24 setembro 2017

UM DEUS DISTRAÍDO?

      1. Não têm conta as vezes que me fizeram, e fazem, a pergunta do título desta crónica. Sei que não tenho o exclusivo.
Não escondo que me divertem as pessoas religiosas e teólogas que dão a ideia – pelo que dizem e escrevem, pelo que aconselham ou mandam – que conhecem a vontade de Deus e os seus misteriosos caminhos. A tudo dizem: foi a vontade  de Deus, mesmo quando essa expressão, pretensamente piedosa, é o pior insulto que Lhe podem fazer.
Por outro lado, são, por vezes, as mesmas pessoas que, pelas suas repetidas e abundantes orações, supõem que Deus ande mal-informado. As chamadas orações dos fiéis nas Celebrações Eucarísticas, mais ou menos gemidas, tentam lembrar a Jesus a sua responsabilidade pela péssima situação mundial.
Parece que todas as religiões, ou a maioria, têm fórmulas e livros de orações. Basta ir ao Google e, a partir da palavra oração, podemos ficar minimamente referenciados acerca desse mundo, ora sublime ora ridículo.
A nossa ligação fervorosa a Deus deveria estar atenta à nossa radical ignorância. Nunca me posso esquecer que S. Tomás de Aquino, depois de expor a sua epistemologia teológica e de apresentar as razões que tinha para afirmar que Deus existe, empenhou-se em mostrar, imediatamente, que não podemos saber como é Deus. A teologia dele é, sobretudo, uma luta contra as idolatrias que se insinuam em todas as atitudes e discursos religiosos.
Julgo que a religião – embora seja uma palavra de origem latina – nasce da consciência, mais ou menos explicita, do ser humano como realidade limitada. Precisa do outro para nascer, para crescer, para viver e para morrer. Não é auto-suficiente. É, por natureza, carente de cultura e de afectos. É uma realidade em permanente processo. Vai sendo através dos mil contactos cultivados ao longo da vida. É, estruturalmente, um ser aberto. Neste mundo multicultural e multirreligioso desenvolve-se bem ou mal, na recusa ou na aceitação. Quando se fecha aos outros, perde-se e afoga-se em si mesmo.
As boas relações humanas são as de acolhimento e cooperação. As más são as de dominação psicológica, económica, política e religiosa. Por isso, a pergunta mais sagrada, mais religiosa, em todas as situações, talvez seja esta: em que posso ajudar?
Não é por acaso que a primeira grande pergunta que Deus faz, logo no Génesis[1], seja esta: que fizeste ao teu irmão e seja também a última que julgará a nossa história, segundo o Evangelho de S. Mateus[2].
Mas, então, devemos ou não rezar?
2. Não faltam, mesmo no Novo Testamento, recomendações de que devemos rezar sempre e em toda a parte. Não de qualquer maneira. Nem foi a primeira preocupação de Jesus. Consta, no Evangelho de S. Lucas, que os discípulos se sentiam um grupo um bocado abandonado, nesse aspecto. «Estando (Jesus) num certo lugar a rezar, ao terminar, um dos seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou aos seus discípulos[3]». Daí, resultou uma longa conversa e uma parábola que termina de forma paradoxal: a única coisa garantida é que o Pai dos Céus dará o seu Espírito aos que o pedirem. S. Mateus põe na boca de Jesus a recomendação: «nas vossas orações não useis de vãs repetições, como fazem os gentios, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles, porque o vosso Pai sabe do que tendes necessidade, antes de lho pedirdes». De facto, deixou-nos apenas pistas muito gerais, no Pai-Nosso[4].
Estas indicações básicas atribuídas a Jesus deveriam merecer mais atenção. A Liturgia das Horas, rezadas em coro em muitas congregações religiosas, serve-se da recitação dos Salmos do Antigo Testamento. É precisa uma grande dose de paciência para aguentar a divisão entre o povo de Deus e os outros povos que não sabemos de quem são, geralmente inimigos. Esse Deus tem o encargo de defender e ajudar o seu povo e de atacar os outros povos. É um mundo pouco edificante de amigos e inimigos. É preciso, depois de Jesus Cristo, estar sempre a fazer descontos na oração.
Fazem parte de cenários em que se põe na boca do Senhor, Deus de Israel, uma narrativa na qual, depois de muitas bem-feitorias ao seu povo, que, finalmente, atravessou o Jordão e chegou a Jericó, faz esta declaração fantástica, coroa de muitas outras: «combateram contra vós os que dominavam a cidade – os amorreus e os perezeus, os cananeus e os ititas, os girgasitas, os hevitas e os jebuseus – mas Eu entreguei-os nas vossas mãos. (…) Não foi com a vossa espada nem com o vosso arco que tudo isto foi feito. Dei-vos uma terra que não cultivastes, cidades que não construístes e onde agora habitais, vinhas e olivais que não plantastes e de que vos alimentais».[5]
Pode um cristão rezar a um Deus destes?
3. Anda o Papa Francisco a dizer que não se pode matar em nome de Deus e, depois, louvá-Lo por ser um terrorista, porque eterno é o seu amor?
O diálogo inter-religioso, para não ser um teatro de mau- gosto, deve incluir a crítica das expressões religiosas que ofendem a Divindade maltratando os seres humanos.
Em Assis, já diversas vezes, os representantes de diferentes religiões foram rezar juntos. Nenhum tem o direito de criticar a forma de rezar dos outros, mas todos se deveriam sentir responsabilizados a contribuir, no âmbito da sua religião, para reverem as respectivas formas de rezar.
Por outro lado, se o ser humano é religioso pela interpretação que faz do seu limite, tem de cuidar de não transpor para Deus a sua responsabilidade. Quando se diz, de forma metafórica, que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, isso significa que o ser humano, por ser livre, é responsável pelo seu mundo, pela casa comum.
O Papa Francisco não se cansa de repetir que já estamos, de modo fragmentado, na terceira guerra mundial. Existem sistemas económicos que devem fazer a guerra para sobreviver. Ao fabricar e vender armas sacrificam, nos balanços económicos, o ser humano no altar do deus dinheiro.
Gosto da sua forma de rezar: Queridas irmãs e irmãos, eleva-se de todos os lugares da terra, de cada povo, de cada coração e dos movimentos populares, o grito da paz: guerra, nunca mais![6]
Não é a um Deus distraído que ele reza. Reza para diminuir o mundo dos distraídos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 24.09.2017


