28 julho 2019


P / INFO: Crónicas & Cuban cardinal, dead at 83, was a truly remarkable churchman
Frei Bento – Meditar em qualquer lugar
Padre Anselmo – Marta e Maria, Eco e Narciso
Padre Tolentino – Férias
Padre Vítor – Variações do Pai Nosso
MEDITAR EM QUALQUER LUGAR
Frei Bento Domingues, O.P.

Somos nós, que andamos distraídos e muito enganados acerca do sentido da vida, que precisamos, com insistência, de rezar pela nossa conversão.
1. Ao chegar esta altura do ano, várias pessoas, na linha destas crónicas, pediam-me sugestões de leitura para férias. Não esperava muito das minhas indicações. Quem está habituado a ler ao longo do ano não precisa de recomendações. Quem, por razões profissionais, passa o ano a fazer leituras obrigatórias julga que, nas férias, poderá recuperar outro género de obras sempre adiadas. Para quem não adquiriu a paixão dos livros, não vai ser nas férias que a vai ganhar.
Observo que, nas viagens de comboio e de metro, as mãos não estão ocupadas com livros e raramente com jornais. O metro até abandonou a experiência do jornal gratuito. Sei que esta observação é de um velho. Desconhece as múltiplas aplicações culturais da revolução tecnológica dos meios comunicação: um pequeno objecto pode ser usado para acesso à Internet, visualização de fotos, vídeos, leitura de livros, jornais, revistas e ainda com jogos para entretenimento.
Dizem-me, por isso, que os hábitos de leitura, não só não se perderam como até se intensificaram e aumentaram os “escritores”. As mãos estão sempre ocupadas a receber e a enviar mensagens. A Internet e as suas redes possibilitam contacto permanente e as últimas informações, mas também o acesso a bibliotecas inteiras.
Os jornais em papel estão a desaparecer e a serem substituídos por jornais online. Já existem padres a rezar o breviário e a celebrar a missa pelo telemóvel, mais ou menos sofisticado.
2. Não resisto, no entanto, a recomendar uma das últimas obras de José Mattoso, Levantar o Céu. Os labirintos da sabedoria[1]. Foi um dos seus textos – Contemplação e acção, ontem e hoje – que provocou esta crónica. Lembrei-me dele ao ler as passagens do Evangelho seleccionadas para estes dois últimos Domingos. No primeiro, Jesus é muito bem recebido por Marta em sua casa. Tinha uma irmã, Maria, que não parecia muito dotada para as lides domésticas. A determinada altura, Marta já não pode mais e interpela o próprio Jesus, entretido em conversa com Maria: estais aí a conversar e o trabalho caiu-me todo em cima. Achas que está bem? O insólito é que o convidado toma a defesa de Maria e parece desvalorizar a trabalheira de Marta.
Procurou-se ver aqui dois tipos de organização da vida religiosa, activa e contemplativa, cuja história na via da Igreja foi traçada, com mão de mestre, por José Mattoso.
Afinal, o que estava em causa era outra coisa: a situação da mulher que Jesus encontrou no seu povo, tipificada pela figura de Marta, a mulher escrava do trabalho doméstico sem acesso à Palavra divina e a mulher libertada pelo Evangelho de Cristo, isto é, na mesma situação que, até aí, era reserva masculina. Esta forma literária de proceder é muito característica dos Evangelhos: criar um sobressalto. O bom senso só pode dar razão a Marta e coloca Jesus e Maria muito mal. Este sobressalto é preciso para sacudir uma leitura rotineira. Jesus fez uma revolução na situação social e religiosa da mulher. Marta significa o conformismo, sempre assim foi, sempre assim será. Existem para estar ao serviço do homem. Maria simboliza a igualdade do homem e da mulher: conversam sobre a vida de igual para igual. Como ainda hoje a revolução de Jesus não foi entendida, continua a conversa sobre a ordenação das mulheres e o seu acesso à presidência da celebração eucarística. Quando esquecemos o principal, o cerne da questão, perdemo-nos em labirintos sem saída.
Enquanto andarmos cegos à procura do argueiro, não nos poderemos dar conta da trave que nos cega[2].
3. Neste Domingo, os discípulos pedem ao Mestre que resolva a sua situação de inferioridade em relação aos outros grupos religiosos que têm métodos de oração[3] e eles, nada. João Baptista, por exemplo, tinha uma escola de oração para os seus seguidores. Jesus isola-se para rezar e deixa os discípulos sem livro de orações.
No Evangelho de Mateus[4], Jesus faz uma crítica severa daqueles que rezam para mostrar que rezam. Não quer que os seus discípulos façam parte da igreja dos exibicionistas da religião. Prefere que se fechem no quarto. Se Deus está em toda a parte, pode-se rezar e meditar em qualquer lugar. Vai mais longe: nas vossas orações não useis de vãs repetições, como fazem os gentios, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que tendes necessidades mesmo antes de lho pedirdes.
Como dissemos, Jesus não oferece um livro de orações aos seus discípulos. O Pai Nosso é, como em S. Mateus, um resumo do Evangelho e dos seus grandes temas. Diz-se depressa. A questão é de o tornar vida da nossa vida.
A narrativa de S. Lucas é muito astuciosa e, por isso, importa colher a sua lição paradoxal. Até parece que é preciso insistir, como se Deus fosse um distraído.
Conta uma história, verosímil, uma história de alguém em extrema necessidade que o leva, por causa de um amigo, a incomodar todos os amigos, que satisfazem o seu pedido só para se verem livres da sua insistência inoportuna. O certo é que conseguiu o que desejava. A conclusão até parece ser esta: pedi e dar-se-vos-á, procurai e encontrareis, batei à porta e abrir-se-vos-á. Porque quem pede recebe; quem procura encontra; e a quem bata à porta, esta abrir-se-vos-á. Se fosse esta a conclusão estaria a falar de deus que precisa de gente carente, doente, submissa e disposta a tudo para ser atendida. Um deus assim precisa da miséria do mundo para se afirmar.
A verdadeira conclusão é um salto: se vós que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedirem. Isto é: a oração só tem sentido para nos abrir ao Espírito do Evangelho. O que importa, em todo o tempo e lugar, são pessoas apaixonadas por aquilo que conduziu e apaixonou a vida de Cristo. Torna-se nosso contemporâneo se acolhermos o Espírito que o anima. A oração é essencial, não para convencer a Deus, não para o converter aos nossos projectos. Somos nós que andamos distraídos e muito enganados acerca do sentido da vida, que precisamos, com insistência, de rezar pela nossa conversão. Meditemos nisto em qualquer tempo e lugar.
Boas férias e até Setembro.
in Público, 28.07.2019
https://www.publico.pt/2019/07/28/sociedade/opiniao/meditar-qualquer-lugar-1881064




