28 outubro 2018

Crónicas de Frei Bento Domingues e do Padre Anselmo Borges

   PARA VINHO NOVO, ODRES NOVOS &  
Dois dias para a morte e o sentido 


         PARA VINHO NOVO, ODRES NOVOS

1. Como diz o físico Carlo Rovelli, a natureza do tempo talvez seja o maior mistério. Estranhos fios o ligam aos grandes mistérios não resolvidos: a natureza da mente, a origem do Universo, o destino dos buracos negros, o funcionamento da vida. A dança a três gigantes do pensamento - Aristóteles, Newton e Einstein – levou-nos a uma mais profunda compreensão do tempo e do espaço: existe uma estrutura da realidade que é o campo gravitacional; esta não é separada do resto da física, não é o palco em que o mundo flui: é uma componente dinâmica da grande dança do mundo, semelhante a todas as outras; interagindo com as outras, determina o ritmo das coisas a que chamamos fitas métricas, relógios e o ritmo de todos os fenómenos físicos. Pouco depois, o próprio Einstein verificou que esta não era a última palavra sobre a natureza do espaço e do tempo[i].
Há mais de dois mil anos, depois de João Baptista ter sido preso, Jesus foi para a Galileia proclamar: “completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos - mudai de vida - e acreditai no Evangelho”, se quereis que o mundo encontre a perfeita alegria[ii].
 Quando S. Marcos escreve isto, já o Espirito de Cristo tinha assumido outro ritmo do tempo: o dos jovens com visões novas e dos velhos renascidos, cheios de sonhos de um mundo outro.[iii] Cedo, porém, se deram conta de que o tempo e o espaço das Igrejas não eram um palco em que elas se pudessem desenvolver, puras e santas, sem estranhas interacções religiosas, sociais, económicas ou políticas, desde o Pentecostes até hoje. A necessidade de reformas faz parte da sua história.
Em Novembro de 1950, Yves Congar, O.P. publicou uma obra famosa, Vraies et fausses réformes dans l´Église, que lhe causou muitos e graves sofrimentos romanos. Angelo Roncalli, futuro João XXIII, era, nessa altura, núncio em Paris. Este livro, sublinhado página a página, fazia parte da sua biblioteca. Eleito Papa, recupera o maldito Congar e as suas perspectivas de reforma. É inspirado nele, que concebe o Vaticano II, como um concílio de aggiornamento da Igreja no mundo contemporâneo.
O Vaticano I (1869-1870) tinha concentrado tudo no primado do Papa e na sua infabilidade, quando se pronunciava ex-cathedra, em assuntos de fé e de moral. Era tudo resolvido por ele e pela cúria. Pio XII foi o último da famosa série os Pios.
Na preparação do Vaticano II, a herança da Cúria e do chamado “Santo Ofício” tentaram controlar os desvarios de João XXIII. Não conseguiram.
2. Importa saber quais foram as reformas mais importantes deste Concílio. É difícil responder, mas um dos seus historiadores mais importantes, John W. O’Malley, sj[iv], propôs um critério: uma reforma é tanto mais importante quanto maior é a resistência que suscita. Nenhuma doutrina ou reforma teve mais resistências do que a colegialidade episcopal do capítulo III da Lumen Gentium. A sua doutrina sublinha que, por essência, os bispos têm uma responsabilidade não só nas suas respectivas dioceses, mas em toda a Igreja quando actuam colegialmente e com o Papa. Reencontrava-se, assim, uma antiga tradição obscurecida pela centralização, quase absoluta, da Santa Sé.
Desde que começou o debate sobre o referido capítulo III, a chamada minoria do Concílio opôs-se-lhe de todas as formas. Quando se sentiu vencida procurou debilitá-lo. Essa resistência continuou, sem tréguas, até à sua rectificação, dias antes do encerramento do concílio. Note-se que até ao pontificado do Papa Francisco, a colegialidade era um ideal que descansava nas páginas dos documentos conciliares. É verdade que o instrumento que Paulo VI tinha pensado para a aplicação do referido capítulo III, era o Sínodo dos Bispos. No entanto, o modo como o concebia era mais um instrumento da Santa Sé do que uma aplicação da colegialidade. Apesar disso, o Concílio aceitou-o como expressão da colegialidade, no decreto sobre a função pastoral dos bispos (Christus Dominus nº 5).
3. Até aos dois Sínodos sobre a Família, a que presidiu o Papa Francisco, os sínodos episcopais eram apenas a rectificação dos textos preparados pela Cúria. A mudança foi radical. Ele tinha dito com clareza: nos sínodos, as opiniões devem expressar-se livremente e o documento final deve ser o produto do próprio Sínodo. Houve, de facto, nesses últimos sínodos divergências de opinião e consternação em certos sectores. Daí resultaram muitos ataques ao Papa, acusando-o até de várias heresias, mas apesar desta “desordem”, esta situação, a médio e a longo prazo, poderá ser mais sadia do que um controle rígido sobre o funcionamento dessas assembleias.
Com a colegialidade, o Vaticano II tratou também a reforma da Cúria Romana que, desde o começo, tentou controlar o Concílio. A animosidade da maioria contra o chamado “Santo Ofício”, hoje Congregação para a Doutrina da Fé, levava alguns a propor a sua abolição pura e simples. A reforma da Cúria não estava, inicialmente, na ordem do dia do Concílio, mas logo no final do primeiro período tornou-se claro que os bispos a enfrentariam. As críticas foram duras e exigiam medidas radicais. Paulo VI disse que era normal a qualquer instituição reformar-se de vez em quando, mas deixou isso para depois do Concílio. Nem as suas medidas nem as de João Paulo II tiveram qualquer efeito.
As tarefas empreendidas pelo Papa Francisco têm, sem dúvida, a sua origem na crise actual e nas suas heranças. Mas ao mesmo tempo fazem parte da ordem do dia inacabado do Vaticano II e de problemas que atravessam a história da Igreja. Bergoglio retomou a verdade do axioma sobre o ecumenismo: Ecclesia semper reformanda, a Igreja deve viver em permanente processo de reforma.
A Constituição Apostólica sobre o Sínodo os Bispos (15.09.018) faz parte desse processo. O seu espírito e as suas normas exigem novas formas de escuta e de representação que matem, na raiz, as tentações de um renovado clericalismo[v]. O Sínodo dos Jovens tem de mostrar, a toda a Igreja, que estamos a inaugurar tempos novos em todos os lugares. Para vinho novo, odres novos. Ninguém espere que vá ser fácil.
       Frei Bento Domingues, O.P.
       in Público, 28.10.2018


[i] Cf. Carlo Rovelli, Talvez o maior mistério de todos seja o tempo, Rev. LER, nº 150, pp 92-105
[ii] Jo 15, 11; 1Jo 1, 1-4
[iii] Act. 2, 14 -24
[iv] Cf. Reforma de la Eglesia. Reflección de un historiador, Selecciones de teología, n 227, 2018, pp 188-194
[v] Este texto nasceu na celebração dos 21 anos do Movimento Nós Somos Igreja, em Portugal, cujo lema foi Com o Papa Francisco reformar a Igreja, Convento de S. Domingos, 20.10.2018

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Dois dias para a morte e o sentido
Padre Anselmo Borges

