29 julho 2018

UMA RELIGIÃO INTELIGENTE

 
1. Para António Damásio, “não temos qualquer relato científico satisfatório quanto à origem e ao significado do Universo, ou seja, não temos uma teoria de tudo que nos diga respeito. Serve isto para recordar que os nossos esforços são modestos e hesitantes, e que devemos estar abertos e atentos quando decidimos abordar o desconhecido”[1].
Em certas formas de espiritualidade e de teologia, a modéstia não é a regra. Na orientação espiritual, não falta quem se julgue conhecedor da vontade de Deus e com capacidade de a discernir para si e para os outros. Implorar o Espírito Santo para acolher a sua luz é uma condição essencial para estarmos prontos a dar razão da nossa esperança, como recomenda S. Pedro[2]. Sem esse cuidado, seremos cegos guias de cegos. Pedir conselho é próprio de quem reconhece os seus limites. Daí a convencer-se que podemos coincidir, nas nossas opiniões, com a vontade de Deus, é presunção a mais.
Em teologia, sempre me agradou a extrema modéstia de Tomás de Aquino. Foi discípulo de Alberto Magno, assim chamado pelo seu saber enciclopédico e pela sua curiosidade insaciável. Tomás tinha uma consciência pedagógica mais apurada. Notava que os mais novos tinham dificuldade em seguir a multiplicidade de questões no campo científico, filosófico e teológico. Comentou Aristóteles e muitos livros da Bíblia, participou em muitas questões disputadas e não receava ser exposto à curiosidade dos estudantes acerca dos temas mais variados. Resolveu elaborar um imenso guião para principiantes. Acabou por ser muito apreciado pelos investigadores. Trata-se da Suma de Teologia.
Modesta era a sua própria ideia de teologia. Depois de expor o seu projecto, as suas exigências, o seu método e de estabelecer os argumentos humanos que apoiam a fé na existência de Deus, ao dizer vamos tentar saber como Deus é, suspende esse atrevimento: vamos saber como Deus não é[3]. A sua teologia é, sobretudo, uma anti-idolatria. Não atribuir a Deus e à sua vontade o que são construções nossas.
No final da vida, a partir da sua experiência mística, disse: tudo o que escrevi me parece palha. A teologia negativa livrou-o da idolatria das concepções teológicas. Não era cepticismo. Como cantou, no seu poema para a festa do Corpo de Deus, seguiu o princípio: atreve-te quanto puderes. Não tinha o culto da humildade ignorante, nem se contentava com repetir um credo ortodoxo. Escreveu: “é necessário que aqueles que buscam as raízes da verdade se apoiem em razões e se esforcem por saber como é verdade aquilo que afirmam. De outro modo, se o mestre se contenta com resolver a questão com o recurso a autoridades, poderá assegurar, sem dúvida, ao ouvinte, o que está certo na fé, mas este não adquire ciência nem compreensão e ficará de cabeça vazia”[4].
