É difícil olhar para a
persistência de uma dupla moral em sectores com muita responsabilidade na
Igreja Católica.
Conta-se que Hegel, cuja filosofia pretendia constituir uma
interpretação total e totalizante da realidade, terá sido um belo dia
confrontado com um estudante que lhe fez esta simples pergunta: “E se a
realidade não for assim?” Hegel, saindo do “Olimpo” da sua complexidade
filosófica, terá respondido: “Então, tanto pior para a realidade!”
O surgimento recente, na sociedade portuguesa, do debate em
torno do tema da homossexualidade como motivo de rejeição de candidatos ao
sacerdócio e da existência de padres católicos com filhos — na sequência de
declarações proferidas por um alto representante da Igreja em Portugal na
semana passada — poderia constituir uma oportunidade para olhar para a
realidade, e não para um “dever ser” castrador e humilhante para os diretamente
envolvidos e para a própria Igreja Católica. Neste sentido, o enunciar destas
questões constitui uma “saída do armário” (diria antes, “de vários armários”)
de um discurso que torna explícita a forma como membros relevantes da
hierarquia da Igreja Católica (pois é a posições a este nível que nos referimos
ao longo deste texto, e não aos católicos em geral) encaram realmente, não
encarando, as questões da sexualidade, da dignidade das mulheres e das famílias
nas suas várias formas, mas também a dificuldade em ultrapassar um pensamento
em relação a estes temas que não implique o “recuo para o Olimpo” ou, por assim
dizer, a tentativa frustrada e visivelmente pouco lógica de conseguir fazer a
quadratura do círculo. Senão, vejamos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma, no seu
artigo 2.º: “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades
proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça,
de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de
origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra
situação.” Como é possível compatibilizar os discursos da Igreja Católica em
defesa dos Direitos Humanos com esta exclusão manifestamente contrária aos
mesmos?
Além disso, não será também legítimo perguntar o que
pretende a Igreja fazer relativamente a padres e bispos que sejam homossexuais?
Se a questão se relaciona com o celibato obrigatório, nada a distingue das
normas que os padres heterossexuais “têm de cumprir”. Se é com a intenção de
prevenir situações de pedofilia, pensar que o risco de situações de abuso
sexual é menor se não houver padres homossexuais é um raciocínio lamentável,
pois a pedofilia atinge tanto pessoas homossexuais como pessoas heterossexuais.
E se é verdade que esta questão também não tem relação direta com o celibato
obrigatório é, por outro lado, necessário falar do mesmo.
É sabido que, quando o celibato se tornou obrigatório para o
clero não monástico, uma vez que os monges e os frades vivem em comunidade e
esta questão não se lhes coloca da mesma maneira, pretendia-se que constituísse
um sinal de “purificação” de uma Igreja a deixar-se enlear e a criar, ela
própria, situações de escândalo, nomeadamente de corrupção, para as
comunidades. Será que hoje a afirmação de que o celibato é relevante para
manter “o perfil do sacerdote” ainda será interpretada pelos católicos como um
sinal positivo? Será que garante o respeito das comunidades pelo padre? Se o
padre for corrupto, autoritário, intolerante, tem o respeito garantido pelo
facto de ser celibatário?
Além disso, não entra a ideia de que “se o celibato deixar
de ser obrigatório, perde-se o perfil do sacerdote” em contradição com a
realidade da Igreja Católica de rito bizantino, na qual os padres são ou podem
ser casados? Terão eles “perdido o perfil de sacerdotes”? Por outro lado, se o
celibato é querido como um valor em si mesmo para se ser sacerdote, poderão
todas as pessoas que decidiram viver em celibato candidatar-se a ser padres
(desde que não possuam “tendências homossexuais”)?
Estas questões, associadas à forma como a Igreja encara a
existência de filhos de padres, tornam (mais uma vez) visível, ainda que de um
outro modo, as dificuldades que a mesma tem em equacionar a sexualidade e em
reconhecer de facto o estatuto pleno de ser humano às mulheres. Estas
dificuldades parecem querer ser sublimadas muito frequentemente através de um
discurso idílico sobre a família. Ora, desta vez, não foi isso que aconteceu. E
não foi isso que aconteceu porque o caso de um padre que assumiu ter uma filha
fez notícia, “saindo assim do armário” uma situação silenciada, normalmente, à
custa da renúncia ao contacto com a mãe da criança, a troco de pensões para
filhos com os quais, no entanto, os padres não viverão, e da possibilidade de
permanecer no sacerdócio (não me refiro aqui a casos em Portugal, porque não
possuo esses dados, mas sim a situações concretas minhas conhecidas noutros
países europeus).
O facto de existirem muitas situações em que a renúncia à
mulher constitui a moeda de troca para continuar a exercer o sacerdócio, por
vezes fora do país onde a criança e a sua mãe vivem, “faz sair do armário” a
“ideologia de género” de que a própria Igreja “sofre” sem o reconhecer: é que é
à luz da “ideologia” que atribui determinados papéis e características às
mulheres (neste caso, terem a obrigação de educar os filhos sozinhas, por terem
colocado o homem-sacerdote “em pecado”, tal como Eva colocou Adão!) que a
Igreja está disposta a expor-se perante o mundo como uma instituição cujo
discurso insiste na santidade da família como pilar da sociedade e como “igreja
doméstica”, à exceção das situações em que a família seja constituída por uma
mulher, um padre e um filho (embora se deva notar que a palavra “mulher” nunca
é mencionada nas declarações acima referidas, onde apenas se fala de “conjugalidade).
Nestes casos, os padres “devem assumir a responsabilidade
pelo filho”, sim, mas o filho é privado do contacto diário com o pai e a mãe
desaparece do cenário devendo viver muda e “como morta” relativamente ao pai da
sua criança. É difícil (mas útil) olhar para a persistência de uma dupla moral
em sectores e instituições com muita responsabilidade na Igreja Católica,
segundo os quais é preferível o silêncio, porque permite a duplicidade, do que
a afirmação e a explicitação de identidades e de opções de vida contrárias a
uma normatividade com dificuldade em reconhecer que a vida “fora do Olimpo” não
é tão (hipocritamente) simples.
Teresa Toldy[i]