Há muito que para mim é claro que, para perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e nela se trata a morte e os mortos. Aí está: hoje a morte é tabu, mais: vivemos numa sociedade assente sobre o tabu da morte, tendo nele o seu fundamento. Da morte não se fala. Não é de bom tom. E o que é que isso revela? Que vivemos numa sociedade desorientada, que não sabe o que há-de fazer com a morte e, por isso, também não sabe viver na fundura ético-metafísica que o pensamento da morte dá e exige.
O que aí fica, talvez intempestivamente, para os dois dias 1 e 2 de Novembro, que tradicionalmente eram consagrados à meditação sobre a morte e o seu sentido, que é o sentido da vida, são breves reflexões sobre este tema incómodo, mas sem o qual se deriva para o inessencial.
A morte é o mistério pura e simplesmente. Ninguém sabe o que é morrer. Ainda nenhum de nós, felizmente, morreu, e os mortos, esses, não falam. Não temos experiência do que é morrer nem do estar morto nem do Além. A morte escapa a todas as categorias. Como escreveu o filósofo Emmanuel Levinas, “a morte é o mais desconhecido de todos os desconhecidos. Ela é mesmo desconhecida de modo totalmente diferente de todo o desconhecido”. Perante o rosto morto de uma pessoa, concretamente  da pessoa amada ou de um amigo, sabemos que qualquer coisa de dramático e único aconteceu: o fim da existência no mundo, o “stop” definitivo e irreversível. Mas o que é que isto quer dizer verdadeiramente? “Nunca saberemos o que é que a morte significa para o próprio morto. Não sabemos sequer o que pode haver de legítimo na fórmula: para o próprio morto.” Em última análise, não é possível fazer um juízo definitivo sobre a vida de alguém, porque nunca nos é dado saber o que foi a sua morte. No confronto com a morte, é com a irrepresentabilidade total que deparamos. Só os vivos falam da morte. Os mortos, esses, calam-se definitivamente. Sigmund Freud também escreveu: “O facto é que nos é absolutamente impossível representar a nossa própria morte, e todas as vezes que o tentamos apercebemo-nos de que assistimos a ela como espectadores. É por isso que a escola psicanalítica pôde declarar que, no fundo, ninguém crê na sua própria morte ou, o que é o mesmo, que, nos seu inconsciente, cada um está persuadido da sua própria imortalidade.” No fundo, nenhum de nós acredita que há-de morrer: a morte é sempre a morte dos outros, só acontece aos outros, cada um de nós pensa que será excepção. Porque é impossível eu conceber a minha consciência, a consciência de mim, morta.
Por outro lado, paradoxalmente, no núcleo da própria existência, há uma experiência vivida da morte enquanto limite último insuprimível e insuperável. No centro da vida, a morte está presente como mistério, o impensável que obriga a pensar. A vida vê-se inevitavelmente confrontada com a morte enquanto barreira intransponível. Porque o ser humano é o ser da antecipação, toma consciência de que é inevitavelmente mortal: dada a sua condição corpórea, no horizonte da sua vida, antecipando o futuro, a morte surge-lhe como termo inescapável. E, se a morte enquanto totalização põe em questão não só o aquém, mas também o seu além, falar da morte humana enfrenta-se com a pergunta inevitável: e depois? Porque, se também o animal pode ter medo de morrer, só a pessoa humana, porque é autoconsciente, se angustia face à morte. O medo relaciona-se com um objecto concreto; a angústia é difusa, é esse temor único, em última análise, do nada, da morte enquanto dissolução do eu. Unamuno exprimiu-o com estas palavras: “O meu eu, ai que me roubam o meu eu!”
Hoje, predomina o tabu, o recalcamento, da morte. Nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo, a morte tornou-se realmente tabu. Ela é umas realidade quase obscena. Repare-se, neste sentido, como se inverteu a relação com o sexo e com a morte: nas sociedades tradicionais, tabu era o sexo; hoje, tabu é a morte, talvez o último tabu. Como é que uma sociedade que gira à volta da organização sócio-económica, determinada pelo individualismo concorrencial feroz e insolidário, onde os valores considerados são o prazer, o êxito, a juventude, a beleza, a eficácia, a produção, o lucro, acumulação de bens e fortuna, progresso e riqueza, pode ainda acompanhar afectivamente os doentes, os velhos e os moribundos (agora, diz-se “pacientes terminais”) e suportar o supremo fracasso da morte?
Mas não se pense que se deixou de falar da morte por ela já não constituir problema. É exactamente o contrário que se passa: de tal modo a morte é problema, o problema para o qual uma sociedade que se julga omnipotente não tem solução que só resta a solução de ignorá-la, ocultá-la, reprimi-la. Aquilo que provoca dor infinda e para que não há solução é recalcado.
Mas, quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal de desumanização e alienação. Paradoxalmente, essa sociedade torna-se mortífera, tanatocrática e tanatolátrica. Pode perguntar-se: ao contrário das aparências, não revelará a ocultação da morte precisamente um medo-pânico da morte que se pretende exorcizar? Viktor Frankl mostrou que “a angústia  perante o vazio existencial e a neurose noógena de sentido estão às portas de quem por medo foge ao medo.” O homem das nossas sociedades possui ingência de meios e bens materiais, mas vive no deserto de fins autenticamente humanos e de sentido que preencha a existência. Sofre por falta de orientação existencial, tendo, por isso, medo dos aspectos negativos da existência. As sociedades da opulência actuais satisfazem necessidades materiais, ma não a vontade essencial, constitutiva, de sentido.
Preso do prazer imediato, o homem actual perdeu o sentido da totalidade, pelo qual o confronto com a morte inevitavelmente pergunta. A consciência da inevitabilidade de morrer abala na sua raiz a existência enquanto totalidade, convocando o ser humano para a pergunta absoluta, que não é mera curiosidade: Quem sou eu? Que será de mim? Qual o sentido da minha vida e da História? O que é que, em última análise, habita no seu núcleo?
Sem a consciência da morte, haveria filosofia, religião e exigência ética? Com a ocultação da morte, o ser humano pretende viver na ignorância do futuro, e perde o seu ser. Então é fácil a ética dissolver-se no simples utilitarismo e hedonismo. Já Ortega e Gasset se queixava: “Esta é a questão: a Europa ficou sem moral”. De facto, é confrontados com a morte que somos colocados perante a urgência da decisão, a unicidade, dramaticidade, densidade e responsabilidade irrevogável da vida e a questão do sentido total da existência. Pela antecipação da morte, a vida é-nos dada como totalidade e no seu carácter de definitividade e ultimidade, numa só vida e com uma só morte, ambas irrepetíveis. Sem essa antecipação, o homem fica na situação do animal, para o qual tudo se passa em “aquis” e agoras” sucessivos, sem possibilidade de totalização, e, portanto, regido exclusivamente pelos impulsos de prazer e desprazer imediatos.
Perante a angústia da morte, o homem actual remeteu-se para a morte neutra e abstracta, como estratégia para continuar a viver na vulgaridade, na dispersão banalizante e na banalização dispersante, na existência inautêntica, para cuja ameaça nos alertaram os filósofos Martin Heidegger e Sören Kierkegaard. Por isso, é urgente reconquistar a sabedoria da meditação da morte, para que a existência readquira autenticidade, porque é a morte que faz a triagem entre o que verdadeiramente vale e o que realmente não vale, entre o decisivo e o banal, entre superficialidade e liberdade que liberta, entre ter e ser, entre o que verdadeiramente quero e o que é mera ilusão. Na antecipação da morte, capto o valor único da pessoa, que vale mais do que todas as coisas: as coisas são meios, só a pessoa é fim, insubstituível. Assim, o pensamento da morte impõe-se, não como veneno para a vida, mas como antídoto contra a vulgaridade vaidosa e vazia da existência inautêntica.
É verdade que a consciência da necessidade de morrer me pode atirar para o abismo da dissolução nos prazeres imediatos: “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Muitas vezes também, o poder devastador da morte serviu satanicamente de instância fundadora de poderes totalitários, tanto na ordem temporal como espiritual. Mas é igualmente verdade que, na antecipação de todos os rostos mortos, se encontra talvez o único lugar autêntico da compaixão, da paz e da fraternidade, que, entretanto, se torna imperativo construir, evitando a catástrofe: Somos mortais: logo, somos irmãos, como viu até Herbert Marcuse, que, dois dias antes da sua morte, já no hospital, confessou a Jürgen Habermas: “Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros”.
Padre e professor de Filosofia
in DN 27.10.2018


21 outubro 2018

DE PORTUGAL PARA O MUNDO Balanço do Colóquio Rastos Dominicanos (1)

     
P / INFO: DE PORTUGAL PARA O MUNDO, Balanço do Colóquio Rastos Dominicanos (1), Francisco em Pequim?, crónicas de Frei Bento Domingues e Padre Anselmo Borges

DE PORTUGAL PARA O MUNDO
Balanço do Colóquio Rastos Dominicanos (1)
Frei Bento Domingues, O.P.

