1. Vivemos, hoje,
um momento de extraordinárias possibilidades na Igreja Católica e o Papa
Francisco é, a muitos títulos, uma bênção mundial.
Os participantes no G20, em Hamburgo, nos dias 7 e 8 de
Julho, tinham um tema: “Dar forma a um mundo interligado”. Na sua mensagem, o
Bispo de Roma lembrou quatro princípios de acção, recolhidos da sabedoria
multissecular, para a construção de sociedades fraternas, justas e pacíficas: o tempo é superior ao espaço; a unidade prevalece
sobre o conflito; a realidade é mais importante do que a ideia; o todo é
superior às partes.
Já tinha assumido essa sabedoria no seu programa pastoral Evangelii gaudium, pois a Igreja não deve aprender apenas na
escola da Bíblia e das suas tradições, mas na de todos os povos e culturas, do
passado e do presente. Para poder ser “mãe e mestra”, tem de ser filha e aluna
atenta a todos os mundos. Antes de falar é necessário ouvir, como indica o
ritual do Baptismo.
Na sua mensagem aos mais ricos e poderosos, Bergoglio abordou
cada um desses temas de forma extremamente rigorosa e concreta, mas sempre com
um objectivo muito preciso: Dar
prioridade absoluta aos pobres, aos refugiados, aos sofredores, aos deslocados
e aos excluídos, sem distinção de nação, raça, religião ou cultura e rejeitar
os conflitos armados.
Possibilidades semelhantes tinham sido abertas pelo Papa
João XXIII, ao convocar o concílio Vaticano II (1962-1965), uma espantosa
primavera traída, por algo que ainda hoje é inquietante: o adiamento da reforma
das mediações concretas e a sua substituição por remendos de pano velho e
irrecuperável.
A decepção criou gerações de católicos decepcionados, “não
praticantes”, periféricos e um catolicismo do abandono da Eucaristia, cuja
gravidade está ainda longe de ser reconhecida. Pela longa cegueira e medo de se
tocar na Cúria, foi impedida a reforma radical dos ministérios ordenados que
continua a ser uma urgência adiada.
Foi-se pronto a impedir a ordenação das mulheres, invocando
razões teológicas ininteligíveis. Para os homens casados, dizem que não há
nenhum obstáculo teológico, mas o resultado é o mesmo. Como o actual modelo de
acesso a esses serviços está falido, os dons ministeriais de serviço
sacramental da Igreja não têm quem os possa receber.
Em várias dioceses, o clero das Congregações religiosas vai
procurando tapar o sol com a peneira,
traindo a sua vocação específica. Certas Congregações femininas, multiplicando
retiros e cursos de formação, ao rejeitarem as transformações das suas estruturas,
estão em progressiva e inútil agonia.
2. A Igreja
católica não pode prescindir das mediações sacramentais e litúrgicas. Fazem
parte das celebrações existenciais da Fé. O modo como celebra não é indiferente.
Celebrar mal é pior do que não celebrar: fomenta alergias inúteis. O domingo,
na linguagem cristã, não pertence ao “fim de semana”, mas à grande festa do seu
primeiro dia. Nasceu como possibilidade, muito bela, de rejuvenescer e
transformar a vida, resistindo às tendências negativistas e niilistas.
A religião ética é uma forma de resistência à alienação e ao
pessimismo. É um protesto para abrir caminhos na floresta dos enganos. Por
isso, a experiência da finitude é caminho de abertura à transcendência, que se exprime,
sobretudo, na linguagem simbólica de gestos e palavras.
3. Tomás de
Aquino, na primeira fase do seu ensino, estava marcado por uma concepção dos
Sacramentos como causas da graça. Na
Suma Teológica abandonou essa perspectiva e situou os Sacramentos no mundo da
simbologia. São essencialmente signos,
sensíveis, terrestres da graça actuante de Cristo. É uma mudança radical que
ainda hoje está longe de ser assumida em todas as consequências. O primeiro
cuidado com a sua celebração não é a fidelidade às rúbricas de um ritual, mas a
realização de uma festa significativa da Fé pelo envolvimento de todos os
participantes, mulheres e homens, grandes e pequenos.
É tríplice a sua significação: remetem para todo o percurso
de Jesus Cristo até ao dom do Espírito Santo à Igreja, mas não são uma romagem
de saudade, não fixam a comunidade naquele
tempo. Cristo ressuscitado não pode ser amputado da sua vida terrestre, mas
é celebrado como presença actual e transformante da comunidade, abrindo-lhe um
futuro de esperança.
Seria engano ver nesta estrutura simbólica – causam o que significam – apenas actos
de Cristo, como um automatismo ritual. Não se pode esquecer a correlação íntima
entre essa actuação e as experiências de vida da assembleia celebrante. Estas
são essenciais ao acontecimento sacramental e precisam de ter expressão
pública.
Dizer que foi Cristo que instituiu os sacramentos e,
especialmente, a Eucaristia, não se pode pensar como se ainda estivéssemos no
mundo cultural da época de Jesus. Pensar dessa maneira é amputar o cristianismo
da sua significação universal e da sua capacidade de inculturação em todos os
povos e culturas. Quem, no seu perfeito juízo, pode hoje supor que na
chamada celebração da última Ceia, Jesus tenha dito: fazei isto em memória de mim, mas só com pão de trigo, ázimo e a bebida
só pode ser vinho?
Dir-se-á que hoje os comerciantes do trigo podem
assegurar esse cereal em qualquer parte do mundo. Não tenho dúvidas. Todos
sabemos das imposições culinárias da grande indústria. Não me parece que seja
essa a missão da Igreja.
A simbólica da Eucaristia é a mesa partilhada, por isso, quando se convida alguém para jantar não
se lhe pode dizer: vem, mas não comas.
Uma das grandes tarefas das Igrejas locais consiste em
exprimir a identidade da Fé cristã nas linguagens das suas culturas.
Sarah, com as suas exigências culinárias, mesmo com
risco para a saúde, anulou a simbólica essencial da Eucaristia, como mesa
cristã de todos os povos. A base dos Sacramentos é terrestre, é sensível, mas é
a sua tríplice significação do mistério cristão que mais conta. O cardeal atirou
fora a simbologia e ficou, apenas, com as coisas, retirou-se da
sacramentalidade.
Não sei se Jesus gostava ou não de broa. Talvez até
nem soubesse que existia. Mas imaginar que ficaria atrapalhado, nos lugares em
que o trigo não é o principal alimento, em celebrar com broa ou com arroz é
duvidar do poder de Cristo.
Sou levemente alérgico a estas crónicas durante o mês
de Agosto. Até Setembro.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 28.07.2017