseudo-Areopagita, Deus só pode ser conhecido como
infinitamente Desconhecido. A tentação permanente das religiões é a criação de
deuses à imagem dos nossos desejos distorcidos para legitimar sociedades
enlouquecidas pelas lutas da dominação económica, política e religiosa.
Como vimos, Jesus disse radicalmente não às tentações messiânicas
que o assaltaram, mas levou muito tempo a compreender a prontidão dos discípulos
em abandonar tudo para o seguirem. O Evangelho segundo S. Marcos mostrou, com
insistência, que Jesus os chamou para uma missão e o que eles desejavam era que
o Nazareno tomasse mesmo o Poder e o resto era só conversa. Por isso, a
discussão entre eles girava sempre em torno da futura distribuição dos cargos
políticos. Um dia a tensão explodiu: os irmãos, Tiago e João, perderam o pudor
e foram reclamar os dois primeiros lugares, o que indignou os outros dez.
Perante essa situação, Jesus resolveu pôr tudo em pratos
limpos: sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus
grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele
dentre vós que desejar ser grande, seja o vosso servidor e aquele que quiser
ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não
veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela libertação de
todos[3].
3. O texto de S. Marcos deixou claro como devem ser as
relações de poder na Igreja. Só dessa forma ela se pode tornar uma instância
crítica dos poderes de dominação na sociedade.
O que o Papa Francisco está a fazer na Cúria romana, com
tantas resistências, é puro Evangelho. Já em 1969, o Cardeal Suenes denunciava
o sistema que aprisiona o Papa e o torna cúmplice e solidário daquilo que ele
não quer, tenha ou não a sua assinatura. É preciso conseguir libertar o Papa do
sistema do qual há queixas há vários séculos, sem resultado. Porque, como
Suenes frisou, ainda que os Papas mudem,
a Cúria permanece.
O poema do bispo Casaldáliga gritou: larga a cúria, Pedro,| desmantela
o sinédrio e a muralha.| Ordena que se mudem| todas as filactérias impecáveis |
em palavras vibrantes de vida.
Ao fim desta Quaresma, da Semana Santa e da Oitava da Páscoa,
há um sabor amargo: tirando o Papa, quem, no mundo católico, nas dioceses, nas
paróquias, nos conventos, se levantou contra os sinais de guerra que marcam o
mapa do mundo?
Repetiu-se: estar com o Papa é estar com a Igreja. Isto era
quando os Papas não se comoviam com as dores dos mais feridos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 23.04.2017
[1] José Antonio Marina, Las arquitecturas del deseo, Anagrama,
Barcelona, 2007; Juan Guillermo Droguett, Desejo
de Deus. Diálogo entre psicanálise e fé, Vozes, Petrópolis 2000, pp. 13 e
139; Cipriano Franco Pacheco, O desejo
natural da visão de Deus. Expressão de abertura humana ao transcendente,
Romae, 2001;Teresa Messias, O desejo e a
sua transformação no seguimento de Jesus. Uma leitura dos escritos de Sebastião
Moore,Paulus,2017.
[2] Cf. Lc
4, 1-13; Mt 4,1-11; Mc 1,12-13
[3]
Mc 10, 35-45
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