1. Não foram poucas as pessoas que quiseram saber por que razão não tinha publicado a crónica no passado Domingo. Vou explicar, mas começando mais atrás. Continuam a perguntar-me porque acrescento, à minha assinatura, OP. É uma longa história. Podia dizer simplesmente, dominicano pois pertenço a uma Ordem religiosa, fundada no seculo XIII, em França, por S. Domingos de Gusmão. Ele, porém, não queria fundar dominicanos, mas uma Ordem de Irmãos cuja missão, na Igreja, seria a pregação que a primeira Ordem dos Pregadores – a dos Bispos – tinha abandonado. Domingos não pretendia que o reproduzissem, mas que inventassem, em todos os tempos e lugares, os modos de partilhar a palavra do Evangelho da alegria. Os membros da Ordem não vivem para reproduzir a fisionomia do seu Fundador, mas para assumir o rosto das urgências da evangelização, em cada época. Não foi por acaso que o célebre pintor Matisse o apresentou sem a figuração do rosto.
Esta missão exigiu, desde o começo, o casamento do estudo com o anúncio e a reinterpretação contínua do Evangelho. Dessa ligação nasceu a teologia em diálogo com a cultura, elaborada de forma exemplar por Santo Alberto Magno e S. Tomás de Aquino. Da mesma raiz brotou a mística do infinito desassossego do Mestre Eckhart e o ardor da reforma da Igreja, com Santa Catarina de Sena. Da pregação incarnada no tempo e lugar irrompeu uma das páginas mais belas da história da humanidade com o Sermão de António de Montesinos. O seu grito contra a exploração dos índios transformou-se numa aliança de investigações e intervenção contínua entre Bartolomeu de Las Casas, a Escola de Salamanca representada por Francisco de Vitória: por direito natural, os índios são os verdadeiros senhores das suas terras e das suas riquezas. A nenhum título, nem o Papa nem o Rei de Espanha os podem privar desse direito![i]
Não se julgue que essa efervescência filosófica e teológica esquecia a cristologia narrativa do povo iletrado: a distribuição das cenas evangélicas, pelos mistérios do Rosário, alimentou o povo católico por todos os continentes. Em nome da liberdade - uma Igreja livre num Estado livre - Henri Lacordaire, nos finais do século XIX, restaurou a Ordem dos Pregadores, em França. A sua lucidez teve uma fecundidade espantosa, no século XX, preparando, numa história atribulada e criativa, muitas das inovações do Vaticano II.
2. Esta rápida evocação atraiçoa a complexidade de uma longa história. Passados 800 anos e com presença em todo o mundo, a Ordem dos Pregadores, autorizada por Inocêncio III, em 1215, confirmada por Honório III, em 22 de Dezembro de 1216 e reforçada pela bula Gratiarum omnium, de 21 de Janeiro de 1217, sentiu a necessidade de fazer um balanço histórico, de tão longo percurso, feito de fidelidades e traições ao seu projecto.
Esta Ordem terá chegado a Portugal entre os anos de 1220 e 1222. Frei Luís de Sousa antecipa a presença dos primeiros pregadores em Portugal para 1217, associando-a à figura de Frei Soeiro Gomes e ao Convento de Montejunto.
Em 2016, para o estudo desses 800 anos dominicanos, uma Comissão constituída por elementos do Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA) e do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) desenvolveu em três lugares, três Jornadas com três temas de fundo: História, Memória, Património; Discursos, Teologia, Espiritualidade; Espaços, Homens, Percursos[ii].
3. Na passada semana, de 09 a 11, realizou-se, no Palácio Fronteira e no Convento de S. Domingos, outro Colóquio muito original: Rastos Dominicanos. De Portugal para o Mundo. 600 anos da Província Portuguesa, com vinte e seis conferências e uma visita guiada ao Convento de S. Domingos de Benfica e à actual Igreja de Nossa Senhora do Rosário.
Eu não podia perder esta ocasião para me aproximar do mundo imenso que desconhecia.
No final, Cristina Costa Gomes, em nome do ISTA e do CEHR, fez o balanço sintético deste espantoso colóquio. Remeteu-nos, em primeiro lugar, para a sua dimensão, não só em termos de número de conferências, mas principalmente da multiplicidade de áreas temáticas abrangidas, desde a História, à Arte, à Literatura, à Espiritualidade, à Teologia, à Pedagogia e Didáctica até à Missionação e Semiótica/Textualidade.
Os conferencistas vieram de diferentes universidades do país (Lisboa, Coimbra, Porto, Évora, Minho) e de diferentes centros de investigação e academias. Trouxeram abordagens distintas, linhas de investigação recentes e em aberto, com dados inéditos e novas problemáticas.
Podemos destacar como grandes linhas temáticas do Colóquio: os Dominicanos e as fundações Dominicanas femininas durante a Idade Média; os Dominicanos no período Moderno: espiritualidade e poesia feminina e grandes vultos dominicanos da Cultura Portuguesa do Renascimento, nomeadamente Frei Fernando de Oliveira, Frei Jorge de Santiago, Frei Luís de Sottomaior e Frei Bartolomeu Ferreira; a missionação Dominicana na África do Sudeste e na Ásia. Neste campo, em particular, questionou-se a importância dos percursos pessoais de Frei João dos Santos, Frei Gaspar da Cruz, Frei Silvestre de Azevedo e Frei Miguel de Bulhões e Sousa.
A arte acrescentou-se a estes tópicos com abordagens inéditas e propostas de diálogo entre a pintura, a arquitectura e a escultura. Desde as pinturas de Luís de Morales, às fachadas das Casas Dominicanas, no contexto da arquitectura quinhentista e seiscentista, problematizou-se a articulação entre a arte e a espiritualidade coeva.
Temas contemporâneos permitiram-nos viajar por questões como a pedagogia de Teresa de Saldanha, a edição da Revista Concillium (1965-1966) e a participação dos Dominicanos Fr. Mateus Peres, Fr. Raimundo de Oliveira e Fr. Bento Domingues nesta publicação, assim como a missionação dominicana no Brasil e experiências missionárias em Moçambique e no Peru.
Estes dias de trabalho levantaram novas problemáticas sobre o que falta fazer e que não cabem nesta crónica. Terei de voltar a esse desafio.
in Público 21 Outubro 2018
https://www.publico.pt/2018/10/21/sociedade/opiniao/de-portugal-para-o-mundo-balanco-do-coloquio-rastos-dominicanos-1-1847960


[i] António de Montesinos, O.P.; Bartolomeu de las Casas, O.P.; Francisco de Vitória, O.P., E estes não serão homens?, Ed. Tenacitas, Coimbra, 2014
[ii] António Camões Gouveia, José Nunes, OP, Paulo F. de Oliveira Fontes (Coord.), Os Dominicanos em Portugal (1216-2016), CEHR da UCP, Lisboa 2018; Actas do Colóquio (Porto, Outubro 2012), A Restauração da Província Dominicana em Portugal. Memória e Desafios, Tenacitas, Coimbra 2012.