[1] Gn 4, 1-15
[2] Mt 25, 31-46
[3] Lc 11, 1-13
[4] Mt 6, 5-15
[5] Cf. Js 24, 1-13
[6] Politique et société, du Pape François (Rencontres avec Dominique Wolton), Editions de L’Observatoire/Humensis, 2017, p. 11. 

17 setembro 2017

ESTE PAPA É UMA DECEPÇÃO!

       1. Num dos períodos de conflito armado mais ameaçador e de medo generalizado, dei aulas e fiz conferências de teologia em Bogotá e Medellin. Depois de 50 anos de horror, comoveu-me a coragem e o empenhamento do Papa Francisco, no meio de muitas dificuldades locais, em intensificar e tornar irreversível o processo de paz, na Colômbia.
Bergoglio não foi celebrar um país reconciliado, sem traumas nem ressentimentos. Quis contribuir para que  todos desejem que o diálogo e a reconciliação se tornem o estilo de vida do país.
É difícil aceitar que o ressentimento do ex-Presidente Álvaro Uribe – que se confessa um fervoroso católico – o tenha tornado alérgico à iniciativa do Papa que declarou aos colombianos: foi demasiado o tempo que passaram no ódio e na violência; não queremos que mais nenhuma vida seja anulada ou restringida. A conversão não é um acontecimento impossível.
Bergoglio não escolheu apenas o nome de Francisco de Assis. Em todo o lado, na Europa, no Oriente, em África, nas Américas, na Ásia, a sua vontade é realizar a oração que dele recebeu: Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz; Onde houver ódio, que eu leve o amor; Onde houver discórdia, que eu leve a união; (…); Pois é dando que se recebe; É perdoando, que se é perdoado; é morrendo que se vive para a vida eterna.