[1] Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2012
[2] Mt  7, 3-5; 23, 24; Lc 6, 41-42
[3] Lc 11, 1-13;
[4] Mt 6, 5-13

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Marta e Maria, Eco e Narciso
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia

1. É um passo extraordinário do Evangelho segundo São Lucas.

Numa aldeia a caminho de Jerusalém, Betânia, Marta, a dona da casa, convidou Jesus, e, claro, querendo receber bem, como é próprio de uma dona de casa que convida um hóspede ilustre, afadigava-se a trabalhar. Entretanto, a sua irmã, Maria, sentada aos pés de Jesus, na posição própria do discípulo que escuta um rabi, um mestre, pôs-se a ouvir a palavra d'Ele. O trabalho era tanto que Marta veio ao encontro de Jesus e, compreensivelmente, quase em termos de repreensão, atirou-lhe: "Senhor, não te importas que a minha irmã me tenha deixado sozinha a servir? Diz-lhe que venha ajudar-me." Jesus respondeu: "Marta, Marta, andas inquieta e agitada com muita coisa, quando uma só é necessária! Na verdade, Maria escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada."

2. Ao longo dos tempos, sobre este texto sucederam-se os comentários. Que Marta representa a acção e Maria a contemplação. Mestre Eckardt, paradoxalmente, chamou a atenção para o facto de a verdadeira mística ser, afinal, Marta, no contexto do que se chamou "a mística de olhos abertos", dirigida à acção a favor dos outros. A contemplação sem acção, sem compaixão, pode não passar de pura ilusão. De qualquer modo, é essencial sublinhar o que raramente ou mesmo nunca se diz: Jesus está a afirmar que as mulheres também podem e devem ser discípulas. Não é por acaso que Maria está precisamente na posição do discípulo: aos pés de Jesus, escutando a sua palavra. Contradizendo o que estava determinado, Jesus teve discípulos e discípulas; as mulheres não podem estar confinadas ao serviço da casa.

3. Numa leitura abrangente e essencial, o que o texto propugna é uma Igreja das duas irmãs e a vida de todos, de cada um e de cada uma, tem de ser a sínteses das duas irmãs. Também na política.

Concretizando.

3. 1. Há hoje muitos que não querem trabalhar e vivem pura e simplesmente encostados ao Estado, aos outros, aos contribuintes. Não é só não procurarem trabalho, é mesmo recusar trabalhar ou ser descuidado no trabalho... Isso é bem conhecido. Ora, o ser humano tem como uma das suas características ser laborans (trabalhador). Não apenas para ganhar a sua vida - uma expressão extraordinária, embora dura: a vida foi-nos dada e, depois, é preciso ganhá-la, e uma das coisas que me têm sido ensinadas pela experiência é que quem nada tem que fazer para ganhar a vida, trabalhando, porque tudo lhe é oferecido, nunca atinge a adultidade -, mas também para se realizar autenticamente em humanidade. De facto, é transformando o mundo que a pessoa se transforma e faz. Isso é dito no étimo de duas palavras: a palavra trabalho vem do latim, tripalium, que era um instrumento de tortura (trabalhar não é duro?), mas também dizemos de alguém que realizou uma obra e que se vai publicar as obras de alguém (do latim, opera) - em inglês, trabalhar diz-se to work, e em alemão Werk é uma obra, sendo o seu étimo érgon, em grego. Ai de quem, à sua maneira, não realiza uma obra, a obra primeira que é a sua própria existência autêntica!

3. 2. Mas ninguém pode ficar absorvido, cansado e morto pelo activismo de Marta. Até Deus, no princípio, segundo o livro do Génesis, determinou um dia de descanso semanal, o sábado, para que o Homem se lembrasse de que não é uma besta de carga. Todos precisamos de integrar na vida a atitude de Maria. Descansar, repousar, festejar, fazer férias (etimologicamente, férias são dias festivos). Ah! E tempo para a beleza, e para a família, tempo para os amigos, tempo para o silêncio, para o encontro consigo. Nestes tempos de dispersão, de corrida louca (para onde?), perigo maior é o do esquecimento de si e da alienação. Nestes tempos de extimidade, do fora extremo, tempos da perdição, precisamos do outro lado: cultivar a intimidade, dialogar na intimidade, lá no mais íntimo, com a fonte de ser e do ser. Ah! E ouvir o silêncio, lá onde se acendem as palavras vivas e luminosas e o sentido do existir. É preciso constantemente pedir com Sophia de Mello Breyner: "Deixai-me com as coisas/ Fundadas no silêncio." Aí, meditar. Quem sabe da sabedoria das palavras? Meditação, moderação, medicina têm um étimo comum: o verbo latino mederi - a raiz é med: pensar, medir, julgar, tratar um doente -, que significa medir, cuidar de, tratar, medicar, curar... Tanto se busca fora e longe o que está dentro e tão perto!