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Francisco em Pequim?
Anselmo Borges*

1. A perseguição aos cristãos foi particularmente feroz durante a Revolução Cultural no tempo de Mao. Mas a situação está a mudar de modo rápido e surpreendente. Desde 1976, com a morte de Mao, as igrejas começaram a reabrir e há quem pense que a China poderá tornar-se mais rapidamente do que se julgava não só a primeira potência económica mundial mas também o país com maior número de cristãos. “Segundo os meus cálculos, a China está destinada a tornar-se muito rapidamente o maior país cristão do mundo”, disse Fenggang Yang, professor na Universidade de Purdue (Indiana, Estados Unidos) e autor do livro Religion in China. Survival and Revival under Communist Rule (Religião na China. Sobrevivência e Renascimento sob o Regime Comunista). Isso “vai acontecer em menos de uma geração. Não há muitas pessoas preparadas para esta mudança assombrosa”.
Cresce sobretudo a comunidade protestante. De facto, a China tinha apenas um milhão de protestantes. Em 2010, já tinha mais  de 58 milhões. Segundo Yang, esse número aumentará para cerca de 160 milhões em 2025, o que faria com que a China ficasse à frente dos Estados Unidos. Em 2030, a população cristã total da China, incluindo os católicos, superará os 247 milhões, acima do México, Brasil e Estados Unidos. “Mao pensava que poderia acabar com a religião. E julgava ter conseguido”, diz Yang. “É irónico pensar que o que fizeram foi fracassar completamente.”
A situação parece preocupar as autoridades chinesas, que, por outro lado, não quererão 70 milhões de cristãos como inimigos.
2. Os católicos serão uns 12 milhões. Desde 1951 que a China não tem relações diplomáticas com o Vaticano. Mas o Governo chinês felicitou Bergoglio a seguir à sua eleição como novo Papa e exprimiu o desejo de que, sob o pontificado de Francisco, o Vaticano “elimine os obstáculos”, para uma aproximação. Francisco declarou por várias vezes não só o seu apreço pelo povo chinês como o seu desejo de visitar Pequim. Por exemplo, disse aos jornalistas: “Estamos próximos da China. Enviei uma carta ao Presidente Xi Jinping quando foi eleito, três dias depois de mim. E ele respondeu-me. Há contactos. É um grande povo do qual gosto muito.” E que está à espera de um sinal para uma visita.
O que é facto é que, aquando das viagens de Francisco à Ásia, a China, pela primeira vez, abriu o espaço aéreo para que um Papa pudesse sobrevoá-la. Não se pode esquecer que Francisco é jesuíta e que o jesuíta Matteo Ricci, cujos conhecimentos científicos deixaram o imperador deslumbrado, juntamente com Marco Polo são os dois estrangeiros recordados por Pequim entre os grandes vultos da China. Aliás, a inculturação do cristianismo na cultura e religião chinesas poderia ter-se dado nos séculos XVI-XVII, por influência precisamente do génio de Ricci, não fora a cegueira do Vaticano, que interveio desgraçadamente, impedindo essa síntese entre o Evangelho e a cultura milenar chinesa.
3. Francisco é um jesuíta da estirpe de Ricci, que admira: o processo da sua beatificação avança e a frase “venho dos confins do mundo” será citação de Ricci, que dizia ter passado a vida nos “confins do mundo”. Francisco é também considerado um “animal político”, que sabe de geoestratégia, acompanhado pelo secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, um diplomata de primeira água, como disse o Papa, no regresso da sua viagem aos países bálticos, respondendo às perguntas dos jornalistas sobre o acordo assinado dias antes entre o Vaticano e Pequim: “o Secretário de Estado que é um homem muito devoto, o cardeal Parolin, que tem também uma especial devoção pela observação. Estuda todos os documentos, até nos pontos, nas vírgulas e acentos. Isto dá-me uma segurança muito grande.” Foi um acordo que durou anos de negociações e é sabido que, acrescentou o Papa, “quando se faz um acordo de paz ou uma negociação, as duas partes perdem alguma coisa. Esta é a lei. As duas partes, e continua-se. E isto continuou. Dois passos para a frente, um para trás, dois para a frente, um para trás. Depois, passaram meses sem falarmos e depois chegou o tempo de falar, à maneira do tempo  chinês, lentamente. Esta é a sabedoria, a sabedoria dos chineses.” Não houve improvisação, mas um caminho que durou a percorrer “mais de dez anos”.
Francisco fez questão de sublinhar que assumiu a total responsabilidade pelo que se passou: “Fui eu que assinei o acordo.” Em que consiste esse acordo de 22 de Setembro passado? Antes, havia a Igreja Patriótica, com bispos nomeados pelo Governo, e a Igreja clandestina, com bispos nomeados e fiéis ao Papa. Agora, “há um diálogo sobre eventuais candidatos. A coisa faz-se em diálogo, mas quem nomeia é Roma, o Papa. Isto é claro.” Há uma consulta entre os fiéis para o candidato a bispo, o  Governo aprova, mas o Papa tem o direito de veto, havendo neste caso a necessidade de encontrar outro candidato.
Sucede, pois, que o Papa reconheceu sete bispos da Igreja Patriótica, que ficaram, em igualdade com os outros, em comunhão com o Papa. É compreensível que alguns bispos e muitos católicos que foram perseguidos e tiveram de viver na clandestinidade se tenham sentido um pouco traídos e sofram. Para esses Francisco teve também uma palavra: “Penso na resistência, nos católicos que sofreram. É certo, e sofrerão, Num acordo, há sempre sofrimento, mas eles têm uma fé grande, e escrevem, fazem chegar mensagens. Sim, a fé martirial desta gente avança. São grandes.” E, numa alusão a Viganó, que o acusou na célebre carta bem conhecida, Francisco contou: “Quando saiu aquele famoso comunicado de um ex-núncio, os episcopados do mundo inteiro escreveram-me, dizendo de modo claro que se sentiam próximos, que rezavam por mim... Os fiéis chineses também escreveram e a assinatura desse escrito era do bispo, digamos, da Igreja tradicional católica e do bispo da Igreja Patriótica, os dois juntos e os fiéis juntos com eles. Para mim foi um sinal de Deus. Rezamos pelos sofrimentos de alguns que não entendem ou que têm às suas costas muitos anos de clandestinidade.”
O primeiro resultado visível deste acordo provisório é a presença no Sínodo dos Bispos sobre os  jovens, a decorrer em Roma, de dois bispos da República Popular da China: um da Igreja tradicional e outro da Igreja Patriótica. Na Missa de abertura do Sínodo, ao referir os seus nomes, um nomeado por Bento XVI e outro que pertencia à Igreja Patriótica, Francisco comoveu-se: “Hoje, pela primeira vez, estão também aqui connosco dois irmãos bispos da China continental. Demos-lhes as nossas afectuosas boas vindas: graças à sua presença, a comunhão de todo o episcopado com o Sucessor de Pedro é ainda mais visível.”
4. Poderia Francisco culminar o seu pontificado com uma visita à China? No quadro da reconfiguração geoestratégica daquela região — pense-se nos encontros entre o Presidente Donald Trump e o Presidente Kim Jong-un, no convite deste ao Papa para uma viagem à Coreia do Norte, nas próximas viagens de Kim a Seul e a Moscovo, na visita próxima do Presidente da China, Xi Jinping a Pyongyang... — e da importância deste acordo sobre um tema que era a principal razão de conflito entre Pequim e o Vaticano, não se pode excluir essa possibilidade ou até, diz-se, probabilidade.
Mas haverá ainda outro longo caminho a percorrer. O bispo de Hong Kong, Michael Yeung, apoiou — “Eu disse: Santo Padre, avance, não tenha medo, mas seja cauteloso” — e apoia este acordo com a China, mas adverte: “Não creio que a assinatura deste acordo provisório signifique a solução de tudo. É preciso tempo, um par de anos, para ver.” Acrescentou que “um acordo provisório não poderia ter parado a opressão” dos católicos chineses por parte do regime comunista nem tão-pouco “ter evitado que as igrejas sejam destruídas” ou que “os jovens sejam proibidos de ir à Missa”. “Estas coisas exigirão tempo para serem resolvidas”. De qualquer forma, pede que daqui em diante o Vaticano vele especialmente por duas coisas: os clérigos “clandestinos” encarcerados por Pequim e a liberdade religiosa.
Uma questão maior. Como é sabido, para o estabelecimento de relações diplomáticas, a República Popular da China pressiona todos os Estados para que cortem relações com Taiwan. Ora, a Santa Sé continua a reconhecer Taiwan e o Vaticano é mesmo o único aliado que Taiwan tem na Europa. John Hung Shan-chuan, arcebispo de Taipé, declarou em relação ao acordo: “Estamos felizes pelo progresso das relações, fomos informados antes”, e acrescentou: “O que vemos é que pela primeira vez o partido comunista está a abanar. Eles dizem que não querem que poderes estrangeiros se metam no seu país, mas desta vez permitiram-no. E isso é um bom sinal, embora não saibamos quais serão as consequências no futuro. Mas não estamos preocupados, porque o Papa disse-nos que não nos ia abandonar nem prejudicar Taiwan. Pedimos-lhe isso e sabemos que como bom pastor não nos vai abandonar”.
Neste enquadramento, a Presidente de Taiwan convidou oficialmente o Papa a visitar a ilha, que tem 300.000 católicos, aproximadamente 1, 5% da população. E os dois bispos chineses que estiveram no Sínodo — foi a primeira vez — convidaram o Papa a visitar o seu país, a República Popular da China. Para que a visita se concretize, será necessário um convite formal de Pequim.
Imediatamente a seguir, neste passado dia 18, o Papa Francisco recebeu, como previsto e como escrevi aqui na semana passada, o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in, que lhe transmitiu oralmente, a pedido de Kim Jong-un, o convite para visitar a Coreia do Norte.  Depois do encontro, o porta-voz presidencial sul-coreano, Yoon Young-chan, declarou que “o Papa disse: ‘Darei uma resposta incondicional, se me chegar um convite oficial e puder ir’”. Já em relação ao convite para visitar Taiwan, o porta-voz do Vaticano, Greg Burke, confirmou, no mesmo dia, o convite, mas “posso afirmar que essa visita do Santo Padre não está a ser estudada”, disse.
Questões da diplomacia, imensas e complexas.
*Padre e professor de Filosofia
in DN 20.10.2018
www.dn.pt/edicao-do-dia/20-out-2018/interior/francisco-em-pequim-10032319.html?target=conteudo_fechado

