1. Não têm conta
as vezes que me fizeram, e fazem, a pergunta do título desta crónica. Sei que
não tenho o exclusivo.
Não escondo que me divertem as pessoas religiosas e teólogas
que dão a ideia – pelo que dizem e escrevem, pelo que aconselham ou mandam –
que conhecem a vontade de Deus e os seus misteriosos caminhos. A tudo dizem:
foi a vontade de Deus, mesmo quando essa expressão, pretensamente piedosa, é o
pior insulto que Lhe podem fazer.
Por outro lado, são, por vezes, as mesmas pessoas que, pelas
suas repetidas e abundantes orações, supõem que Deus ande mal-informado. As
chamadas orações dos fiéis nas Celebrações Eucarísticas, mais ou menos gemidas,
tentam lembrar a Jesus a sua responsabilidade pela péssima situação mundial.
Parece que todas as religiões, ou a maioria, têm fórmulas e
livros de orações. Basta ir ao Google e, a partir da palavra oração, podemos ficar minimamente
referenciados acerca desse mundo, ora sublime ora ridículo.
A nossa ligação fervorosa a Deus deveria estar atenta à
nossa radical ignorância. Nunca me posso esquecer que S. Tomás de Aquino,
depois de expor a sua epistemologia teológica e de apresentar as razões que
tinha para afirmar que Deus existe, empenhou-se
em mostrar, imediatamente, que não
podemos saber como é Deus. A teologia dele é, sobretudo, uma luta contra as
idolatrias que se insinuam em todas as atitudes e discursos religiosos.
Julgo que a religião – embora seja uma palavra de origem
latina – nasce da consciência, mais ou menos explicita, do ser humano como
realidade limitada. Precisa do outro para nascer, para crescer, para viver e
para morrer. Não é auto-suficiente. É, por natureza, carente de cultura e de
afectos. É uma realidade em permanente processo. Vai sendo através dos mil
contactos cultivados ao longo da vida. É, estruturalmente, um ser aberto. Neste
mundo multicultural e multirreligioso desenvolve-se bem ou mal, na recusa ou na
aceitação. Quando se fecha aos outros, perde-se e afoga-se em si mesmo.
As boas relações humanas são as de acolhimento e cooperação.
As más são as de dominação psicológica, económica, política e religiosa. Por
isso, a pergunta mais sagrada, mais religiosa, em todas as situações, talvez
seja esta: em que posso ajudar?
Não é por acaso que a primeira grande pergunta que Deus faz,
logo no Génesis[1],
seja esta: que fizeste ao teu irmão e
seja também a última que julgará a nossa história, segundo o Evangelho de S.
Mateus[2].
Mas, então, devemos ou não rezar?
2. Não faltam,
mesmo no Novo Testamento, recomendações de que devemos rezar sempre e em toda a
parte. Não de qualquer maneira. Nem foi a primeira preocupação de Jesus. Consta,
no Evangelho de S. Lucas, que os discípulos se sentiam um grupo um bocado
abandonado, nesse aspecto. «Estando (Jesus) num certo lugar a rezar, ao
terminar, um dos seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a orar como João
ensinou aos seus discípulos[3]». Daí, resultou uma longa
conversa e uma parábola que termina de forma paradoxal: a única coisa garantida
é que o Pai dos Céus dará o seu Espírito aos que o pedirem. S. Mateus põe na
boca de Jesus a recomendação: «nas vossas orações não useis de vãs repetições,
como fazem os gentios, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que
serão ouvidos. Não sejais como eles, porque o vosso Pai sabe do que tendes
necessidade, antes de lho pedirdes». De facto, deixou-nos apenas pistas muito
gerais, no Pai-Nosso[4].
Estas indicações básicas atribuídas a Jesus deveriam merecer
mais atenção. A Liturgia das Horas, rezadas em coro em muitas congregações
religiosas, serve-se da recitação dos Salmos do Antigo Testamento. É precisa
uma grande dose de paciência para aguentar a divisão entre o povo de Deus e os
outros povos que não sabemos de quem são, geralmente inimigos. Esse Deus tem o
encargo de defender e ajudar o seu povo e de atacar os outros povos. É um mundo
pouco edificante de amigos e inimigos. É preciso, depois de Jesus Cristo, estar
sempre a fazer descontos na oração.
Fazem parte de cenários em que se põe na boca do Senhor, Deus
de Israel, uma narrativa na qual, depois de muitas bem-feitorias ao seu povo,
que, finalmente, atravessou o Jordão e chegou a Jericó, faz esta declaração
fantástica, coroa de muitas outras: «combateram contra vós os que dominavam a
cidade – os amorreus e os perezeus, os cananeus e os ititas, os girgasitas, os
hevitas e os jebuseus – mas Eu entreguei-os nas vossas mãos. (…) Não foi com a
vossa espada nem com o vosso arco que tudo isto foi feito. Dei-vos uma terra
que não cultivastes, cidades que não construístes e onde agora habitais, vinhas
e olivais que não plantastes e de que vos alimentais».[5]
Pode um cristão rezar a um Deus destes?
3. Anda o Papa
Francisco a dizer que não se pode matar em nome de Deus e, depois, louvá-Lo por
ser um terrorista, porque eterno é o seu amor?
O diálogo inter-religioso, para não ser um teatro de mau-
gosto, deve incluir a crítica das expressões religiosas que ofendem a Divindade
maltratando os seres humanos.
Em Assis, já diversas vezes, os representantes de diferentes
religiões foram rezar juntos. Nenhum tem o direito de criticar a forma de rezar
dos outros, mas todos se deveriam sentir responsabilizados a contribuir, no
âmbito da sua religião, para reverem as respectivas formas de rezar.
Por outro lado, se o ser humano é religioso pela
interpretação que faz do seu limite, tem de cuidar de não transpor para Deus a
sua responsabilidade. Quando se diz, de forma metafórica, que Deus criou o ser
humano à sua imagem e semelhança, isso significa que o ser humano, por ser
livre, é responsável pelo seu mundo, pela casa comum.
O Papa Francisco não se cansa de repetir que já estamos, de
modo fragmentado, na terceira guerra
mundial. Existem sistemas económicos que devem fazer a guerra para
sobreviver. Ao fabricar e vender armas sacrificam, nos balanços económicos, o
ser humano no altar do deus dinheiro.
Gosto da sua forma de rezar: Queridas irmãs e irmãos, eleva-se de todos os lugares da terra, de cada
povo, de cada coração e dos movimentos populares, o grito da paz: guerra, nunca
mais![6]
Não é a um Deus distraído que ele reza. Reza para diminuir o
mundo dos distraídos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 24.09.2017
[6]
Politique et société, du Pape François
(Rencontres avec Dominique Wolton), Editions
de L’Observatoire/Humensis, 2017, p. 11.