A teologia cristã e a verdadeira espiritualidade são fruto da mente e do coração no interior da dinâmica da fé teologal, cujo termo não são os artigos da fé, mas o infinito mistério de Deus amado e conhecido. A oração faz parte da investigação teológica, como mostrou Sto. Anselmo, na perspectiva de Sto. Agostinho: “Não procuro, Senhor, penetrar na tua profundidade… Mas quero compreender, ainda que seja um pouco, a tua verdade que o meu coração crê e ama. Não procuro compreender para crer, mas creio para compreender, pois, bem sei, se não creio, não compreenderei”[5].
Nunca podemos prescindir do conhecimento científico nem do questionamento filosófico. Se não virmos que, pelo lado de Jesus Cristo, corre a vida e o sentido último da nossa história, não poderíamos acolher a sua graça. A graça não substitui a natureza, antes a reforça.
Uma teologia sadia nasce e desenvolve-se dentro de uma espiritualidade aberta à acção evangelizadora. Uma prática evangelizadora exige e desenvolve uma vida e uma teologia mística. Karl Rahner insurgiu-se, com razão, contra uma teologia kerigmática que desprezava a investigação científica[6]. Uma teologia pastoral sem investigação é um engano. Uma teologia que pretende ser científica e não cheira a povo perde-se no vazio, como diz o Papa Francisco.
2. Não podemos crer sem interpretar. Edward Schillebeeckx, depois de todos os embates que teve com o Vaticano, mostrou que tinham interpretações diferentes das mediações humanas da fé. Elaborou, por isso, os pressupostos e a ciência da interpretação. Parte da experiência da fé na Bíblia, não como uma teologia da palavra, porque a palavra de Deus é a palavra dos seres humanos que falam de Deus.
Dizer, sem mais, que a Bíblia é a palavra de Deus, não corresponde à verdade. Só é a palavra de Deus indirectamente. Os escritos bíblicos são testemunhos de homens e mulheres de Deus, que viveram uma experiência e a exprimem. A sua experiência vem do Espírito e, neste sentido, pode dizer-se, com razão, que a Bíblia é inspirada, mas, ao mesmo tempo, é preciso não esquecer a mediação humana, histórica, contingente. Nunca existe encontro directo de Deus, só a sós, com o homem. Efectua-se sempre através de mediações. São os seres humanos que falam de Deus. Não aceitar mediações históricas é cair, necessariamente, no fundamentalismo[7].
3. Alegra-me que Aga Khan tenha dito que a religião ismaelita é uma religião inteligente. Tem como premissas a paz, o bem-estar, a sabedoria e o desenvolvimento[8]. Parece querer recuperar, na actualidade, o que foi uma das correntes criadoras do Islão medieval. Uma religião que não pensa, ou que só pensa o já pensado, cai inevitavelmente no fundamentalismo e na violência.
Terá sido uma iniciativa inteligente a criação de um Estado judaico? Não irá aumentar o anti-judaísmo? Não será um Estado de exclusão?
Não ficam mal, a nenhuma religião que queira ser inteligente, as observações do Papa Francisco:
Uma fé que não nos põe em crise é uma fé em crise; uma fé que não nos faz crescer é uma fé que deve crescer; uma fé que não nos questiona é uma fé sobre a qual nos devemos questionar; uma fé que não nos anima é uma fé que deve ser animada; uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida.
Acrescenta também: existe o perigo real de deixar às gerações vindouras escombros, desertos e imundices[9].
Boas férias e até Setembro