13 outubro 2018

Francisco em Pyongyang?

       A notícia chegou completamente inesperada e surpreendente: o Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, será portador de um convite formal do Presidente Kim Jong-un ao Papa Francisco para que visite o seu país, a Coreia do Norte. E está preparado para recebê-lo em Pyongyang “com entusiasmo”.
A Coreia do Norte ocupa hoje o primeiro lugar na lista dos países onde os cristãos são mais perseguidos. Nos princípios do século XX, a capital, Pyongyang, foi chamada “a Jerusalém do Oriente” ou “a Jerusalém da Ásia”. Na Coreia do Norte, em 1950, viviam ainda mais de 55.000 católicos, com 57 igrejas construídas, com missionários, escolas católicas e actividades pastorais florescentes. A perseguição tinha começado antes, mas acentuou-se com a guerra da Coreia e o brutal regime instalado: as igrejas foram arrasadas, os cristãos, católicos e protestantes, mortos ou enviados para campos de concentração, num processo de eliminação de qualquer presença religiosa. As comunidades católicas tornaram-se verdadeiramente a “Igreja do silêncio”. Hoje existe apenas uma igreja católica, construída em 1988, mas sem padre nem religiosos nem baptismos. Na capital, os católicos serão uns 800 e, dispersos por toda a Coreia do Norte, uns 2 ou três mil; no entanto, é convicção de padres do Sul, que estiveram no Norte, que o número pode ser muito superior: haverá muitos homens e mulheres que continuam a viver a sua fé em Cristo de modo íntimo, sem possibilidade de exprimi-la publicamente. O regime é ateu, mas, a partir de 1989, com a queda do bloco comunista, reconheceu uma “Associação Católica” e uma “Federação Cristã”, que são duramente enquadradas e controladas pelo Governo. Alguns contactos informais têm tido lugar em Roma entre representantes norte-coreanos e diplomatas do Vaticano, revela o jornal La Croix, que também escreve que em 2017 um diplomata norte-coreano declarou expressamente a um seu enviado especial à Coreia do Norte que “as organizações humanitárias católicas faziam um trabalho muito bom na Coreia do Norte; são sérias, eficazes e nós confiamos, pois são mais honestas e sinceras do que outras grandes organizações laicas que nos enviam espiões”.
Como reagirá o Papa Francisco ao convite? Ele vai receber no próximo dia 18 o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in, um católico fervoroso, que lhe entregará o convite oficial do líder norte-coreano. Nesse dia, o secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, um diplomata reconhecido e prestigiado internacionalmente, celebrará uma Missa na Basílica de São Pedro pela “Paz na península coreana”, na qual participará o presidente Moon.
Possivelmente o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, é o grande artífice da presente situação cada vez mais distendida na península coreana, no quadro de uma nova ordem, que poderia estar inclusivamente a caminho de uma união entre as duas Coreias; para um dos encontros inter-coreanos convidou também o presidente da Conferência Episcopal Coreana, que esteve presente. O convite do líder norte-coreano ao Papa surge no contexto dessa reconfiguração geoestratégica, estando previsto que Kim Jong-un visite Seul, visitando também proximamente Moscovo, ao mesmo tempo que se espera uma visita do presidente chinês, Xi-Jinping, a Pyongyang, e outro encontro entre Kim e Donald Trump poderá acontecer em breve. Por outro lado, Kim, que é sabido ser um ditador cruel e que poderia correr o risco de uma sublevação por parte da população esfomeada, quererá mudar a sua imagem, agora uma imagem de homem pacífico; e que solução melhor para isso do que o convite a Francisco, líder político-moral global e símbolo do combate a favor do diálogo e da paz?
E se Francisco fosse visto em Pyongyang? Ele visitou a Coreia do Sul em Agosto de 2014. Aquando da cimeira histórica entre Trump e Kim a 12 de Junho passado em Singapura repetiu os vários apelos que tem feito a favor da paz entre as duas Coreias. O cardeal Andrew Yeom Soo-Jung, arcebispo de Seul, declarou a propósito do convite: “Dá-me satisfação e conforta-me saber que, durante a sua visita ao Vaticano na próxima semana, o Presidente Moon Jae-in levará consigo a mensagem do líder norte-coreano Kim Jong-un, que deseja convidar o Papa Francisco para Pyongyang. O Santo Padre preocupou-se sempre e preocupa-se com a paz na península coreana e incluiu nas suas orações os coreanos sempre que houve acontecimentos importantes na história recente. Espero que estes esforços ajudem a construir uma paz genuína na península da Coreia. Sobretudo como administrador apostólico de Pyongyang, rezo sinceramente para que em breve possamos enviar sacerdotes e religiosos e religiosas para o Norte e celebrar juntos os Sacramentos.”
Francisco tem a convicção de que o futuro do cristianismo se joga em grande parte na Ásia. Está prevista uma viagem sua ao Japão no próximo ano e não se deverá esquecer que este convite vem também na sequência do acordo de 22 de Setembro passado entre o Vaticano e Pequim sobre a nomeação em conjunto dos bispos da República Popular da China. Este acordo será o tema da minha próxima crónica.
  Anselmo Borges
  Padre e professor de Filosofia
 in DN, 13.10.2018 

08 outubro 2018

HIERARQUIAS CIUMENTAS?