3. 3. Os políticos também precisam? Se precisam! Como é possível a Assembleia da República ter deixado 170 diplomas para o seu último dia de votações?! Uma vergonha! Quando é que os políticos meditam e pensam em profundidade o que é preciso pensar, longe do ruído tagarela e vazio e dos holofotes que cegam e estonteiam?

4. Dei muito recentemente um pequeno curso sobre "Grandes Mitos da Humanidade". Assim, um pouco à maneira de apêndice, deixo aí aquele que considero um dos mitos mais actuais e que diz o amor impossível: o mito de Eco e Narciso.

Narciso, enamorado da sua própria imagem reflectida na água, deixou de comer, de distrair-se com qualquer outra coisa, e ficou apenas uma flor, um narciso. A ninfa Eco, tagarela infindável, foi castigada pela deusa Hera, pois a sua tagarelice impedia-a de vigiar o seu divino esposo Zeus, que a traía: ficou muda, sem voz própria, repetindo apenas em eco as palavras alheias.
in DN, 28.07.2019

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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
FÉRIAS
SÓ QUEM PERMANECER COMO CRIANÇA CHEGARÁ A SENTIR-SE HERDEIRO DO GRANDE REINO DA VIDA

O poeta Ruy Belo escreveu que “somos crianças feitas para grandes férias”. É uma afirmação aparentemente simples, mas que nos avizinha de uma verdade a que não acedemos sem um mergulho corajoso em nós próprios. Talvez as coisas importantes da vida sejam assim: guardam níveis múltiplos de compreensão. E a compreensão mais plena é aquela que emerge — haveremos de concluir depois — não como dado adquirido, mas como tarefa deliberada e estação em aberto. O que nos incita a uma veemente, a uma inescusável e inacabada coragem de ser, que mesmo quando vislumbrada cedo, não deixa de reclamar de nós a aprendizagem e o caminho de uma inteira vida.

No verso de Ruy Belo, o primeiro elemento de surpresa é o emprego do presente: “somos crianças”. É que há muitos anos deixámos de pensar em nós assim. Se nos interrogassem diríamos que fomos ou que éramos crianças. Da infância conservámos a memória de uma espécie de luz perdida, uma terra cada vez mais longínqua. Contudo, a infância não é uma nostálgica época que o nosso passado encerra, mas um modo de entender e de reencontrar, em cada tempo, o pulsar do presente. Penso naquilo que o designer italiano Bruno Munari explicou um dia, dizendo que uma árvore é uma semente que cresce em silêncio. Somos até ao fim uma infância que matura, que se estende, que se complexifica, que se despoja, que se configura ao essencial. Habituámo-nos apressadamente a ver na descontinuidade e na rutura o modelo do nosso percurso, e, porventura, será menos assim do que pensámos. Empolamos demasiado os segmentos, as etapas e os ciclos. A dada altura, julgámo-nos sobretudo definidos pelas funções que desempenhámos, esquecendo-nos da força estrondosa da vida sem mais. Na verdade, cabe-nos a tarefa de redescobrir a infância como, no verão, damos por nós no encalce de velhos caminhos ou procurando a mina de água escondida, aquela que goteja límpida como nenhuma outra. Mesmo quando não se vê, a infância continua lá. Naquela maravilhosa cena autobiográfica que o cineasta Ingmar Bergman filma em “Morangos Silvestres”, ele coloca o protagonista, o velho professor Isak Borg (nome que contém as iniciais de Ingmar Bergman) a reencontrar os lugares da sua infância, e a contemplá-los agora miraculosamente como se o tempo não tivesse passado. Na verdade, o tempo não passa: somos, ainda somos, o mesmo desejo de ser amados e de amar. Por isso, só quem permanecer como criança chegará a sentir-se herdeiro do grande reino da vida.

Somos até ao fim uma infância que matura, que se estende, que se complexifica, que se despoja, que se configura ao essencial

O outro elemento de surpresa no verso de Ruy Belo é trazido pela conjugação verbal que encabeça o segundo termo: “feitas para grandes férias”. Só por si, a afirmação “somos crianças” colocava-nos num espaço de indeterminação. Mas claramente não é assim. Mais do que indeterminados somos seres feitos para: o espanto, a amplidão, a delícia. Há um chamamento maior onde nos reconhecemos. Por isso, ao contrário daquilo que o tempo de férias tantas vezes parece — quando vivido como fuga, dispersão, alheamento e intermitência de nós mesmos —, ele representa um período privilegiado em que vale a pena apostar. Há um trabalho interior, uma fundamental viagem ao âmago do real que o tempo de férias possibilita. Para isso temos de aceder ao ponto “onde começa a verdadeira vida”. Marcel Proust conta-o assim: “Existem certos espíritos que podíamos comparar a doentes que uma espécie de preguiça ou de frivolidade impede de descer espontaneamente às regiões profundas de si próprio, onde começa a verdadeira vida. Só quando aí tiverem sido conduzidos é que eles são capazes de descobrir e explorar verdadeiras riquezas.” Boas férias.
in Semanário Expresso, 27.07.2019, p. 163
http://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2439/html/revista-e/que-coisas-sao-as-nuvens/ferias
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XVII COMUM Ano C
“Pedi e dar-se-vos-á; procurai e encontrareis;
batei à porta e abrir-se-vos-á.”
Lc 11, 9