Frei Bento Domingues, O.P.

in Público 29. 07. 2018



[1] A estranha ordem das coisas, Temas e Debates, Lisboa, 2017, p. 332
[2] 1P 3, 15-16; Rm 8, 26-27.
[3] S.Th., I, q.3, prólogo (cf. q. 12 e 13)
[4] Quodlibet, IV, q.9, a.3
[5] Proslogion, 1
[6] Karl Rahner, Le courage du théologien, Paris, Cerf, 1985, pp 43
[7] Maria Clara Bingemer, Experiência de Deus na contemporaneidade, Lisboa, Paulinas 2018. A autora teve em conta Karl Rahner, mas esqueceu-se de Edward Schillebeeckx, Je suis un théologien heureux, Paris, Cerf 1995.
[8] Revista do Expresso, 21.07.2018
[9] L’ Osservatore Romano, O clamor angustiado da terra, 12.07.2018, http://www.osservatoreromano.va/vaticanresources/pdf/POR_2018_028_1207.pdf


       BI do cristão
       Anselmo Borges
      28 Julho 2018
       O que é que verdadeiramente queremos? A realização plena de todas as dimensões do ser humano, a plenitude, a felicidade. O Papa Francisco sabe disso e escreveu a exortação Alegrai-vos e Exultai, para indicar o caminho dessa realização, na convicção de que Deus, "aquele que pede tudo, também dá tudo, e não quer entrar em nós para mutilar ou enfraquecer, mas para levar à perfeição". Sempre sob o desígnio da alegria. Francisco lembra o livro da Bíblia, Ben Sirá: "Meu filho, se tens com quê, trata-te bem. Não te prives da felicidade presente" e também São Francisco de Assis, "capaz de se comover de gratidão perante um pedaço de pão duro ou de louvar, feliz, a Deus, só pela brisa que acariciava o seu rosto". Não se trata, portanto, da "alegria consumista e individualista. Com efeito, o consumismo só atravanca o coração; pode proporcionar prazeres ocasionais e passageiros, mas não alegria". A verdadeira alegria é aquela que "se vive em comunhão, que se partilha e comunica", porque, segundo uma palavra de Jesus, "a felicidade está mais em dar do que em receber". Não será por acaso que na cultura de hoje se manifestam alguns riscos e limites, a evitar: "a ansiedade nervosa e violenta que nos dispersa e enfraquece, o negativismo e a tristeza, a acédia cómoda, consumista e egoísta, o individualismo e tantas formas de falsa espiritualidade sem encontro com Deus que reinam no mercado religioso actual". "O consumismo hedonista pode enganar-nos, porque, na obsessão de nos divertirmos, acabamos por estar excessivamente concentrados em nós mesmos, nos nossos direitos e na exacerbação de ter tempo livre para gozar a vida..., acabando por nos transformar em pobres insatisfeitos que tudo querem provar. O próprio consumo de informação superficial e as formas de comunicação rápida e virtual podem ser um factor de estonteamento que ocupa todo o nosso tempo e nos afasta da carne sofredora dos irmãos. No meio deste turbilhão actual, volta a ressoar o Evangelho para nos oferecer uma vida diferente, mais saudável e mais feliz", adoptando cada um o seu caminho e discernindo segundo os tempos e as circunstâncias, sem, por outro lado, ficar sujeito a um zapping constante. Deus é eterna novidade e não se pode cair na sedução da habituação, do "sempre foi assim": a Igreja não é "uma peça de museu nem uma propriedade de poucos".
       "O que é que tem real valor na vida? Quais são as riquezas que não desaparecem? Seguramente duas: Deus e o próximo. Estas duas riquezas não desaparecem." E as duas são inseparáveis. Jesus, mais do que muitas fórmulas e preceitos, entregou-nos "dois rostos, ou melhor, um só: o de Deus que se reflecte em muitos, porque em cada irmão, especialmente no mais pequeno, frágil, inerme e necessitado, está presente a própria imagem de Deus". Assim, a santidade é feita de abertura habitual à transcendência, que se expressa na oração e na adoração. "O santo é uma pessoa com espírito orante, que tem necessidade de comunicar com Deus. É alguém que não suporta asfixiar-se na imanência fechada deste mundo e, no meio dos seus esforços e serviços, suspira por Deus, sai de si erguendo louvores e alarga os seus confins na contemplação do Senhor." Há dois erros nocivos. O daqueles que transformam o cristianismo numa "espécie de ONG", privando-o daquela espiritualidade irradiante que o caracteriza. Mas "é nocivo e ideológico também o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista". Sagrada é a vida dos pobres que "se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura e em todas as formas de descarte. Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente".
       O que é ser santo? Jesus explicou-o nas "bem-aventuranças", que são "como que o bilhete de identidade do cristão". "A palavra 'feliz' ou 'bem-aventurado' torna-se sinónimo de 'santo', porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade." As bem-aventuranças implicam outro estilo de vida e são contracorrente. "Felizes os pobres em espírito": "as riquezas não te dão segurança alguma"; no coração dos que têm o coração pobre, "Deus pode entrar com a sua incessante novidade". "Felizes os mansos": "a mansidão é outra expressão do desapego interior". "Felizes os que choram": compreendem a angústia alheia e aliviam os outros. "Felizes os que têm fome e sede de justiça": a realidade mostra-nos como "é fácil entrar nos gangues da corrupção, fazer parte dessa política diária do 'dou para que me dêem', onde tudo é negócio". "Felizes os misericordiosos": a misericórdia é dar, servir os outros e também perdoar e compreender; "a medida que usardes com os outros será usada convosco", disse Jesus. "Felizes os puros de coração", porque é do coração que procedem os homicídios, os roubos, os falsos testemunhos, preveniu Jesus. "Felizes os pacificadores." "Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça."
       "Será com os descartados desta humanidade vulnerável que, no fim dos tempos, Deus plasmará a sua última obra de arte." "Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, estava nu e vestistes-me, estive na prisão e fostes ter comigo. Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizestes."

       Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
       in DN 28 Julho 2018

À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XVII COMUM Ano B
“Está aqui um rapazito que tem cinco pães
de cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?”
Jo 6, 9

Quando o pouco é tudo…

Continuamos a não perceber o jeito de Deus agir e fazer milagres. Gostamos de esperar, sentados ou de joelhos, que Deus faça e nós vejamos a sua omnipotência resolver aquilo que desejaríamos não fosse tarefa nossa. Calamos o seu apelo a escutar quem sofre, a ver a miséria (não a distante, mas a mais próxima de nós), a partilhar o pouco que temos. A erradicação da fome continua a ser um dos milagres que a dureza do coração humano e os interesses egoístas persistem em não resolver.

D. Hélder Câmara, o arcebispo de Olinda-Recife, não calava a voz na defesa dos pobres: “O verdadeiro cristianismo rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”; “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista.” S. Teresa de Calcutá, pedia para fazer pequenas coisas com um grande amor: “A falta de amor é a maior de todas as pobrezas. O que eu faço é simples: ponho pão nas mesas e compartilho-o.”; “O mundo que Deus nos deu é mais do que suficiente, segundo os cientistas e pesquisadores, para todos; existe riqueza de sobra para todos. É só uma questão de reparti-la bem, sem egoísmo.”

Todos os evangelhos relatam a multiplicação / partilha dos pães e dos peixes, que Jesus fez numa encosta junto ao lago da Galileia. A multidão partilha, não um banquete de ricos, com iguarias exóticas, mas a refeição simples dos que vivem junto ao lago: pães de cevada e peixe. Todos ficaram saciados e ficou gravada a abundância que resultou da insignificância, bem como a recomendação de nada perder nem deitar fora. Esta refeição partilhada torna-se sinal da humanidade nova e fraterna que Jesus vem realizar, antecipa a Eucaristia em que recebemos o espírito e a força de Jesus, e compromete-nos com todos os famintos: de pão, de justiça, de esperança e de amor. Quantos cestos “sobram” das nossas eucaristias e com quem são partilhados?

O muito que eram os cinco pães e dois peixes para o jovem, apresentado por André a Jesus, é verdadeiramente insignificante para a multidão a alimentar. Contudo, a lógica do comprar e vender (sugerida por Jesus!) dá lugar à experiência da gratuidade, à descoberta da força do dom que, não só garante a todos o necessário, como faz aparecer uma surpreendente abundância. O pouco, que o jovem entregou nas mãos de Jesus, foi o necessário para o milagre. Triste de quem fica à espera de ter muito para fazer algo. O que marca a diferença, não são os pães ou os peixes, mas o amor que os liberta de um desejo egoísta de posse e os oferece generosamente. O que podia dar uma indigestão a um, saciou a fome a muitos. Se o pouco é tudo, nada mais é preciso! Seria tão bom ir aprendendo que o jeito de Deus fazer milagres é a contar connosco!

in Voz da Verdade 29.07.2018


No question, Pope Francis made history Saturday on McCarrick
John L. Allen Jr.Jul 29, 2018 EDITOR

It’s really not that often one can say with certainty that we witnessed history being made at a specific moment, but Saturday brought such an occasion with a Vatican announcement that Pope Francis had accepted the resignation of Cardinal Theodore McCarrick from the College of Cardinals.
It’s an unprecedented move in the United States, the first time an American cardinal has ever renounced his red hat, and it’s the first time anywhere in the world has exited the college altogether facing accusations of sexual abuse. It is, therefore, the most tangible confirmation to date from Francis that when he says “zero tolerance,” he means everybody.
The statement also confirms that a suspension of McCarrick from public ministry imposed in June remains in force pending the outcome of a Church trial.
To be clear, this takes us well beyond what happened in February 2013, when Scottish Cardinal Keith O’Brien, facing charges of sexual misconduct with seminarians and young priests, renounced his privileges as a member of the College of Cardinals but not membership.
As of Saturday, McCarrick is no longer a cardinal. The only full parallel for such a step over the last 100 years would be the French Jesuit Louis Billot, made a cardinal by Pius X in 1911, but who resigned his status in 1927. Billot was a strong supporter of the conservative French movement Action Française and refused to back down upon direct papal request, leading to a stormy audience between him and Pope Pius XI and Billot’s exit from the college.