       
  1. Segui vários cursos sobre as diversas expressões do profetismo bíblico, orientados pelo dominicano Francolino Gonçalves, um dos maiores especialistas mundiais em literatura profética do antigo Oriente[i]. Confesso que esses cursos e a frequente leitura dos seus textos serviram mais para admirar o seu saber e verificar a minha ignorância, do que para me sentir minimamente competente, no meio desse vastíssimo e diferenciado fenómeno de muitos estilos. Na nossa linguagem corrente, profeta é aquele ou aquela que prevê, ou se atreve, a predizer o futuro. Um adivinho. Na Bíblia, é um ser humano que tem o dom divino de ser lúcido acerca do presente, vendo as esperanças e as ameaças que encerra. Sabe discernir as opções que libertam o horizonte das que conduzem ao desastre colectivo. Importa não confundir os verdadeiros com os falsos profetas, isto é, os defensores das populações com os bajuladores dos poderosos.
No mundo sacral, a religião, com os luxuosos cerimoniais em que vive a classe sacerdotal, serve para dar cobertura à exploração dos trabalhadores e à humilhação dos pobres. Essa religião é vomitada por Deus. Sem a prática da justiça e o cuidado dos pobres, a religião é uma abominação.
O profeta Miqueias disse o essencial: «Com que me apresentarei ao Senhor e me prostrarei diante do Deus excelso? Irei à sua presença com holocaustos, com novilhos de um ano? Porventura o Senhor receberá com agrado milhares de carneiros ou miríades de torrentes de azeite? Hei-de sacrificar-lhe o meu primogénito pelo meu crime, o fruto das minhas entranhas pelo meu próprio pecado? Já te foi revelado, ó homem, o que é bom, o que o Senhor requer de ti: nada mais do que praticares a justiça, amares a lealdade e andares humildemente diante do teu Deus.»[ii]
2. As liturgias do Domingo não são todas iguais. As escolhas dos textos são muito variadas e ainda bem. A combinação entre elas nem sempre é a mais brilhante. Não digo isto para desculpar as homilias mal preparadas como a daquele pároco que começou a sua pregação com toda a solenidade: o Evangelho de hoje não presta!
No Domingo passado, a selecção dos textos não podia ser mais apelativa, nem mais profética. Abriu com este espanto: «Naqueles dias, o Senhor desceu na nuvem e falou com Moisés. Tirou uma parte do Espírito que estava nele e fê-la poisar sobre setenta anciãos do povo. Logo que o Espírito poisou sobre eles, começaram a profetizar, mas não continuaram a fazê-lo. Tinham ficado no acampamento dois homens: um chamava-se Eldad e o outro Medad. O Espírito poisou também sobre eles, pois contavam-se entre os inscritos e, embora não tivessem comparecido na tenda, começaram a profetizar no acampamento. Um jovem correu a dizê-lo a Moisés: Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento. Então Josué, filho de Nun, que estava ao serviço de Moisés desde a juventude, tomou a palavra e disse: Moisés, meu senhor, proíbe-os. Moisés, porém, respondeu-lhe: Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»[iii]
Moisés era considerado o profeta dos profetas, o mais clarividente de todos, mas não julgava que tinha o exclusivo. Era um democrata do profetismo. Quando se fala de democracia na Igreja, fica tudo aflito e, pelas democracias que conhecemos, temos de nos render à observação de Churchill a democracia é a pior forma de governo imaginável, à excepção de todas as outras.
O sentido da inclusão regressa no Evangelho de Marcos entre a sabedoria e a ameaça. «Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedi-lo porque ele não anda connosco»[iv]. Faziam do discipulado uma propriedade privada: Jesus é só nosso! O Mestre não gostou nada dessa cegueira. Era uma questão de bom senso: quem não é contra nós, é por nós.
Não ficou por aí. Se alguém escandalizar algum destes pequeninos que crêem em mim, melhor seria, para ele, que lhe atassem, ao pescoço, uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar.
Escandalizar é fazer proliferar o mal de modo incontrolável. Tudo em nós pode servir para o melhor e para o pior. Para grandes males, grandes remédios. Nesta parábola exemplar, não há grande confiança na emenda. A mutilação generalizada de pés, mãos e olhos parece a única saída.
A carta de Tiago é dura como a pregação do profeta Amós. Privastes do salário os trabalhadores que ceifaram as vossas terras. O seu salário clama; os salários dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do Universo. Ficou para sempre cunhada a expressão: há pecados que bradam aos céus.
3. Estes textos foram lidos na celebração do Domingo passado e suscitam a pergunta: aconteceu alguma coisa nas comunidades católicas?
O grande debate na Igreja, desde o Vaticano II, é o seguinte: Moisés disse o que acima transcrevemos, o desejo de um povo profético, sem exclusivos. Jesus vai na mesma linha e S. Paulo, no seguimento do Baptismo, afirma: não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos vós sois um só em Cristo Jesus[v].
A irritação com o Papa Francisco é o pânico de que ele, apesar de todas as iniciativas para o travar, não desista do seu programa global, A Alegria do Evangelho.
Quando, agora, quer colocar a Igreja numa focagem sinodal, isto é, colocar a Igreja toda num processo de reforma permanente, impedindo uma acção pastoral de mera conservação, envolvendo todas as pessoas, estruturas, estilos e linguagens, vem o susto: ele é capaz de não desistir e, quanto mais idoso fica, mais atrevido se mostra. O receio maior é outro: que o novo papa siga pelo mesmo caminho. Daí, as estratégias e as tácticas para desenvolver um movimento global, com muito dinheiro e meios, para impedirem uma futura eleição que continue o programa de Bergoglio. Essa tentativa já começou, nomeadamente, nos Estados Unidos.
Frei Bento Domingues
in Público 07.10.2018


[i] José Augusto Ramos, Francolino Gonçalves In Memoriam, CADMO 26, 2016, pp 267-270; Cf. os textos de Francolino Gonçalves nos Cadernos ISTA (www.ista.pt), destacando, Iavé, Deus de justiça ou de bênção, Deus de amor e de salvação, nº 22, ano IV (2009), pág. 107-152, pela sua originalidade acerca dos dois Iaveísmos, dentro da multiplicidade dos “retratos” bíblicos de Deus.
[ii] Mq 6, 6-8
[iii] Nm 11, 25-29
[iv] Mc 9, 38-48
[v] Gl 3, 28

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Pensantes e não pensantes  
  Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
                                                         