Variações do Pai Nosso
Nestes dias de fogo e aflição em terras que muito amo, imaginei as orações de muitos que não desistiram de lutar contra a destruição. Na impotência e na entreajuda, descobrimo-nos frágeis e necessitados, irmãos de uma mesma vida que se procura salvar. Talvez até filhos abandonados, neste desejo de querer que o Pai evitasse aquilo que causamos ou não prevenimos. E descobrimo-nos pedintes, como só as crianças o sabem ser.
Jesus rezava. Em vários os momentos os evangelistas no-lo contam. E a oração é abertura e encontro, mesmo em tantos momentos de deserto, de cada um com Deus. A intimidade com o Pai ressalta em tudo aquilo que Jesus diz e faz. Em S. Lucas, a oração é, essencialmente, pedir. E pedir é próprio dos filhos; que o diga quem é pai ou mãe! Somos filhos a aprender a ser irmãos, pois até o pão que pedimos não é só “meu”, é “nosso”. Neste relato é um discípulo, certamente extasiado, como os outros, por ver Jesus rezar, que Lhe pede que os ensine a rezar. E Jesus dá-nos o “Pai Nosso”. Modelo de todo o diálogo com o Pai, todas as nossas orações são “variações”, em todos os tons e cores, desta maravilhosa oração.
Cinco pedidos apenas (em S. Mateus são sete). Como a vida que se orienta para o Abba (o paizinho cheio de ternura das crianças), desejando que o seu Reino se estabeleça em nós, estes pedidos têm no centro o pedido do pão. Pão para todos, é compromisso que nos lança para a fraternidade e para a construção do mundo. Sem ganância de acumular nem endeusamento de qualquer poder humano. Pão que é vida e recebemo-la dia a dia das mãos do Pai. Pão que fortalece as forças para a verdadeira colaboração no projecto de Deus. Pão que se partilha e multiplica quando o egoísmo é vencido, e só assim traz felicidade.
Pedimos também o perdão. Com a condição de o darmos, na espera de que o coração de Deus seja maior que o nosso. Perdão que não é esquecimento mas liberta, e põe no amor de Deus a possibilidade de tudo curar e recriar. Perdão aos inimigos, como o fez Eva Mozes Kor, uma judia sobrevivente a horrorosas experiências nazis em Auschwitz, falecida no início de julho com 85 anos de idade. Perdão que nos mergulha ainda mais na intimidade do Pai que todos ama. Perdão, o mais difícil e, por isso, a repetir todos os dias.
Por fim, não cair na tentação… de desistir. De nos fecharmos. De não querer ser filhos nem irmãos. De “avariar” o Pai Nosso no círculo de um egoísmo interesseiro. Mas criar em palavras, cores e melodias, mil e uma variações do diálogo com o Pai que nos abre a Ele, a tudo e a todos. Vá lá, vale a pena pedir!
in Voz da Verdade, 28.07.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8346&cont_=ver2

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Cuban cardinal, dead at 83, was a truly remarkable churchman
John L. Allen Jr.
EDITOR
News Analysis
ROME - When I first arrived in Rome some twenty years ago, one of my first social events was a dinner with a group of Italian journalists from whom I was renting office space. Unfortunately, the conversation had to unfold through an interpreter, because they had no English and to call my Italian “embryonic” at that stage would have been an insult to embryos everywhere.

(Actually, that gang was a great incentive for me to get on top of the language, because just to ask something like “How do I use the photocopier?” in anything other than Italian was an ordeal that I find difficult even now to describe.)

The topic that night, as it turned out, was the favorite Roman parlor game par excellence in those years: Who did we think would be the next pope after John Paul II? While several of us hemmed and hawed, one of the journalists at the table was absolutely clear, immediate and firm in her choice: Cardinal Jaime Ortega y Alamino of Cuba, who served as the Archbishop of Havana from 1981 (three years after John Paul was elected) until 2016 (three years into the reign of Pope Francis).

My journalist friend’s logic was impeccable: John Paul’s fame was partly for standing up to Communism in Europe, while Ortega was known for doing the same thing in the New World. Plus, he was a Latin American at a time when many observers believed the cardinals wanted to elect someone from the Western hemisphere to break the European monopoly on the papacy.

In the end, the advent of a Latin American had to await one more papacy, and even then it wasn’t Ortega. Nonetheless, the memory came back to me when the news broke Friday that Ortega had died from pancreatic cancer at the age of 83.

Born in 1936, Ortega was ordained in 1964, while the Second Vatican Council was still underway and just five years after Fidel Castro had swept to power. Two years later, largely on account of his successful pastoral outreach to Cuban youth, he was imprisoned by the country’s new government, spent a year in a labor camp for what was then called “reeducation”, and eventually was released.

Flash forward a decade, and the promising young Cuban priest was made a bishop under St. Pope Paul VI. He was obviously being groomed for bigger things, and just three years later he was named the Archbishop of Havana, effectively the leader of the Cuban Church, under St. John Paul II.

During his 35-year tenure, Ortega became known around the world for one quality above all: Prudence. He would chide the Castro regime when it threatened religious freedom, but always gently and with discretion. He would also support the regime on certain matters of domestic and foreign policy, but again always with a sufficiently deft touch that he left the difference between a Catholic and an ideological approach to social questions clear.

If nothing else, Ortega will always be remembered for the role he played in restoring diplomatic relations between the United States and Cuba under the Obama administration. In 2014 he opened a channel for dialogue after Presidents Raúl Castro and Barack Obama both secretly turned to him for help. At one stage, Francis asked Ortega to deliver a confidential letter to both presidents, and Ortega made an off-the-books trip to the White House to get the missive to Obama.

Cuba and the U.S. announced the restoration of relations on Dec. 17, 2014, Francis’s 78th birthday.

To be clear, Ortega did not play to universally positive reviews. Among the Cuban exile community in the United States, he was often seen as too soft, too conciliatory, with the regime - he once asserted publicly, for example, that there are no political prisoners in Cuba - and unwilling to speak out with the necessary boldness against violations of human rights and crackdowns on dissent.