The actions against McCarrick, of course, follow accusations against the 88-year-old prelate that now include a case of an 11-year-old boy as well as decades-old sexual misdeeds with seminarians.
Though the full meaning of Saturday’s turning point will be unpacked for some time to come, here are three quick take-aways about what it means.
First, although the Vatican statement also refers to allowing a Church trial of McCarrick to play out, it’s a safe bet that such dramatic action would not have been taken if there were much serious doubt about the eventual verdict. It’s not quite a finding of guilt, but it’s a strong suggestion that such a finding isn’t that far away.
It’s worth noting, for instance, that nothing of the sort happened last summer when Australian Cardinal George Pell was charged with “historical sexual offenses” in his home country. Then, the Vatican instead sent clear signals of support.
“The Holy See expresses its respect for the Australian justice system, which will have to decide the merits of the questions raised,” Vatican spokesman Greg Burke said in a statement. “At the same time, it’s important to recall that Cardinal Pell has openly and repeatedly condemned as immoral and intolerable the acts of abuse against minors.”
While there may be other reasons to account for the difference - including the fact that Pell was in Rome reporting directly to the pope at the time as his Secretary for the Economy - it’s hard to imagine that a rough sense of the reliability of the respective allegations isn’t part of the mix.
Second, there’s no question that the pope’s handling of the McCarrick case represents an important breakthrough in the push for greater accountability for clerical sexual abuse.
Since the news about McCarrick broke, I’ve heard people say time and again, “We all know what would happen if this were an ordinary priest.” What they meant is that under the Church’s new protocols, any priest credibly accused of abuse is supposed to be removed from ministry immediately awaiting the outcome of a canonical trial.
The question was whether those rules would also be applied to a Prince of the Church, especially one as prominent and close to the current pope as McCarrick. Even though he was retired in 2013, McCarrick played a behind-the-scenes role in the election of Cardinal Jorge Mario Bergoglio of Argentina to the papacy and has since enjoyed a role as a sort of trouble-shooting troubadour on Francis’s behalf.
By accepting McCarrick’s resignation as a cardinal, a new layer of gravity was added, suggesting a new era in which even the most senior members of the clerical club can’t run and hide when a storm such as this one breaks.
Third, while the pope has now proved his credentials at one level of accountability, there’s another shoe waiting to drop - what happens when the charge against a cardinal isn’t the crime, but the cover-up?
Right now, for instance, both Cardinals Riccardo Ezzati and Francisco Errazuriz in Chile face multiple accusations of having known about cases of sexual abuse, as well as abuses of power and conscience, and failed to act - in some cases, actively attempting to shelter the clergy involved.
Victims, activists and outraged Chileans have all called for both men to exit the College of Cardinals too, but, at least so far, such action hasn’t been forthcoming. Until a fall from grace akin to McCarrick’s also occurs with the likes of Ezzati and Errazuriz - assuming, of course, the complaints against them are justified - many observers will judge that accountability in the Catholic system remains a work in progress.
As a final note, while Francis may have made an important contribution to his own reputation on the abuse scandals on Saturday, he hasn’t quite gotten the U.S. bishops off the hook.
Whatever happens to McCarrick personally, the question remains of how rumors of his behavior could have gone unaddressed for so long. Recently, New York Times columnist Ross Douthat suggested the bishops appoint a “special prosecutor” to get to the bottom of who knew about the allegations against McCarrick and failed to report them, hinting the list of culpable parties may not be short.
It’s not clear how the bishops plan to respond to such clamor, but it is seemingly clear that “duck and cover” won’t work. All that makes the bishops’ Nov. 12-15 general assembly, and what happens between now and then, a potentially fascinating stretch of time.
in CRUX