Imersos numa crise sem precedentes da Igreja Católica, que está longe de terminar, retomo, na substância e com a devida vénia, um texto que escrevi para o livro “Portugal Católico. A beleza na diversidade”.
1. Quando cheguei à Universidade, admirava-me com o espanto de estudantes e até de professores por causa do meu pensar interrogativo no que se refere à religião. No entanto, I. Kant tinha razão ao escrever que a religião, apesar da sua majestade, não pode ficar imune à crítica. Só uma Igreja autocrítica e que acolhe a crítica da sua realidade tantas vezes tenebrosa pode criticar as infâmias do mundo.
Julgo que continua em Portugal a ideia de que o católico na Igreja está infectado por uma fé dogmática, imóvel e incapaz de pensamento aberto e crítico. A pergunta é: Quem assim pensa estará enganado? Infelizmente, parece-me que não. De facto, quando se pensa nas feridas deixadas pela Inquisição, que tolheu a abertura do pensar, e num clero frequentemente inculto, que se deixou ultrapassar pelo mundo moderno — ouça-se as homilias de grande parte dos padres, impreparadas, inúteis ou mesmo prejudiciais —, fica-se com a convicção de que a Igreja se imobilizou num mundo do dogma repetitivo de uma doutrina que já não é aliciante para a vida e que, pelo contrário, transformou o Evangelho, notícia boa e felicitante, em Disangelho, notícia infeliz e de desgraça, para utilizar a palavra de Nietzsche. Drama maior: a modernidade acabou por ter de impor à Igreja oficial o que é património e herança do Evangelho: os direitos humanos, a liberdade, a igualdade, a separação da Igreja e do Estado.
No entanto, a Primeira Carta de Pedro manda “dar a razão da fé e da esperança”. E é M. Heidegger que tinha razão, ao dizer que “o perguntar é a piedade do pensamento”. Job — está na Bíblia — atreveu-se a fazer perguntas de protesto a Deus e Deus louvou-o por isso. Jesus morreu a rezar, com uma pergunta que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?” E é preciso aceitar que há perguntas sem resposta ou para as quais o crente não tem resposta, como reconhece o Papa Francisco. 
O ser humano é constitutivamente o ser da pergunta e, de pergunta em pergunta, chega ao infinito, perguntando ao Infinito pelo Infinito, isto é, por Deus. É aqui que encontra fundamento a dignidade humana. Finitos e mortais, levamos connosco a capacidade de perguntar ao Infinito pelo Infinito e a sua existência, independentemente da resposta que se dê à pergunta. Isso significa que temos algo de infinito em nós, precisamente essa capacidade. Finitos, somos da ordem do infinito. Por isso, temos dignidade e somos fim e não meio, como é próprio do infinito: para lá do infinito não há mais nada. Lá está Ernst Bloch, o ateu religioso, na sua pedra tumular: “Denken heisst überschreiten” — “Pensar significa transcender”.
2. O Evangelho explicita os dois princípios que devem presidir à reforma que se impõe na Igreja, ao “definir” Deus como Agapê, Amor incondicional, e, logo no início do Evangelho segundo São João, ao dizer que no princípio era o Logos (Verbo, Palavra, Razão, Sentido), o Logos estava em Deus e o Logos era Deus e tudo foi criado pelo Logos. Os dois princípios que têm de animar os católicos, começando por aqueles a quem foi entregue a missão de presidir à Igreja, comunidade de comunidades espalhadas pelo mundo todo, são, portanto: o Amor, a Bondade, e a Razão, a Inteligência. A bondade sem inteligência não abre caminhos novos e pode causar imensos estragos irreparáveis; a inteligência sem a bondade pode tornar-se cruel e fazer um sem número de vítimas.
É neste fundo que se percebe claramente a urgência impreterível da renovação da teologia. O jesuíta Jorge Costadoat chamou a atenção para esta necessidade, ao constatar que talvez nunca como hoje, desde os inícios do cristianismo, a Igreja precise tanto de se pensar a si própria teologicamente no seu respectivo mundo. Uma tarefa gigantesca. De facto, o que acontece é que a teologia não tem ajudado a Igreja na sua entrada numa nova época, o que deriva também das sucessivas condenações de teólogos, de tal modo que a teologia que os ambientes eclesiásticos consideram a melhor é realmente “muitas vezes a pior”. Daí, o fosso entre a Igreja “oficial” e o mundo e mesmo o comum dos baptizados, a ponto de “não se saber exactamente quem tem real autoridade para orientar os outros”: o poder formal sabe-se quem o tem, mas o problema é a autoridade, inexistente, para orientar. “O que se constata é que a distância da Igreja em relação à cultura — a cultura predominante e as diversas culturas —, é crescente. A actual configuração histórica e cultural da Igreja não suporta tantas e tão aceleradas mudanças. Este foi já o diagnóstico do Concílio Vaticano II há 50 anos. Hoje, a tensão é muito maior”.
Uma coisa sabemos: primeiro, é a necessidade da conversão ao Deus de Jesus, ao amor e à misericórdia, que o Papa Francisco encarna. Esta é a direcção correcta e o rumo certo e necessário. “Mas, continua Costadoat, a caridade cristã acerta verdadeiramente quando exige e depende de uma articulação da fé e da razão. Uma caridade infantil e piedosa nunca deve ser menosprezada, mas também não deve ser mistificada. A caridade de que hoje precisamos requer ser pensada e reflectida em todos os planos da vida humana, e a nível político e planetário”. E isso exige uma teologia que não seja mera teologia de teologia, isto é, comentário de comentários, no quadro de uma ortodoxia empacotada e repetida ad nauseam de modo caduco, estéril e, por isso, prejudicial. Impõe-se a necessidade de uma teologia viva e que “tenha a coragem que tem o próprio Francisco de tentar e de equivocar-se”. A teologia com uma tarefa pendente tem de ser “teologia que se confronta com hipóteses e interpretações de uma realidade cada vez mais difícil de compreender; que se situe historicamente e pense a sua missão numa cultura em transformação variada, muitas vezes disparatada, e incessante. O que se requer é uma conversão teológica de 180 graus. A teologia ocupou-se da revelação de Deus no passado; a teologia de que agora se precisa deveria concentrar-se na fala de Cristo no presente. Sem uma teologia deste tipo, que atenda também à pluralidade cultural, a proposta evangelizadora está a naufragar”.
O Papa Francisco tem dado o exemplo. Não só não condenou teólogos como pede pensamento teológico novo na liberdade de pensar e de expressão, tendo ele próprio avançado com dois textos essenciais, que farão história: a Laudato si’ sobre a salvaguarda da criação, a humanidade no cosmos, e a Amoris laetitia, uma visão nova sobre a sexualidade, o casamento e a família.
3. A Igreja tem de dialogar com humildade e sem medo com as ciências, com todos, incluindo os agnósticos e os ateus. Diálogo, como diz a etimologia, é o logos comunicante, a razão comunicativa. Homem de diálogo, o cardeal jesuíta Carlo Martini, que dizia que a Igreja anda atrasada duzentos anos, criou em Milão a Cátedra dos Não-Crentes e, reportando-se a um pensamento de Norberto Bobbio, dizia: “o que me interessa é a diferença entre pensantes e não pensantes. Quero que todos vós sejais pensantes. Depois, escutarei as razões de quem crê e as de quem não crê”.
in DN, 06.10. 2018
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XXVII COMUM Ano B
“Já não são dois, mas uma só carne.”
Mc 10, 9

O amor é um caminho...

“... Que se percorre até ao fim”, canta um refrão sul americano. E o caminho torna-se mais importante que o próprio fim, na descoberta da alegria vivida com alguém. Contra a solidão e o egoísmo, o relato bíblico da criação sublinha a vocação comunitária do homem e da mulher. E a sua igual dignidade como imagem e semelhança de Deus. O que se vive e experimenta sozinho só tem meio sabor. Precisamos dos olhos, dos ouvidos e da palavra de outro para que a comunhão seja maior. Tudo o que signifique superioridade, manipulação, ou exploração de um sobre o outro é oposto ao projecto de amor de que Deus é a fonte.

Nenhum mapa para uma vida em comum é perfeito ou definitivo, e não existe “GPS” que substitua a procura quotidiana. É necessário deixar para trás aquilo que nos impede de avançar. Não é importante a humildade de aprender? Não são o imprevisto e a surpresa, próprios de quem caminha, assim como a riqueza de vários pontos de vista?

O domínio ou a prevalência do homem sobre a mulher são rejeitados por Jesus na interpelação feita pelos fariseus. Ele coloca a relação do casal sob o olhar do projecto divino: os dois chamados a ser um só. É a unidade que só é possível quando subsistem duas pessoas, e nenhuma domina ou oprime a outra. A unidade que supõe verdadeira liberdade para se escolherem mutuamente. A unidade que os faz “olhar na mesma direcção”, e responsabilizarem-se pela felicidade um do outro, e de outros mais.

A realidade dolorosa e sofrida de muitas uniões desfeitas (algumas que talvez nunca tenham sido feitas!) não retira valor ao desejo de amar e ser amado. Antes convida a uma verdade (que liberta) e a um compromisso (que faz crescer). De todos. Com todos. Para todos. Com a transparência que desmascara hipocrisias, e a humildade que não julga nem condena. A coragem de muitos gestos eclesiais, de abertura a futuros mais autênticos, reconhecendo o que existe em vez de lamentar o que acabou ou não existiu, é um sinal de mais autenticidade. É caminho que se faz em vez de manter abismos ou muros.