During his time, Ortega helped to engineer three papal visits to Cuba: John Paul II in 1998, Benedict XVI in 2012 and Francis in 2015. The first of those visits provided him with an education in the ways of the American press, since in the run-up to the trip it was set to be the global news story of the year. All the A-list American talent of the time, such as Tom Brokaw and Peter Jennings, were on hand to cover the anti-Communist Polish pope’s collision with the Castro regime, and then at the last minute they all flew home because an even bigger story by American standards was brewing: The Monica Lewinsky scandal.

Through it all, Ortega tried to guide his church with caution and resolve. Critics on the American side often faulted him for an excess of caution, while his Cuban counterparts sometimes resented his resolve.

Whatever one makes of Jaime Ortega in the long run of history, what has to be said now is that he handled one of the Catholic Church’s most difficult jobs for 35 long years without public complaint and with consistent dignity, slowly opening more space for the faith to live and breathe under a regime that’s officially atheist and not exactly religion’s best friend.

Ortega never became pope, but he was nevertheless one of the most remarkable churchmen of his time, so it’s appropriate to say today, on behalf of Catholics everywhere: Requiescat in pace.
in CRUX, 28.07.2019
https://cruxnow.com/news-analysis/2019/07/28/cuban-cardinal-dead-at-83-was-a-truly-remarkable-churchman/
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21 julho 2019


P / INFO: Crónicas

Frei Bento – A fé cristã num colégio católico
Padre Anselmo – Decálogo para os núncios
Padre Tolentino - A diáspora portuguesa
           Padre Vítor – Primeiro, Maria; depois, Marta

A FÉ CRISTÃ NUM COLÉGIO CATÓLICO
Frei Bento Domingues, O.P.

A procura da excelência no ensino tem de ser o cuidado de todos, seja qual for a sua orientação.

1. Neste texto, não pretendo abordar as questões gerais do ensino, em Portugal. Não é da minha competência. Pediram-me para tratar do que exige a fé cristã de um Colégio Católico.
É suposto estes colégios terem alguma referência ao Secretariado Nacional da Educação Cristã. Isto não impede que as orientações de cada instituição, com as suas tradições e práticas educativas, possam ser bastante diferentes.
As escolas, segundo os habituais rankings, são classificadas, bem ou mal, pelos resultados académicos. Nunca dei conta que a Religião contasse para esse efeito. Falo de religião em sentido genérico sem, para já, apreciar as tendências dentro deste fenómeno social que, no Ocidente e nomeadamente em Portugal, é cada vez mais investigada pela Sociologia[1].
A Igreja Católica, sobretudo em alguns países do Ocidente, vê-se confrontada com a declaração: “espiritual sim, religioso não”. Uma sondagem do ano passado, na Alemanha, referente ao ensino religioso e ético, dava os seguintes resultados: 52% acredita em Deus, mas só 22% se declara religioso. “Crentes” são o dobro. O facto de haver pessoas que se definem “espirituais” e não “religiosas” ainda não é um fenómeno de massas. É uma minoria, entre os 6 e 13%, mas é uma tendência que se vai afirmando sobretudo entre os jovens.
É preciso ter em conta que, quando, no Ocidente, se fala de religião, a maior parte das pessoas pensa no Cristianismo, nas grandes Igrejas com os seus dogmas e os seus ritos. A distinção entre espiritual e religioso exprime a tentativa de preferir formas de religiosidade que não têm uma conotação eclesial. As normas respeitantes à fé, sentidas como obrigatórias, contam apenas para um número cada vez menor de pessoas. Neste contexto, a expressão mais usada é a de mercado ou mosaico das religiões, seja qual for a sua origem[2].
A Religião é considerada tão privada – cada um tem a sua ou não tem nenhuma – que, mesmo nos colégios católicos, não conta para os seus rankings. Nestes existe, no entanto, uma disciplina, com carga horária, chamada Educação Moral e Religiosa Católica.
2. Quando os colégios tinham regime de internato, ouvi dizer muitas vezes a quem viveu nesse quadro: já tenho missas para o resto da vida. Como dizia o célebre Bispo de Viseu, D. António Alves Martins, a religião deve ser como o sal na sopa: nem de mais nem de menos. Um remédio medíocre contra o aborrecimento.
A verdade é que encontrei, ao longo da vida, pessoas que frequentaram colégios e seminários que conservavam más recordações da religião que lhes era imposta. Isto não significa que não houvesse, também, pessoas agradecidas por essa rigidez disciplinar. Essas reacções, por vezes, manifestavam temperamentos: as alunas/os de carácter mais submisso ou mais rebelde.
Excepto aqueles casos, que de educadores só tinham o nome, pois eram doentios com os educandos, sempre ficou uma boa recordação dos mestres que o eram e da qualidade do ensino e, sobretudo, do sentido da justiça[3].
O que me impressiona é que, na escolha dos professores de Educação Moral e Religiosa, não haja, pelo menos, o cuidado que existe com os professores de matemática e de português.
Num colégio católico devia existir – e em muitos casos talvez já exista – uma equipa pastoral que reúna professores de psicologia, de ciências e literatura para evitar o desfasamento entre o crescimento académico e o crescimento da fé e das suas razões. De outro modo, quando os alunos ouvem nas aulas de Religião narrativas bíblicas sobre a criação, por exemplo, e nas de ciências estudam as teorias da evolução, quem fica a perder é a religião, a linguagem do inverosímil. Parece que não se aprendeu nada com os embates entre a religião e as ciências do passado. Galileu e a Inquisição! Esquece-se, porém, que a teoria do Big-Bang é de um padre, professor da Universidade Católica de Lovaina. A tão falada contradição entre religião e ciência só pode ser fruto da ignorância nos dois campos.
A procura da excelência no ensino tem de ser o cuidado de todos, seja qual for a sua orientação. Esta procura não pode abrandar quando se trata do ensino religioso. Convém não esquecer aquilo que S. Tomás dizia: se sei e digo de cor o Credo, estou a confessar a fé católica, mas se não procuro saber como é verdade aquilo que confesso ser verdade, estou certo, mas de cabeça vazia. Isto era da Idade Média! Agora, o ambiente que se respira não é o da Cristandade. O dom da fé ou é cultivado ou desaparece. Importa criar um ambiente em que a fé cristã surja como uma fonte de alegria. Como dizia S. João[4], isto vos escrevemos para que a vossa alegria seja completa.
3. A educação cristã da fé exige a descoberta progressiva de Jesus Cristo como sentido, como beleza, como responsabilidade da vida e para a vida. Para realizar essa descoberta progressiva, a filosofia, as ciências, a estética e a ética devem andar bem casadas. Como os bons casamentos, também conhecerá as suas turbulências amistosas.
A linguagem simbólica da fé cristã não apaga o pensamento nem a investigação. A linguagem simbólica nasce de fontes profundas. Não pode ser usada como um calmante. Ela é um excitante de todas as manifestações da vida verdadeira. Dá sempre muito que sonhar e pensar.
A expressão estética dos símbolos da fé provocou e convocou, ao longo da história, a grande música, a grande poesia, a grande pintura e a grande arquitectura.
As celebrações, as orações e as múltiplas expressões da espiritualidade, de um colégio católico, devem merecer um tal cuidado, uma tal participação, que se tornem apetecidas e interpelantes.
Um colégio católico deve ser um laboratório da descoberta e da experimentação da fé cristã. Esta exige o respeito prático do pluralismo religioso. A educação para a tolerância, para o diálogo, para a descoberta do outro é o melhor clima para esse laboratório.