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22 julho 2018

NEM NAS FÉRIAS HÁ SOSSEGO

       
1. A narrativa bíblica do mito da criação não pertence ao mundo da ciência, mas ao da poética teológica. Não se situa, por isso, em competição com nenhuma teoria da origem e do desenvolvimento do universo. Confessa que de Deus apenas pode vir o bem e a beleza. Apresenta o Criador encantado com a sua obra, ritmada pelos dias e pelas noites, cheia de tudo o que é bom. Nesse poema, o ser humano – homem e mulher – é a coroa da terra, imagem do infinito mistério do amor. Ao sétimo dia, Deus repousou para celebrar a obra admirável da vitória sobre o caos[1]
É uma astuciosa metáfora da legitimação religiosa do descanso semanal: “Não farás trabalho algum, tu, o teu filho e a tua filha, o teu servo e a tua serva, os teus animais, o estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que há neles, mas no sétimo dia descansou” [2].
Estamos perante a sacralização de uma grande instituição civilizacional. O ser humano não existe só para trabalhar. Precisa de tempo para viver e exprimir muitas outras dimensões da sua vida. A abertura a Deus revela a transcendência de todos os seres humanos, sujeitos de direitos e deveres continuamente ameaçados.
Nada, porém, está automaticamente garantido na Casa Comum, como lembrou o Papa Francisco na Laudato SI.
Sem opções éticas para regular os dias e as noites, as relações interpessoais, familiares, sociais, económicas, políticas e religiosas, estamos ameaçados de voltar ao caos.
O universo humano é uma associação frágil de natura e cultura. A vontade de tudo controlar, a obsessão da lei, de tudo regulamentar de uma vez para sempre, a perda do sentido do humor, do dever sem prazer, tornam a vida, uma neura.
Quando as instituições humanas são apresentadas como realizações da vontade de Deus caem na idolatria escravizante. O grande dia da divina liberdade é transformado numa prisão sacralizada.
2. Jesus de Nazaré, ao apresentar-se como o profeta do Reino de Deus, identificou-o com o advento do reino da libertação e da alegria. Teve, por isso, de enfrentar a escrupulosa regulamentação rabínica do Sábado, pois o seu resultado era terrível: nesse dia, os animais tinham mais sorte do que os seres humanos[3]. Jesus resolveu atacar essa perversão, mediante uma sistemática provocação. O chefe de uma sinagoga, indignado com a atitude de Jesus, virou-se para a multidão e disse: há seis dias de trabalho, vinde nesses dia e não no dia de Sábado.
Os narradores do Evangelho são unânimes: era ao Sábado que Jesus fazia o que a religião oficial proibia. Nós, os cristãos, julgamos que é um assunto ultrapassado. É, apenas, uma questão judaica. Fazemos muito mal em reagir assim.
A razão apresentada por Jesus, para fundamentar as suas atitudes, era radical: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. Atacava, assim, o fundamentalismo religioso para todos os tempos e lugares. Deus nunca pode ser invocado para a infelicidade. Não se pode louvar a Deus sem cuidar da libertação, da cura e da alegria dos afectados pelo sofrimento.
As atitudes de Jesus, em relação às prescrições do Sábado, questionam a nossa miopia: as leis e os regulamentos das Igrejas são para o ser humano ou é o ser humano para essas leis?
Muitas das controvérsias, antes, durante e depois do Vaticano II, esquecem esse dado elementar. Não são as leis eclesiásticas que mandam no Evangelho de Jesus. É este que questiona, permanentemente, as leis que inventamos: fazem bem ou mal à libertação dos cristãos? São para fazer desabrochar a nossa alegria ou para nos mergulhar na tristeza?
O enunciado de Jesus tem um alcance filosófico e teológico muito mais amplo, diria, universal. Todas as instituições têm de ser submetidas a esta interrogação: servem ou atraiçoam o desenvolvimento humano?
3. Não pretendo, com a contenda do Sábado, desvalorizar o significado dessa instituição civilizacional. O texto de S. Marcos, seleccionado para a Missa deste domingo, manifesta, pelo contrário, que o próprio Jesus sentiu necessidade de férias para si e para os seus colaboradores: Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco.
Eram tantos os que iam e vinham, que nem tinham tempo para comer. Foram, pois, de barco, para um lugar isolado, sem mais ninguém. Por desgraça, ao vê-los afastar, muitos perceberam para onde iam. De todas as cidades acorreram, a pé, àquele lugar, e chegaram primeiro do que eles. Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas[4], e lá foram as férias!
Não teve mais sorte com as tentativas de férias no estrangeiro, em Tiro e Sídon. O mesmo evangelista conta que, no território de Tiro, Jesus entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse. Não conseguiu. Uma gentia, siro-fenícia de origem, lançou-se aos seus pés e pedia-lhe que expulsasse, da filha, o demónio.
Para entender o desenvolvimento deste texto, importa saber que os judeus tratavam os estrangeiros como cães. Aliás, na versão de Mateus, Jesus esclarece que a sua missão se limitava às ovelhas perdidas da casa de Israel. Por isso, não era justo que se tomasse o pão dos filhos para o lançar aos cachorros.
Neste caso, Marcos é mais simpático: «Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos.»  A mulher não quer saber dessas histórias e diz simplesmente: «Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos».
Jesus ficou rendido: vai, o demónio saiu de tua filha.
A versão de Mateus é diferente e passa-se em público. Jesus reconheceu o ridículo da sua estúpida displicência: «Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se como desejas». Como já tinha dito a um centurião romano: em Israel, nunca vi tanta fé!
Estas reacções, nas suas idas ao estrangeiro, manifestam que também Jesus tinha sido moldado por uma cultura preconceituosa, mas estava aberto ao espanto e à mudança. Em Tiro e Sídon, encontrou o que não podia esperar.
É Domingo, não é Sábado. Não nos podemos conformar com o mundo que temos. Dizemos que somos filhos da ressurreição e não do conformismo. Temos de o provar. Como?

Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 22.07.2018


[1] Gn 1; 2, 1-3
[2] Ex 20, 8-11
[3] Lc 13, 10-17; 14, 1-6; Mt 12, 9-14; Mc 2, 23ss; Jo 5, 8-18
[4] Mc 6, 30-34

15 julho 2018

SEM MITRA NEM SOLIDÉU

     
1. Por vezes, confunde-se um profeta com um adivinho. O verdadeiro profeta é sobretudo uma pessoa que vive a graça da lucidez humana e divina na defesa do bem comum. Vê o que a cegueira dos interesses instalados não quer ver nem deixa ver. A denúncia da traição da aliança mística e da aliança social – duas caras da mesma moeda - é o seu tema. Como diz Miqueias, a proposta de conversão exige a instauração do direito e da justiça[1]. As pessoas aduladoras dos poderosos gostam de ser chamadas profetas, mas são, apenas, os seus lacaios.
Na missa de hoje, é dada a palavra ao incómodo Amós que exerceu essa missão, aproximadamente, entre 760 e 745 a.C.. Ele reconhecia a convicção comum aos seus concidadãos, a relação especial entre Iavé e o seu povo, mas tirava daí consequências diametralmente opostas: Deus não é propriedade privada de Israel. Perante Deus, todos os povos estão em pé de igualdade. O antigo Israel tinha, apenas, maiores responsabilidades morais e uma maior exposição aos castigos pelas injustiças que provocava ou consentia[2].
 No tempo da actuação profética de Amós, o reino de Israel tinha atingido o máximo da sua prosperidade, mas o luxo dos ricos insultava a miséria dos oprimidos e o esplendor do culto disfarçava a ausência de uma religião verdadeira. O seu estilo era rude e simples, imagem típica de um homem do campo. Para ele, a prática do povo eleito era pior do que a dos gentios e não se calava perante essa situação.
Então, Amasias, sacerdote de Betel, disse a Amós: «Vai-te daqui, vidente. Foge para a terra de Judá. Aí ganharás o pão com as tuas profecias. Mas não continues a profetizar aqui em Betel, que é o santuário real, o templo do reino». Amós respondeu a Amasias: «Eu não era profeta, nem filho de profeta. Era pastor de gado e cultivava sicómoros. Foi o Senhor que me tirou da guarda do rebanho e me disse: Vai profetizar ao meu povo de Israel»[3].
Como já tentei mostrar, várias vezes, nestas crónicas dominicais, o carpinteiro de Nazaré não chamou os doze apóstolos para as delícias do poder nem para aduladores e imitadores dos grandes deste mundo. Consta, no Evangelho de S. Marcos proposto para este Domingo[4], que Jesus os enviou, dois a dois, com poder sobre os espíritos impuros e ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser o bastão: nem pão, nem alforge, nem dinheiro; que fossem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas. Disse-lhes também: «Quando entrardes numa casa, ficai nela até partirdes dali. Se não fordes recebidos em alguma localidade, se os habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés como testemunho contra eles».
Não será esta uma proposta puramente utópica? Conheço um bispo que sempre procurou mostrar que a utopia é o próprio realismo do profeta de Nazaré.
 2. Já me tenho referido ao Ano Raimon Pannikar, uma originalíssima figura da cultura e da religião da Catalunha, que realizou, na sua pessoa e na sua obra imensa, a maior tentativa de síntese entre o Oriente e o Ocidente.
Ao ler o texto do Evangelho de Marcos, lembrei-me de outro catalão que fez 90 anos no mês de Fevereiro: Pedro Casaldáliga, chamado bispo descalço sobre a terra vermelha[5].