Pois quem não gostaria de dizer a Deus, como Sebastião da Gama sobre a sua Joana Luísa: “Aquele ‘sim’ de nós dois, Senhor, / foi tão sincero, / que agora, sempre que eu digo ‘quero’ / já não sou só eu que digo, / -somos nós.”
in Voz da Verdade 07.10.2018

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Papa Francisco cercado e em modo contra-ataque

Francisco já evoca o Diabo, figura que parecia arredada do seu papado, para retratar os ultraconservadores que, com alegações ferozes, querem obrigá-lo a resignar. E, em surdina, manobra para moldar o colégio de cardeais à sua medida
J. Plácido Júnior
Jornalista

A rede de inimigos do Papa é poderosa e continua a estender-se. Ultraconservadora, é liderada pelo cardeal norte-americano Raymond Burke, que Francisco afastou de prefeito da Ordem de Malta e da presidência do Supremo Tribunal Canónico, por causa das suas posições contra os homossexuais. E a influentes prelados que estão com Burke juntaram-se-lhe Steve Bannon, o ex-estratego de Donald Trump, e Matteo Salvini, ministro do Interior italiano e líder da Liga, partido de extrema-direita.

Dir-se-ia que é uma equipa suficientemente talentosa para colocar o Papa em apuros, no momento em que Francisco surge mais fragilizado pelas denúncias sucessivas de escândalos de pedofilia na Igreja, dos EUA à Austrália, da Irlanda ao Chile, que caíram sobre o seu mandato com o estrondo de um megameteorito. O primeiro tiro de canhão seria disparado contra Francisco na data certa – 26 de agosto passado, último dia de uma difícil visita do Papa à Irlanda, onde reiteradamente se penitenciou pelos abusos sexuais de menores por clérigos desse país, ao mesmo tempo que enfrentava críticas e protestos. Naquele dia, o arcebispo italiano Carlo Maria Viganò, conhecido ponta de lança da ala ultraconservadora do Vaticano e ex-núncio apostólico nos EUA, divulgou uma carta que escreveu, com 11 páginas, em que pede a renúncia de Francisco, que acusa de encobrir os abusos sexuais perpetrados pelo cardeal norte-americano Theodore McCarrick, o qual “corrompeu gerações de seminaristas e padres”.

No avião de regresso a Roma, o Papa mostrou que também é exímio em jogos de poder. Disse aos jornalistas que tinha lido a carta de Viganò (publicada em diversos órgãos de comunicação católicos conservadores), que nem sequer lhe respondia, e convidou os repórteres a investigarem a veracidade das alegações do arcebispo. Resultado: as acusações de Viganò têm sido desmontadas na imprensa internacional, uma atrás da outra. Mas algo mais há de seguir-se. Burke, que quer obrigar o Papa a resignar, e Francisco, que não tenciona dar essa satisfação ao cardeal ultraconservador, sabem que têm uma data-limite para o desfecho da guerra em que estão envolvidos – novembro próximo, mês em que bispos de todo o mundo se reúnem em Roma. A de setembro, na homilia da habitual missa que celebra todas as manhãs na capela de Santa Marta, no Vaticano, Francisco elevou a parada, ao evocar Satanás, figura que parecia arredada do seu papado: quando há discussões entre membros da família, “vemos que o Diabo está lá a querer destruir-nos”, disse.

BISPOS PORTUGUESES APOIAM FRANCISCO
Nas manobras que em surdina tem desenvolvido no centro do poder, a Santa Sé, o Papa mostra-se à altura das propostas “arrojadas” (embora também haja quem lhes chame “tímidas”) que avança para alterar posições tradicionais da Igreja, da sexualidade (que pode incluir o celibato facultativo para padres) ao acolhimento eucarístico de divorciados, recasados e homossexuais. Mas houve um assunto que Francisco decidiu resolver desde já, de viva-voz: libertou a doutrina católica de qualquer justificação moral para a pena de morte. Outro escândalo para os furibundos ultraconservadores, sobretudo os norte-americanos.

“Com o último consistório, Francisco deu um passo muito grande para moldar o colégio de cardeais eleitores à sua medida”, diz Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Acrescenta que “esta tensão em torno da pedofilia surge, talvez, como a última oportunidade para os setores contrários a Francisco tentarem fazer algo antes de o colégio de cardeais estar totalmente perdido e maioritariamente ao gosto do Papa”.


Paulo Mendes Pinto verifica que “esta pressão sobre o Papa levou muitos bispos e cardeais, alguns até conservadores, a clarificarem a sua posição e a assumirem estar ao lado de Francisco”. Porventura, observa, “esta foi a oportunidade de que Francisco necessitava para dar arranque a uma reforma de fundo”.

Os cardeais e bispos portugueses são um bom exemplo. Em abril de 2015, noticiou-se uma agitada reunião plenária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que debateu o acesso de divorciados recasados, que querem continuar integrados na Igreja, à comunhão eucarística. Apenas sobre esta questão, o Papa convocou dois sínodos. Ao que na altura se apurou, o parecer enviado pela CEP para Roma, após votação, chumbava a proposta de Francisco. Só por dois votos, como na ocasião se soube, a ala conservadora, supostamente liderada pelo cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, com o argumento de que “não se pode pôr em causa a doutrina”, venceu o grupo liberal, favorável à posição do Papa e alegadamente encabeçado pelo então bispo (hoje cardeal) de Leiria-Fátima, António Marto.

Muito diferente foi a carta que, também a 3 de setembro, a hierarquia máxima da Igreja portuguesa enviou ao Papa. “Os bispos de Portugal reunidos em Fátima, no Simpósio Nacional do Clero, (...) aproveitam esta ocasião para, antes de mais, agradecer a Sua Santidade a oportuna e corajosa Carta ao Povo de Deus, sobre o drama do abuso de menores por parte de membros responsáveis da Igreja”, lê-se no documento. Depois, os bispos portugueses criticam as “tentativas de pôr em causa a credibilidade” do Papa e manifestam “fraternal proximidade e o total apoio” a Francisco neste momento difícil, enfatizando que estão em “plena comunhão” com o líder da Igreja.

A este propósito, Paulo Fontes, diretor do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica, diz que o Papa revela saber que “as reformas que pretende empreender não podem partir só do centro”. Se assim fosse, “colapsavam”. Por isso, remete questões de tão grande importância social, como os escândalos de pedofilia, “para toda a Igreja, para o ‘povo de Deus’”. Não “por culpa”, mas “por responsabilização, porque sabe que o único mecanismo em que se pode apoiar tem de ser dinâmico, envolvendo paróquias e episcopados locais, que deem sustentação a esta vontade de mudar regras e de refletir sobre problemas, permitindo à Igreja no seu todo avançar, até para um novo posicionamento na sociedade”.

António Marujo, jornalista do blogue Religionline, reforça que “um Papa sozinho não muda a Igreja – nem o mundo”. Por isso, diz, “seria crucial a hierarquia católica lançar iniciativas, propostas e debates concretos sobre os temas para os quais o Papa não se cansa de chamar a atenção e de tomar a dianteira: a centralidade de Deus e de Jesus (e não da instituição); a participação dos leigos (e das mulheres) nos processos de decisão; a atenção aos pobres, refugiados e desfavorecidos; a centralidade da pessoa nas decisões da economia e da política; a preocupação com a ‘casa comum’...” Quando isto surgir no quotidiano, “teremos os católicos portugueses a ‘apoiar’ o Papa”, diz António Marujo, a propósito da carta dos nossos bispos a Francisco. “Até lá, são palavras. Importantes, mas apenas isso.”
in Visão 06.10.2018
http://visao.sapo.pt/actualidade/mundo/2018-10-06-Papa-Francisco-cercado-e-em-modo-contra-ataque
Max Rossi/ Reuters

Reserve este dia!!!
Sábado dia 20!
15H Convento de S. Domingos
COM O PAPA FRANCISCO REFORMAR A IGREJA
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