[1] Cf. Alfredo Teixeira, Coord., Inquérito Identidades religiosas em Portugal, CERC-CESOP (2011); Identidades religiosas na Área Metropolitana de Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019; Alfredo Teixeira, Religião na Sociedade Portuguesa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019.
[2] Cf. Christoph Paul Hartmann, in Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, 13. 07. 2019.
[3] Cf. Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da angústia, Guimarães Editora, 2000; em sentido contrário, Miguel Sousa Tavares, Cebola Crua Com Sal e Broa, 2018.
[4] 1Jo 1, 1-4
in Público, 21.07.2019
https://www.publico.pt/2019/07/21/sociedade/opiniao/fe-crista-colegio-catolico-1880224
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Decálogo para os núncios
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia

1. A Igreja tem dentro dela, inevitavelmente, uma tensão que a conduz a um paradoxo. Esta tensão e este paradoxo foram descritos de modo penetrante, preciso e límpido pelo sociólogo Olivier Robineau, nestes termos: "A Igreja Católica é uma junção paradoxal de dois elementos opostos por natureza: uma convicção - o descentramento segundo o amor - e um chefe supremo dirigindo uma instituição hierárquica e centralizada segundo um direito unificador, o direito canónico. De um lado, a crença no invisível Deus-Amor; do outro, um aparelho político e jurídico à procura de visibilidade. O Deus do descentramento dos corações que caminha ao lado de uma máquina dogmática centralizadora. O discurso que enaltece uma alteridade gratuita coexiste com o controlo social das almas da civilização paroquial - de que a confissão é o arquétipo - colocado sob a autoridade do Papa. Numa palavra, a antropologia católica tenta associar os extremos: a graça abundante e o cálculo estratégico. Isso dá lugar tanto a São Francisco de Assis como a Torquemada."

2. É com este paradoxo que o Papa Francisco tem de conviver, ao mesmo tempo que tem feito o seu melhor para dar o primado ao Evangelho, ao Deus-Amor, para que a Igreja enquanto instituição - e é inevitável um mínimo de organização institucional - não atraiçoe a Boa Nova de Jesus. Ele é cristão, no sentido mais profundo da palavra: discípulo de Jesus, e quer que todos na Igreja se tornem cristãos, a começar pela hierarquia.

Assim, tem denunciado as doenças da Cúria, avisa os bispos e cardeais para que não sejam príncipes, anuncia para breve uma nova Constituição para a Cúria, o governo central da Igreja. Também neste contexto, convocou recentemente para o Vaticano os núncios do mundo inteiro. As nunciaturas, embaixadas da Santa Sé junto dos governos e das igrejas locais, são uma herança histórica discutível, mas podem ter um papel decisivamente positivo no mundo para estabelecer pontes a favor da justiça, do desenvolvimento, da paz.

Nesse encontro, com a presença de núncios e delegados apostólicos em 193 países e organizações internacionais, o Papa Francisco, dirigindo-se-lhes directamente, avisou: "Estou contente por encontrar-vos de novo para ver convosco e examinarmos com olhos de pastores a vida da Igreja e reflectirmos sobre a vossa delicada e importante missão." Acrescentou: "Pensei partilhar hoje convosco alguns preceitos simples e elementares; trata-se de uma espécie de decálogo, que, na realidade, é dirigido, através de vós, também aos vossos colaboradores e ainda a todos os bispos, sacerdotes e consagrados que encontrais em todas as partes do mundo."

3. O que aí fica é uma breve síntese desse decálogo.

3. 1. O núncio é um homem de Deus.

Ser um homem de Deus significa "seguir Deus em tudo e para tudo". O homem de Deus "não engana nem defrauda o seu próximo".

3. 2. O núncio é um homem de Igreja.