Mas se este é o espírito e o comportamento do Papa, porque suscitará ele tanta oposição?
2. Uma revista jesuíta[1] resolveu divulgar um texto de um biblista italiano, Alberto Maggi, membro da Ordem dos Servos de Maria, intitulado: Desilusão. O autor desenhou uma tipologia que alguns julgarão simplista, mas talvez seja apenas tão exacta que lhe baste ser simples.
Segundo ele, tudo começou com um murmúrio discreto, que se tornou uma queixa e se foi ampliando. Agora, a resistência já é declarada: um confronto público, por vezes uma provocação acompanhada de ameaças de um cisma.
Francisco, em pouco tempo, conseguiu decepcionar quase todos. Esta decepção de ressentimento encapotado converteu-se em algo que está à vista de quem quiser ver. Alguns dos cardeais que o elegeram estão desiludidos. Parecia o homem ideal, sem esqueletos nos armários, doutrinalmente conservador, mas aberto às novas ideias. Com ele poder-se-ia garantir um tempo de paz no meio dos escândalos da Igreja, um período sem turbulências nem divisões.
Nunca imaginaram que Bergoglio tivesse a intenção de reformar a Cúria Romana, de acabar com os seus privilégios e fustigar as vaidades do clero. A sua presença, simples e espontânea, é uma acusação constante aos prelados pomposos, faraónicos, anacrónicos, cheios de si mesmos.
Os bispos carreiristas estão decepcionados. A nomeação para uma cidade era só um passo para uma posição de maior prestígio. Estavam prontos a clonar-se com o pontífice de serviço, imitá-lo sempre em tudo, desde os gestos externos até aos doutrinais, fazer qualquer coisa para lhe agradar e obter os seus favores. Agora, vem este Papa e convida os bispos ambiciosos e vaidosos a ter o cheiro das suas ovelhas… Que horror!
Uma parte do clero também está decepcionada. Esse clero sente-se perdido. Criado no estrito cumprimento da doutrina, indiferente ao povo de Deus, já não sabe que fazer. Tem de recuperar um sentido de “humanidade” que o escrupuloso cumprimento das normas da Igreja tinha atrofiado. Pensava que estava, como “sacerdote” (presbítero), acima dos fiéis e, agora, este Papa convida-o a descer e a colocar-se ao serviço dos últimos…
Decepcionados também estão os leigos empenhados na renovação da Igreja, assim como os tradicionalistas super apegados ao passado. Para estes últimos, o Papa é um traidor, a ruína da Igreja. Para os primeiros, não está a fazer o suficiente, não muda nem as regras nem as leis que já não estão em sintonia com os tempos, não legisla, não usa a sua autoridade como “comandante” da Igreja…
Os mais entusiasmados com ele são os pobres, os marginalizados e invisíveis e, também, aqueles cardeais, bispos, padres e leigos que, durante décadas estiveram afastados por causa da sua fidelidade ao Evangelho, encarados com suspeita e perseguidos por causa da sua mania louca de ligar mais à Sagrada Escritura do que à tradição.
Aquilo que só haviam esperado, sonhado ou imaginado converteu-se numa realidade com Francisco, o Papa que fez descobrir ao mundo a beleza do Evangelho.
3. Alberto Maggi não tinha de falar de tudo. Os leitores portugueses podem e devem completar os mapas locais e o mundo das suas relações cujas percepções serão, naturalmente, muito variadas.
Pelo que ouço dizer e observo, em Portugal, existem movimentos e orientações paroquiais, discretamente empenhados em contrariar as consequências dos gestos, das palavras e das intervenções do Papa. Quando ele diz que a reforma litúrgica é irreversível, esses movimentos, organizações e personalidades não fazem declarações públicas de que estão contra ela. Adoptam gestos e devoções que a contrariam. Isto sem falar nos textos que escrevem para mostrar que o Papa é um homem de boa vontade, mas incompetente do ponto de vista teológico, para orientar a Igreja. O que lhe falta em teologia sobra-lhe em atrevimento e falta de respeito pelo Direito Canónico.
No meu ponto de vista, seria péssimo que os gestos e as atitudes do Papa não fossem discutidos. O uso da liberdade de expressão na Igreja é um direito e um dever. Aliás, é o que este Papa mais exerce e mais deseja para todos. O que é inaceitável é que sejam aqueles que sempre atacaram a liberdade no passado, usem todos os meios para restaurar um tempo em que só eles e os da sua tendência tinham direito de expressão. Servir-se de um tempo de liberdade para a destruir, não é o caminho da ética humana e cristã mais respeitável.
P.S. Foi no dia em que escrevi esta crónica que soube da morte do Bispo do Porto, António Francisco dos Santos, o Bispo português de quem mais gostava e que sempre me acolheu com muita amizade.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 17.09.2017