Durante 38 anos viveu e trabalhou no Brasil, primeiro como missionário claretiano e a partir de 1971, como bispo nomeado por Paulo VI. Não é uma cronologia, mesmo a de um bispo, que define uma personalidade.
      Pedro Casaldáliga não adoptou a teologia da libertação como uma moda. Ele escolheu-a como forma de vida e de actividade pastoral: Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar. 
Quando foi nomeado primeiro bispo da diocese, converteu sua casa, pequena, rural e pobre, na sua sede episcopal, sede do seu povo, sobretudo dos mais desfavorecidos, camponeses sem-terra, pobres, analfabetos e oprimidos por coronéis e políticos.
Celebrava a Eucaristia para os moradores no quintal da sua casa, entre as galinhas e, à noite, deixava sua porta aberta para o caso de alguém, sem casa, precisar de uma cama que estava sempre disponível. Andava de jeans e chinelos. Tinha duas mudas de roupa. Quando tinha de ir às reuniões com o Episcopado, em Brasília, ia de autocarro, numa viagem de três dias, pois esse era o meio de transporte da sua gente. Do aeroporto à sua casa, em São Félix do Araguaia, só se chegava depois de 16 horas de estrada de terra.
Mais tarde lembraria que, no início da sua acção pastoral, faltava tudo: na saúde, na educação, na administração e na justiça. Sobretudo, faltava, na população, a consciência dos próprios direitos e a possibilidade de os reclamar. Acusado de se interessar demasiado pelos problemas "materiais" dos pobres, respondia que não concebia a dicotomia entre evangelização e promoção humana. Decidiu, por isso, o caminho a seguir. O seu lugar não era apenas ao lado dos camponeses sem-terra, mas também o de construir escolas e centros de saúde.
3. Em 1988, o Vaticano convocou-o, para que explicasse a sua proximidade à teologia da libertação e visitasse o Papa João Paulo II, como já o devia ter feito. Apresentou-se, então, em camisa, sem anel e com um colar indígena no pescoço. Disse ao papa: Estou disposto a dar a minha vida por S. Pedro, mas pelo Vaticano, é outra coisa. Ao sair do encontro, declarou à imprensa: O papa escutou-me e não me deu nenhuma repreensão. Poderia tê-lo feito, como também nós o podemos fazer com ele. Acrescentou: O Espírito Santo tem duas asas e a Igreja gosta mais de cortar a da esquerda.
No momento em que se escolhem designers para a indumentária e as insígnias episcopais e cardinalícias, seria bom não esquecer as vozes, antigas e novas, que se interrogaram: sucessores de Pedro e dos Apóstolos ou continuadores da era do imperador Constantino[i]
Casaldáliga não precisou desta lição sistematicamente esquecida. Quando a idade o obrigou a apresentar a renúncia ao seu ministério, Roma não lhe pediu para esperar. Casaldáliga fez só um pedido: ser um pároco ao serviço da diocese. Não teve resposta. Foi um colaborador dos dois bispos que lhe sucederam.
Aos noventa anos, vive onde sempre viveu, mas já não da mesma maneira. A sofrer de Parkinson, pouco mais lhe resta para além da rotina habitual: cuidados físicos de manhã e, à tarde, leitura do correio, sem poder responder a todas as mensagens de carinho que lhe enviam, porque já tudo lhe custa.
Querido S. Pedro Casaldáliga, reza por nós.

Frei Bento Domingues, O.P.
 in Público,  15. 07. 2018



[1] Mq 6, 8
[2] Francolino Gonçalves, Antigo Testamento e direitos humanos, ISTA nº 6, 1998, p.40
[3] Amós 7, 12-15 
[4] Mc 6, 7-13
[5] Título de uma mini-série que foi dedicada ao bispo Pedro Casaldàliga.
[6] Cf. Yves Congar, O.P., Igreja serva e pobre, ed Logos, Lisboa 1964, pp 65; 131 ss