"Sendo um representante pontifício, o núncio, não se representa a si mesmo, mas a Igreja e em particular o sucessor de Pedro, o Papa." Por isso, "é feio ver um núncio que procura o luxo, as vestimentas e os objectos 'de marca' no meio de pessoas sem o necessário. É um contratestemunho. A maior honra para um homem da Igreja é ser 'servo de todos'". "Ser um homem da Igreja significa defender com coragem a Igreja perante as forças do mal que permanentemente procuram desacreditá-la, difamá-la, caluniá-la."

3. 3. O núncio é um homem de zelo apostólico.

Ele é "o anunciador da boa-nova e, sendo apóstolo do Evangelho, tem a tarefa de iluminar o mundo com a luz de Jesus ressuscitado, levando-o aos confins da Terra". "Quem se encontra com ele deveria sentir-se interpelado de alguma maneira." Não se pode esquecer de que "a indiferença é uma doença quase epidémica que se está a propagar em várias formas, não só entre os fiéis em geral mas também entre os membros dos institutos religiosos".

3. 4. O núncio é um homem de reconciliação.

Parte importante do trabalho de todo o núncio é "ser homem de mediação, de comunhão, de diálogo e de reconciliação. O núncio deve procurar ser imparcial e objectivo, para que todas as partes encontrem nele o árbitro correcto que procura sinceramente defender e proteger só a justiça e a paz, sem se deixar influenciar negativamente. Se um núncio se fechasse na sua nunciatura e evitasse encontrar-se com as pessoas, atraiçoaria a sua missão e, em vez de ser factor de comunhão e reconciliação, converter-se-ia em obstáculo e impedimento. Não deve esquecer nunca que representa o rosto da catolicidade e a universalidade da Igreja nas igrejas locais espalhadas por todo o mundo e perante os governos".

3. 5. O núncio é um homem do Papa.

Não se representa a si mesmo, mas o sucessor de Pedro, o Papa, e "age em seu nome perante a Igreja e os governos". Aqui, Francisco, certamente pensando também no ex-núncio Viganò, concluiu: "Portanto, é irreconciliável ser um representante pontifício e criticar o Papa por trás, ter blogues e unir-se, inclusivamente, a grupos que lhe são hostis, a ele, à Cúria e à Igreja de Roma."

3. 6. O núncio é um homem de iniciativa.

"É necessário ter e desenvolver a capacidade e a agilidade para promover e adoptar um comportamento adequado às necessidades do momento, sem cair nunca na rigidez mental, espiritual e humana ou na flexibilidade hipócrita e de camaleão. Não se trata de ser oportunista", mas de saber passar do ideal à sua implementação concreta, "tendo em conta o bem comum e a lealdade ao mandato".

3. 7. O núncio é um homem de obediência.

Sim, de obediência, mas sabendo que "a obediência é inseparável da liberdade, porque só em liberdade podemos obedecer realmente, e só obedecendo ao Evangelho podemos entrar na plenitude da liberdade".

3. 8. O núncio é um homem de oração.

"O Senhor é o bem que não defrauda, o único que não defrauda. E isto requer um desapego de si mesmo que só se pode conseguir com uma relação constante com Ele e a unificação da vida à volta de Jesus Cristo."

3. 9. O núncio é um homem de caridade activa.

É necessário sublinhar permanentemente que "a oração, o caminho do discipulado de Cristo e a conversão encontram na caridade actuante a prova da sua autenticidade evangélica. E desta forma de vida deriva a alegria e a serenidade mental, porque, nos outros, se toca com a mão a carne de Cristo".

A caridade também é gratuita. Por isso, Francisco, aqui, adverte para "o perigo permanente das regalias. A Bíblia define como iníquo o homem que 'aceita presentes por debaixo da mesa para desviar o curso da justiça'. A caridade activa deve levar-nos a ser prudentes na hora de aceitar os presentes que nos oferecem para ofuscar a nossa objectividade e, nalguns casos, desgraçadamente, para comprar a nossa liberdade. Que nenhum presente nos escravize! Recusai os presentes demasiado caros e frequentemente inúteis ou enviai-os para obras de caridade e nunca esqueçais que receber um presente caro nunca justifica o seu uso."

3. 10. O núncio é homem de humildade.

Francisco concluiu, apelando para a virtude da humildade: "Jesus manso e humilde de coração, faz o meu coração parecido com o teu."

in DN, 21 Julho 2019
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

A diáspora portuguesa
A diáspora acontece no encontro de duas perguntas: “de onde vens?” e “onde estás agora?”

Diáspora é, para todos os efeitos, uma palavra nova, pois só na transição do milénio começámos a vê-la aplicada para descrever o fenómeno secular da emigração portuguesa e cartografar a sua complexa morfologia histórica e humana. A verdade é que quando as palavras de sempre nos parecem insuficientes, e se torna perentória a necessidade de encontrar outra gramática, isso corresponde a um movimento epocal, que tanto pode ser de curta como de longa duração — é certo —, mas que precisamos de compreender, se quisermos ser fiéis àquilo que, a cada momento, somos. A história das palavras conta a nossa história, mais do que supomos. Naquela sua invulgar agudeza sobre a natureza humana, a escritora Agustina Bessa-Luís escreveu: “As palavras não significam nada se não forem recebidas como um eco da vontade de quem as ouve.” A palavra não é apenas, portanto, um repositório dos sentidos estabelecidos, mas é um pertinente espelho das mutações em curso, mutações que podem ser individuadas na vontade ou na necessidade atual da nossa auscultação. Temos talvez de começar por isso, por interrogar a nossa necessidade de palavras novas, e perguntar de onde provém essa necessidade e o que é que ela significa.