12 setembro 2017

Pope Francis and his Council

      Duas cartas que recebemos do WOW, Women's Ordination Worldwide

      Feast of St. Augustine, 2017

      Dear Pope Francis,

I hope you that are well and that your officials let you receive this letter. I pray for you. Your obvious concern for the poor, for the environ-ment, and for reform in our church is more than wonderful.
Enclosed again are two letters about the ordination of women: the first is sent to each member of the Council of Cardinals with whom you are soon meeting; the second is a letter for background that I mailed to all the ordinaries of the United States at the beginning of Lent in 2014.
When you talked about the need for honest dialogue on the issues that we face as a church, it was initially heartening. You kept insisting: “dialogue, dialogue, dialogue.” In fact, you said: “dialogue fearlessly.”
Unfortunately, however, there is not now, nor has there ever been, fearless dialogue—let alone anything gender inclusive—on the ordination of women, even though this issue is arguably the one most crucial.
In your care for God’s people, can the collaboration between bishops and theologians at Vatican II be a model? As our Supreme Bridge Builder can you empower an up-to-date synodal dialogue now so tragically absent and so desperately needed?
How can our church be whole if women are “not fully in the likeness of Jesus”? Not to affirm the body-and-soul wholeness of women—leaving their integrity ignored, disparaged, and denied—is a crushing injustice that stifles the Spirit and gives a lie to the Good News.
Is it wrong to hope that our ecclesial structures—crumbling in stone yet so powerfully ensconced in patriarchal privilege—can come to embrace an intelligent view of gender? Is it possible to see that integrity and mutuality are embodied by grown women as well as grown men?
Pope Francis, can the Vatican’s understanding of women finally take a centuries-leap forward? Can justice and mercy actually wed?
Sincerely,
John J. Shea, O.S.A.
Copy: Each Member of the Council of Cardinals

      Feast of St. Augustine, 2017

      Dear Cardinal Parolin,

I am writing again to you and to each of the members of the Council of Cardinals to ask you to directly address in your September meeting the church’s ongoing decision to see women as lacking the body-and- soul integrity to be ordained to the priesthood. This is a critical issue of structural reform—ecclesia semper reformanda. It radically warps our church’s identity and painfully cripples its mission in the world.
Of all the things that Pope Francis has said and done, the way he opened the Synod on the Family in 2014 was perhaps the most extraor-dinary. He asked the bishops to speak “freely,” “boldly,” and “without fear.” This exhortation is quite shocking: he had to ask his fellow bish-ops—grown men and the church’s teachers—to speak honestly to each other. Given a church so incredibly challenged by dialogue, however, his exhortation was not only necessary but was, at lease at the time, some small sign of hope.
If you believe that the ordination of women to the priesthood is vital for the integrity, the mutuality, the maturity, and the viability of our church, I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If you know from your own experience that any given woman is as religiously mature and able to provide pastoral care as any given man, I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If you find there is nothing in Scripture or tradition that that pre-cludes the ordination of women to the priesthood, I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If seeing women and men through a complementarity lens or in light of precious patriarchal symbolism is not ad rem to women’s worthi-ness of ordination, I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If you find the 1994 letter, Ordinatio Sacerdotalis: 1) was the fruit not of dialogue but of doctrinal fiat; 2) was written directly in the face of—and arguably to cut off—serious scriptural-theological dialogue actu-ally taking place; and 3) then mandated that no dialogue—let alone any-thing fearless or gender-inclusive—is allowed going forward, I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If you see that the letter, Ordinatio Sacerdotalis, is an historical in-terpretation of ordination rather than one that is theological, I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If the theological explanation actually put forth by the Vatican in the 1970s and 1980s—that women cannot be ordained because they are “not fully in the likeness of Jesus”—would be silly if it were it not so he-retical, I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If seeing women fully created in the image and likeness of God does not mean that they are fully created in the image and likeness of Jesus—if such Trinitarian theology is puzzling, incongruous, or totally bizarre—I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If the church’s current stance effectively undermines the Three-in-Oneness of our God—if a huge patriarchal beam is stuck in the church’s eye, worshipping the Father as genetically male, the Son as genetically male, and, of course, the Holy Spirit as genetically male—I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If you are concerned about the adult faithful leaving the church in droves because women are not worthy of priesthood—if you understand that “a patriarchal Jesus” severs the roots of inclusion, respect, and trust in the church—I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If it is clear that the church’s opposition to the ordination of women is taken—inside and outside the church—as affirming women’s inferiority and justifying domestic violence, infanticide, trafficking, and many other atrocities, I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
If you want bishops to work now in a synodal way with theologians and the faithful—under the aegis of a genderless Spirit—to affirm the body-and-soul integrity of women and to heal our stammering, stolid, and sexist church, I ask you to speak freely, boldly, and without fear.
Cardinal Parolin, how long will this temporizing go on? Is injustice to women to cripple the Christian message forever? Like the reformation of inclusion in the infant church, can you and the other bishops see, hear, and name what Pope Francis cannot see, hear, and name? Will you speak freely? Will you dialogue boldly and without fear?
Sincerely,
John J. Shea, O.S.A.
Copy: Pope Francis