Se a categoria de “diáspora” se tende hoje a universalizar muito deve à publicação da obra do sociólogo Robin Cohen, intitulada “Global Diasporas” (1997), que procurou mostrar como a condição de diáspora (que começou por ser identificada com o destino de Israel e apenas com ele) é afinal compartilhada por muitas culturas. Basta para isso que uma determinada comunidade viva fora do seu território de origem, mas continue vinculado a ele, através da língua, da identidade, das tradições religiosas ou outras, e das práticas culturais.

A diáspora acontece no encontro de duas perguntas: “de onde vens?” e “onde estás agora?”. A condição que o emigrante testemunha é a deste habitar “entre”, entre cá e lá, nem completamente cá, nem completamente lá, numa elaboração interior que carrega consigo a impossibilidade de ser uma coisa só. A diáspora inaugura efetivos espaços de negociação entre as culturas, iluminando de outra forma aquilo que, de forma simplista, pareciam processos rápidos de deslocação ou de assimilação. E traz um contributo essencial: mostra como a identidade de um país não é simplesmente uma ontologia predeterminada, congelada no tempo e no espaço, mas na fidelidade à sua história, é também um processo de atualização e de reconfiguração.

A condição que o emigrante testemunha é a deste habitar “entre”, entre cá e lá, nem completamente cá nem completamente lá

Lembro-me, por exemplo, de ter visitado há uns anos o Clube madeirense de New Bedford e ter conversado com um homem da minha idade, um lusodescendente da terceira geração. Ele não falava português, nem havia estado alguma vez na Madeira, terra dos seus e dos meus avós. Mas tinha uma camisola com o emblema da Confraria do Santíssimo Sacramento; falou-me longamente das festividades tradicionais da Madeira que se celebram em New Bedford; brindamos com Vinho da Madeira. Foi um encontro para mim comovente e impressivo, falar com este homem, ou ver em seguida em Fall River, em tamanho real, uma réplica das Portas da Cidade de Ponta Delgada. Mas claramente esse encontro foi parcial. A ideia de diáspora obriga-nos a ir mais longe e a olhar para os emigrantes não apenas como embaixadores da cultura portuguesa, mas como coprotagonistas e cocriadores culturais, que nos revelam de Portugal não apenas aquilo que já sabemos. É certamente importante reconhecer a persistência de traços vernaculares de uma história, do imaginário e da tradição comuns. Contudo, torna-se necessário introduzir antenas capazes de captar o que é diferente ou já é diferente, o que é dialetal, transfronteiriço e inovador. Temos de escutar melhor a diáspora, se quisermos compreender e potenciar o país que somos.
in Semanário Expresso, 20.07.2019, p. 157
leitor.expresso.pt/semanario/semanario2438/html/revista-e/que-coisas-sao-as-nuvens/a-diaspora-portuguesa

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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XVI COMUM Ano C
“Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas,
quando uma só é necessária.”
Lc 10,41-42

Primeiro, Maria; depois, Marta

Demasiadas vezes se olhou para o relato de Jesus em casa de Marta e Maria como uma exaltação da vida contemplativa sobre a vida activa. Maria seria a figura de todos os consagrados, privilegiados na proximidade de Deus, e Marta, a representante de todos os que trabalham, e se preocupam com as coisas do dia a dia. Sairia assim desvalorizado o trabalho humano e exaltado um misticismo desencarnado!
Jesus é apresentado em numerosas situações (e em especial por S. Lucas) à mesa, nas casas mais improváveis. Com justos e fariseus, com publicanos e pecadores. Hoje, na casa de duas irmãs. O que ainda é mais extraordinário pelo papel secundário dado então às mulheres! No acolhimento e na intimidade da casa, a presença de Jesus é o centro de qualquer encontro. Por isso, a atarefada Marta não é censurada pelo trabalho mas pela agitação, a preocupação, o espírito de funcionária cheia de “etiqueta de boas maneiras” que secundariza o convidado. O seu agir é funcional e ao serviço da tradição, preocupada, certamente, em oferecer coisas ao convidado em vez de companhia. Maria, ao contrário, sentada aos pés de Jesus, como verdadeira discípula, escuta a sua palavra. Até apetece chamá-la “sonsa”, mas será que havia assim tanto a fazer para que Marta não tivesse a mesma atitude? Tão inquieta com o que queria oferecer a Jesus, não acolheu o que Ele lhes queria oferecer. A “boa parte” (que é também “bela”) que Maria escolheu não foi a preguiça ou o desinteresse, mas o alimento da palavra que Jesus vinha trazer.
Há tempo para tudo. E o importante é saber escolher. Quando Jesus vem à casa da nossa vida, a casa torna-se d’Ele, e nós somos os hóspedes, sentados como Maria a seus pés. Do acolhimento de Jesus à acção: é este o movimento do verdadeiro serviço. Pois a actividade febril, o activismo e o excesso de trabalho, que não se alimentam da Palavra que é Cristo, correm o risco de se tornarem preocupação, problema, conflito e confusão, protagonismo excessivo de nós mesmos. Escutar a Palavra é condição para estabelecer prioridades, organizar e delegar trabalhos, reunir competências, e actuar em comunhão. Não em nome da eficácia ou da tradição, ma sem nome d’Aquele que dá sentido a todas as coisas. É de todos os tempos o que dizia um velho rabino acerca de um colega: “Anda tão ocupado com as coisas de Deus, que até se esquece de que Ele existe!”
Habitam em nós Marta e Maria. São o serviço e a escuta de Jesus. Acolher o céu para melhor cuidar da terra, é deixarmo-nos assim guiar pela presença de Jesus, que conta com as nossas mãos para fazer novas todas as coisas. Não é “uma ou outra”, nem “uma contra a outra”, mas primeiro, Maria, e depois, Marta! E não será então que todo o trabalho se torna criação e colaboração feliz com Deus?
in Voz da Verdade, 21.07.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8330&cont_=ver2